A Devotio Moderna: Características e Sintomas de um Católico “Tradicional”
30/12/2024
Tradução por: Prof. Gabriel Sapucaia
Autor: Pe. Javier Ravasi
A Devotio Moderna: Características e Sintomas de um Católico "Tradicional"
Há algum tempo, entre leituras e conversas, venho meditando e refletindo sobre essa corrente de espiritualidade católica que tanto impacto causou nos melhores ambientes (e até mesmo em nós mesmos).
Sem pretensão de esgotar – nem de longe – o tema, apresento aqui algumas reflexões em forma de síntese, que serão complementadas por outra abordagem similar em breve.
Acredito que a leitura será útil, especialmente para os ambientes católicos "tradicionais" ou "conservadores", e também para que nos animemos a fazer um exame de consciência sobre nossa espiritualidade.
Que não lhe contem uma versão incompleta...
Pe. Javier Olivera Ravasi
A DEVOTIO MODERNA
Características e Sintomas
Pe. Javier Olivera Ravasi
Diversos e renomados autores têm se dedicado em nossas terras a um tema tão delicado como o que começamos a tratar aqui.1 Dizemos "começamos a tratar" porque o que pretendemos apresentar é meramente um esboço do tema, com alguns aportes próprios.2
Para começar, digamos que a Devotio Moderna ou "devoção moderna" foi (e é) uma corrente espiritual que surgiu na segunda metade do século XIV, principalmente nos Países Baixos. Seus fundadores reconhecidos e visíveis foram Gerardo Groote (1340-1384) e seu discípulo Florêncio Radewijns (1350-1400). Essa escola espiritual teve sua expressão mais notável em uma comunidade religiosa conhecida como os Irmãos da Vida em Comum, cujas raízes estavam no agostinianismo e no franciscanismo. Essa informação inicial não é irrelevante e, se destacamos, é porque terá certa importância no desenrolar da questão.
É importante sublinhar os origens históricos da espiritualidade moderna, pois comumente se tende a associar, sem maiores distinções e de forma direta, a Devotio Moderna à Companhia de Jesus. Embora exista certa relação, não é, em nossa opinião, da forma como frequentemente se apresenta.
Seguindo livremente o trabalho magnífico do Pe. García-Villoslada, apresentamos algumas características principais dessa corrente, que tanto influenciou diversos grupos e movimentos leigos e religiosos em nossos tempos.
1. Cristocentrismo
É evidente que Cristo é o centro da vida cristã; isso é indiscutível. Porém, o que queremos destacar é que, assim como nos primeiros séculos do cristianismo se enfatizava principalmente a divindade de Nosso Senhor (algo claramente visível na iconografia), na modernidade – especialmente a partir da Devotio Moderna – passou-se a destacar sua humanidade.
O Pe. García-Villoslada se refere a isso como um "cristocentrismo prático" mais do que um "cristocentrismo místico". Trata-se de buscar em Cristo uma "exemplaridade operativa" que mobiliza, enfatizando aspectos éticos e pragmáticos na imitação prática de Cristo. Ele é apresentado sobretudo como um modelo ético a ser imitado, tal como São Martinho poderia ser para militares ou Michelangelo para pintores e escultores.
Embora essas características não possuam maldade intrínseca, uma ênfase exagerada no "cristocentrismo prático" pode levar ao descuido ou abandono da contemplação, especialmente da contemplação do mistério de Deus que se fez homem. Esse padrão – o problema de acentuação excessiva – será verificado em várias das características que analisaremos.
Entre os aspectos da meditação sobre Cristo, o "cristocentrismo prático" foca especialmente nos sofrimentos e na Paixão. Embora essa abordagem tenha santificado muitos, como São Paulo da Cruz, Santo Afonso de Ligório e Santa Rosa de Lima, uma ênfase exagerada pode levar a uma forma de jansenismo católico. Isso implica rotular todo prazer como pecaminoso, sem distinguir entre prazer ordenado e desordenado, legítimo e ilegítimo.
