Origens da Devotio Moderna: PARTE 4 - Influência de Pseudo-Dionísio na Mística do Carmelo Descalço (reformado)
01/01/2025
Autor: Washington Barbosa da Silva
![]() |
![]() |
![]() |
O Pseudo-Dionísio Areopagita e sua influência doutrinal sobre a mística do Carmelo Descalço
WASHINGTON BARBOSA DA SILVA
Introdução
O autor do Corpus Dionysiacum foi associado, por muito tem- po, àquele grego convertido por São Paulo em sua falida pregação no areópago ateniense relatada no livro bíblico dos Atos dos Apóstolos 17,34. O Pseudo-Dionísio, mesmo tendo seu nome incógnito, não desmereceu a literatura que deixou de grande valor patrístico, filosó- fico e místico.
A propósito de esclarecimento, foram utilizados no corpo do presente texto vários vocativos pelos quais se evoca o mesmo autor do Corpus Dionysiacum: Dionísio, Pseudo-Dionísio, Pseudo-Areopa- gita, Areopagita, Pai da mística. Ação propositada para que o discurso tivesse maior fluidez. Todavia, permanece a clareza do pseudônimo desse autor.
Na primeira seção, se exporá o contexto histórico-cultural e a Doutrina do Pseudo-Dionísio. A seguir, será apresentado seu Corpus e, descerrando sua grande riqueza patrística, se fará perceber por que recebeu a fama de Pai da mística cristã.
Encerrando o artigo, como segunda proposta da pesquisa, será exposta a influência dionisiana sobre os principais expoentes do Car- melo Descalço: Santa Teresa de Jesus de Ávila e São João da Cruz – autores espanhóis que deixaram rica herança literária oriundas de suas experiências místicas. A proposta do Pseudo-Areopagita não influenciou apenas os místicos do Carmelo da época áurea espa- nhola, se fazendo presente também na contemporaneidade; é o caso da intelectual, e também carmelita, Edith Stein, que aprofundou o pensamento dionisiano em sua vida e obras. Essa autora aduz que o Areopagita é um dos mais influentes, se não o mais influente dos Padres gregos.
O pseudo-dionísio areopagita: contexto histórico e doutrina
Autor do final do século V do cristianismo, Dionísio, intitulado o Areopagita, foi declarado como sendo o ateniense convertido por São Paulo em sua falida pregação no areópago: "Ao ouvirem falar da ressurreição dos mortos, alguns começaram a zombar [dele]. Foi assim que Paulo retirou-se do meio deles. Alguns homens, porém, aderiram a ele e abraçaram a fé. Entre esses achava-se Dionísio, o Areopagita"2. Dionísio, em seu escrito DN 3.681 A, se autoriza como discípulo de Paulo e Hieroteu (pseudônimo de Proclo): "Foi ele meu principal mestre depois de São Paulo".
O epíteto Dionísio Areopagita, que recebeu o autor do Corpus Dionysiacum, foi aceito até a Renascença, afirma Spanneut3. O "discí- pulo" de Paulo foi mencionado, pela primeira vez, pelos monofisistas severianos e por Hipásio, bispo de Éfeso, em Constantinopla (532). Seus escritos foram tidos como apostólicos, já que seu mestre havia sido São Paulo – como criam os fiéis –, sendo logo utilizados na li- turgia oriental, porque autoridade reconhecida pela Igreja desde o século VI4.
No Ocidente, a partir do século IX ao século XVI, foi consi- derado como grande vulto, e seus escritos eram solicitados quando ocorriam controvérsias espirituais e de fé5. No entanto, segundo Mo- reschini, nomes como Lourenço de Valla e Erasmo de Roterdã colo- caram em xeque a veracidade do autor do Corpus Dionysiacum. Não obstante, igual incerteza trouxe à tona verdades sobre o autor e as obras dionisianas: "O Pseudo-Dionísio era um cristão de origem siría- ca que nos últimos decênios do século V e início do século VI seguiu em Atenas as lições de Proclo e de Damáscio. Como foi observado, no final do século V a escola neoplatônica de Atenas era frequentada por numerosos sírios"6.
