A ESPIRITUALIDADE PÓS-TRIDENTINA: De Santo Inácio de Loyola a São Francisco de Sales
05/01/2025
Autor: Fr. Jordan Aumann, O.P
Tradutor: Prof. Gabriel Sapucaia
ESPIRITUALIDADE PÓS-TRIDENTINA
O período abordado no título deste capítulo corresponde ao terceiro volume da obra Christian Spirituality, de Pourrat,(1) que abrange desde meados do século XV até meados do século XVII. Alguns aspectos específicos deste período devem ser destacados. Primeiramente, as escolas de espiritualidade, em sua maioria, são classificadas segundo as nações e não as ordens religiosas, como ocorria nos períodos anteriores. Conforme destaca Pourrat:
O princípio de nacionalidade se afirmou de maneira muito notável, especialmente a partir da época do Renascimento. Essa tendência de cada nação a convergir de acordo com o seu próprio gênio, idioma e religião refletiu-se em todas as manifestações de sua vida, inclusive na espiritualidade. Por isso, encontramos nos tempos recentes uma espiritualidade espanhola, italiana e francesa, uma espiritualidade que é fundamentalmente uma e a mesma, na medida em que é católica, mas que difere na forma como é concebida e apresentada.(2)
Houve, é claro, indivíduos e ordens religiosas que exerceram tanta influência nesse período que poderiam ser classificados como líderes de escolas distintas de espiritualidade. Contudo, mesmo nesses casos, o temperamento e o espírito nacional eram discerníveis como traços distintivos. Além disso, foram especialmente as ordens religiosas que preservaram a continuidade com o passado. Mudanças abruptas de ideias e atitudes são raras na história, e isso é especialmente verdadeiro na história da espiritualidade.
Em segundo lugar, a vasta produção de escritos espirituais durante esse período torna impossível discutir mais do que alguns autores destacados. Apenas listar as obras e seus autores ocuparia um grande volume. Assim, concentraremos nossa atenção nos iniciadores de novas tendências ou escolas que refletem os movimentos de espiritualidade entre o Concílio de Trento e meados do século XVII.
EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS
O estado da Igreja no final da Idade Média era de cisma, falta de respeito pela autoridade e degradação moral escandalosa em todos os níveis da sociedade. O Renascimento introduziu um humanismo simultaneamente cristão e pagão, mas a indulgência deste último atingiu proporções tão universais que Rabelais afirmou que a regra de vida de muitas pessoas era simplesmente: "Faça o que quiser";(3) e Erasmo observou, em 1501, que nem mesmo entre os pagãos houve jamais corrupção maior do que entre os cristãos médios.(4)
Diante dessas condições, cristãos fervorosos recorreram a uma espiritualidade de afastamento do mundo, fortalecida por exercícios espirituais bem regulamentados e métodos definidos de oração. Isso, em si, não era uma inovação na vida cristã, pois Cristo ensinou a necessidade de autodisciplina, certo desprendimento do mundo e a prática da oração. São Paulo repetiu a mesma doutrina, e os primeiros cristãos a viveram de tal maneira que a palavra "ascetas" foi aplicada àqueles que seguiam um programa de exercícios espirituais envolvendo jejum, austeridades e continência. O mesmo ensinamento foi incorporado à tradição monástica, com a insistência de que a disciplina externa é ordenada à prática interior da oração.
Por fim, através de vários tratados sobre a oração compostos no final do período medieval,(5) a meditação metódica ou sistematizada foi introduzida nos Países Baixos, França, Itália e Espanha.(6) É importante notar que a meditação metódica foi introduzida e promovida principalmente como medida de reforma; parecia ser um caminho seguro para conduzir o clero e os religiosos de volta a uma vida verdadeiramente cristã.
Os exercícios espirituais, ou oração mental metódica, parecem ter surgido pela primeira vez nos Países Baixos, entre os Cônegos de Windesheim e os Irmãos da Vida Comum.(7) É provável que João Wessel Gransfort (+1489), amigo de Tomás de Kempis, tenha elaborado o primeiro método de meditação. Este compreendia três etapas: a preparação, livrando-se de distrações e selecionando o material para meditação; a meditação propriamente dita, aplicando a mente, o julgamento e a vontade; e a conclusão da meditação, direcionando a Deus os desejos que foram estimulados.(8) A eficácia da meditação como meio de reforma espiritual tornou-se evidente, pois é difícil imaginar, como mais tarde comentaria Santa Teresa de Ávila, a possibilidade de permanecer em pecado e, ao mesmo tempo, praticar a meditação diária.
A prática da meditação logo se espalhou para a França, por influência de João Mombaer (+1502), abade de um mosteiro beneditino perto de Paris. Seu principal tratado, Rosetum, baseia-se nas práticas de Windesheim e é metódico ao ponto da exaustão. Basicamente, seu método é o mesmo de Gransfort, embora também recomendasse a meditação sobre os mistérios do rosário.(9)
AFIRMAMOS QUE A MEDITAÇÃO METÓDICA FOI UTILIZADA PRINCIPALMENTE COMO UM MEIO DE REFORMA DA VIDA RELIGIOSA, E ISSO FOI PARTICULARMENTE VERDADEIRO NOS MOSTEIROS BENEDITINOS DA ITÁLIA E DA ESPANHA.
De acordo com Watrigant,(10) a introdução da oração mental metódica na Itália resultou de uma influência direta da devotio moderna flamenga. No entanto, outros autores, como Tassi e Petrocchi, rejeitam essa teoria categoricamente ou afirmam que é cedo demais para chegar a tal conclusão.(11) Uma conjectura mais segura seria que houve um desenvolvimento paralelo no sul da Europa, em vez de uma importação dos Países Baixos.(12)
Na Itália, os dois grandes reformadores do clero e dos religiosos foram São Lourenço Justiniano (+1455) e Luís Barbo (+1443). Para ambos, o instrumento de reforma foi a prática da oração mental metódica ou meditação. São Lourenço Justiniano, um Cônego Regular de São Jorge, que mais tarde se tornou Patriarca de Veneza, compôs numerosos tratados sobre compunção, humildade, desprezo pelo mundo, os graus de perfeição e o amor divino, sempre buscando incutir a prática da meditação.(13)
Luís Barbo, também um Cônego Regular de São Jorge, transferiu-se para o mosteiro beneditino de Pádua, onde se tornou abade. Posteriormente, foi nomeado bispo de Treviso. Sua influência reformadora foi sentida em Montecassino e, através de Garcia de Cisneros, em Valladolid e Montserrat, na Espanha.
O tratado de Barbo sobre oração, intitulado Forma orationis et meditationis ou Modus meditandi, foi publicado pela primeira vez em Veneza, em 1523. Ele descreve três tipos de oração: a oração vocal, mais adequada para iniciantes; a meditação, uma forma mais elevada de oração, para aqueles mais avançados; e a contemplação, a forma mais elevada de oração, à qual se pode ascender por meio da meditação. A pedido do Papa Eugênio IV, Barbo escreveu aos beneditinos de Valladolid, na Espanha, para apresentá-los à meditação metódica. Foi dessa abadia que, em 1492, Garcia de Cisneros partiu com doze monges para reformar a famosa abadia de Montserrat, perto de Barcelona.
Embora não tenha alcançado a fama de Santo Inácio, nem mesmo na Espanha, Garcia de Cisneros deve ser reconhecido como uma das figuras mais influentes na reforma tridentina da Igreja e na espiritualidade espanhola inicial.(14) Ele deixou duas obras, impressas em espanhol na tipografia de Montserrat em 1500: Ejercitatorio de la vida espiritual e Directorio de las horas canónicas. A primeira tornou-se um guia padrão para os exercícios espirituais (ejercicios).
Normalmente, três semanas eram dedicadas aos exercícios espirituais, sendo a quarta parte do guia destinada especificamente aos contemplativos. O método para realizar os exercícios é detalhado, assim como os temas para as meditações. Na hora designada, o monge vai à capela, ajoelha-se, faz o sinal da cruz e recita a oração "Vinde, Espírito Santo". Em seguida, recita três vezes: "Senhor, vinde em meu auxílio; apressai-vos, Senhor, em socorrer-me". Depois, recolhendo-se na presença de Deus, medita sobre os três pontos do dia, conclui com uma oração de petição e, batendo no peito, repete três vezes: "Ó Deus, tende piedade de mim, pecador". Por fim, recita um salmo e uma oração antes de deixar a capela em estado de recolhimento.
Os temas da semana purgativa visam despertar santo temor e contrição: pecado, morte, inferno, juízo, Paixão de Cristo, a Bem-Aventurada Virgem Maria e o céu. Na semana iluminativa, dá-se mais liberdade quanto ao método, e, se a devoção ou o amor o mover, o indivíduo pode abandonar o método completamente. Contudo, se necessário, o monge pode passar até um mês nas meditações purgativas. Na semana iluminativa, o foco está na preparação para uma confissão digna, na contrição pelos pecados e no despertar do amor a Deus. Os temas incluem a criação, a ordem sobrenatural, a vocação religiosa, a justificação, as bênçãos recebidas, a providência divina, o céu; ou a vida de Cristo, dos santos e a oração do Senhor.
A via unitiva pressupõe purificação do pecado e iluminação de Deus; o indivíduo é totalmente convertido a Deus, deseja servi-Lo exclusivamente e está desapegado dos bens deste mundo. Nesta etapa, a alma eleva-se a Deus mais por amor do que pelo intelecto. Cisneros descreve seis graus de amor unitivo, que culminam no êxtase.(15) Os temas dessa via incluem Deus como princípio de todas as coisas, beleza do universo, glória do mundo, caridade infinita, regra de toda criatura, governante de tudo e suprema generosidade.
Para os que alcançam a contemplação, Cisneros é mais permissivo quanto aos temas e métodos. Ele praticamente transcreve De monte contemplationis, de Gerson, mas propõe três formas de contemplar Cristo: primeiro, considerar a humanidade sagrada, como ensina São Bernardo; segundo, olhar para Cristo como Deus e homem; terceiro, elevar-se acima da humanidade sagrada e focar na divindade de Cristo. Cada pessoa, diz Cisneros, deve seguir sua própria atração espiritual, de acordo com o grau de sua vida de oração.
Outro renomado beneditino, Luís de Blois (Blósio, +1566), contribuiu para a reforma beneditina nos Países Baixos por meio da meditação e exercícios espirituais. Blósio afirmava que os exercícios externos, como a recitação do Ofício Divino, orações vocais, sinais externos de devoção, jejuns e vigílias, agradam a Deus, mas os exercícios espirituais que unem o homem interior e sobrenaturalmente a Deus são infinitamente superiores.(16) Blósio lia avidamente as obras de Tauler (discípulo do Mestre Eckhart e manteve profunda relação com a seita esotérica dos Amigos de Deus) e Suso.
As obras de Blósio incluem: Institutio spiritualis (1551); Consolatio pusillanimum (1555); Conclave animae fidelis (1558); Speculum spirituale (1558). Esses tratados foram rapidamente traduzidos para os idiomas vernáculos e circulados por mosteiros da Europa. Contudo, assim como alguns monges beneditinos resistiram aos esforços de Luís Barbo, outros temiam que a prática da oração mental pudesse ameaçar a devoção dos monges à oração litúrgica, o opus Dei.
Eventualmente, os exercícios espirituais começaram a ser praticados também por leigos, conforme Cisneros pretendia. Muitos leigos piedosos iam aos mosteiros para realizá-los, como provavelmente fez Inácio de Loyola em Montserrat, em 1522. Os dominicanos adotaram oficialmente a prática da meditação como exercício comunitário em 1505; os franciscanos seguiram o exemplo em 1594.
HUMANISMO CRISTÃO
Os exercícios espirituais não foram a única arma utilizada contra o avanço do humanismo pagão do Renascimento. Um ataque mais direto foi conduzido pelos "humanistas cristãos". Embora às vezes criticados como precursores da Revolta Protestante liderada por Martinho Lutero, esses humanistas devotos não podem ser acusados de deliberadamente preparar um cisma na Igreja. Embora muitas de suas críticas tenham servido como munição para os ataques dos protestantes contra a Igreja, seus objetivos eram sinceros: proteger os cristãos da corrupção do humanismo pagão, promover a vida interior e a prática da oração, e incentivar o retorno à leitura das Escrituras, não para especulações teológicas, mas para inspiração e instrução. Entre os humanistas cristãos destacados estão Nicolau de Cusa, Pico della Mirandola, Lefèvre d'Étaples, São Thomas More e Erasmo, sendo este último de maior interesse na história da espiritualidade.(17)
Nascido em Roterdã entre 1464 e 1466, Erasmo foi educado na escola dos Irmãos da Vida Comum. Mais tarde, ingressou na ordem dos Agostinianos e, após ser dispensado de seus votos religiosos, foi ordenado sacerdote em 1492 pelo Bispo de Cambrai. Renomado em toda a Europa por seu vasto conhecimento, foi altamente estimado pelo Papa Júlio II, pelo Papa Leão X, pelo Rei Carlos V, pelo Rei Francisco I e pelo Rei Henrique VIII. Ele era um crítico da vida monástica e da teologia escolástica, como demonstrado em seu tratado satírico Elogio da Loucura (Stultitiae Laus). Erasmo dedicou-se intensamente à formação de uma nova teologia baseada nas Escrituras e nos Padres da Igreja. Suas doutrinas podem ser encontradas no Enchiridion Militis Christiani (1504), Paraclesis (1516) e Ratio seu Methodus Perveniendi ad Veram Theologiam (1518).(18) Ele faleceu em Basileia, em 1536, enquanto supervisionava a edição de suas obras.
Para Erasmo, a vida cristã é uma batalha constante contra o mundo, o demônio e as paixões pessoais. As principais armas do cristão são a oração, que fortalece a vontade, e o conhecimento, que nutre o intelecto. A prática da oração exige que o cristão se afaste do mundo e concentre-se em Cristo, pois o objetivo da vida cristã é a imitação de Cristo. Até mesmo as práticas externas da religião, se mal empregadas, podem se tornar obstáculos à verdadeira fé, levando a uma observância farisaica, que Erasmo chama de "a religião do povo comum".