O seguidor da Devotio Moderna tenderá a viver em estado permanente de atrição e contrição, sem gozo interior ou exterior. Em tal cristianismo, figuras como São Simão "o Louco", São Filipe Néri ou Chesterton dificilmente teriam lugar.
2. O culto ao "método" e ao diretor espiritual
Essa é, segundo García-Villoslada, "a característica mais marcante da Devotio moderna"1.
O princípio dessa escola de espiritualidade consiste em que a própria vida da alma deve ser submetida a um "esquema". Trata-se de um ordenacionismo e um regulamentarismo característicos de um espírito geométrico. É um "sistema" uniformizante da alma, cuja extrema rigidez controla horas, dias, semanas, meses e até anos, conduzindo a uma fiscalização e comprovação minuciosa de todos os movimentos e condutas da vida cristã.
Não se afirma aqui que ter um método para a alma seja algo ruim em si mesmo, mas sim que a degeneração e a hipertrofia do método podem sufocar as almas: o método é para o homem, e não o homem para o método.
O mesmo se aplica à imposição desse método para todas as pessoas. Como se diz, é tão injusto tratar de modo desigual os iguais quanto tratar de modo igual os desiguais.
A relação com o nominalismo e o voluntarismo
Essa deturpação do método, segundo Étienne Gilson, não é fruto do acaso, mas está diretamente ligada, na Devotio moderna, à filosofia nominalista da escolástica decadente. O nominalismo, ao acentuar o voluntarismo, conferia uma primazia absoluta ao ethos (a ação) em detrimento do logos (a razão); ao subjetivo em detrimento do objetivo; ao experienciar em detrimento do contemplar.
Diferentemente da devoção tradicional, que enfatizava a ordem na oração pública (como na liturgia e no coro) e concedia total liberdade à devoção pessoal, a Devotio moderna colocava uma ênfase excessiva no cuidado extremo da devoção privada2. Essa ênfase resultava em regras detalhadas sobre a matéria da meditação, o tempo de meditação, o objeto, a duração… tudo isso com a finalidade, ou consequência, de manter o devoto ocupado o dia inteiro, praticamente sem espaço para o ócio.
Um método rígido para a meditação
Como exemplo desse rigorismo metódico, vemos uma prescrição sobre o modo de rezar:
"Quanto às matérias, assim costumamos dividir e alternar: no sábado, meditar sobre os pecados; no domingo, sobre o Reino dos Céus; na segunda-feira, sobre a morte; na terça-feira, sobre os benefícios de Deus; na quarta-feira, sobre o Juízo; na quinta-feira, sobre as penas do inferno; na sexta-feira, sobre a Paixão do Senhor. E, não contentes em ordenar os preparativos da oração e determinar a matéria a ser meditada em cada dia da semana, ainda regulamentavam a hora, o lugar e a postura que deveriam ser observados na meditação."3
Tudo precisava ser controlado, e o ócio era visto como uma espécie de ameaça para essa abordagem. Entretanto, na devoção tradicional, o ócio desempenhava um papel fundamental4.
Santo Tomás e a liberdade na contemplação
O próprio Santo Tomás de Aquino, um século antes do surgimento dessa doutrina, citando Santo Agostinho, indagava:
"Quem seria capaz de orar, seguindo todos esses graus da escala e exercitando ordenadamente todas essas operações da mente, do juízo e do afeto?"
Por outro lado, Santo Inácio de Loyola, com maior liberdade, aconselhava na Adição 4ª dos Exercícios Espirituais (nº 76):
"Para entrar na contemplação, pode-se estar 'de joelhos, prostrado no chão, deitado de costas, sentado, em pé, caminhando, sempre buscando o que desejo...'. E 'se encontro o que desejo estando de joelhos, não irei adiante; e, se prostrado, da mesma forma, etc.', explicando que 'no ponto onde encontrar o que desejo, ali descansarei, sem ansiedade de prosseguir, até que me satisfaça.'"