O pensamento dionisiano é marcado pela presença do neopla- tonismo, mais pontualmente o pós-plotiniano de Porfírio, de Proclo e de Damáscio. Sobretudo, são os pensamentos dos Padres capadócios, de São Clemente, de Orígenes e de Teodoreto, nos quais o Areopagita se baseia. A teologia pseudo-dionisiana se qualifica sobre nove pon- tos, e está pulverizada em seus tratados e epistolário: Os momentos da Permanência, da Processão e do Retorno divinos; os aspectos da Processão; a exegese do Parmênedes; o método positivo e negativo; as propriedades negativas da moné; a lei de Proclo sobre as negações; a doutrina do Um-Tudo; a doutrina trinitária; e a cristologia7. Seguem explicitação de algumas.
Os momentos da Permanência, da Processão e do Retorno di- vinos. A Permanência (moné) é o momento absoluto e transcendente de Deus, Primeiro princípio ou Causa universal, que permanece em si mesmo. A Processão (próodos) é a emanação da potência infinita do mesmo Princípio como transbordamento que, ao se multiplicar, dá origem aos seres. O Retorno (epistrophé) é a tendência da Processão, e de todos os seres que dela fazem parte, de voltar à sua fonte origi- nária.
Método positivo e negativo. A teologia admite um e outro mé- todo e, ambos, não se contradizem entre si. O método positivo (cata- fático) atribui a Deus toda propriedade e identifica a divindade com os outros seres dando-lhe adjetivos, o conceituando e o considerando como sua Causa universal. O método negativo (apofático) priva a Divindade dos atributos mais altos pela abstração lógica.
O Corpus Dionysiacum
Pertencem ao Corpus Dionysiacum quatro escritos maiores – De coelesti Hierarchia, De Ecclesiastica Hierarchia, De Divinis Nomi- nibus e De Mystica Theologia –, e um epistolário composto por dez cartas; sendo essa a ordem tradicional que a Patrística de Migne, P.G. apresenta nos tomos III e IV8. No entanto, são mencionados outros tratados os quais o autor refere-se em suas obras, porém não chega- ram até nós ou por serem fictícios ou por se terem perdido: Repre- sentações teológicas, Sobre a alma, Sobre o justo juízo de Deus e Sobre os objetos inteligíveis e os objetos do sentido. Enfim, O Corpus trata de uma teologia ascensional: a Teologia simbólica ou Representações teológicas, como primeiro degrau da teologia afirmativa; a teologia ca- tafática, que afirma Deus na ordem descendente; a teologia apofática, que nega os princípios afirmados pela teologia catafática, sendo de ordem ascendente; e, por fim, a Teologia Mística9.
A Hierarquia celeste: O Tratado é composto por quinze capítulos e apresenta um rígido sistema hierárquico, com leis bastante precisas, às várias classes angélicas nomeadas pelo Antigo Tes- tamento bíblico e por São Paulo. A hierarquia, definida por Dionísio como a ordem completa das coisas santas existentes, não serve para separar Deus de suas criaturas, mas os une. Deus é a fonte onde nasce todo ente e participam Dele todos os seres, a Luz da Sabedoria divina desce do Pai das luzes através da hierarquia celeste até ao homem por analogia. A meta do Areopagita, nessa obra, é apontar quais as diferenças entre os nove coros angélicos, assim como sua relação re- cíproca10.
Ele apresenta as três subdivisões ou ordens da hierarquia ce- leste: a) os querubins têm compreensão profunda da luz divina e a refletem às outras classes; os serafins abrasam, queimam, com o ardor do amor divino e têm poder de inflamar seus subordinados; os tronos elevam-se sobre tudo, sendo espíritos mais elevados, pois "recebem em toda plenitude o saber imaterial de uma luz superior" (CH 7.208 B). b) as dominações são as do domínio celeste, pois estão isentos de toda contingência terrestre; as virtudes têm virilidade, força inquebrantá- vel, e não permitem que nada diminua as iluminações que Deus lhes concede; as potências são alusão às potências supraterrestres, trans- mitida pela Potência Original, elevando as outras classes angélicas ao Arquétipo de toda potência. c) os principados têm o poder de dirigir, pois guiam de maneira semelhante a Deus; os arcanjos são classe que intercambia os principados e os anjos. E, assim como os arcanjos efe- tuam tal elo, da mesma maneira, os anjos atuam sobre essas classes angélicas e os homens11.
