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O CARMELO DESCALÇO E O ESOTERISMO: PARTE 13 - A Cabala na Espanha e São João da Cruz

10/02/2025

Autor: Federico Gonzalez e Mireia Valls
Tradutor: Prof. Gabriel Sapucaia

PRESENÇA VIVA DA CABALA II
A CABALA CRISTÃ
FEDERICO GONZALEZ - MIREIA VALLS

CAPÍTULO VIII
A CABALA NA ESPANHA

Autores: Federico Gonzalez e Mireia Valls

Tradução: Prof. Gabriel Sapucaia

São João da Cruz

A vida e obra de Juan de Yepes devem ser vistas na mesma perspectiva que as de Teresa de Jesús, madre espiritual, ambos de Ávila e de famílias marranas consolidadas no entorno social da época, cujos membros podiam aceder ao sacerdócio, assim como a muitas outras atividades profissionais, como escrivães, licenciados, comerciantes, poetas e, sobretudo, médicos. Ou seja, formavam uma classe culta, inclusive com certo poder económico em Castela e Andaluzia, e em toda a Sefarad integrada ao catolicismo da sociedade, como é o caso, constituindo a cultura ocidental. Esta é herdeira do paganismo grego, do Hermetismo, das religiões mistéricas e gnósticas, dos neoplatónicos e dos neopitagóricos, ou seja, uma tradição esotérica unânime, com poucas variantes ou adaptações, presentes, como estamos a ver, no judeocristianismo; e especialmente nas formas da Cabala no Renascimento em geral e, em particular, no Renascimento espanhol, ao qual os sábios judeus têm atribuído tão pouca importância, no que diz respeito aos vestígios de Israel na extraordinária literatura castelhana da época, especialmente na sua linguagem religiosa e em alguns traços do pensamento cabalístico a um nível distinto do emocional; estamos a referir-nos ao plano intelectual-espiritual no qual trabalham os teurgos de todos os tempos.

Mas o nosso Juan – como tantos rabinos ilustres – trabalhou no plano religioso e no sentido da piedade, da devoção da vida cristã conventual e tudo o que lhe coube na existência, incorporando os prós e contras que teve de superar ao longo da vida no âmbito da realidade do Ser Universal, na qual lhe coube existir e na qual optou pela sua noite escura da alma, vista como o grau mais elevado da Fé, conceito que a Cabala partilha na medida em que essa Fé não é cega, mas, pelo contrário, é uma realidade que se impõe como a manifestação permanente do Si mesmo e do mistério inefável que isso encerra. Espaços indefiníveis não apenas do que É, o Ser Universal, mas também de tudo o que Não é, um imenso âmbito escuro dominado pela virtualidade, embora "ali" nada se produza e a sua própria realidade seja a eterna possibilidade de não se manifestar. Mas nada de discussões sofísticas, o que falamos não é retórica, mas assegura-se (e há unanimidade entre os cabalistas) que se baseia na experiência adquirida graças ao pensamento e à atividade necessária do rito perene.

Homem de letras, graduado em Salamanca, onde certamente conheceu Frei Luís de León, que ali e naquela época ensinava, e de cuja frescura está imbuída a sua própria produção, como de uma vibração benfazeja que ele mesmo, sob a sua influência, continua. A ponto de toda a literatura que estamos a ver parecer ter uma mesma voz, um mesmo tom no concerto cósmico, e ela caracteriza, a nosso ver, a poética religiosa do pensamento judeocristiano.

A isto há que acrescentar que, em termos de doutrina, ele é filho da madre Teresa, com quem conviveu conventualmente durante cinco anos em Ávila, após uma primeira juventude galante e ter sentido vocação missionária no México (era também engenheiro inventor) e a obtenção dos títulos em Salamanca; pelo que tudo o que acabamos de dizer a respeito da santa lhe é igualmente aplicável. Embora seja, ao mesmo tempo, um extraordinário poeta, um pregador religioso nos conventos fundados por eles e um piedoso sacerdote, e, acima de tudo, um criador da nossa língua, que surge no seu maior esplendor neste período histórico.

Por isso, utilizaremos aqui igualmente o sistema de citar as suas poesias para ilustrar o que dizemos, como fizemos com a sua mãe espiritual. Sobretudo porque alguns dos seus livros são meditações sobre as suas poesias, como é o caso da Ascensão ao Monte Carmelo.