No Enchiridion (cap. 8), Erasmo apresenta vinte e dois preceitos para a imitação de Cristo e a vitória sobre o pecado e as tentações. Se o cristão achar difícil desprender-se do mundo, Erasmo o lembra da vaidade desta vida, da inevitabilidade da morte e da separação final do homem dos bens terrenos. Essa ênfase na morte será posteriormente encontrada nos escritos de Montaigne e de muitos autores espirituais espanhóis do século XVI.
No entanto, Erasmo é mais enfático ao discutir o tipo de conhecimento necessário para o sucesso espiritual. Primeiro, o conhecimento de si mesmo, condição primária para a vitória. Em seguida, o conhecimento das verdades reveladas nas Escrituras, não na forma especulativa e argumentativa da teologia escolástica, mas na teologia prática que leva a uma vida santa e se encontra na fonte autêntica: a Bíblia. Todos, afirma Erasmo, devem ler a Bíblia, pois a doutrina de Cristo é para todos. Para não se desviar, o leitor deve seguir as definições da Igreja e os ensinamentos dos Padres e comentaristas. Nas questões não definidas pela Igreja, é o Espírito Santo quem instrui, mas apenas se o leitor abordar as Escrituras com fé e devoção. Quem lê as Escrituras apenas no sentido literal pode estar lendo uma fábula ou lenda; as Escrituras são estéreis a menos que se perceba o significado escondido sob a interpretação literal.
O humanismo de Erasmo, Lefèvre e seus companheiros foi severamente criticado por muitos historiadores católicos, apesar de os católicos educados do século XVI terem encontrado sólida instrução e orientação nos tratados devocionais desses homens e do fato de os humanistas cristãos terem se dissociado de Lutero e do movimento protestante assim que foram condenados pelo Papa Leão X em 1520.(19)
Ainda assim, há boas razões para as críticas aos humanistas cristãos. Primeiro, em seu zelo por uma "nova teologia" baseada exclusivamente nas Escrituras e nos Padres da Igreja, eles rejeitaram toda a sabedoria teológica da Idade Média e enfraqueceram, ainda que inadvertidamente, a autoridade do magistério da Igreja. Segundo, o estudo intenso dos clássicos gregos e latinos levou-os a uma visão errônea da bondade inerente ao homem, subestimando os efeitos do pecado original e a necessidade de mortificação e abnegação. Terceiro, o simples fato de Lutero ter aprovado algumas teses dos humanistas foi suficiente para descreditá-los, da mesma forma que Tauler (discípulo do Mestre Eckhart e manteve profunda relação com a seita esotérica dos Amigos de Deus) e Gerson se tornaram suspeitos entre os católicos por serem citados por Lutero.(20) Assim, por uma reviravolta inesperada, o humanismo cristão, que tentou reformar a Igreja e renovar a vida cristã, tornou-se vítima de seus próprios excessos, contribuindo para a divisão da Igreja.
O verdadeiro humanismo cristão só surgiria no início do século XVII, com São Francisco de Sales como seu maior expoente. Este humanismo devoto foi descrito por Bremond da seguinte forma:
O humanismo devoto aplica-se às necessidades da vida interior e torna acessíveis a todos tanto os princípios quanto o espírito do humanismo cristão. (...) Na teologia, o humanismo cristão aceita a teologia da Igreja pura e simplesmente. (...) Sem negligenciar nenhuma das verdades essenciais do cristianismo, prefere destacar aquelas que são mais reconfortantes e animadoras, em suma, as mais humanas, que considera também as mais divinas e, por assim dizer, mais em conformidade com a bondade infinita. Assim, não vê no pecado original a doutrina central, mas sim na Redenção. (...) Também não questiona a necessidade da graça, mas, em vez de oferecê-la parcimoniosamente a alguns predestinados, vê-na livremente oferecida a todos, mais ansiosa por nos alcançar do que estamos por recebê-la. (...)
O humanista não considera o homem desprezível. Ele está sempre, com todo o coração, do lado de nossa natureza. Mesmo ao vê-la miserável e impotente, ele a justifica; defende-a e a restaura.(21)
SANTO INÁCIO DE LOYOLA
O Renascimento, como já mencionado, exerceu muito menos influência sobre a espiritualidade do que se poderia esperar. No que diz respeito à Igreja como um todo, seus efeitos pareceram mais divisivos do que reformadores. As novas tendências iniciadas por Lefèvre e Erasmo nunca conseguiram romper completamente com as grandes correntes da espiritualidade medieval. Pelo contrário, as personalidades que surgiram na espiritualidade do século XVI demonstraram fidelidade ao passado ao desenvolverem ainda mais a prática da oração mental metódica, que, como vimos, tem suas raízes na tradição monástica. Isso é especialmente evidente no caso de Santo Inácio de Loyola (1491–1556) e da escola espanhola de espiritualidade.
De fato, devemos a Santo Inácio duas contribuições notáveis: ele aperfeiçoou os exercícios espirituais e deu à Igreja uma nova forma de vida religiosa. Nascido em 1491, na província basca de Guipúzcoa, ele tornou-se soldado, mas precisou abandonar a carreira militar quando sua perna direita foi ferida na defesa de Pamplona contra os franceses, em 1521. Durante o período de convalescença, parece que a leitura de Vida de Cristo, de Ludolfo da Saxônia, e Legenda Dourada, de Tiago de Varazze, levou-o a pensar em sua conversão. Após um período de incertezas, escrúpulos e dúvidas, começou a buscar o discernimento da vontade de Deus a seu respeito.(22)
Inácio teve contato com várias ordens religiosas. Inicialmente, considerou tornar-se cartuxo. Muitos de seus parentes eram terciários franciscanos, e uma prima foi fundadora de um mosteiro de Clarissas. Passou um longo tempo no convento dominicano de Manresa, onde o prior foi seu confessor e diretor. Mais tarde, um grupo de dominicanos defendeu e auxiliou na aprovação da Companhia de Jesus. Contudo, talvez o contato mais frutífero tenha sido com os beneditinos de Montserrat, onde Inácio provavelmente encontrou a devotio moderna e os exercícios espirituais de Garcia de Cisneros. Ele redigiu o primeiro esboço dos Exercícios sob inspiração divina, revisando-o em Paris, em 1534, e em 1548 os Exercícios foram aprovados pelo Papa Paulo III.(23)
OS EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS
Santo Inácio estabelece um período de quatro semanas para os Exercícios Espirituais, embora esse tempo possa ser estendido ou reduzido conforme as necessidades do exercitante e o julgamento do diretor. Originalmente, cada exercitante era orientado por um diretor, mas, a partir de 1539, os jesuítas começaram a oferecer os Exercícios em grupo. Inicialmente, exigia-se que o exercitante fosse um cristão de boa vontade, desejoso de servir a Deus com fervor e com suficiente bagagem espiritual; posteriormente, os Exercícios foram oferecidos a um público mais amplo.
Das vinte anotações incluídas por Santo Inácio na introdução aos Exercícios, destacam-se:
- Objetivo dos Exercícios: ajudar o exercitante a purificar sua alma para discernir sua vocação e segui-la fielmente;
- Flexibilidade pessoal: permitir que o exercitante abandone o método discursivo e pratique a oração conforme se sentir movido;
- Adaptação ao indivíduo: ajustar os Exercícios à idade, saúde, conhecimento e estado de vida do exercitante;
- Prudência do diretor: evitar intervenções excessivas ou influenciar as escolhas ou resoluções do exercitante.
Desde o início, Santo Inácio recomenda cultivar uma santa indiferença em relação às coisas criadas, afirmando que o homem é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus e, assim, salvar sua alma. Todas as coisas criadas são para uso do homem na busca desse objetivo; devem ser usadas na medida em que ajudam a alcançar a meta eterna e rejeitadas na medida em que se tornam obstáculos. Esse princípio, enfatizado na primeira semana, torna-se o lema dos jesuítas: Ad Majorem Dei Gloriam (Para a Maior Glória de Deus).
AS QUATRO SEMANAS DOS EXERCÍCIOS
- Primeira semana: meditações sobre o pecado e o inferno. O exercitante utiliza memória, intelecto e vontade para refletir sobre o tema, acompanhando o exame particular e os "dez acréscimos", que tratam de comportamento e penitências.
- Segunda semana: meditações sobre a vida de Cristo até o Domingo de Ramos, com ênfase na eleição segundo a vontade de Deus. Inclui a meditação dos "dois estandartes" (Cristo e Lúcifer) e os "três graus de humildade". A eleição deve visar a glória de Deus e a salvação da alma.
- Terceira semana: meditações sobre a Paixão e morte de Cristo, buscando fidelidade e forças para viver as resoluções tomadas. Regras detalhadas sobre abstinência em comida e bebida refletem a prudência de Santo Inácio em relação à penitência.
- Quarta semana: meditações sobre os eventos da Ressurreição até a Ascensão. O foco é o crescimento no amor, temperança e moderação. Inclui orientações sobre diferentes formas de oração mental e diretrizes para a meditação dos Mandamentos, pecados capitais ou a vida de Cristo.
Santo Inácio finaliza os Exercícios com regras para o discernimento dos espíritos, normas para a distribuição de esmolas, diretrizes para "pensar com a Igreja" e considerações sobre escrúpulos.
CONTRIBUIÇÕES DE SANTO INÁCIO
Desde o século XVI, a Igreja deve a Santo Inácio contribuições inestimáveis para a espiritualidade cristã, como:
- A prática dos exercícios espirituais e retiros;
- Métodos eficazes para oração mental;
- Popularização dos exames de consciência;
- Valorização da mortificação ajustada às capacidades individuais;
- Reconhecimento da importância do diretor espiritual;
- Uma teologia do apostolado como dever de todos os cristãos;
- Adaptação da vida religiosa às necessidades de seu tempo.
Santo Inácio transformou a vida consagrada, assim como São Domingos e São Francisco em suas épocas. Ele retirou dos religiosos jesuítas elementos tradicionais da vida monástica, como o hábito, o ofício coral e as observâncias monásticas, dando à Igreja uma nova forma de vida religiosa, baseada na oração mental, direção espiritual e serviço apostólico. Esse modelo influenciou profundamente as congregações religiosas posteriores, antecipando inovações que só seriam vistas novamente com os institutos seculares do século XX.(25)
SANTA TERESA DE ÁVILA
Santa Teresa de Ávila (1515–1582) ocupa um lugar de destaque na história da espiritualidade por dois motivos principais: sua reforma do Carmelo e sua incomparável autoridade na teologia da oração. Nascida em La Moneda, perto de Ávila, em 1515, desde cedo foi atraída para Deus, influenciada pelo exemplo devoto de seus pais. Aos treze anos, perdeu sua mãe e foi enviada a um internato conduzido por freiras agostinianas. Ao sair, já era uma jovem madura, assumindo a responsabilidade de cuidar do lar de sua família. Em 1536, Teresa estava convencida de sua vocação religiosa e, apesar da relutância inicial de seu pai, entrou no mosteiro carmelita da Encarnação, em Ávila.
Após professar seus votos, Teresa decidiu buscar a perfeição, mas com um fervor que talvez tenha superado a prudência, o que resultou em uma grave enfermidade. Foi levada à casa de seu pai para tratamento, mas os métodos usados agravaram sua condição, levando-a a um estado tão crítico que ficou em coma por quatro dias. Sua sepultura foi preparada no mosteiro, mas a recusa de seu pai em enterrá-la salvou sua vida. Gradualmente, recuperou-se e atribuiu sua cura à intercessão de São José, nutrindo desde então uma devoção especial a ele.
No entanto, a vida no mosteiro da Encarnação estava longe do espírito eremítico característico dos carmelitas. Teresa passava muito tempo no parlatório. Sua conversão interior ocorreu ao contemplar uma imagem realista do Ecce Homo, que despertou nela um desejo por maior recolhimento e solidão. O apoio espiritual de confessores, como o jesuíta Baltasar Álvarez, também foi fundamental para seu progresso.
REFORMA DO CARMELO
No século XVI, a observância da clausura era pouco rigorosa, e a vida monástica apresentava muitos sinais de laxismo. Em 1560, Teresa e algumas companheiras decidiram que era necessária uma reforma no Carmelo. Sob um mandato divino, liderou esse movimento, fundando em 1562 o primeiro mosteiro reformado, dedicado a São José, em Ávila. Nos anos seguintes, dedicou-se à fundação de diversos mosteiros pela Espanha, enfrentando críticas de prelados e membros da nobreza, bem como de seus próprios confrades carmelitas. Apesar disso, encontrou defensores leais e recebeu numerosas graças místicas. Faleceu em 4 de outubro de 1582, na festa de São Francisco de Assis, em Alba de Tormes.(26)
ENSINAMENTOS SOBRE A ORAÇÃO
Santa Teresa é reconhecida como a maior mestra das etapas da oração. Desde seu tempo, praticamente todos os escritores espirituais foram influenciados por seus escritos. Autores como Santo Afonso de Ligório e São Francisco de Sales destacam-se entre seus seguidores. Ela escreveu principalmente para as monjas e frades carmelitas, oferecendo um ensinamento prático e descritivo, baseado em sua experiência pessoal e em observações profundas sobre a conduta humana.
Seus ensinamentos estão presentes em três grandes obras: Livro da Vida, Caminho de Perfeição e Castelo Interior (Moradas), sendo esta última considerada sua obra-prima.(28)
No Castelo Interior, Teresa descreve a alma como um castelo com várias moradas, no centro do qual Cristo está entronizado. O progresso na oração leva a alma a passar de uma morada para outra, até alcançar a união plena com Deus na sétima morada. Fora do castelo, há trevas e criaturas repulsivas no fosso, simbolizando os perigos do pecado. A jornada espiritual começa com a entrada no castelo, acompanhada de desapego às coisas criadas.