A Hierarquia Eclesiástica: O Tratado é composto por sete ca- pítulos, e estabelece um paralelo entre hierarquia celeste e terrestre. O Areopagita qualifica a liturgia, a hierarquia Eclesiástica, com di- mensão muito mais ampla do que um mero ritual do qual advém os sacramentos para "consumo" pessoal: é Jesus Cristo – Deus e Homem verdadeiro –, que se acerca de seu povo, através dos ritos, da leitura da Sagrada Escritura e dos gestos simbólicos. A hierarquia terrestre imita a hierarquia celeste, formando uma unidade a partir da ordem e da ação com o fim de assimilar a Deus. A hierarquia terrestre é mista e corpórea, e é instruída pela hierarquia dos anjos que – sendo incor- pória e inteligente-inteligível –, a auxilia por meio da contemplação, elevando-a às realidades inteligíveis12.
Edith Stein resume, com clareza, a compreensão das duas hierarquias areopagitas:
Deus se manifesta em primeiro lugar aos espíritos puros, cuja capaci- dade intelectual natural é superior a nossa, e neles a luz divina não en- contra nenhuma oposição interior. Eles mantêm o ofício de transmitir a luz recebida, perpetuando seu ofício na 'Hierarquia Eclesiástica', nos grupos humanos cujos membros estão chamados à vida e ao serviço 'angélico'. Com espírito purificado devem receber e administrar os mistérios divinos; a eles pertence inclusive o anúncio e explicação da Palavra divina13.
Os Nomes Divinos: O Tratado tem treze capítulos, sendo o mais longo dos escritos, e examina os nomes mais significativos atri- buídos a Deus na Sagrada Escritura. Nele, a Palavra de Deus, evocada por Dionísio como teologia, deve ser o centro na vida de seus mensa- geiros, os teólogos – os anjos e os da hierarquia terrestre. O Areopa- gita apresenta três formas de se nomear a Deus: por negação, através da causalidade e seus efeitos, e referindo-se aos nomes distintos e "supraessenciais" do Pai, do Filho e do Espírito Santo14.
No sétimo capítulo, Dionísio nos surpreende afirmando que "Atribuímos a carência da razão àquele que está sobre a razão e a imper- feição [Deus]" (DN 7.869 A). Porém responde que o homem conhece a Deus "[...] pela ordem de todas as coisas, enquanto está disposto por ele [Deus] mesmo" (DN 7.869 C). Contudo, Dionísio exorta a melhor maneira de conhecer a Deus: "[...] a Deus se alcança não sabendo, pela união que sobrepõe todo entender." (DN 7.872 A), isto é, a Teologia Mística.
A Teologia mística: O último Tratado tem apenas cinco ca- pítulos, sendo o mais breve e se dedicando inteiramente a expor a doutrina mística do Areopagita. De Mystica Theologia não admite métodos em si, pois é a experiência que está além de toda ciência. O Areopagita, após tratar da teologia afirmativa, nas obras citadas ante- riormente, pretende com seu útltimo tratado apenas silenciar e fazer calar a quem o lesse. Não desejava dar explicações, pois não fazia um estudo reflexivo sobre o Mistério; porque, ao invés de ser teologia mística, seria teologia da mística15.
A mística, na doutrina cristã, é viver profundamente o mistério cristão: a união com Deus. A mística da qual trata o Areopagita leva o homem a tomar consciência e a adentrar vivencialmente no Mistério, que é o próprio Deus. Unir-se a Deus é tornar-se semelhante a Ele, e ocorre na total ignorância do não saber, porque aquieta toda ativida- de intelectiva. A teologia negativa é meio e, como não é o fim em si mesma, sua finalidade é elevar o homem à união com Deus, livrando-o de erros ocorridos durante essa busca – as projeções sobre Deus16.