Ater-nos-emos ao essencial. E publicaremos em primeiro lugar os seus Diálogos de Amor entre Esposo e Esposa, como faz o Cântico dos Cânticos, do qual é de algum modo uma glosa.

Canções entre a alma e o esposo

Esposa
Onde te escondeste,
Amado, e me deixaste com gemido?
Como o cervo fugiste,
tendo-me ferido;
saí atrás de ti clamando, e já tinhas partido.

Pastores que por aí
pelas majadas ao outeiro passardes,
se porventura virdes
aquele que mais quero,
dizei-lhe que adoeço, peno e morro.

Procurando meus amores,
irei por esses montes e ribeiras;
não colherei as flores,
nem temerei as feras,
e passarei os fortes e fronteiras.

Pergunta às criaturas
Ó bosques e espessuras,
plantados pela mão do Amado;
ó prado de verdura,
de flores esmaltado,
dizei se por vós ele passou!

Resposta das criaturas
Mil graças derramando,
passou por esses bosques com pressa,
e, ao olhá-los,
com apenas a sua figura
deixou-os vestidos de beleza.

Esposa
Ai, quem me curará?
Acaba de te entregar verdadeiramente.
Não queiras enviar-me
de hoje em diante mensageiros,
que não sabem dizer-me o que quero.

E todos quantos vêm
de ti me contam mil graças,
e todos mais me ferem
e deixam-me morrendo
um não sei quê que balbuciam.

Mas como perseveras,
ó vida, não vivendo onde vives
e fazendo morrer
com as flechas que recebes
daquilo que do Amado em ti concebes?

Por que, pois feriste
este coração, não o curaste?
E, pois o roubaste,
por que assim o deixaste
e não tomas o roubo que roubaste?

Apaça meus desgostos,
pois ninguém basta para desfazê-los;
e vejam-te meus olhos,
pois és luz deles,
e só para ti quero tê-los.

Ó fonte cristalina,
se nesses teus semblantes prateados
formasses de repente
os olhos desejados
que tenho nas minhas entranhas desenhados!

Aparta-os, Amado,
que vou voando.

Esposo
Volta, pomba,
que o cervo ferido
pelo outeiro aparece
ao ar do teu voo,
e fresco toma.

Esposa
Meu Amado, as montanhas,
os vales solitários e arborizados,
as ilhas estranhas,
os rios sonorosos,
o assobio dos ares amorosos,
a noite sossegada
junto aos levantes da aurora,
a música calada,
a solidão sonora,
a ceia que recreia e enamora.

Nosso leito florido,
de cavernas de leões entrelaçado,
em púrpura estendido,
de paz edificado,
de mil escudos de ouro coroado.

E atrás da tua pegada
as jovens percorrem o caminho
ao toque de centelha,
ao vinho preparado;
emanações de bálsamo divino.

Na adega interior
do meu Amado bebi, e quando saía,
por toda esta vega
já nada sabia
e perdi o gado que antes seguia.

Ali me deu seu peito,
ali me ensinou ciência muito saborosa,
e eu dei-lhe de facto
a mim, sem deixar coisa;
ali prometi ser sua esposa.

Minha alma empregou-se
e todo o meu caudal no seu serviço.
Já não guardo gado
nem tenho outro ofício,
que já só em amar é o meu exercício.

Pois se no ejido
de hoje em diante não for vista nem achada,
direis que me perdi;
que, andando enamorada,
me fiz perdida, e fui ganhada.

De flores e esmeraldas,
nas frescas manhãs escolhidas,
faremos as grinaldas,
no teu amor florescidas
e num cabelo meu entrelaçadas.

Só naquele cabelo
que no meu pescoço voar consideraste,
olhaste-o no meu pescoço,
e nele preso ficaste,
e num dos meus olhos te feriste.

Quando tu me olhavas,
tua graça em meus olhos imprimias;
por isso me admiravas,
e nisso mereciam
os meus adorar o que em ti viam.

Não queiras desprezar-me,
que, se cor morena em mim encontraste,
já bem podes olhar-me
depois que me olhaste,
que graça e beleza em mim deixaste.

Apanhai-nos as raposas,
que já está florida a nossa vinha,
enquanto de rosas
fazemos uma pinha,
e não apareça ninguém na montanha.

Detém-te, vento norte morto.
Vem, austro, que recordas os amores;
aspira pelo meu jardim
e corram os seus odores,
e pastará o Amado entre flores…

Como se pode apreciar, o erotismo divino e a cópula e luxúria sagrada simbolizam e encarnam-se como formas arquetípicas da cosmogonia, carregadas de múltiplos significados teúrgicos. Poderá apreciar-se na seguinte composição a influência da sua mestra, que tem um poema com esse nome e conteúdo análogo.