O CAMINHO DA ORAÇÃO SEGUNDO SANTA TERESA
Santa Teresa define a oração como "um diálogo de amizade, um conversar frequente a sós com Aquele que sabemos que nos ama."(29) Ela insiste que o progresso na oração não depende de pensar muito, mas de amar muito. Assim, rejeita métodos rígidos que possam sufocar a liberdade da alma, incentivando a submissão à ação do Espírito Santo.
- Primeira morada: A alma inicia o caminho como principiante, ainda apegada às coisas terrenas. A oração característica é vocal.
- Segunda morada: A alma começa a praticar a oração mental, enfrentando períodos de aridez e dificuldades. Aqui, a meditação discursiva é predominante, mas deve levar ao amor.
- Terceira morada: Surge a oração de recolhimento adquirido, um estado em que todas as faculdades se unem na presença de Deus. Teresa sugere que a alma cultive a consciência da presença divina em todas as suas atividades.
- Quarta morada: Introduz-se a oração de quietude, uma união íntima do intelecto com Deus. A alma sente vivamente a presença divina, embora a memória e a imaginação ainda possam causar distrações.
- Quinta morada: A oração de união prende todas as faculdades da alma em Deus. Neste estado, a alma percebe a presença divina de maneira tão clara que não há dúvidas de que Deus está nela e ela em Deus.
- Sexta morada: A alma experimenta a união extática e a "esponsal mística," acompanhadas de purificações passivas e fenômenos místicos como êxtases, locuções e visões.
- Sétima morada: A alma alcança a "união transformante" ou "casamento místico," onde vive plenamente o pedido de Cristo: "Que todos sejam um, como Tu, Pai, estás em mim e eu em Ti" (Jo 17, 22-23). Neste estado, a alma esquece-se de si mesma, deseja sofrer por Cristo e sente zelo pela salvação das almas.
BASE DA SANTIDADE
Não seria correto pensar que a doutrina de Santa Teresa fosse exclusivamente mística. É verdade que ela escreveu para monjas contemplativas, mas estava ciente de que nem todas se encontravam no estado místico. Com frequência, afirmava que a santidade não consiste no extraordinário, mas em fazer as coisas ordinárias de maneira extraordinária. A base da santidade é a conformidade total com a vontade de Deus, "de modo que, assim que sabemos que Ele deseja algo, sujeitamos toda a nossa vontade a isso... O poder do amor perfeito é tal que nos faz esquecer de agradar a nós mesmos para agradar àquele que nos ama."(37)
O caminho mais seguro e rápido para alcançar essa perfeição no amor, segundo Santa Teresa, é a obediência, pela qual renunciamos completamente à nossa própria vontade e a submetemos inteiramente a Deus.(38) Para o crescimento na santidade, ela dá especial atenção à recepção da Comunhão; ao cultivo da humildade, obediência e caridade fraterna; à observância da pobreza; mas, acima de tudo, ao amor a Deus.(39)
SÃO JOÃO DA CRUZ
Não se pode falar de Santa Teresa de Ávila sem pensar em seu grande colaborador, São João da Cruz. Suas vidas, obras e doutrinas estão tão intimamente ligadas que ambos são os pilares sobre os quais se constrói a escola carmelita de espiritualidade. São João da Cruz (1542–1591) não é tão amplamente conhecido e lido quanto merece, e há várias razões para isso: ele escreveu principalmente para almas já avançadas no caminho da perfeição; seus ensinamentos sobre desapego e purificação são exigentes demais para alguns cristãos; e sua linguagem, frequentemente sutil e metafísica, nem sempre agrada ao gosto dos leitores modernos. No entanto, seus escritos e os de Santa Teresa se complementam tão perfeitamente que uma das melhores maneiras de compreender um é estudar as obras do outro. Há, é claro, uma diferença notável entre eles, mas trata-se mais de uma diferença de abordagem do que de essência.
Para entender São João da Cruz e Santa Teresa, é necessário considerar o estado da vida cristã na Espanha do século XVI. Pessoas que alegavam receber revelações, visões e outros fenômenos místicos extraordinários eram admiradas e buscadas. Algumas desejavam sinceramente receber esses dons especiais; outras chegavam a simular estigmas ou visões para impressionar os fiéis. O iluminismo (ou alumbradismo) ganhou grande força, especialmente em casas religiosas relaxadas, como um caminho para a santidade eminente sem a prática da ascese ou o esforço de adquirir virtudes. Todos os aspectos estruturados e institucionais da religião eram rejeitados como obstáculos ou completamente desnecessários para a união imediata com Deus na experiência mística. O pseudo-misticismo tornou-se objeto de intensa investigação pela Inquisição Espanhola, que conseguiu controlar a situação, mas às custas do desenvolvimento de uma espiritualidade autêntica e ortodoxa.(40) Algumas afirmações nos escritos de Santa Teresa e São João da Cruz podem ser mal interpretadas se o leitor não levar em conta o contexto espanhol do século XVI.
João de Yepes nasceu em Fontiveros, perto de Ávila, em 1542. Com apenas alguns meses de vida, perdeu o pai. Reduzida à pobreza, sua família mudou-se para Medina del Campo, onde João trabalhou em diversos ofícios e frequentou a escola jesuíta de 1559 a 1563. Aos vinte e um anos, ingressou na Ordem Carmelita e foi enviado a Salamanca para estudar teologia. Ao retornar a Medina del Campo para celebrar sua primeira Missa, conheceu Santa Teresa de Ávila. Ele havia pensado seriamente em transferir-se para os cartuxos, mas Teresa o convenceu a unir-se à Reforma Carmelita.
A primeira casa dos carmelitas descalços foi fundada em Duruelo, e João, juntamente com Antônio de Jesus, foi um dos fundadores. Nos anos seguintes, São João da Cruz ocupou vários cargos: mestre de noviços, reitor do colégio de Alcalá e confessor das carmelitas no mosteiro da Encarnação, em Ávila. Foi durante essa última missão que foi sequestrado pelos carmelitas calçados (1577) e mantido prisioneiro no mosteiro de Toledo por nove meses.
Após escapar de Toledo, São João da Cruz passou a maior parte dos anos restantes em Andaluzia, ocupando cargos importantes. No entanto, no Capítulo Provincial de 1591, realizado em Madri, João discordou publicamente do Vigário Geral, Nicolás Doria, que imediatamente o destituiu. Humilhado, mas feliz por poder retornar a uma vida de maior solidão e recolhimento, São João da Cruz encerrou seus dias em Úbeda, onde faleceu após muito sofrimento. Foi canonizado pelo Papa Bento XIII em 1726 e declarado Doutor da Igreja pelo Papa Pio XI em 1926.(41)
AS PRINCIPAIS OBRAS DE SÃO JOÃO DA CRUZ
As obras principais de São João da Cruz são:
- A Subida do Monte Carmelo (1579–1585);
- A Noite Escura da Alma (1582–1585);
- O Cântico Espiritual (primeira redação em 1584 e segunda redação entre 1586 e 1591);
- A Chama Viva de Amor (primeira redação entre 1585 e 1587 e segunda redação entre 1586 e 1591).
Todas essas obras são comentários sobre poemas compostos pelo próprio São João da Cruz, embora os dois primeiros tratados nunca tenham sido concluídos. Contudo, é amplamente aceito que os tratados Subida–Noite Escura abrangem toda a temática referente às purificações ativas e passivas dos sentidos e das faculdades espirituais.(42)
INFLUÊNCIAS TEOLÓGICAS
Tendo estudado em Salamanca, São João da Cruz foi formado na teologia tomista, mas também leu as obras de Pseudo-Dionísio e São Gregório Magno. No entanto, o autor que mais parece ter influenciado São João foi Tauler (discípulo do Mestre Eckhart e manteve profunda relação com a seita esotérica dos Amigos de Deus), embora seja certo que ele conhecia as obras de São Bernardo, Ruysbroeck, Cassiano, os Victorinos, Osuna e, evidentemente, Santa Teresa de Ávila.(43) Apesar disso, João da Cruz não foi um mero imitador; suas obras possuem um caráter distintivo e original.
O PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DA TEOLOGIA DE SÃO JOÃO
O princípio fundamental da teologia de São João da Cruz é que Deus é Tudo, e a criatura é nada. Portanto, para alcançar a união perfeita com Deus, que constitui a santidade, é necessário passar por uma purificação intensa e profunda de todas as faculdades e potências da alma e do corpo. Os tratados Subida–Noite Escura descrevem todo o processo de purificação, desde a purificação ativa dos sentidos externos até a purificação passiva das faculdades superiores; já A Chama Viva de Amor e O Cântico Espiritual descrevem a perfeição da vida espiritual na união transformante. Todo o caminho para a união é chamado de "noite" porque a alma caminha pela fé. João da Cruz apresenta seus ensinamentos de maneira sistemática, utilizando como fontes a Sagrada Escritura, a teologia e sua experiência pessoal.
A UNIÃO DA ALMA COM DEUS
Ao falar da união da alma com Deus, São João refere-se à união sobrenatural e não à união geral pela qual Deus está presente na alma ao sustentá-la na existência. A união sobrenatural da vida mística é uma "união de semelhança" produzida pela graça e pela caridade. Contudo, para que essa união de amor seja tão perfeita e íntima quanto possível, a alma deve livrar-se de tudo o que não é Deus e de qualquer obstáculo ao amor divino. Assim, a alma poderá amar a Deus com todo o coração, alma, mente e forças.
Como qualquer deficiência na união de amor é atribuída à alma e não a Deus, João conclui que a alma precisa ser completamente purificada em todas as suas faculdades e potências – tanto no nível sensorial quanto espiritual – antes de ser plenamente iluminada pela luz da união divina. Isso leva à chamada "noite escura," assim denominada porque:
- O ponto de partida é a negação e privação do desejo pelas coisas criadas;
- O caminho pelo qual a alma viaja é a obscuridade da fé;
- O objetivo é Deus, que é também uma "noite escura" para o homem nesta vida.(44)
A NOITE ESCURA: NECESSIDADE E SIGNIFICADO
A necessidade de passar pela noite escura deve-se ao fato de que, do ponto de vista de Deus, os apegos humanos às coisas criadas são pura escuridão, enquanto Deus é luz pura. Como "as trevas não podem receber a luz" (Jo 1,5), dois contrários não podem coexistir no mesmo sujeito. A escuridão dos apegos e a luz divina são opostos e não podem estar presentes simultaneamente na alma.
São João explica que a alma deve mortificar seus apetites ou concupiscências e avançar pela fé através da purificação ativa dos sentidos e do espírito. Embora o tratamento possa parecer negativo e severamente ascético, ele insiste que essa purificação não se trata de privação de coisas criadas, mas da negação e extirpação do desejo por elas ou do apego a elas.(45)
O MÉTODO PARA A PURIFICAÇÃO
São João propõe um método simples para realizar essa purificação:
- Ter um desejo habitual de imitar Cristo;
- Estudar a vida e as obras de Cristo;
- Fazer o que Cristo fez.(46)
Esse ensinamento reflete a centralidade de Cristo na espiritualidade de São João da Cruz e destaca a necessidade de seguir o exemplo de Cristo como o caminho mais seguro para alcançar a união transformante com Deus.
A NOITE ATIVA DO ESPÍRITO
No Livro 2 de A Subida do Monte Carmelo, São João da Cruz discute a noite ativa do espírito. Ele afirma que a purificação do intelecto, da memória e da vontade é realizada por meio da operação das virtudes de fé, esperança e caridade, explicando em seguida por que a fé é a noite escura pela qual a alma deve passar para se unir a Deus. Ao tratar da prática da oração, ele apresenta três sinais pelos quais a alma pode reconhecer que está passando da meditação para a oração contemplativa:
- Torna-se impossível meditar como antes;
- Não há desejo de se concentrar em nada em particular;
- Surge um anseio por Deus e pela solidão.
O que a alma experimenta é uma "consciência amorosa de Deus," que é uma forma de oração contemplativa.(47)
AS PURIFICAÇÕES PASSIVAS
As purificações passivas são explicadas em A Noite Escura. Nesse estágio, Deus completa os esforços da alma para se purificar tanto no nível sensorial quanto nas faculdades espirituais. A alma é gradualmente conduzida à contemplação escura, descrita por Pseudo-Dionísio como um "raio de escuridão" e chamada por São João de "teologia mística."(48) Embora se espere que a contemplação mística seja prazerosa, São João explica que, quando a luz divina da contemplação atinge uma alma ainda não completamente purificada, causa escuridão espiritual. Isso ocorre porque a luz divina transcende o entendimento humano e priva a alma de suas operações intelectuais.
Mesmo assim, durante essa contemplação escura e dolorosa, a alma pode perceber os primeiros raios de luz que anunciam o amanhecer. Em O Cântico Espiritual, São João descreve a busca ansiosa da alma por Deus e o encontro supremo de amor, usando o símbolo da noiva que procura o noivo e, finalmente, alcança a união perfeita do amor mútuo. Deus atrai a alma para si como um ímã poderoso atrai partículas de metal. A jornada da alma em direção a Deus torna-se cada vez mais rápida até que, tendo deixado tudo para trás, ela desfruta da união mais íntima possível nesta vida: o matrimônio místico da união transformante.