O Epistolário: É composto por dez Cartas endereçadas a Gaio, a Demófilo, ao diácono Doroteu, ao sacerdote Sosípatro, a São Po- licarpo de Esmirna, a Tito, ao Evangelista São João, exilado na ilha de Patmos (sobre a qual a crítica afirma não fazer parte do Corpus, tendo como a principal intenção a de comprovar a origem apostólica do Pseudo-Dionísio)17.
Influências sobre a mística do carmelo descalço
A Doutrina do Areopagita aparece na Espanha a partir do sé- culo X e chega até aos espirituais da época. Os estudiosos têm dú- vidas de como o pensamento dionisiano chegou realmente às terras hispânicas; alguns afirmam ter adentrado indiretamente através de São Boaventura e Hugo de Balma, devido às questões da grande dificuldade de tradução do Corpus Dionysiacum para o castelhano. No entanto, outros expertos não concordam com igual parecer, pois afir- mam que a obra dionisiana De Mystica Theologia foi chave hemenêu- tica do Terceiro Abecedário de Osuna18.
Tratar de oração na Espanha, no século XVI, era seguir a Dio- nísio Areopagita diretamente ou por meio de seus intérpretes: os franciscanos Francisco Jiménez, Francisco de Osuna e Bernardino de Laredo; Alonso de Cartagena (bispo de Burgos), o Cardeal Francisco de Cisneiros e São João de Ávila; os dominicanos Luís de Granada e Bartolomeu dos mártires – espirituais que difundiram a doutrina areopagita na Espanha19. Junto a esses seguidores do Areopagita, na época de ouro da espiritualidade espanhola, também aparecem os carmelitas que passavam por período importante na história de sua Ordem, em sua reforma: Santa Teresa de Jesus e São João da Cruz, importantes místicos e escritores de grande significado para a Espanha.
Santa Teresa D'ávila (1515-1582): Santa Teresa leu mui- tos bons livros, em sua fase de conversão, como as Cartas de São Jerônimo, Moralias de Jó de São Gregório Magno, as Confissões de San- to Agostinho. Em sua fase de iniciação espiritual, se assim se poderia dizer, leu os escritores da corrente literária dos espirituais espanhóis que foram citados anteriormente20. A seguir, aponta-se tais autores e em quais obras a Santa Teresa os cita.
Francisco de Osuna em o Terceiro abecedário (Livro da Vida 4,7; 11,6; 4 Moradas 3,2): nessa obra, o autor tem como foco principal o "recolhimento", como aplicação da Teologia mística e negativa do Areopagita. Bernardino de Laredo em A Subida do monte Sião (Livro da Vida 23,12): afirmava chegar à união mística com Deus de modo "supraintelectual", pensamento que herdou de Dionísio, como afirma o próprio autor. São João da Cruz: seus escritos apresentam forte influência dionisiana como se verá mais adiante21.
Santa Teresa faz referência em Livro da Vida sobre a nomen- clatura do Areopagita teologia mística: "[...] quanto ao que comecei a falar sobre a teologia mística – acho que é esse seu nome [...]" (11,5); "na teologia mística, de que comecei a falar, o intelecto deixa de agir porque Deus o suspende [...]" (12,5); "na teologia mística, ela é explicada, en- quanto eu não tenho palavras para dizê-lo [...]" (18,2). Ela remete tal nomenclatura daquilo que aprendeu nos livros espirituais dos quais leu: Osuna, Granada, Laredo.
Teresa deu, entretanto, salto consistente em sua própria mística, empregando-lhe marca doutrinal original, fugindo daquela maneira e itinerário espiritual da época, contribuindo positivamente com uma mística experiencial. Segundo Tomás Álvarez, a maioria dos livros lidos pela santa são ascéticos, marcando o místico da literatura do Car- melo Descalço. Contudo, com a contribuição dos escritos posterio- res de Santa Teresa, ocorre o equilíbrio ascético-místico, sendo essa a marca original da Madre Fundadora. Em Castelo interior ou Moradas, por exemplo, Teresa tem consciência de escrever um tratado de teologia espiritual; e conhece muito sobre a teologia espiritual apreendida nos livros lidos, mesmo afirmando o contrário (Livro da Vida 10; 11; 12). Ela conhece a estruturação tradicional das três vias areopagitas (purgativa, iluminativa e unitiva), mas as deixa de lado (Livro da Vida 22,1) optando, em Castelo interior, pela estrutura septenária como conceito de perfeição: as moradas têm uma gradualidade, ao mesmo tempo antropológica e teologal, e o amor expande o castelo interior do ser humano como recíproca relação de amizade com Deus, levan- do-o também ao amor ao próximo (5Moradas 3,9)22.