Vivo sem viver em mim
Vivo sem viver em mim,
e de tal maneira espero,
que morro porque não morro.

Em mim já não vivo,
e sem Deus viver não posso;
pois sem ele e sem mim fico,
este viver, o que será?
Mil mortes me fará,
pois a minha própria vida espero,
morrendo porque não morro.

Esta vida que vivo
é privação de viver;
e assim é contínuo morrer
até que viva contigo.
Ouve, meu Deus, o que digo,
que esta vida não a quero;
que morro porque não morro.

Estando ausente de ti,
que vida posso ter,
senão sofrer a morte,
a maior que nunca vi?
Tenho pena de mim,
pois de tal maneira persevero,
que morro porque não morro.

O peixe que da água sai,
ainda de alívio não carece,
que na morte que padece,
ao fim a morte lhe vale.
Que morte haverá que se iguale
ao meu viver lastimoso,
pois, quanto mais vivo, mais morro?

Quando penso aliviar-me
de te ver no Sacramento,
faz-me mais sentimento
não te poder gozar;
tudo é para mais pensar,
por não te ver como quero,
e morro porque não morro.

E se me alegro, Senhor,
com esperança de te ver,
ao ver que posso perder-te
dobra-se a minha dor;
vivendo em tanto pavor
e espero como espero,
morrendo porque não morro.

Tira-me desta morte,
meu Deus, e dá-me a vida;
não me tenhas impedida
neste laço tão forte;
olha que peno por te ver,
e o meu mal é tão inteiro,
que morro porque não morro.

Chorarei a minha morte,
e lamentarei a minha vida
enquanto detida
pelos meus pecados está.
Ó meu Deus, quando será
que eu diga verdadeiramente:
vivo já porque não morro?

Nestes cantares, a sua alma deleita-se em conhecer a Deus pelo que chama Fé, ainda que seja de noite.

Que bem sei eu a fonte que mana e corre
Que bem sei eu a fonte que mana e corre,
ainda que seja de noite.

Aquela eterna fonte está escondida,
que bem sei eu onde tem a sua morada,
ainda que seja de noite.

[ Nesta noite escura desta vida,
que bem sei eu pela fé a fonte fria,
ainda que seja de noite. ]

A sua origem não sei, pois não a tem,
mas sei que toda a origem dela vem,
ainda que seja de noite.

Sei que não pode haver coisa tão bela
e que céus e terra bebem dela,
ainda que seja de noite.

A sua claridade nunca é obscurecida,
e sei que toda a luz dela é vinda,
ainda que seja de noite.

Sei que são tão caudalosas as suas correntes,
que infernos, céus regam, e as gentes,
ainda que seja de noite.

A corrente que nasce desta fonte
bem sei que é tão capaz e omnipotente,
ainda que seja de noite.

A corrente que destas duas procede,
sei que nenhuma delas a precede,
ainda que seja de noite.

[ Bem sei que três numa só água viva
residem, e uma da outra se deriva,
ainda que seja de noite. ]

Esta eterna fonte está escondida
neste pão vivo para nos dar vida,
ainda que seja de noite.

Aqui está a chamar as criaturas,
e desta água se fartam, ainda que às escuras,
porque é de noite.

Esta fonte viva que desejo,
neste pão da vida eu a vejo,
ainda que seja de noite.

E continua com imagens do Amor, levadas pelo erotismo das suas letras a uma visão beatífica de todas as coisas restituídas à sua própria essência.

Monte Carmelo
A ventura ditosa que teve ao par
pela NOITE ESCURA da fé
à união do Amado

Na noite escura,
com ânsias, em amores inflamada,
ó ventura ditosa!,
saí sem ser notada,
estando já a minha casa sossegada;
às escuras e segura
pela escada secreta, disfarçada,
ó ventura ditosa!,
às escuras e escondida,
estando já a minha casa sossegada;
na noite ditosa,
em segredo, que ninguém me via
nem eu olhava coisa,
sem outra luz e guia
senão a que no coração ardia.

Esta me guiava
mais certa que a luz do meio-dia
onde me esperava
aquele que eu bem sabia,
em lugar onde ninguém parecia.
Ó noite que guiaste!;
ó noite amável mais que a alvorada!;
ó noite que juntaste
Amado com amada,
amada no Amado transformada!