A CHAMA VIVA DE AMOR
Em A Chama Viva de Amor, São João descreve a sublime perfeição do amor no estado de união transformante. A união entre a alma e Deus é tão íntima que está singularmente próxima da visão beatífica, "tão próxima que apenas um véu muito fino as separa." A alma clama ao Espírito Santo que rasgue o véu da vida mortal para que possa entrar na glória completa e perfeita. Nesta união, a alma é transformada em uma chama de amor, na qual o Pai, o Filho e o Espírito Santo se comunicam com ela. A alma experimenta um antegozo da vida eterna.(49)
Não é algo incrível que uma alma, agora examinada, purificada e provada no fogo das tribulações, provas e muitas tentações, e encontrada fiel no amor, receba o cumprimento da promessa do Filho de Deus: que a Santíssima Trindade virá e habitará em quem o ama (Jo 14,23). A Santíssima Trindade habita na alma, iluminando divinamente seu intelecto com a sabedoria do Filho, deleitando sua vontade no Espírito Santo e absorvendo-a poderosamente no doce abraço do Pai.(50)
A HERANÇA DE SANTA TERESA DE ÁVILA E SÃO JOÃO DA CRUZ
Juntos, Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz ofereceram à Igreja uma doutrina espiritual que nunca foi superada. Sua influência foi tão grande e sua exposição tão brilhante que ofuscaram todos os outros escritores da Idade de Ouro da espiritualidade espanhola.
A IDADE DE OURO DA ESPANHA
A Espanha do século XVI produziu uma rica literatura espiritual e um número impressionante de santos. Em certa medida, isso se deveu à situação histórica do período e à localização geográfica da Espanha. Separada dos países ao norte pelos Pirineus, como França, Alemanha e Países Baixos, a Espanha foi menos afetada pelos impactos da Reforma Protestante do que essas nações. Comparativamente, a Espanha desfrutava de um clima de paz propício ao desenvolvimento da espiritualidade e à produção de tratados sobre a vida cristã. Embora a Inquisição restringisse a liberdade de pensamento, ainda permitiu o surgimento de uma literatura espiritual de altíssima qualidade. Infelizmente, em figuras como Melchior Cano, a Inquisição também gerou suspeitas excessivas, severidade injustificada, acusações infundadas e uma tendência definitivamente anti-mística, completamente contrária ao temperamento espanhol.(51) Muitos escritores espirituais de renome foram presos como suspeitos, e diversas obras acabaram incluídas no Índice de Livros Proibidos.
Por outro lado, havia razões legítimas para que a Inquisição perseguisse os Alumbrados. No início do século XVI, o pseudo-misticismo, com toda sua imoralidade, falsas visões, estigmas e êxtases, havia atraído muitos seguidores, especialmente entre religiosos pouco instruídos. A partir de 1524, a disseminação gradual da doutrina luterana na Espanha trouxe a negação da moralidade objetiva, o desprezo pelas boas obras e a reivindicação de uma orientação individual pelo Espírito Santo. Escritores espirituais das ordens franciscana e dominicana tentaram corrigir os exageros dos pseudo-místicos, mas, em 1551, ficou evidente que eram necessárias medidas mais rigorosas, conduzindo à atuação da Inquisição Espanhola.
OS FRANCISCANOS E A DOUTRINA ESPIRITUAL
Os franciscanos foram os primeiros a oferecer a doutrina espiritual tão necessária. Alonso de Madrid (+1521) publicou um tratado ascético intitulado A Arte de Servir a Deus. Ele apresentou inicialmente a teologia básica da vida espiritual, alertando contra sentimentalismos e ilusões, e desenvolveu três temas fundamentais: o autoconhecimento, o crescimento nas virtudes e a prática da oração mental. Santa Teresa de Ávila recomendava esta obra com entusiasmo para suas monjas.
Em 1527, Francisco de Osuna (+1540) publicou o Terceiro Abecedário Espiritual, um tratado místico sobre a oração que exerceu profunda influência sobre Santa Teresa de Ávila.(52) De maneira reminiscente aos místicos do Reno, Osuna afirmava que o recolhimento em Deus só pode ser alcançado pelo desapego dos sentidos e que a perfeição da oração de recolhimento consiste em não pensar em nada específico, permitindo que a alma seja completamente absorvida por Deus. No entanto, isso deve ser feito com um espírito alegre, pois Osuna declarava que aqueles que se sentem tristes ou desanimados progridem pouco na vida de oração. O tratado inteiro é desenvolvido a partir de uma perspectiva psicológica, que atraiu Santa Teresa e marcou suas próprias obras.
Bernardino de Laredo (+1540), um médico que se tornou irmão leigo franciscano, publicou A Subida do Monte Sião em 1535. Em 1538, lançou uma nova versão, refletindo mudanças significativas em sua doutrina. Santa Teresa de Ávila afirmou ter encontrado grande esclarecimento e consolo nesta obra, especialmente quando estava preocupada com sua capacidade de meditar sobre Cristo. É interessante notar que, enquanto a edição de 1535 segue os ensinamentos místicos de Ricardo de São Vítor, a edição de 1538 reflete a influência de Pseudo-Dionísio, Hugo de Balma, os cartuxos e Henrique Herp.
A SUBIDA DO MONTE SIÃO
A Subida do Monte Sião é dividida em três partes:
- Primeira parte: trata do processo de autoaniquilação espiritual, no qual a alma destrói o pecado e cultiva a virtude, com o autoconhecimento e a humildade como elementos indispensáveis. Bernardino afirmava que a oração contemplativa não é exclusiva de monges e frades, mas pode ser alcançada por todos os cristãos que cultivem a humildade e sigam Cristo.
- Segunda parte: oferece meditações sobre os mistérios da vida, morte e ressurreição de Cristo.
- Terceira parte: foca inteiramente na oração contemplativa.
Na edição de 1535, Bernardino enfatiza o papel do intelecto na contemplação (seguindo Ricardo de São Vítor); já na edição de 1538, ele descreve a contemplação mística em termos da vontade, que supera o intelecto com aspirações de amor.(53)
SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA
Entre os franciscanos, merece destaque São Pedro de Alcântara (+1562), reformador da Ordem Franciscana na Espanha e conselheiro de Santa Teresa de Ávila. Há muita controvérsia sobre a autoria do Tratado da Oração e Meditação, atribuído a São Pedro. Santa Teresa afirma que ele foi "autor de alguns livrinhos sobre oração, escritos em espanhol e amplamente utilizados atualmente."(54) A hipótese mais aceita é que São Pedro tenha adaptado o Livro da Oração e Meditação, escrito por Luís de Granada em 1554. Posteriormente, Luís lançou uma nova edição em 1555 e uma versão definitiva em 1566. Ambos os autores exerceram grande influência além dos Pirineus, e sua doutrina sobre oração foi utilizada como fonte por São Francisco de Sales.
LUÍS DE GRANADA
Luís de Granada (+1588) destacou-se como o principal escritor espiritual entre os dominicanos espanhóis do século XVI, embora não tenha escapado à vigilância e condenação da Inquisição Espanhola. Suas obras foram tão amplamente difundidas que logo foram traduzidas para várias línguas, incluindo idiomas de países missionários. Após algumas de suas obras serem incluídas no Índice, Luís submeteu os mesmos livros ao Concílio de Trento e obteve aprovação formal para seus ensinamentos. O que parecia ser a ruína de sua vocação como escritor espiritual transformou-se em vitória: em 1562, recebeu o título de Mestre em Teologia Sagrada, por concessão direta do Mestre Geral da Ordem Dominicana. Dos 84 anos de sua vida, dedicou 35 à pregação e à escrita. Após sua morte, em 1588, o Capítulo Geral dos Dominicanos declarou: "Homem notável em doutrina e santidade, celebrado em todo o mundo."
MÉTODO DE ORAÇÃO
Depois de Santo Inácio de Loyola, Luís de Granada foi o primeiro escritor espiritual a formular um método de oração para os leigos, adotado por algumas ordens religiosas na Espanha. Seu método consistia em seis passos:
- Preparação (geralmente na noite anterior);
- Leitura do material para meditação;
- Meditação propriamente dita, que incluía consideração, aplicação e resolução;
- Ação de graças;
- Oferecimento;
- Súplica.
Luís distinguia entre meditação imaginativa (utilizando cenas da vida de Cristo) e meditação intelectual (refletindo sobre um atributo divino ou uma verdade teológica). Poucos autores superaram Luís de Granada como especialista em meditação discursiva.
Além de seus escritos sobre oração, Luís compôs tratados voltados para a conversão dos cristãos a uma vida mais devota. Talvez devido à experiência inicial com a Inquisição, raramente abordou temas místicos, o que contribuiu para sua popularidade universal. Grandes santos elogiaram seus escritos, entre eles Santa Teresa de Ávila, São Carlos Borromeu, São Vicente de Paulo, Santa Luísa de Marillac e São Francisco de Sales.
TEMAS FUNDAMENTAIS
O tema central das obras de Luís de Granada é o chamado universal à perfeição cristã. Embora não seja obrigatório alcançar a perfeição nesta vida, todos são obrigados a esforçar-se para alcançar a excelência. Cada cristão deve buscar o objetivo da perfeição de acordo com seu temperamento, estado de vida e dons recebidos de Deus. Luís enumerou diversos caminhos para a santidade, incluindo:
- O caminho direto da oração;
- A prática das virtudes;
- O desprezo pelo mundo;
- O caminho doloroso da cruz;
- A imitação dos santos;
- A obediência aos mandamentos;
- A contemplação de Deus na criação e na ordem da graça e do sobrenatural.
Independentemente do caminho seguido, Luís insistia que o cristão deve viver a vida de Cristo e identificar-se com Ele por meio da graça que nos foi comunicada pela sua paixão e morte, através da Igreja e dos sacramentos. Para ele, a oração é essencial na vida cristã porque é a linguagem do amor e o meio mais direto e eficaz para alcançar a santidade.
SÃO JOÃO DE ÁVILA
Semelhante a Luís de Granada em seu apostolado e sofrimento nas mãos da Inquisição Espanhola, São João de Ávila (+1569) é conhecido como o Apóstolo da Andaluzia. Respeitado universalmente, teve contato com várias personalidades santas. Correspondia-se frequentemente com Santa Teresa de Ávila e foi responsável pela conversão de São Francisco de Borja e São João de Deus. Dotado de um notável dom de discernimento dos espíritos, São João de Ávila atingiu grandes alturas de experiência mística em sua vida pessoal.
Assim como Luís de Granada, ensinava um tipo de meditação simples, cristocêntrica e adaptada a pessoas de todas as condições de vida. Embora fosse cauteloso ao tratar de assuntos místicos, defendeu a experiência mística contra aqueles que a suspeitavam. Quando Santa Teresa lhe enviou um exemplar de O Livro da Vida, sugeriu em uma carta que corrigisse certas expressões e explicasse melhor outras.
Denunciado à Inquisição Espanhola em 1531, São João de Ávila passou mais de um ano preso antes de ser absolvido. Em 1556, seu tratado Audi, filia, et vide foi publicado sem sua permissão e incluído no Índice em 1559. A obra só foi republicada em 1574, após sua morte, com consideráveis modificações. Por isso, historiadores da espiritualidade lamentam que a Inquisição tenha restringido grandes místicos como São João de Ávila, que evitaram publicar as sublimes teologias que pregavam em seus sermões e conferências.
O maior apostolado de São João de Ávila foi realizado entre os sacerdotes de sua época. Embora ele próprio não tenha fundado um instituto religioso para sacerdotes, muitos de seus discípulos ingressaram nos jesuítas, algo que João de Ávila também desejava, mas nunca conseguiu realizar. Seus discípulos promoveram uma espiritualidade caracterizada pela obediência filial ao diretor espiritual, pela prática da oração mental, pela teologia espiritual fundamentada nos Evangelhos e em São Paulo, e por um apostolado centrado na pregação. Aqueles que estavam sob sua direção logo percebiam seu dom extraordinário para compreender o mistério de Cristo. Sua espiritualidade cristocêntrica pode ser resumida nas seguintes afirmações:
- Todas as bênçãos vêm a nós através de Cristo;
- Na medida em que nos unimos a Cristo, participamos dos frutos da redenção;
- Nossa incorporação em Cristo começa com a fé e o batismo, sendo aperfeiçoada na Eucaristia;
- A dedicação total a Cristo produz em nós os frutos da esperança e da alegria.(56)
LUÍS DE LEÓN
Entre os agostinianos, o escritor espiritual mais renomado foi Luís de León (1528–1591), professor da Universidade de Salamanca e editor literário da primeira edição dos escritos de Santa Teresa de Ávila. Profundo conhecedor do hebraico, traduziu e comentou o Cântico dos Cânticos, o que levou à sua prisão pela Inquisição por quase cinco anos.
Sua obra-prima é indiscutivelmente Os Nomes de Cristo.(57) Baseada em fontes bíblicas e patrísticas, a obra também reflete influências da espiritualidade da Alemanha e dos Países Baixos, além de semelhanças com o estilo de São João da Cruz. Embora seus escritos sejam justamente elogiados, Luís de León é frequentemente mais reconhecido por suas contribuições literárias e estéticas do que por sua influência na espiritualidade.(58)
OS JESUÍTAS E A ESPIRITUALIDADE ESPANHOLA
Os jesuítas não contribuíram significativamente para a literatura espiritual espanhola até o século XVII, embora estivessem envolvidos nas tendências contemporâneas. Isso pode ser explicado por diversos fatores:
- A Companhia de Jesus ainda era jovem, buscando sua forma definitiva e lutando pela sobrevivência diante da oposição de bispos e ordens religiosas mais antigas;
- Santo Inácio de Loyola havia estabelecido os Exercícios Espirituais como a base da espiritualidade jesuíta, o que reduziu o incentivo para explorar outros métodos de oração ou teologia espiritual;
- A constante ameaça da Inquisição desestimulava um instituto religioso recém-fundado a arriscar-se ao confronto;
- Havia uma crise interna na Companhia sobre o equilíbrio entre contemplação e ação.(59)
Quando Santo Inácio faleceu em 1556, quase dois terços dos membros da Companhia eram espanhóis. Em um período em que a maior parte da literatura espiritual enfatizava a oração contemplativa, os jesuítas enfrentaram a decisão de regulamentar a prática da oração formal. Na Segunda Congregação Geral de 1565, não se chegou a um consenso, e a questão foi deixada para o Superior Geral recém-eleito, São Francisco de Borja, que estabeleceu uma hora diária de oração formal para todos os membros da Sociedade.