São João da Cruz (1542-1591): O Padre Quiroga ou José de Jesus Maria, primeiro historiador do Carmelo Descalço, afirmava que entre as matérias escolásticas que São João da Cruz estudou em Salamanca estavam os escritos de autores místicos, em particular, os de São Gregório e São Dionísio (como era aceito na época). Por causa da Santa Inquisição, era muito complicado escrever sobre mística na Espanha do século XVI; porquanto, ao se querer publicar os escritos de João da Cruz em 1618, os teólogos de Alcalá e Bórgia fizeram inúmeras advertências e correções ao texto. Como era costume na época, tiveram de confrontar a doutrina de São João da Cruz com a do "Pai da Teologia mística" e encontraram satisfatórias semelhanças de doutrinas, permitindo assim sua difusão23.
São João da Cruz cita explicitamente, em cada uma de suas obras, a afirmação: "São Dionísio e outros místicos teólogos denominam a esta contemplação infusa de Raio de treva." (2Subida 8,6; 2Noite escura 5,3; Cântico espiritual 14,16; Chama viva 3,49). A in- fluência da doutrina dionisiana aparece no autor como: o apofatismo, a purificação como próprio fruto da contemplação que ilumina, e as alegorias utilizadas pelos dois autores24.
Nas obras Subida e Noite escura, de João da Cruz, encontram-se as vias purgativas e a negação das coisas sensíveis e do entendimento (1S 1,1-3; 1S 2,1; 1S 5,7; 2S 1,1-3; 2S 4,2; 2S 6,8; 2S 11,2.9; 2S 15;prólogo da 1N; 1N 1,1; 1N 8,3; 1N 9,8; 1N 15,1), e a da privação do saber (1S 4,5; 2S 4,4). João da Cruz resume, utilizando a teologia apofática dionisiana, no famoso gráfico para se subir ao monte, sua doutrina da negação total para viver a união com Deus (1S 13,11- 12). Os pontos sobre "incompreensibilidade" e "inacessibilidade divi- nas", a negação de imagens e conceitos para representar a Deus que é inefável, e o caráter obscuro da contemplação/teologia mística está em consonância entre os dois autores25.
Quanto ao conceito "Teologia mística", o Pseudo-Dionísio fala que é o "raio de treva" (MT1.100 A). João da Cruz, em Noite es- cura e Subida, o superabunda em sinônimos ao se referir à mesma: "sabedoria secreta de Deus" (2S 8,6), "contemplação obscura" (epí- logo de 1N; 2N 6, 4-5), "contemplação mística" (1N 8,1), "secreta contemplação" (1N 11,2), "contemplação infusa" (1N 12,1; 2N 5,1), "divina sabedoria" (1N 12,4; 2N 4), "contemplação obscura, noite de contemplação, horrenda noite do espírito" (2N 1), "pura e tenebrosa contemplação" (2N 3,3), para se empregar alguns exemplos.
Apesar de toda a afinidade das doutrinas entre os autores, muita coisa as faz divergir. A antropologia, a filosofia e a teologia, por exem- plo, são muito diferentes entre os dois: João da Cruz assume, em sua antropologia, a doutrina agostiniana das três potências da alma e o do suposto unitário escolástico; em sua teologia, João da Cruz apresenta Cristo e o Espírito Santo com papéis decisivos; diferente é a doutrina dionisiana, que não o faz. O autor espanhol trouxe o tema das três virtudes teologais, que colocam a alma nas trevas e no vazio absoluto (2S 6,1; 6,4; 7,5), coisa que não fez o Areopagita. Não há paralelismo entre o "êxtase" de Dionísio (MT 1.1000 A) e o de João da Cruz (13ª estrofe do Cântico espiritual): o dionisiano é o sair de si e de todas as coisas; o sanjuanista é a saída (e, consequentemente, a entrada) com matiz afetivo, ascético e catártico. Além disso, tal saída leva a uma entrada totalmente diferente entre os dois autores: em Dionísio, à "treva"; em João da Cruz, ao encontro com Cristo26.