"O amor à verdade exige um ócio santo; a necessidade da caridade empreende uma ocupação justa, ou seja, a vida ativa. Se ninguém nos impõe esse peso, devemos nos entregar ao estudo e à contemplação da verdade. Caso nos seja imposto, devemos aceitá-lo pelas exigências da caridade. Contudo, nem mesmo nesse caso deve-se abandonar totalmente o deleite pela verdade, para que, privado desse alívio, o peso não se torne insuportável."1
Como parte dessa segunda característica, encontramos também um ênfase excessivo, minucioso e até sufocante no exame de consciência. Esse exame é baseado em uma infinidade de divisões e subdivisões que, por vezes, sufocam a vida da alma. Não se trata aqui de criticar a beleza intrínseca desse método, que pode ser um valioso recurso para o progresso espiritual. Contudo, o perigo reside na atitude esquemática que reduz a santidade a um papel e algumas linhas.
Reconhecemos que esse método pode ser útil (e de fato foi para muitos santos!), sendo inclusive recomendado por Santo Inácio nos seus Exercícios Espirituais (NN. 27-31). Entretanto, até mesmo esse método deve ser usado tanto... quanto... sirva à alma para alcançar o seu propósito final: Deus.
A idolatria ao método e o diretor espiritual
A metodolatria pode levar a alma a sujeitar-se completamente a métodos e a um diretor espiritual que atua mais como um controlador ou capataz. Esse diretor regula trabalho, sono, refeições e relacionamentos, levando a alma a um estado de infantilismo espiritual.
Embora seja errado condenar o papel de um acompanhante espiritual (quase todos os santos os tiveram!), a sujeição servil a um homem, sem lembrar que a salvação ou condenação depende de cada pessoa, e a sujeição a uma metodolatria constituem, sim, um mal.
O Pe. Castellani comenta sobre isso:
**"Não podemos nos salvar segundo a consciência de outro! Não podemos nos eximir de discriminar com nossa própria razão o bem e o mal moral, um para seguir e outro para rejeitar! Não pode ser nossa guia interior a razão alheia: os atos morais são inmanentes, e sua 'forma' é a racionalidade! Se bastasse para se salvar fazer literal e automaticamente o que outro nos diz, qual seria, então, a função da fé, da oração, da meditação, da direção espiritual, do exame e do estudo?"**2
O perigo do voluntarismo
Exercitar a vontade não é algo intrinsecamente ruim, mas o voluntarismo, assim como o ênfase exagerado dado a certos métodos, em detrimento de práticas tradicionais como a oração litúrgica e a atitude apostólica, é perigoso.
Se o diretor espiritual é uma pessoa dotada de virtudes, isso será um benefício para o dirigido. Porém, se ele está impregnado pelas características da Devotio moderna, consciente ou inconscientemente, pode surgir o risco de:
- Fabricar vocações;
- Coagir a vida espiritual;
- Manipular consciências;
- Uniformizar almas, pensando que Deus as criou todas iguais.
Que Deus nos livre dessas direções espirituais que não respeitam a individualidade das almas! Melhor seria continuar cego do que confiar-se a outro cego e cair no abismo.
O ascetismo metódico e seus perigos
Frases como "Há um método ascético pelo qual você pode se santificar" ou "Se seguir este método à risca, será santo" são análogas às promessas das dietas milagrosas de programas de televisão. Essa abordagem é gravíssima e, infelizmente, ainda prevalece em alguns círculos supostamente tradicionais.
Esse ascetismo metódico, entendido dessa forma, pode levar ao voluntarismo. Um ascetismo assim, que despreza a via mística, é um ascetismo perigoso.