Com o tempo, outras práticas foram adicionadas, e a Terceira Congregação Geral de 1573 revisitou a questão, buscando retornar às práticas originais instituídas por Santo Inácio. Contudo, o Superior Geral Mercuriano recusou mudanças e, em 1575, proibiu a leitura de autores como Tauler (discípulo do Mestre Eckhart e manteve profunda relação com a seita esotérica dos Amigos de Deus), Ruysbroeck, Mombaer, Herp, Llull, Santa Gertrudes e Santa Matilde, considerando-os incompatíveis com o espírito jesuíta.(60)
Durante este debate, muitos jesuítas transferiram-se para os cartuxos. A divisão entre os que defendiam a oração afetiva e contemplativa e os que sustentavam a oração discursiva como própria da Companhia tornou-se evidente. Baltasar Álvarez, um dos defensores da oração contemplativa, foi silenciado por Mercuriano em 1577.(61)
Álvarez havia sido ordenado sacerdote em 1558 e foi designado para Ávila, onde se tornou diretor espiritual de Santa Teresa de Ávila. Posteriormente, experimentou a oração mística e, a pedido de seu provincial, escreveu um pequeno tratado explicando a oração de quietude, considerado uma das melhores refutações ao falso misticismo dos Alumbrados.(62)
A SOLUÇÃO DE AQUAVIVA
A crise foi resolvida pelo quinto Superior Geral, Aquaviva, que buscou preservar a unidade da Companhia de Jesus. Ele favoreceu a oração discursiva e a ascese, mas enfatizou que a oração é um valor em si mesma, cuja função essencial é conduzir ao conhecimento e amor de Deus, inclusive à contemplação. Contudo, para os jesuítas, a oração nunca deveria ser dissociada de sua vocação ativa. Aquaviva deixou a duração da oração formal ao critério das necessidades individuais, alinhando-se ao ensinamento de Santo Inácio.(63)
Após o generalato de Aquaviva, os jesuítas começaram a produzir uma literatura significativa sobre a vida espiritual.
ESCRITORES JESUÍTAS DO SÉCULO XVII
SÃO ALFONSO RODRÍGUEZ (+1617)
O primeiro nome entre os escritores jesuítas do século XVII é o de São Alfonso Rodríguez, um humilde irmão coadjutor cuja espiritualidade parece contradizer diretamente o modelo defendido por Aquaviva para a Companhia de Jesus. Recusado em duas ocasiões, Alfonso foi finalmente aceito por Cordeses, o provincial de Aragão. Ele ingressou na Companhia como viúvo e passou toda sua vida religiosa como porteiro do colégio jesuíta em Palma de Mallorca. A pedido de seus superiores, deixou uma autobiografia de sua vida espiritual, marcada por provações, severas tentações e os mais altos graus de oração mística.(64) A maior parte de seus escritos só foi publicada no século XIX, o que contribuiu para que não recebesse a popularidade que merece. Místico por excelência, alcançou as alturas da oração contemplativa pelo caminho da humildade, da resignação total a Deus e da obediência literal.
ALFONSO RODRÍGUEZ (+1616)
Totalmente diferente de São Alfonso e muito mais conhecido é Alfonso Rodríguez, mestre de noviços jesuíta na Andaluzia, cuja extensa obra foi publicada sob o título Ejercicio de la perfección y las virtudes cristianas.(65) Rodríguez tinha mais de 70 anos quando o livro foi compilado a partir das conferências espirituais que ministrava aos noviços jesuítas. Seu tom é quase exclusivamente ascético e moral, mas considerando que o material visa a formação de noviços, é injusto acusá-lo de ser anti-místico apenas por dedicar pouco tempo a tópicos místicos. Ainda assim, Rodríguez parece fazer uma distinção excessivamente rígida entre a oração ascética ou discursiva e a oração mística, tratando a contemplação mística como algo extraordinário, sem considerar formas intermediárias de oração entre a discursiva e a mística. A Prática da Perfeição Cristã foi amplamente distribuída e, após sua tradução para o francês, foi adotada como leitura espiritual obrigatória por muitos institutos religiosos. Contudo, nos tempos modernos, caiu em desuso devido à sua moralidade legalista e ascetismo extremo.
LUÍS DE LA PUENTE (+1624)
Luís de la Puente começou sua carreira como escritor com mais de 50 anos, publicando inicialmente o estudo em dois volumes Meditações sobre os Mistérios de Nossa Santa Fé.(66) Desde sua terceira provação na Companhia, foi fortemente influenciado por Baltasar Álvarez e, mais tarde, escreveu uma biografia de Álvarez. Embora seu ensino esteja quase inteiramente restrito aos graus ascéticos de oração, de la Puente contribuiu para reduzir o preconceito contra a oração mística e o estado místico.
De maneira lógica, Luís defendia o uso dos Exercícios Espirituais e admitia que, embora a oração mística seja um dom especial de Deus, geralmente é concedida àqueles que são fiéis à prática da meditação e do recolhimento sobre os mistérios divinos. Ele usava diversos nomes para descrever a oração contemplativa, como: oração da presença de Deus, oração de repouso, oração de silêncio e oração de recolhimento interior. Na descrição da contemplação, de la Puente segue a tradição ortodoxa dos grandes mestres: "A contemplação... com um olhar simples contempla a soberana verdade, admira sua grandeza e nela se deleita."(67)
ÁLVAREZ DE PAZ (+1620)
Entre os autores jesuítas desse período, Álvarez de Paz foi o primeiro a realizar uma síntese completa da teologia ascética e mística. Outros autores haviam tratado de aspectos ascéticos e místicos da vida espiritual, mas suas obras eram mais manuais de direção espiritual do que tratados de teologia espiritual. Álvarez de Paz trabalhou no Peru, onde escreveu suas obras em latim, publicando-as posteriormente na França (provavelmente para evitar problemas com a Inquisição Espanhola). Os títulos de seus três volumes publicados revelam a vastidão de seu projeto teológico:
- De vita spirituali ejusque perfectione (1608);
- De exterminatione mali et promotione boni (1613);
- De inquisitione pacis sive studio orationis (1617).
Ele também planejava escrever um volume sobre a vida ativa no apostolado, mas nunca chegou a concluí-lo.
A DEFINIÇÃO DA VIDA ESPIRITUAL POR ÁLVAREZ DE PAZ
O autor define a vida espiritual como a vida da graça santificante, que admite vários graus, e explica como a alma individual, seja na vida ativa ou contemplativa, pode buscar a perfeição espiritual por meio de uma caridade cada vez mais intensa. Ele dedica atenção especial à necessidade de evitar o pecado, ao cultivo da humildade, castidade, pobreza e obediência, e à prática da mortificação.
TIPOS DE ORAÇÃO MENTAL
Álvarez de Paz divide a oração mental em quatro tipos básicos:
- Meditação discursiva;
- Oração afetiva;
- Contemplação inicial (inchoate contemplation);
- Contemplação perfeita.
Ele oferece algo que outros antes dele não haviam feito: uma forma de oração que serve como transição entre a oração ascética e a oração mística. Além disso, é reconhecido por introduzir uma classificação original, a oração afetiva, cujo nome foi preservado por escritores posteriores.
Contudo, ele insiste que, assim como a oração discursiva não pode ser exclusivamente um exercício do intelecto (o que a transformaria em estudo), a oração afetiva também não é uma atividade exclusivamente dos afetos. Trata-se de qual aspecto predomina em determinado tipo de oração, mas o homem deve usar tanto o intelecto quanto os afetos em todas as formas de oração. O objetivo da oração é aumentar a caridade e, por isso, a oração afetiva é considerada uma forma mais pura de oração do que a discursiva.
FORMAS DE ORAÇÃO AFETIVA
A oração afetiva pode ser praticada de três maneiras:
- Por meio de atos repetidos de amor sob o impulso da graça;
- Por um ato simples e puro de amor na presença de Deus;
- Por uma operação especial de Deus na alma (contemplação inicial).
CONTEMPLAÇÃO PERFEITA
A contemplação perfeita, por outro lado, possui duas formas:
- Dons extraordinários que, por vezes, são concedidos por Deus como fenômenos místicos (êxtases, visões, etc.);
- Um conhecimento simples de Deus, realizado pelo dom da sabedoria, que eleva a alma, suspende as operações de suas faculdades e a coloca em um estado de admiração, alegria e amor ardente.(68)
Álvarez de Paz afirma que as almas podem desejar a contemplação e até mesmo pedi-la humildemente a Deus, pois "é o meio mais eficaz de alcançar a perfeição."
CONTRIBUIÇÕES DA ESPIRITUALIDADE ESPANHOLA
Com isso, concluímos nossa análise da espiritualidade espanhola. Embora tenhamos abordado apenas alguns escritores espirituais que são o orgulho da Idade de Ouro da Espanha, é importante ressaltar que nenhuma outra nação católica contribuiu tanto para a teologia espiritual. A Espanha que deu à Igreja Santa Teresa de Ávila, São João da Cruz e Santo Inácio de Loyola também produziu fundadores de ordens apostólicas, inúmeros missionários para a América Latina e o Oriente e, em tempos mais recentes, um dos mais florescentes institutos de vida consagrada: o Opus Dei.
ESPIRITUALIDADE ITALIANA
Enquanto a espiritualidade espanhola, desde o início, tinha uma abordagem psicológica e, após a Idade de Ouro, tendia a tornar-se acadêmica e especulativa,(69) a espiritualidade italiana dos séculos XVI e XVII era prática e voltada para o cultivo de um espírito reformador. Mesmo grandes místicas, como a carmelita Santa Madalena de Pazzi e a dominicana Santa Catarina de Ricci, estavam profundamente preocupadas com a reforma da Igreja. Isso se deveu às alarmantes incursões dos costumes pagãos do Renascimento em toda a Itália. Escritores espirituais, na tradição de Savonarola, logo começaram a exigir medidas para restaurar tanto o clero quanto os leigos a uma autêntica vida cristã. O esforço era ainda mais complicado pelo temor da Revolta Protestante, que levou à criação da Inquisição. Dessa forma, até mesmo os defensores da reforma precisavam agir com grande cautela. Para os italianos, o medo da heresia superava o temor à mundanidade e à sensualidade.
JOÃO BATISTA DA CREMA E O COMBATE ESPIRITUAL
Um dos principais líderes da reação italiana contra a influência pagã do Renascimento foi o dominicano João Batista da Crema, renomado pregador, diretor espiritual e escritor. Após sua morte, em 1552, suas obras foram incluídas no Índice pela Inquisição Italiana, só sendo removidas em 1900.(70) Sua espiritualidade enfatizava o esforço pessoal, a cooperação com a graça e a erradicação do vício. Por insistir no esforço voluntário e tratar inadequadamente a doutrina do amor puro, alguns críticos viram traços de semipelagianismo em sua doutrina. Apesar disso, o movimento iniciado por ele deu frutos em várias áreas, como o surgimento dos clérigos regulares como uma nova forma de vida religiosa e a publicação de O Combate Espiritual, atribuído a Lourenço Scupoli.
João Batista da Crema foi diretor espiritual de pessoas muito santas, como São Caetano, fundador dos teatinos (1542), e Santo Antônio Maria Zaccaria, fundador dos barnabitas (1530). Assim como Santo Inácio de Loyola, que chegou a Roma em 1537, esses homens estavam convencidos de que a única maneira de reformar o clero era pelo exemplo pessoal e pela influência em pequenos grupos. Assim, os clérigos regulares foram fundados precisamente como um instrumento de reforma do clero.
Os clérigos regulares não viviam um estilo de vida monástico nem observavam a pobreza como os mendicantes; enfatizavam, em vez disso, a pobreza interior e o desapego dos bens deste mundo. Sua prática de oração era livre e simples, diferente da oração metódica dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio, embora seguissem o sistema de combate espiritual defendido por ele.
REFORMA E NOVOS INSTITUTOS RELIGIOSOS
Durante este período de reforma, a Itália produziu numerosos santos e uma grande quantidade de novos institutos religiosos, dedicados à reforma da Igreja ou ao apostolado das obras de misericórdia. Entre eles, destacam-se:
- São Roberto Belarmino,
- São Filipe Néri (fundador dos oratorianos),
- São Carlos Borromeu (fundador dos oblatas),
- São Caetano (fundador dos teatinos),
- Santa Ângela Mérici (fundadora das ursulinas),
- Santo Antônio Maria Zaccaria (fundador dos barnabitas),
- São Camilo de Lellis (fundador dos ministros dos enfermos).
Apesar do espírito reformador, a espiritualidade italiana nunca se tornou severa ou rígida; manteve-se marcada pela mortificação interior, pelo cultivo do amor divino, pela ternura e pela alegria, como demonstrado na vida de seus santos.
O COMBATE ESPIRITUAL DE LOURENÇO SCUPOLI
A obra espiritual mais influente do período foi O Combate Espiritual, do teatino Lourenço Scupoli (+1610).(71) Refletindo um período de reforma e renovação da Igreja, o livro tem como objetivo principal a conversão do pecado e o cultivo da vida interior. Estabelece como princípio fundamental que a vida espiritual não consiste essencialmente em práticas externas, mas no conhecimento e no amor a Deus.
A perfeição cristã é primariamente interior, exigindo a morte para o ego e a submissão total a Deus por meio do amor e da obediência. A obra enfatiza repetidamente o amor puro a Deus e o desejo de sua glória como os motivos adequados para a vida cristã, embora o temor do inferno e o desejo do céu sejam vistos como bons incentivos para iniciantes. Dado o estado pecaminoso do homem, a perfeição só pode ser alcançada por meio de um combate constante contra si mesmo.
ARMAS DO COMBATE ESPIRITUAL
As principais armas desse combate espiritual são:
- Desconfiança de si mesmo (por si só, o homem nada pode fazer);
- Confiança em Deus (com Ele, tudo é possível);
- Uso adequado das faculdades do corpo e da alma;
- Prática da oração.
Essa abordagem reflete o espírito prático e reformador da espiritualidade italiana, que visava não apenas transformar a vida pessoal, mas também renovar a Igreja e a sociedade.