Santa Teresa Benedita da Cruz (1891-1942): Teresa Benedita, Edith Stein, não pertenceu à Espanha da época de Santa Teresa e São João da Cruz. Ela foi uma pensadora do movimento fenomenológi- co alemão; e, do judaísmo, se converteu ao cristianismo, tornando-se monja carmelita; que, ceifada nos campos de concentração de Aus- chwitz, tornou-se mártir da Igreja.
A autora era uma profunda conhecedora da doutrina dioni- siana, e seu interesse pela personagem e o pensamento de Dionísio aparece primeiramente em sua obra magna Ser finito e ser eterno, na seção VII, que retoma o tratado a Hierarquia celeste do autor, fazen- do-lhe um resumo de cunho fenomenológico. No entanto, é em 1940 que se dedica com afinco nos escritos do Areopagita. Primeiramen- te, lhe pedem colaboração na Revista americana de fenomenologia Journal of Philosophy and Phenomenological Research para qual Edith propõe um trabalho sobre o Areopagita. Contudo, conforme perce- beu, o trabalho não ficou apropriado para a revista de fenomenologia. Porém ele foi publicado somente em 1946, post mortem, na revista holandesa Tijd schrift voor Philosophie e na revista americana The Thomist. Com este trabalho, Edith Stein teve de traduzir a obra original do Areopagita – assim como fez com a tradução da Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino – para o alemão, levando-a a mergulhar no pensamento do autor. Wege der Gotteserkenntnis. Die "Symboliche Theologie" dês Areopagite nun dihresachliche Voraussetzunger (Cami- nhos do conhecimento de Deus sobre o Areopagita) foi concluída por ela ao final de maio de 1941; e recupera, a partir dos escritos dionisianos, a Teologia simbólica do autor27.
A teologia negativa, na reflexão de Edith Stein, segundo Ales Bello (2014), apresenta a razão incapaz de penetrar no Mistério. Ela necessita, no primeiro momento, da fé que é conhecimento obscuro para o intelecto completar-se e se superar. E, no momento seguinte, a mística que – ao contrário da fé –, tem extraordinário poder de re- velação e prefigura a visão beatífica, conduz o ser humano a tal expe- riência. Portanto, neste contexto, a teologia negativa tem dupla fun- ção: apresenta a grande dessemelhança entre Deus e o ser humano; e, ao mesmo tempo, apresenta a similitude entre as partes; devendo ser perseguida. Ela é um meio de elevação para Deus, que, começando de baixo, ocorre por via da teologia mística. Por fim, Teresa Benedita testemunha vivamente a respeito do autor e dos escritos areopagitas:
Mas gostaria de dizer isto: os pretendidos escritos do Areopagita são um louvor admirável à grandeza e ao amor de Deus, impregnados e penetrados de um sentimento de temor sagrado até em sua expressão verbal. Parece-me impossível atribuir um falso autor. Se existe um falso, é muito provável que outros autores tenham-se servido de suas obras. [...] Neste caso veneramos quem está sob o nome de Dionísio, a um santo desconhecido e a um dos mais influentes, se não o mais influente dos padres gregos [grifo nosso]28.
Considerações finais
Apesar de o nome do autor do Corpus Dionysiacum ser uma incógnita, e de que não é veraz sua originalidade quanto a ser o dis- cípulo ateniense do Apóstolo Paulo relatado em At 17,34, a doutrina provinda do autor é espiritualmente substanciosa e profunda, sendo capaz de prover muitos místicos ao cristianismo. A doutrina mística de Dionísio encontrou momento adequado para espalhar-se, na Es- panha medieval, como o que ocorreu nas Ordens religiosas – dentre elas, a da Ordem Carmelitana –, que careciam de adequado alimento espiritual.