3. Moralismo
Da tendência prática, operativa e anti-especulativa da Devotio Moderna surge essa característica, que transforma a espiritualidade em uma espécie de escola moral. Algo semelhante ao que ocorre com a doutrina de Confúcio para os chineses: há um reducionismo grave, no qual a religião é limitada à mera conduta. Essa conduta, por sua vez, é reduzida à casuística, sem critérios de discernimento crítico, sendo apenas uma lista de pecados, virtudes e boas práticas, desprovida de um verdadeiro sentido de discernimento.
Não se quer aqui afirmar que a casuística seja má – de fato, os grandes confessores devem estudá-la. No entanto, reduzir a vida espiritual ao simples conhecimento e observância dos deveres de estado e das leis eclesiásticas implica perigos consideráveis. Por essa razão, a Devotio Moderna frequentemente utiliza sentenças, provérbios, aforismos e máximas, como as fábulas de Esopo. Embora isso pudesse ser inofensivo se usado cum grano salis (com discernimento), o uso descontextualizado desses recursos pode transformar as Sagradas Escrituras, os Santos Padres e a herança greco-romana em meros depósitos de exemplos sem captar o verdadeiro significado e causalidade desses textos para o cristão.
Esse tipo de moralismo não cria hábitos verdadeiros, mas apenas aparências externas que não são incorporadas à essência da pessoa. Além disso, esse moralismo está muitas vezes associado a uma postura estoica:
"Isso pode ser feito, isso não pode; isso deve ser feito, isso não deve."
Tal abordagem, sem fornecer fundamentos ou razões últimas, é apropriada apenas para níveis iniciais de formação, como no trato com crianças, que ainda não estão preparadas para entender os motivos. Contudo, para o desenvolvimento espiritual do homem crente, essa abordagem casuística e regulamentarista será insuficiente. Eventualmente, a alma buscará algo mais, e, caso não encontre, essa espiritualidade moralista poderá levá-la ao desânimo ou ao abandono.
4. Tendência Anti-especulativa
Como aponta García-Villoslada, a Devotio Moderna surge em oposição a uma espiritualidade nebulosa e altamente especulativa que predominava na época. Ele descreve que:
**"A linguagem abstrusa e difícil dos escolásticos havia contaminado os místicos, que às vezes se perdiam em sutis especulações e raciocínios sobre questões sublimes e quase ininteligíveis"**1.
Essa oposição nasceu de um contexto no qual, logo após a morte de Santo Tomás de Aquino, a escolástica havia perdido sua orientação original. A reação contra as sutilezas e disputas escolásticas levou os proponentes da nova espiritualidade não apenas a reprimir a curiosidade intelectual, mas também a desprezar a ciência, o que resultou em uma religiosidade puramente afetiva e um praticismo desprovido de base teológica sólida.
Como discutido anteriormente, o nominalismo foi uma das influências dessa corrente espiritual, rejeitando a metafísica tomista – considerada supérflua – e até mesmo a filosofia, vista como "a mãe dos hereges"2 e promotora da vaidade, segundo Gerardo Groote.
Desconfiança do estudo e da intelectualidade
Nessa linha de pensamento, o próprio estudo era visto com desconfiança. Radewijns declarou:
"Estudar para conhecer ou ensinar... não nutre a alma, mas a torna doente."
Seu sucessor, Juan Von de Husden, compartilhava dessa visão, proibindo que seus irmãos estudassem os livros de Santo Tomás ou outros escolásticos modernos que tratassem de obediência e temas semelhantes. Ele preferia que permanecessem em sua simplicidade3.
Essa reação exagerada à escolástica decadente levou a um desprezo pela ciência e à prevalência de uma religiosidade puramente afetiva. Um exemplo extremo dessa tendência pode ser encontrado em Lutero, que, séculos depois, referiu-se à inteligência como uma "prostituta".