O COMBATE ESPIRITUAL
O Combate Espiritual, como o próprio nome indica, trata principalmente do uso adequado das faculdades e poderes humanos. Para esse fim, oferece conselhos específicos sobre como controlar as diversas faculdades e enfatiza a importância da vigilância constante. Contudo, não há uma tentativa de suprimir os sentidos nem de sugerir que sejam necessariamente fontes de mal e pecado. O objetivo é aprender a alcançar Deus pelo uso correto dos sentidos, conforme explicado por Santo Inácio nos Exercícios Espirituais.
No que diz respeito à prática da oração, a obra não apresenta as explicações detalhadas características da espiritualidade espanhola. Três estilos de oração são recomendados, todos de caráter ascético:
- Meditação, especialmente sobre a paixão e morte de Cristo;
- Comunhão com Deus, por meio do recolhimento frequente em sua presença e o uso de jaculatórias ou breves orações vocais;
- Exame de consciência, que, embora não seja oração em sentido estrito, pode levar à oração.
Por fim, sugere-se a comunhão frequente e, quando isso não for possível, a prática da "comunhão de desejo" ou comunhão espiritual.
MÍSTICAS E A MISSÃO SOCIAL
SANTA MADALENA DE PAZZI (+1607)
Uma das grandes místicas do período, Santa Madalena de Pazzi, carmelita, era uma extática dotada de dons místicos fenomenais. Suas obras foram todas ditadas durante estados de êxtase, com a ajuda de seis secretários que mal conseguiam acompanhar o fluxo de palavras que ela expressava. Suas obras podem ser agrupadas em cinco categorias:
- Contemplações sobre os mistérios da fé e a vida de Cristo;
- A vida religiosa e as virtudes;
- Comentários sobre as Escrituras Sagradas;
- Contemplações sobre as perfeições divinas;
- Exclamações, semelhantes às compostas por Santa Teresa de Ávila.(72)
SANTA CATARINA DE RICCI (+1590)
Santa Catarina de Ricci, dominicana, também foi uma mística dedicada à reforma da Igreja. Contudo, diferentemente de Santa Madalena, realizou seu apostolado principalmente por meio de cartas dirigidas aos interessados.(73) Apesar de seu zelo pela reforma da Igreja e do intenso sofrimento ao receber os estigmas da paixão do Senhor, seu biógrafo, Serafino Razzi, relata que Deus inundou sua alma com uma alegria indescritível. Outras místicas da época, como a terciária dominicana Beata Osana de Mântua e a clarissa Beata Batista Varani, manifestaram preocupações semelhantes com a reforma da Igreja e vivenciaram fenômenos místicos similares.
A ALEGRIA NA ESPIRITUALIDADE ITALIANA
A alegria característica dos místicos italianos é especialmente evidente em São Filipe Néri (+1595),(74) frequentemente chamado de "o santo do amor por excelência". Em muitos aspectos, ele antecipou o espírito de São Francisco de Sales, defendendo que "o espírito de alegria alcança a perfeição cristã mais facilmente do que o espírito de tristeza". Apesar disso, insistia na importância da mortificação interior e, junto a São Carlos Borromeu, na prática da oração. Para ele, a mortificação era uma das melhores preparações para a oração. Em períodos de aridez espiritual, dava o mesmo conselho que Santa Teresa de Ávila: em nenhuma circunstância abandonar a oração. Se utilizasse um livro, São Filipe sugeria que se lesse até que a devoção fosse despertada, então se fechasse o livro para começar a orar. Ele dizia: "A oração é, na ordem sobrenatural, o que a fala é na ordem natural."(75)
São Filipe Néri dedicava-se frequentemente ao cuidado dos enfermos, afirmando que cuidar dos doentes é um caminho curto para a perfeição. Seu biógrafo, o Cardeal Capecelatro, descreveu-o assim:
"[Ele] tornou-se o mestre de uma ascese suave, doce, terna e compassiva. Em toda sua vida, encontram-se apenas dois ou três casos de severidade moderada; pelo contrário, vê-se a cada passo uma infinita doçura de caridade para com o próximo."(76)
O AMOR DIVINO NA ESPIRITUALIDADE ITALIANA
Um dos temas centrais da espiritualidade italiana desse período foi o amor divino. Historicamente, sua origem remonta a Santa Catarina de Gênova (+1510), fundadora dos hospitais italianos.(77) Um de seus discípulos, Ettore Vernazza, fundou um grupo religioso chamado Oratorio del Divino Amore, que rapidamente se espalhou por toda a Itália.
Os escritos de Santa Catarina de Gênova foram editados por Ettore Vernazza e Cattaneo Marabotto, confessor de Santa Catarina, em 1530. Em 1548, Battista Vernazza compôs os Diálogos, que foram acrescentados à Vida e ao Tratado do Purgatório de Santa Catarina na edição de 1551. Embora não tenham sido escritos diretamente por ela, os Diálogos refletem fielmente seus ensinamentos sobre o amor divino. A importância dos Diálogos reside no fato de que correspondem às experiências místicas de vários santos da época, propondo um amor a Deus livre de interesses pessoais e enfatizando que o amor ao próximo é uma condição indispensável para alcançar esse amor perfeito.
A devoção ao amor divino levou à proliferação de "companhias", nome dado a vários novos institutos religiosos dedicados ao apostolado das obras de misericórdia em diversas cidades da Itália.
SÃO FRANCISCO DE SALES
"São Francisco de Sales forma uma escola de espiritualidade por si só. Ele é o seu começo, o seu desenvolvimento, o seu todo."(78) Philip Hughes afirma que "em Francisco de Sales, o Renascimento francês é batizado e o humanismo torna-se devoto."(79) Ele é também uma ponte entre o Renascimento e o período moderno e tem sido uma das influências mais fortes na espiritualidade desde o século XVII até os dias atuais.
Nascido em Sabóia, em 1567, Francisco de Sales estudou com os jesuítas em Paris e, depois, em Pádua, onde obteve seu doutorado em Direito Civil e Canônico. Ordenado sacerdote em dezembro de 1593, foi nomeado provedor do Capítulo de Genebra, uma função que ficava apenas abaixo da do bispo. Dedicou-se com grande vigor à evangelização dos calvinistas e teve tanto sucesso que foi nomeado coadjutor do Bispo de Genebra. Em 8 de dezembro de 1602, foi consagrado bispo dessa diocese. Até sua morte, em 1622, dedicou-se à pregação, à escrita espiritual, à direção de almas e à administração de sua diocese. Junto com Santa Joana Francisca de Chantal, fundou o Instituto Religioso da Visitação da Santíssima Virgem, uma comunidade semi-clausurada destinada a jovens e viúvas. Em 1887, o Papa Pio IX declarou São Francisco de Sales Doutor da Igreja, sendo a primeira vez que essa honra foi concedida a um francês.(80)
SUA VIDA E CARÁTER
Desde muito jovem, São Francisco de Sales mostrou grande atração pelas coisas de Deus, e vários acontecimentos em sua vida indicam claramente que seu chamado ao estado clerical foi uma vocação divina imediata. Michael de la Bedoyere afirma que Francisco de Sales é "o maior dos santos — pelo menos para os tempos modernos. E baseio essa convicção no sentimento constante de que aqui estava o ser humano de nossa época na história ocidental que, naturalmente, instintivamente e, também, sobrenaturalmente, refletiu de forma mais direta o caráter e o caminho de Cristo nosso Senhor."(81)
SUA CONTRIBUIÇÃO À ESPIRITUALIDADE
A doutrina ensinada por São Francisco de Sales não era nova, mas ele apresentou o ensinamento espiritual de forma original e merece crédito por retirar a espiritualidade cristã do âmbito estritamente monástico, no qual esteve confinada por séculos. Formado pelos jesuítas, São Francisco claramente seguiu práticas espirituais de inspiração inaciana. Em sua teologia, porém, é agostiniano, com o realismo e o otimismo de um tomista. Provavelmente, estava familiarizado com os escritos da escola flamenga, de Santa Catarina de Sena (por quem tinha grande amor), Santa Catarina de Gênova, São Filipe Néri e diversos escritores da escola espanhola, como Santa Teresa de Ávila, São João da Cruz, Luís de Granada, João de Ávila e García de Cisneros. O Combate Espiritual era seu livro de meditação favorito desde os tempos em Pádua. Em Paris, manteve contato com o capuchinho Richard Beaucousin, Bérulle, as carmelitas e Madame Acarie.
A edição crítica das obras de São Francisco de Sales compreende 27 volumes, dos quais 12 contêm suas cartas. Os demais incluem A Defesa do Estandarte da Santa Cruz, Introdução à Vida Devota, Tratado do Amor de Deus, Entrevistas Espirituais, suas controvérsias e quatro volumes de sermões. Para nossos propósitos, basta resumir a doutrina contida na Introdução à Vida Devota.
INTRODUÇÃO À VIDA DEVOTA
A Introdução à Vida Devota foi publicada pela primeira vez em 1609, com uma edição final revisada por São Francisco em 1619. O livro foi escrito especificamente para os leigos, e São Francisco de Sales pode ser considerado o primeiro escritor espiritual a compor um tratado sobre espiritualidade leiga. Como ele explica no prefácio, os autores anteriores trataram da vida espiritual para instruir pessoas que se afastaram do mundo ou ensinaram uma espiritualidade que as levaria a fazê-lo. A intenção de São Francisco, entretanto, é oferecer instrução espiritual àqueles que permanecem no mundo, em suas profissões e famílias, e que acreditam erroneamente ser impossível buscar a vida devota.
SÃO FRANCISCO DE SALES E A VIDA DEVOTA
O que São Francisco de Sales entende por vida devota ou verdadeira devoção? Primeiramente, ele deixa claro que não consiste em graças ou favores extraordinários, afirmando enfaticamente:
"Há certas coisas que muitas pessoas consideram virtudes, mas que não o são de forma alguma... Refiro-me a êxtases, arrebatamentos, insensibilidades, impassibilidades, uniões deíficas, elevações, transformações e outras perfeições semelhantes discutidas em certos livros que prometem elevar a alma a uma contemplação puramente intelectual, à aplicação essencial do espírito e a uma vida supereminente... Essas perfeições não são virtudes; são, antes, recompensas que Deus dá pelas virtudes ou pequenos exemplos das delícias da vida futura... No entanto, não se deve aspirar a tais graças, porque elas não são de forma alguma necessárias para amar e servir bem a Deus, que deve ser nosso único objetivo."(82)
Em segundo lugar, a verdadeira devoção não consiste em um exercício espiritual específico:
"Ouço muito sobre perfeições, mas vejo poucas pessoas que as praticam... Alguns colocam sua virtude na austeridade; outros na abstinência alimentar; alguns na esmola, outros na frequência aos sacramentos da penitência e da Eucaristia; outro grupo na oração, seja vocal ou mental; outros em uma certa contemplação passiva e supereminente; outros nas graças extraordinárias concedidas gratuitamente. E todos eles estão enganados, tomando os efeitos pelas causas, o riacho pela fonte, os ramos pela raiz, o acessório pelo principal, e muitas vezes a sombra pela substância. Quanto a mim, não conheço nem experimentei outra perfeição cristã senão aquela de amar a Deus de todo o coração e ao próximo como a nós mesmos. Toda outra perfeição sem esta é uma falsa perfeição."(83)
A DEFINIÇÃO DE VERDADEIRA DEVOÇÃO
A verdadeira devoção, que para São Francisco de Sales é sinônimo de perfeição cristã, é o cumprimento do duplo preceito de caridade enunciado por Cristo (Mt 22,34-40). Na Introdução à Vida Devota, ele apresenta uma definição detalhada que ecoa a espiritualidade de Luís de Granada:(84)
"A verdadeira e viva devoção, Filoteia, pressupõe o amor a Deus; de fato, não é outra coisa senão o verdadeiro amor a Deus, mas não qualquer tipo de amor. Na medida em que o amor divino embeleza nossas almas, ele é chamado graça e nos torna agradáveis à divina Majestade; na medida em que nos dá o poder de fazer o bem, é chamado caridade; mas quando atinge um grau de perfeição em que não apenas nos faz fazer o bem, mas nos faz fazê-lo com cuidado, frequência e prontidão, então é chamado devoção."(85)
Embora mencione as boas obras que fluem da verdadeira devoção, São Francisco insiste que a vida devota é essencialmente interior. Além disso, a vida devota será vivida de maneira diferente por pessoas de diferentes vocações ou profissões; cada um deve buscar a perfeição da vida devota de acordo com suas forças pessoais e os deveres de seu estado de vida.
OS ELEMENTOS DA VIDA DEVOTA
Logo após enfatizar o chamado universal de todos os cristãos à perfeição, São Francisco destaca a necessidade de um diretor espiritual. Ele admite que um bom diretor é difícil de encontrar, mas afirma que deve ser um homem de caridade, conhecimento e prudência. Adverte também que a direção espiritual nunca deve impedir a ação do Espírito Santo nem ser um obstáculo à liberdade da alma, pois nem todos são chamados ao mesmo caminho para alcançar a perfeição. Esse conselho ecoa o de Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz.
O primeiro passo na vida devota é a purgação do pecado. Nesse ponto, São Francisco segue o ensino de Santo Inácio de Loyola, propondo a meditação sobre os últimos fins e uma confissão geral. Em seguida, é necessário renunciar completamente a todo apego ao pecado, sem o qual não pode haver conversão duradoura nem progresso na perfeição. Para alcançar essa purificação mais profunda, é essencial evitar todas as ocasiões de pecado e envolver-se nos assuntos mundanos apenas quando necessário, nunca por amor às coisas criadas. Embora a alma deva aprender a viver com suas próprias imperfeições, nunca deve aceitar de bom grado os defeitos provenientes do temperamento ou do hábito. Para crescer em virtude, é necessário superar até mesmo as falhas involuntárias.