Santa Teresa de Jesus, procurando vida de oração mística, como encontro com Deus, buscou-a em muitos livros espirituais; e, por meio desses escritores, teve contato com o Areopagita. No entanto, a Madre Fundadora deu novo matiz ao que apreendeu e, estruturando sua própria doutrina, equilibrou ascese e experiência pessoal, repassando-a ao que viria a se constituir o Carmelo Descalço.
O Doutor Místico e coadjutor de Santa Teresa foi o mais influenciado pela Doutrina areopagita. São João da Cruz teve, no entanto, marca original em seus escritos: afirmou que as virtudes teologais – a fé, a esperança e a caridade – purificam àqueles que se decidem caminhar na contemplação; e nessa saída, no êxtase, são levados a um encontro pessoal com Jesus Cristo, não permanecendo apenas na obscuridade. Entretanto, para a união com Deus, se faz necessário desapego, abnegação e renúncia a tudo quanto seja obstáculo para subir ao cume do Monte – o sensível, o intelectível e, até, o espiritualismo. A noite escura purifica a todos àqueles que se aventuram a subir o monte pela fé; o "nada saber" silencia as palavras e pensamentos que apenas estorvam o espírito límpido, capaz de receber a luz do alto.
Santa Edith Stein obteve contato direto com a doutrina do Areopagita, tornando-se exímia conhecedora do "Pai da mística". Isto é percebido pelas obras de altíssimo nível intelectual filosófico-teoló- gico que deixou com comentários a respeito de Dionísio Areopagita. A razão humana, afirma a autora, à luz de sua experiência pessoal, torna-se insuficiente diante do dado da fé que compromete a pessoa por inteiro, pois deve deixar-se iluminar pela Sabedoria obscura de Deus.
A influência místico-doutrinal dionisiana sobre a mística do Carmelo Descalço é inegável, afinal aparece nos escritos de seus fun- dadores e de seus discípulos. No entanto, é perceptível o desfecho original que cada um deles deu a tal influência: ascese e mística ca- minham juntas no Carmelo de Teresa de Jesus, não havendo contraposição entre elas na mística carmelitano-teresiana.
Referências
ÁLVAREZ, Frei Tomás. 100 fichas sobre Teresa de Jesus: para aprender e ensinar. São Paulo: Edições Carmelitanas, 2011.
DIONISIO, Pseudo-Areopagita. Obras completas del Pseudo Dioni- sio Areopagita. 2. ed. Madrid: Biblioteca de autores cristianos, 1995.
FERMÍN, Francisco Javier Sancho. 100 fichas sobre Edith Stein. Bur- gos: Monte Carmelo, 2005.
LUNAS, Teodoro H. Martin."Introducción". In PSEUDO-AREOPA- GITA DIONISIO. Obras completas del Pseudo Dionisio Areopa- gita. 2ª ed. Madrid: Biblioteca de autores cristianos, 1995.
MORESCHINI, Claudio. História da filosofia patrística. São Paulo: Loyola, 2008 (Título original: Storia della filosofia patrística).
PACHO, Eulogio. Diccionario de San Juan de la Cruz. Burgos: Edito- rial Monte Carmelo, 2009.
PEDROSA-PÁDUA, Lúcia. Santa Teresa de Jesus: mística e humani- zação. São Paulo: Paulinas, 2015.
SALVADOR, Federico Ruiz. Introdução a São João da Cruz: o escritor, os escritos, o sistema. São Paulo, 2007.
SPANNEUT, Michel. Os Padres da Igreja: séculos IV – VIII. São Paulo: Loyola, 2002.
STEIN, Edith. "Caminos del conocimiento de Dios: la 'teología sim- bólica' del Areopagita y sus presupuestos objetivos". In . Obras completas V: Escritos espirituales. Burgos: Monte Carme- lo, 2004.
. Ser finito y ser eterno: ensayo de una ascensión al sentido del ser.
2ª ed. México: Fondo de cultura económica, 1996.
TRÓPIA, Ulysses Roberto Lio. Função do hierarca na obra "De Ec- clesiastica Hierarquia" de Pseudo Dionísio Areopagita. Roma: Pontifícia Universidade Agostiniana,1997. (Mestrado em Teo- logia).