5. O afeto acima de tudo
Como consequência do que foi anteriormente mencionado, há na Devotio Moderna uma forte acentuação do anti-especulativo e do afetivo, utilizado como elemento preponderante na relação com Deus, com clara influência franciscana. Essa ênfase no sensível – que tanto foi criticada pelo Pe. Castellani – e no desordenado sentimentalismo e emotividade, acaba deixando a vida da alma num estado inacabado. Para essa corrente, "devoção" significa fervor, oração inflamada, puro remorso, mortificação e compunção.
Mais uma vez, não se trata de afirmar que o fervor na devoção seja algo errado; o perigo reside na exagerada acentuação desses elementos, que podem atrofiar a vida superior da alma, reduzindo-a a um caráter meramente afetivo e emocional.
García-Villoslada observa:
**"Até o vocábulo com que os discípulos de Groote se designam, Devoti, indica sua natureza mais afetiva do que especulativa. Para eles, devoção é essencialmente fervor, oração inflamada, desejo de Deus. Para Mombaer, por exemplo, 'compunção é sinônimo de devoção.'"**1
Para a Devotio Moderna, "devoção" não é aquilo que a espiritualidade tradicional compreendia como a "vontade pronta de se entregar às coisas de Deus", conforme Santo Tomás2. Em vez disso, é interpretada como uma "afetuosa e piedosa afeição a Deus", manifestada principalmente na oração.
Assim, um "devoto" seria aquele afetado por seus afetos espirituais.
6. O biblicismo
A Devotio Moderna também se caracteriza por uma marcante utilização das Sagradas Escrituras, algo que, à primeira vista, parece louvável e digno de imitação. De fato, toda a espiritualidade tradicional utilizou as Escrituras como um meio de oração, especialmente na prática da lectio divina. No entanto, na espiritualidade em questão, as Escrituras não são tomadas como a norma da fé, mas sim como um repositório de exemplos morais e um suporte para o adoctrinamento moral.
Como observa García-Villoslada, trata-se de:
**"Uma teologia simples e moralista que fomente a devoção."**3
Embora os livros inspirados sirvam para "arguir, ensinar e corrigir", conforme São Paulo, seu propósito não se limita a isso. As Escrituras existem para que conheçamos e amemos a Deus conforme Ele quis revelar-se. O perigo do biblicismo individualista manifestou-se em sua consequência lógica: a ruptura protestante e a interpretação privada dos textos bíblicos. Ao serem lidos fora da Igreja e da Tradição, na "interioridade devota" subjetiva, as Escrituras acabaram por significar aquilo que cada pessoa desejava.
7. Interioridade e Subjetivismo
De acordo com o Pe. García-Villoslada, essa é a característica fundamental da Devotio Moderna.
Nos próprios textos de seus representantes, "homem devoto" e "homem interior" aparecem como sinônimos, compreendidos como uma "interioridade compungida". O devoto moderno é identificado como uma figura dolorida, alguém que não apenas busca a dor interior, mas também a dor exterior, promovendo práticas mortificadoras.
É verdade – e ninguém nega – que, após o pecado original, estamos mais inclinados ao epicurismo do que ao estoicismo, rejeitando a mortificação. Esta, sem dúvida, é necessária para a santificação (seja da vontade, da sensibilidade, dos juízos temerários, etc.). O perigo, no entanto, está nos excessos, quando se acredita que a santidade reside apenas na mortificação. O desbordamento é o mal; e em certos ambientes influenciados por essa espiritualidade, os exageros são mais frequentes do que as privações.
Nosso Senhor disse: "Vigiai e orai para não cairdes em tentação; o espírito está pronto, mas a carne é fraca" (Mt 26,41). Contudo, isso é um meio, não um fim. Frequentemente, extremistas das mortificações acabam tornando-se extremistas dos prazeres. A virtude nunca está nos extremos irracionais. Exemplos históricos abundam, mas basta mencionar Lutero, que, por desejar uma vida penitente sem prudência, caiu em paixões desregradas por oposição de contrários.