PRÁTICAS ESPIRITUAIS
Na segunda parte da Introdução à Vida Devota, São Francisco propõe uma rotina diária de exercícios espirituais, com ênfase central na oração mental. Esses exercícios incluem:
- Oração mental diária;
- Orações da manhã e da noite;
- Exame de consciência;
- Confissão semanal e comunhão frequente;
- Leitura espiritual;
- Prática do recolhimento interior.
O método salesiano de oração mental é simples, claro e breve. Em muitos aspectos, assemelha-se às formas de oração ensinadas por Luís de Granada, Santo Inácio de Loyola e O Combate Espiritual. Desde o início, seguindo o ensino de São Bernardo, Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz, Francisco de Sales enfatiza a importância da meditação sobre a vida de Cristo.
SÃO FRANCISCO DE SALES E A VIDA DEVOTA
O que São Francisco de Sales entende por vida devota ou verdadeira devoção? Primeiramente, ele deixa claro que não consiste em graças ou favores extraordinários, afirmando enfaticamente:
"Há certas coisas que muitas pessoas consideram virtudes, mas que não o são de forma alguma... Refiro-me a êxtases, arrebatamentos, insensibilidades, impassibilidades, uniões deíficas, elevações, transformações e outras perfeições semelhantes discutidas em certos livros que prometem elevar a alma a uma contemplação puramente intelectual, à aplicação essencial do espírito e a uma vida supereminente... Essas perfeições não são virtudes; são, antes, recompensas que Deus dá pelas virtudes ou pequenos exemplos das delícias da vida futura... No entanto, não se deve aspirar a tais graças, porque elas não são de forma alguma necessárias para amar e servir bem a Deus, que deve ser nosso único objetivo."(82)
Em segundo lugar, a verdadeira devoção não consiste em um exercício espiritual específico:
"Ouço muito sobre perfeições, mas vejo poucas pessoas que as praticam... Alguns colocam sua virtude na austeridade; outros na abstinência alimentar; alguns na esmola, outros na frequência aos sacramentos da penitência e da Eucaristia; outro grupo na oração, seja vocal ou mental; outros em uma certa contemplação passiva e supereminente; outros nas graças extraordinárias concedidas gratuitamente. E todos eles estão enganados, tomando os efeitos pelas causas, o riacho pela fonte, os ramos pela raiz, o acessório pelo principal, e muitas vezes a sombra pela substância. Quanto a mim, não conheço nem experimentei outra perfeição cristã senão aquela de amar a Deus de todo o coração e ao próximo como a nós mesmos. Toda outra perfeição sem esta é uma falsa perfeição."(83)
A DEFINIÇÃO DE VERDADEIRA DEVOÇÃO
A verdadeira devoção, que para São Francisco de Sales é sinônimo de perfeição cristã, é o cumprimento do duplo preceito de caridade enunciado por Cristo (Mt 22,34-40). Na Introdução à Vida Devota, ele apresenta uma definição detalhada que ecoa a espiritualidade de Luís de Granada:(84)
"A verdadeira e viva devoção, Filoteia, pressupõe o amor a Deus; de fato, não é outra coisa senão o verdadeiro amor a Deus, mas não qualquer tipo de amor. Na medida em que o amor divino embeleza nossas almas, ele é chamado graça e nos torna agradáveis à divina Majestade; na medida em que nos dá o poder de fazer o bem, é chamado caridade; mas quando atinge um grau de perfeição em que não apenas nos faz fazer o bem, mas nos faz fazê-lo com cuidado, frequência e prontidão, então é chamado devoção."(85)
Embora mencione as boas obras que fluem da verdadeira devoção, São Francisco insiste que a vida devota é essencialmente interior. Além disso, a vida devota será vivida de maneira diferente por pessoas de diferentes vocações ou profissões; cada um deve buscar a perfeição da vida devota de acordo com suas forças pessoais e os deveres de seu estado de vida.
OS ELEMENTOS DA VIDA DEVOTA
Logo após enfatizar o chamado universal de todos os cristãos à perfeição, São Francisco destaca a necessidade de um diretor espiritual. Ele admite que um bom diretor é difícil de encontrar, mas afirma que deve ser um homem de caridade, conhecimento e prudência. Adverte também que a direção espiritual nunca deve impedir a ação do Espírito Santo nem ser um obstáculo à liberdade da alma, pois nem todos são chamados ao mesmo caminho para alcançar a perfeição. Esse conselho ecoa o de Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz.
O primeiro passo na vida devota é a purgação do pecado. Nesse ponto, São Francisco segue o ensino de Santo Inácio de Loyola, propondo a meditação sobre os últimos fins e uma confissão geral. Em seguida, é necessário renunciar completamente a todo apego ao pecado, sem o qual não pode haver conversão duradoura nem progresso na perfeição. Para alcançar essa purificação mais profunda, é essencial evitar todas as ocasiões de pecado e envolver-se nos assuntos mundanos apenas quando necessário, nunca por amor às coisas criadas. Embora a alma deva aprender a viver com suas próprias imperfeições, nunca deve aceitar de bom grado os defeitos provenientes do temperamento ou do hábito. Para crescer em virtude, é necessário superar até mesmo as falhas involuntárias.
PRÁTICAS ESPIRITUAIS
Na segunda parte da Introdução à Vida Devota, São Francisco propõe uma rotina diária de exercícios espirituais, com ênfase central na oração mental. Esses exercícios incluem:
- Oração mental diária;
- Orações da manhã e da noite;
- Exame de consciência;
- Confissão semanal e comunhão frequente;
- Leitura espiritual;
- Prática do recolhimento interior.
O método salesiano de oração mental é simples, claro e breve. Em muitos aspectos, assemelha-se às formas de oração ensinadas por Luís de Granada, Santo Inácio de Loyola e O Combate Espiritual. Desde o início, seguindo o ensino de São Bernardo, Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz, Francisco de Sales enfatiza a importância da meditação sobre a vida de Cristo.
MÉTODO DE MEDITAÇÃO SEGUNDO SÃO FRANCISCO DE SALES
O corpo principal da meditação consiste na aplicação do intelecto e da vontade ao tema proposto. De forma calma e sem pressa, a mente deve refletir sobre os vários aspectos do mistério apresentado e, assim que encontrar inspiração e prazer em algum ponto, deve pausar e se deter nesse ponto. A meditação, então, produzirá bons movimentos na vontade, tais como:
- O amor a Deus e ao próximo,
- O zelo pela salvação das almas,
- A imitação de Cristo,
- A confiança na bondade e misericórdia de Deus.
RESULTADOS DA MEDITAÇÃO
Esses movimentos afetivos devem gerar dois resultados:
- Conversa com Deus;
- Resoluções práticas para o futuro.
Como o propósito da meditação é o crescimento na virtude e no amor de Deus, São Francisco insiste que a alma não deve se contentar apenas em despertar afetos e conversar com Deus, mas deve formular resoluções específicas para colocar em prática ao longo do dia.
Ele escreve:
"A tudo isso, acrescentei que se deve colher um pequeno buquê de devoção, e isto é o que quero dizer: ... quando nossa mente considera algum mistério pela meditação, devemos selecionar um ou dois ou três pontos que achamos mais adequados ao nosso gosto e mais úteis para nosso progresso, a fim de recordá-los durante o restante do dia..."(86)
São Francisco também oferece conselhos sobre o comportamento após a meditação: buscar uma ocasião para colocar em prática as resoluções; permanecer em silêncio por um tempo; e, então, retomar calmamente os deveres do dia. Retornando à prática da meditação, ele afirma que, embora tenha fornecido um método de procedimento, a alma deve sempre ceder imediatamente a quaisquer inspirações e afetos santos despertados na oração. Os afetos santos nunca devem ser contidos, mas todas as resoluções devem ser feitas apenas ao final da meditação.
A PRÁTICA DAS VIRTUDES
Na terceira parte da Introdução à Vida Devota, São Francisco trata da prática das virtudes, selecionando aquelas que são particularmente necessárias ao cristão leigo. Entre todas as virtudes, após a caridade, a virtude predominantemente salesiana é a mansidão. Ele escreve em uma de suas cartas:
"Lembre-se da lição principal, aquela que [nosso Senhor] nos deixou em três palavras, para que nunca nos esqueçamos e que deveríamos repetir cem vezes por dia: 'Aprendei de mim, pois sou manso e humilde de coração.' Isso é tudo. Basta manter seu coração manso em relação ao próximo e humilde em relação a Deus."(87)
Nas duas últimas partes da Introdução à Vida Devota, São Francisco aborda temas como tentações, tristeza, consolações e aridez. Ele conclui a obra com uma série de autoexames e considerações que permitem à alma avaliar seu progresso na verdadeira devoção. Assim, em sua totalidade, a Introdução à Vida Devota oferece um programa completo para o avanço espiritual dos leigos.
Enquanto a Introdução foi composta para todos os cristãos de boa vontade, o Tratado do Amor de Deus foi dirigido a um grupo mais seleto. Segundo Dom Mackey, ele também revela a alma e o coração de São Francisco de Sales no auge de sua santidade.(88) Contudo, a doutrina contida no Tratado nem sempre foi devidamente apreciada, em parte porque jansenistas, quietistas e Fénelon tentaram usar os ensinamentos de São Francisco para defender seus erros. Ainda segundo Dom Mackey, até mesmo Bossuet prejudicou o ensino de São Francisco ao tentar refutar os erros de Fénelon.(89) Como resultado, São Francisco não exerceu a influência na escola francesa que poderia ter tido.
O objetivo do Tratado é traçar o progresso da alma de seu estado de queda até as alturas do amor divino, que constituem a perfeição e a santidade cristãs. São Francisco fornece explicações psicológicas necessárias para compreender a teologia do amor. Ele desenvolve o tema da origem divina do amor, mostrando que o amor do homem por Deus é uma participação na eterna caridade do próprio Deus. E, dado que é da natureza do amor crescer ou enfraquecer, São Francisco trata do crescimento na caridade, que pode ser promovido até mesmo pelas ações mais insignificantes; dos obstáculos à caridade; e das várias maneiras pelas quais a alma pode abandonar o amor divino pelo amor às criaturas. Ele enfatiza a distinção entre o amor de complacência e o amor de benevolência, afirmando que o primeiro é próprio da glória, onde o amor se experimenta em contemplação e repouso, enquanto o segundo é próprio da alma nesta vida.
Ao falar da oração mística e das experiências extáticas que podem acompanhá-la, São Francisco, que constantemente expressou receio de ilusões e repugnância por fenômenos místicos,(90) parece escrever sobre algo que ele mesmo experimentou. Contudo, a vida de caridade não consiste exclusivamente no deleite da oração mística; inclui também obediência e sofrimento. Assim, São Francisco discute o "amor de conformidade", pelo qual a alma obedece aos mandamentos, conselhos e inspirações particulares, e a "união da nossa vontade com a vontade divina de bom prazer", pela qual a alma aceita o sofrimento.
O Tratado termina com um resumo da teologia da caridade. São Francisco discute os preceitos do amor a Deus e ao próximo; a caridade como vínculo e impulso de todas as virtudes; os dons e frutos do Espírito Santo; e sugestões precisas para realizar as ações da maneira mais perfeita possível.
Do ponto de vista doutrinal, uma das contribuições mais significativas de São Francisco de Sales à teologia espiritual foi unificar toda a moralidade e santidade cristã sob o vínculo da caridade. Essa doutrina, embora explicitamente ensinada por Santo Tomás de Aquino(91) e outros teólogos medievais, necessitava ser reafirmada no tempo de São Francisco, destacando que a perfeição cristã não consiste em qualquer exercício ou prática particular, mas no amor a Deus e ao próximo. Poucos autores trataram da caridade e das outras virtudes com maior unção e poder de persuasão. Outra contribuição importante foi a insistência de que a perfeição da caridade é a vocação de todos os cristãos, independentemente de sua vocação ou estado de vida. Por fim, ele explicou detalhadamente dois exercícios fundamentais para a vida cristã: a prática da oração mental e o cultivo das virtudes adequadas ao estado de vida de cada um. São Francisco de Sales pode ser justamente chamado de pai da espiritualidade moderna, embora eventos históricos tenham limitado o alcance de sua influência a um nível aquém do desejado.
- Cf. P. Pourrat, Christian Spirituality, tr. W. H. Mitchell, 3 vols., Newman Press, Westminster, Md., 1953.
- P. Pourrat, op. cit., Vol. 3, p. v.
- Cf. Gargantua, 5, 47.
- Cf. Erasmus, Enchiridion militis christiani, 5, 40, 8.
- Cf. Guigo I, Scala claustralium, PL 184, 476; Aelred, De Vita eremetica, PL 32, 1461; David of Augsburg, De exterioris et interioris hominis compositione, Quaracchi, 1899.
- Cf. P. Pourrat, op. cit., Vol. .3, pp. 4-22.
- Cf. P. Pourrat, op. cit., Vol. 3, p. 13.
- J. W. Gransfort, Tractatus de cohibendis cogitationibus et de modo constituendarum meditationum, in Opera omnia, Amsterdam, 1617.
- Rosetum exercitiorum spiritualium et sacrarum meditationum, Paris, 1494. The Rosetum was widely circulated and reprinted in many places.
- Cf. H. Watrigant, Quelques promoteurs de la méditation méthodique au XVe siècle, Enghien, 1919.
- Cf. I. Tassi, Ludovico Barbo (1381-1483) Rome, 1952; M. Petrocchi, Una "devotio moderna" nel Quattrocento italiano? ed. altri studi, Florence, 1961.
- Cf. the excellent study by A. Huerga, "La vida cristiana en los siglos XV-XVl," in Historia de la Espiritualidad, ed. B. Duque--L. S. Balust, Juan Flors, Barcelona, 1969, Vol. I, pp. 34-41.
- Cf. N. Barbato, Ascetica dell'orazione in S. Lorenzo Giustiniani, Venezia, 1960.
- Cf. E. Allison Peers, Studies of the Spanish Mystics, London, 1930, Vol. 2, pp. 3-37.