No meu peito florido,
que inteiro para ele só se guardava,
ali ficou dormido,
e eu o regalava,
e o leque de cedros ar fazia.

O ar da ameia,
quando eu os seus cabelos espalhava,
com a sua mão serena
no meu pescoço fería,
e todos os meus sentidos suspendía.

Fiquei e esqueci-me,
o rosto reclinado sobre o Amado;
cessou tudo e deixei-me,
deixando o meu cuidado
entre os lírios esquecido.

E abundando, as suas coplas feitas sobre um êxtase de muita contemplação que apontam mais para um estado apofático do que para uma experiência simplesmente religiosa.

Entrei onde não soube
Entrei onde não soube,
e fiquei não sabendo,
toda a ciência transcendendo.

Eu não soube onde entrava,
mas, quando ali me vi,
sem saber onde estava,
grandes coisas entendi;
não direi o que senti,
que fiquei não sabendo,
toda a ciência transcendendo.

De paz e de piedade

– era a ciência perfeita,

– na profunda soledade

– entendida via reta,

– era coisa tão secreta,

– que fiquei balbuciando,

– toda ciência transcendendo.

Estava tão embebido,

– tão absorto e alienado,

– que ficou meu sentido

– de todo sentir privado,

– do espírito dotado

– de um entender não entendido,

– toda ciência transcendendo.

Quem ali chega de vero

– de si mesmo desfalece;

– quanto sabia primeiro

– muito baixo lhe parece,

– e sua ciência tanto cresce,

– que se queda não sabendo,

– toda ciência transcendendo.

Quanto mais alto se sobe,

– tanto menos se entendia,

– que é a tenebrosa nuvem

– que à noite esclarecia;

– por isso quem a sabia

– fica sempre não sabendo,

– toda ciência transcendendo.

Este saber não sabendo

– é de tão alto poder,

– que os sábios arguindo

– jamais o podem vencer,

– pois não chega seu saber

– a não entender entendendo,

– toda ciência transcendendo.

E é tão alta excelência

– este sumo saber,

– que não há faculdade ou ciência

– que o possa compreender;

– quem souber se vencer

– com um não saber sabendo,

– irá sempre transcendendo.

E se o quiserdes ouvir,

– consiste esta suma ciência

– em sublime sentir

– da divina Essência;

– é obra de Sua clemência

– fazer quedar não entendendo,

– toda ciência transcendendo.

Pode-se ver nestes textos o desenvolvimento de um esquema: o caçador que logra sua presa após suas angústias e ais e se vê diante da perspectiva de perdê-la novamente. Ou seja, deseja-se – encontra-se – perde-se – o desejo se renova. A união é sempre sucessiva e circular, não tende à saída do plano por espiral. Conforma-se com um nível elevado, como pode ser observado nestes poemas, ainda que insuficiente sob a perspectiva metafísica. Onde tudo é ainda mais sutil, translúcido, e permanece como um estado despojado, silêncio polidimensional, perpetuamente coagulado em luz pela síntese alquímica.

Leão Hebreu


NOTAS
⁵⁸⁴ Ver Cecil Roth, Histoire des marranes. "Quelques personnalités marranes". Éditions Liana Levi, Paris, 1990, p. 235. Mais uma vez, deve-se destacar a importância da Espanha judaica, ou seja, da própria Sefarad – imagem da Sefarad bíblica – como parte da identidade do país na época, e que levará dois séculos para desaparecer de sua cultura, já sob total hegemonia cristã.
⁵⁸⁵ Assim como Frei Luís, João da Cruz sofreu nove meses de prisão ordenada pelos inquisidores, os quais passou em Toledo.
⁵⁸⁶ No judaísmo, o acento recai sobre a lei e sua prática literal ao extremo. É típico o exemplo do tabu sobre a inatividade do sábado, criticado por Jesus nos evangelhos. Assim como a crueldade do Shylock shakespeariano, amparada pela legalidade.
⁵⁸⁷ São João da Cruz, Doutor da Igreja, Obras Completas. Poesias, (Fragmento). Editorial B.A.C., Madrid, 1982, p. 25.
⁵⁸⁸ A crítica vinculou as "ínsulas estranhas" à América.
⁵⁸⁹ Ibid., p. 10.
⁵⁹⁰ Ibid., p. 11.
⁵⁹¹ Ibid., p. 32.
⁵⁹² Ibid., p. 35-37.