O subjetivismo na Devotio Moderna
O subjetivismo promovido pela Devotio Moderna exige uma breve digressão histórica para melhor compreensão do problema e para alertar os homens de hoje.
Como explica García-Villoslada:
**"Esse anseio de interioridade, esse recolhimento nas zonas mais íntimas da alma, deve ser entendido no contexto histórico em que surge a Devotio Moderna. Era a época do Grande Cisma do Ocidente, quando a Igreja, dolorosamente dilacerada, não sabia qual era sua verdadeira Cabeça visível, quem era o Vigário de Cristo ou onde estava o Chefe espiritual ao qual todos deveriam obedecer. Em meio ao tumulto e confusão exterior, as almas escolhidas buscavam luz e paz no silêncio, no retiro e na oração. Sem saber quem era o verdadeiro representante de Cristo, buscavam o próprio Cristo diretamente em seus corações e na união individual com Deus."**1
Gerardo Groote, por exemplo, obedecia ao Papa Urbano VI em Roma, mas tinha dúvidas e, em meio à escuridão de sua consciência, consolava-se ao minimizar a importância do cisma externo. Para ele, o mais importante era permanecer unido à Cabeça invisível, Cristo, raiz da unidade fundamental da Igreja. A unidade externa, derivada da união dos membros à Cabeça visível, era secundária; o essencial era evitar o cisma interior.
Reflexos modernos
Esse cenário encontra paralelos nos dias atuais, em que algumas pessoas dizem, como um personagem de Sábato:
"Se o comunismo vier, irei para o campo e pronto."
Curiosamente, aqueles que criticam a Devotio Moderna frequentemente recaem em suas características, ignorando a crise atual da Igreja e refugiando-se em uma "torre de marfim". Isso gera desprezo e exclusão em relação àqueles que não compartilham de sua visão. Ainda mais grave é o fato de que essa característica da Devotio Moderna contribuiu para um desinteresse pela vida apostólica e missionária.
"Eu não quero salvar ninguém; só desejo salvar-me a mim mesmo" – dizem alguns.
Esse isolamento rejeita o apostolado ativo e a extensão do Reinado Social de Cristo. Não há, na Imitação de Cristo ou nos livros de Tomás de Kempis, qualquer indicação do dever apostólico ou missionário dos cristãos2.
Um exemplo disso é o caso do cônego Guilherme de Salvarvilla, seguidor de Groote, que pediu permissão para converter os cismáticos orientais. Groote opôs-se severamente, desencorajando a iniciativa.
Contradições e consequências
Essa mentalidade subjetivista culmina em uma atitude elitista e sectária, que afasta o devoto moderno do mundo e limita sua inclinação pelo apostolado. Enquanto os primeiros jesuítas, como São Francisco Xavier, rejeitavam essa estrutura rígida, a Devotio Moderna mantém-se introvertida e pouco hierárquica, onde a "hierarquia" se manifesta apenas em sistemas ou grupos.
Tomás de Kempis, o ápice dessa espiritualidade, afirma:
**"Mais vale salvar-se sozinho vivendo inocente na solidão do que aventurar-se no convívio com lobos e dragões."**3
Isso contradiz as palavras de Cristo:
"Eu vos envio como ovelhas no meio de lobos…"
Não se trata do isolamento de um monge ou eremita (vocação específica), mas de quem está no mundo com um espírito elitista de sacristia. Tal indivíduo preocupa-se apenas com sua própria salvação, sem levar outros consigo. Se assim fosse, o Verbo não teria se encarnado.
Como conclui García-Villoslada:
"A vida cotidiana desses devotos, com seu meticuloso cuidado nos detalhes, parece mais uma miniatura artística do que uma pintura de grandes pinceladas."4
Conclusões Antitéticas
Finalizemos com um paralelo antitético às notas da Devotio Moderna:
- Contra o pragmatismo da meditação: o primado da contemplação dos mistérios divinos, o Logos acima da praxis.