- This is in the tradition of St. Bonaventure and Richard of St. Victor. Some authors add two more degrees of unitive love: sense of security and perfect tranquillity.
- Cf. L. Blosius, The Book of Spiritual Instruction, London, 1925, chap. 5.
- Few of the Christian humanists were concerned explicitly with spiritual theology. Pico della Mirandola, who died at the age of thirty-one (1494), wrote the manifesto of Christian humanism, of which thirteen theses were declared heretical. Lefevre, the greatest French humanist, wrote commentaries on part of the Bible and on pseudo-Dionysius; he also translated and commented on the works of Aristotle. Luther used the works of Lefevre to defend his doctrine on justification by faith alone. Cf. F. Robert, L'humanisme essai de définition, Paris, 1946.
- Cf. R. G. Villosleda, "Erasme," in Dictionnaire de Spiritualité, Vol. 4, pp. 925-936; Opera omnia, Leyden, 1703, 10 vols.; Opus epistolarum, ed. P. S. Allen and H. M. Allen, Oxford, 1906-1947.
- Cf. P. Pourrat, op. cit., Vol. 3, pp. 59-62.
- Cf. P. Pourrat, op. cit., Vol. 3, pp. 72-79.
- M. Bremond, Histoire littéraire du sentiment réligieux en France, Paris, 1916, Vol. 1, pp. 10-12, passim.
- Cf. G. de Guibert, Ignace mystique, Toulouse, 1950; H. Rahner, Ignaz von Loyola and das geschichtliche Werden seiner Frommigkeit, Vienna, 1947; H. Pinard de la Boullaye, La spiritualité ignatienne, Paris, 1949.
- Cf. I. Iparraguirre, Historia de la Espiritualidad, Vol. 2, pp. 210-211. For further details on the life and spirituality of St. Ignatius, see P. de Leturia, Estudios ignacianos, 2 vols., Rome, 1957. The standard critical edition of the Exercises is found in Obras completas de san Ignacio de Loyola, ed. I. Iparraguirre, and C. de Dalmeses, Madrid, 3rd corrected ed. 1963. For bibliographies, see I. Iparraguirre, Orientaciones bibliográficas sobre san Ignacio de Loyola, Rome, 1957.
- According to F. Charmot, the teaching of St. Ignatius Loyola is based on two fundamental theological principles: "without me you can do nothing" and the necessity of cooperation with God's grace. The second principle is developed in the Spiritual Exercises. Cf. Ignatius Loyola and Francis de Sales, B. Herder, St. Louis, Mo., 1966, p. 41.
- Cf. I. Iparraguirre, op. cit., pp. 207-230.
- For further details on the life and works of St. Teresa, cf. St. Teresa, The Life, tr. E. Allison Peers, Sheed & Ward, New York, N.Y., 1946; Silverio de Santa Teresa, Saint Teresa of Jesus, tr. Discalced Carmelite, Sands, London, 1947; W. T. Walsh, Saint Teresa of Avila, Bruce, Milwaukee, Wis., 1954; E. Allison Peers, Handbook to the Life and Times of St. Teresa and St. John of the Cross, Newman, Westminster, Md., 1954.
- Cf. M. Menéndez y Pelayo, Historia de los Heterodoxos Españoles, Madrid, 1880, Vol. 2; E. Allison Peers, Spanish Mysticism, a Preliminary Survey, London, 1924; A. Huerga, "La vida cristiana en los siglos XV-XVI, " in Historia de la Espiritualidad, pp. 75-103.
- For information on the autographs and various editions of the works of St. Teresa, cf. Obras Completas, ed. E. de la Madre de Dios, Madrid, 1951. For English translations, cf E. Allison Peers, The Complete Works of St. Teresa, 3 vols. Sheed & Ward, New York, N.Y., 1946, and The Letters of St. Teresa, 2 vols., London, 1951; K. Kavanaugh-O. Rodriguez, The Collected Works of St. Teresa of Avila, 2, vols., ICS, Washington, D.C., 1976-1980.
- Cf. P. Eugene-Marie, I Want to See God, tr. M. Verde Clare, Chicago, Ill., 1953.
- Cf. The Way of Perfection, chap. 28.
- For a comparative study of St. Teresa's terminology regarding passive recollection and the prayer of quiet, cf. E. W. T. Dicken, The Crucible of Love, New York, N.Y., 1963, pp. 196-214. Most authors prefer to speak of passive recollection and the prayer of quiet as specifically distinct: cf. J. G. Arintero, Stages in Prayer, tr. K. Pond, St. Louis, Mo., 1957, pp. 24-27; 36-44.
- Cf. The Interior Castle, E. Allison Peers tr. Vol. 2, pp. 253-258; 264-268; The Life, E. Allison Peers tr., Vol. I, pp. 105-110.
- Cf. The Interior Castle, E. Allison Peerstr., Vol. 2, pp. 324-326.
- Cf. The Interior Castle, E. Allison Peers tr., Vol. 2, pp. 287.
- Cf. ibid., E. Allison Peers tr., Vol. 2, pp. 333-334.
- Cf. The Way of Perfection, E. Allison Peers tr., Vol. 2, p. 129. For studies on the teaching of St. Teresa, E. Allison Peers, Studies of the Spanish Mystics, Vol. I, New York and Toronto, 1927; E. W. T. Dicken, The Crucible of Love, New York, N.Y., 1963; J. G. Arintero, Stages in Prayer, tr. K. Pond, St. Louis, Mo., 1957; P. Marie-Eugene, I Want to See God, tr. M. Verda Clare, Chicago, Ill., 1953, and I am a Daughter of the Church, tr. M. Verda Clare, Chicago, Ill., 1955.
- Cf. Book of Foundations, E. Allison Peers tr., Vol. 3, p. 23.
- Cf. ibid., loc. cit.
- Cf. The Way of Perfection, E. Allison Peers tr., Vol. 2, pp. 15-21; 30-37; 57-59.
- Cf. A. Huerga, "Introduction" to Louis of Granada, Summa of the Christian Life, tr. J. Aumann, B. Herder, St. Louis, Mo., 1954, Vol. 1; M. Menéndez y Pelayo, Historia de los heterodoxos españoles,.ed. BAC, Madrid, 1951, pp. 4-59.
- For further details on life of St. John of the Cross, cf M. del Niño Jesús, Vida y Obras de San Juan de la Cruz, Madrid, 1950; E. Allison Peers, Spirit of Flame, London, 1943; C. de Jesús Sacramentado, The Life of St. John of the Cross, London, 1958; G. of St. Mary Magdalen, St. John of the Cross, Mercier, Cork, 1947.
- Cf. K. Kavanaugh-O. Rodriguez, The Collected Works of St. John of the Cross, Doubleday, New York, N.Y., 1964, pp. 54-56.
- Cf. C. de Jesús, San Juan de la Cruz: su obra científica y literaria, Avila, 1929, Vol. I , p. 51.
- The Ascent of Mount Carmel, Book I, chapter 2, no. I.
- Cf. ibid., Book I, chap. 3, no. 4.
- Cf. ibid., Book I, chap. 13, nos- 3-4.
- The Ascent of Mount Carmel, Book 2, chap. 13, nos. 2-4. Cf. K. Wojtyla (Pope John Paul II), Faith according to St. John of the Cross, tr. J. Aumann, Ignatius Press, San Francisco, Calif, 1981.
- Cf. ibid., Book 2, chap. 5.
- The Living Flame of Love, Stanza I.
- The Collected Works of St. John of the Cross, tr. K. Kavanaugh-O. Rodriguez, p. 585.
- Cf. M. Menéndez y Pelayo, op. cit., pp. 4-59.
- The complete edition of the three Primers (Abecedarios) was published at Seville in 1554 and the first one written, that of 1527, is placed third in the complete edition. The other two, written in 1528 and 1530, treat of the passion of Christ and ascetical matters. Cf. Neuva biblioteca de autores españoles, Madrid, 1911, Vol. 16; F. de Res, Un mâitre de sainte Thérèse: le P. François d'Osuna, Paris, 1936; E. Allison Peers, Studies of the Spanish Mystics, Vol. 1, pp. 77-131. For an English version, cf. Francisco de Osuna, The Third Spiritual Alphabet, Paulist Press, New York, N.Y., 1983.
- Cf. F. de Ros, Un inspirateur de S. Thérèse: Le Frère Bernardin de Laredo, Paris, 1948; K. Pond, "Bernardino de Laredo," in Spirituality through the Centuries, ed. J. Walsh, Kenedy, New York, N.Y., 1964; The Ascent of Mount Sion, tr. E. Allison Peers, London, 1952, which contains only the third part on contemplative prayer. See Vida 27; E. Allison Peers tr. Vol. 1, 171.
- The Life, E. Allison Peers tr., Vol. 1, p. 194.
- Cf. A. Huerga, "Introduction" to Summa of the Christian Life, tr. J. Aumann, St. Louis, Mo., 1954-1958, 3 vols. This work is now available from TAN Books, Rockford, Ill.
- Cf. Obras Completas, ed. L. S. Balust, 2 vols., Madrid, 1952-1953; A. Huerga, El Beatojuan de Avila, Rome, 1963; E. Allison Peers, Studies of the Spanish Mystics, Vol. 2.
- Los Nombres de Cristo was published at Salamanca in 1583; for an English version, cf. The Names of Christ, tr. E. J. Schuster, B. Herder, St. Louis, Mo., 1955.
- Cf. E. Allison Peers op. cit.
- Cf. P. de Leturia, Estudios ignacianos, Rome, 1957, Vol. 2.
- His exact words were: "Instituti nostri rationi minus videntur congruere. "
- Cf. B. Alvarez, Escritos espirituales, ed. C. M. Abad and F. Boado, Barcelona, 1961, pp. 134-160. See Vida 28, 33; E. Allison Peers tr. Vol. 1, 185-186; 224-225.
- Cf. L. de la Puente, Vida del V. F. Báltasar Alvarez, Madrid, 1615.
- Cf. P. de Leturia, op. cit., p. 321.
- Cf. J. Nonell, Obras espirituales del Beato Alonzo Rodriguez, 3 vols. Barcelona, 1885; V. Segarra, Autobiografía. San Alonso Rodriguez, Barcelona, 1956; The Autobiography of St. Alphonsus Rodriguez, tr. W. Yeomans, London, 1964.
- A Rodriguez, The Practice of Perfection and Christian Virtues, tr. J. Rickaby, 3 vols., Chicago, Ill., 1929.
- Cf. Meditaciones de los misterios de la nuestra santa fe, Valladolid, 1605.
- Cf. Vida del Báltasar Alvarez, Madrid, 1612, p. 14.
- Cf. De inquisitione pacis, 5.
- The Carmelite writers, John of Jesus-Mary (+ 1615), Thomas of Jesus (+ 1627) and Joseph of the Holy Spirit (+ 1674), were principally responsible for introducing the argument on the distinction between acquired and infused contemplation. Later, another Carmelite, Joseph of the Holy Spirit (+ 1730), published a lengthy theological synthesis entitled Cursus theologiae mystico-scholasticae in six volumes.
- Melchior Cano, the ruthless Spanish inquisitor, considered John Baptist da Crema to be as "dangerous" as Tauler and Herp.
- The work has sometimes been attributed to the Spanish Benedictine, John Castañiza, or the Italian Jesuit, Achille Gagliardi, but there seems to be little doubt that the work comes from the Italian school of the Theatines. The first edition appeared at Venice in 1589. The treatise was enlarged in later editions.
- The works of St. Magdalen were published by the Carmelite, Laurence Brancaccio, under the title, Opera di Santa Maria Maddalena de Pazzi carmelita di S. Maria di Firenze, Florence, I 6o9. A later edition at Florence (1893) includes her letters.
- See Lettere, ed. C. Guasti, Prato, 1861.
- Cf. Cardinal Capecelatro, Vie de saint Philippe de Néri, tr. H. Bézin, Paris, 1889, Vol. I, p. 512.
- Bayle, Vie de saint Philippe de Néri, Paris, 1859, p. 247.
- Cf. Cardinal Capecelatro, op. cit., Vol. I, p. 483.
- Cf. F. von Hügel, The Mystical Elements of Religion as Studied in Saint Catherine of Genoa and her Friends, 2 vols., London, 1908.
- P. Pourrat, Christian Spirituality, Vol. 3, p. 272.
- P. Hughes, A Popular History of the Catholic Church, Garden City, New York, N.Y., 1954, p. 196.
- For details on the life of St. Francis de Sales, cf. H. Burton, The Life of St. Francis de Sales, London, 1925-1929, M. de la Bedoyere, François de Sales, New York, N.Y., 1960; M. Henry-Coüannier, Francis de Sales and His Friends, tr. V. Morrow, Staten Island, New York, N.Y., 1964; F. Trochu, S. François de Sales, Lyon-Paris, 1941-1942, 2 vols.; M. Trouncer, The Gentleman Saint: St. François de Sales and His Times, London, 1963.
- Cf. M. de la Bedoyere, op. cit., p. 9. Oeuvres de Saint François de Sales (Annecy 1892-1964) 27 v., published under the direction of the Visitandines at Annecy, with introductory material by Dom B. Mackey, O.S.B.
- Cf. Oeuvres 3, 131.
- Quoted from St. Francis de Sales by Bishop Jean-Pierre Camus. Cf. F. Charmot, Ignatius Loyola and Francis de Sales, tr. M. Renelle, St. Louis, Mo., 1966, p. 7.
- Cf. L. Granada, Libro de la Oración y Meditación, 2, 1.
- Oeuvres, 3, 14.
- Cf. Oeuvres, 3, 82-83.
- Cf. Oeuvres, 13, 358.
- Cf. Oeuvres, Vol. 4, Introduction.
- Cf. Oeuvres, Vol. 4, p. vii.
- Cf. Oeuvres, 3, 109; 131-132.
- Cf. Summa Theologiae, IIa IIae, q. 23, art. 4-8.