- Contra o "monotema" da dor: a alegria transbordante fruto da caridade heroica.
- Contra a metodologização da vida espiritual: a liberdade da contemplação na docilidade ao Espírito Santo.
- Contra a ditadura dos deveres de estado: a ousadia de realizar grandes feitos para a glória de Deus.
- Contra o desprezo pelas especulações profundas: a reverência ao Mistério Trinitário e Teândrico que ilumina e apaixona.
- Contra a fuga das batalhas apostólicas: a epopéia missionária de conversões e martírios.
Na Devotio Moderna, tudo começa no homem, partindo para Deus. A espiritualidade tradicional, ao contrário, começa em Deus, alcançando o homem.
- Pe. Javier Olivera Ravasi
Notas de Rodapé
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Carlos Disandro, Argentina bolchevique; Fray Petit de Murat, Carta a un trapense, entre outros.
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O presente trabalho é, na verdade, um comentário à conferência ministrada pelo Dr. Antonio Caponnetto no ano de 2013 (pode ser vista aqui) a partir do artigo do Pe. García-Villoslada, "Rasgos característicos de la devotio moderna", em Manresa, 28 (1956), 315-358. Utilizamos a transcrição dessa conferência para acrescentar alguns conceitos próprios e as citações pertinentes do trabalho de García-Villoslada. Agradecemos também as contribuições do Pe. Federico Highton, SE.
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García-Villoslada, op. cit., p. 320.
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"As antigas Regras monásticas não designavam um tempo específico para a oração individual em privado. Embora recomendassem a meditação a todos, apenas se exigia, por regra, a oração pública e comum no coro." (Ibidem, p. 321).
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"Quas materias sic solemus dividire et alternare, ut meditemur sabbatis de peccatis; dominica die dé regno coelorum; feriis secundis de morte; feriis tertiis de beneficiis Dei; feriis quartis de iudicio; feriis quintis de poenis inferni; feriis sextis de passione Domini…" (Ibidem, p. 324). Para compreender esse método complicado e mecanicista de oração, observe-se como Mombaer, um de seus expoentes, organizava a oração:
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A) MODUS RECOLLIGENDI (quid cogito, quid cogitandum);
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B) GRADUS PRAEPARATORII (repulsio eorum quae minus cogitanda);
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C) GRADUS PROCESSORII ET MENTIS (exercício da memória: commemoratio, consideratio, attentio, explanatio, tractatio);
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D) GRADUS PROCESSORII ET IUDICII (exercício do entendimento: dijudicatio, causatio, ruminatio);
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E) GRADUS PROCESSORII ET AFFECTUS (da vontade: gustatio, quaerela, optio, confessio, oratio, mensio, obsecratio, confidentia);
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F) GRADUS TERMINATORII (gratiarum actio, commendatio, permissio);
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G) MODUS COMMORANDI (complexio).
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Veja a respeito o belo livro de Josef Pieper, El ocio y la vida intelectual, Rialp, Madrid, 1962.
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Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 182, a. 1, ad. 3um.
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Leonardo Castellani, Sobre la obediencia. Disponível em: Stat Veritas.
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García-Villoslada, op. cit., pp. 328-329.
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Citado por García-Villoslada, op. cit., p. 330.
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Ibidem, p. 331. Tradução própria do latim.
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Ibidem, pp. 334-335.
-
Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 82, a. 1.
-
García-Villoslada, op. cit., p. 335.
-
García-Villoslada, op. cit., p. 339.
-
Ibidem, p. 340.
-
Tomás de Kempis, Diologi novitiorum, lib. I, cap. 4: Opera VII, 17, 18, 19, 21-22.
-
Ibidem, pp. 343-344.
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Tomamos emprestadas estas palavras do Pe. Federico H., missionário na meseta tibetana.