O CARMELO DESCALÇO E O ESOTERISMO: PARTE 14 - A Cabala na Espanha e Frei Luís de León
10/02/2025
Autor: Federico Gonzalez e Mireia Valls
Tradutor: Prof. Gabriel Sapucaia
PRESENÇA VIVA DA CABALA II
A CABALA CRISTÃ
FEDERICO GONZALEZ - MIREIA VALLS
CAPÍTULO VIII
A CABALA NA ESPANHA
Frei Luís de León
A Cábala na Espanha teve grande influência em diversas figuras intelectuais, entre elas Fray Luis de León, um sábio e poeta que passou cinco anos preso pela Inquisição em Alcalá de Henares, enquanto aguardava o desfecho de seu processo por heresia. Ele havia sido denunciado por outro professor da universidade à qual pertencia, León de Castro, que, após uma polêmica literária com o frade, decidiu denunciá-lo. Esse tipo de comportamento, infelizmente, continua até os dias de hoje, como podemos observar em nossa própria experiência. Fray Luis também era hebraísta e um defensor da tradução literal dos livros da Bíblia, baseada na linguística. Para isso, utilizava fontes diretas e contava com vasto conhecimento da língua hebraica, além de diversos textos judaicos, que preferia aos cristãos. Ele compartilhava a crença de que o hebraico era a língua primordial, aquela na qual YHVH teria se comunicado com Adão no Paraíso.
Foi justamente essa postura, distante da tradição de São Jerônimo e da Vulgata, que se voltou contra ele e levou ao famoso processo do qual, no entanto, saiu fortalecido e sem manchas. Recuperou sua cátedra e teve seu conhecimento amplamente reconhecido, demonstrando sua erudição nos tribunais que o julgaram. Esse processo ocorreu entre 1572 e 1576. Mais tarde, entre 1582 e 1584, enfrentou um segundo julgamento.
As figuras que abordamos se distinguem de diferentes formas. No caso de Fray Luis e Benito Arias Montano, ambos eram sacerdotes cristãos, especialistas na língua hebraica, juristas e perseguidos pela Inquisição devido à sua ascendência judaica, que sempre foi destacada. Desde muito jovens, brilharam por seus saberes e méritos no âmbito cristão, mas mantendo um forte contato com o conhecimento cabalístico, transmitido tanto oralmente quanto por meio de livros e das reflexões que esses estudos proporcionavam. No caso de Arias Montano, ele se autodenominava "hispalense", pois se formou em Sevilha. Mais adiante, abordaremos os dois místicos que também se tornaram santos.
Naquela época, o Concílio de Trento estava em vigor, e qualquer tradução bíblica que não fosse baseada na Vulgata era vista com desconfiança pelo clero, que buscava manter uma versão oficial para evitar a proliferação de traduções que o nascente protestantismo poderia fomentar. Talvez esse fosse o risco que Fray Luis e outros tentaram evitar, baseando-se não apenas no conhecimento profundo da língua hebraica, mas também em um entendimento abrangente da Bíblia, das suas diversas versões em diferentes idiomas, dos comentaristas da Torá (a Cábala) e de outros textos sagrados, tanto cristãos quanto judaicos, do Antigo e do Novo Testamento. Eles também estudavam Platão e Hermes Trismegisto, que eram amplamente conhecidos na Itália e na Europa da época e examinados por cabalistas cristãos franceses. Talvez por isso tenham decidido fixar – na medida do possível – certos conceitos que não estavam suficientemente bem expressos ou que exigiam comentários linguísticos. Apesar das dificuldades enfrentadas, publicaram suas versões dos Salmos de Davi, do Cântico dos Cânticos e do Livro de Jó, além de colaborarem na produção das Bíblias de Alcalá e Complutense, culminando na direção da Bíblia Poliglota de Antuérpia, tema que abordaremos posteriormente.
Antes de analisar suas traduções e estudos, ou mesmo sua obra em latim, queremos destacar sua poesia em língua romance, cujos versos, aprendidos na escola, são lembrados ao longo da vida. Este é um momento de tributo e reconhecimento ao autor, e acreditamos que esse sentimento é compartilhado por todos que estudaram literatura espanhola em sua formação e tiveram a sorte de entrar em contato com a poesia de Fray Luis de León e seu profundo conteúdo metafísico.
Além disso, é importante ressaltar que Fray Luis possuía uma dupla faceta: era um poeta popular da ode castelhana e, ao mesmo tempo, um erudito catedrático em latim. Essa condição é particularmente feliz, pois, enquanto estudava o uso metafísico da linguagem, como em sua obra De los Nombres de Cristo, ele também era um criador da língua espanhola, que está sempre em evolução. Como um verdadeiro bardo, ele "fija, limpia y da esplendor" ("fixa, limpa e dá esplendor"), contribuindo para a construção da literatura clássica espanhola.
Outro aspecto relevante é o papel de Fray Luis como elo intelectual entre Benito Arias Montano, Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz. Já mencionamos sua amizade com Arias Montano, mas é possível que também tenha tido contato com São João em Salamanca. Além disso, editou as obras de Santa Teresa, que era um pouco mais velha que ele. Fray Luis nasceu em 1527 ou 1528, em Belmonte del Tajo, na província de Cuenca, e nunca saiu da região central da Espanha, de Castela. Em 1544, ingressou na Ordem dos Agostinianos e, aos 27 anos, conheceu Arias Montano. Seu percurso acadêmico foi notável: estudou em Alcalá com Cipriano de la Huerga entre 1557 e 1561, e logo obteve sua primeira cátedra em Salamanca, onde mais tarde se tornaria vice-reitor.
Aos 47 anos, começou a enfrentar seu famoso processo inquisitorial, sendo declarado inocente quatro anos depois e retomando sua atividade como professor. Sete anos mais tarde, publicou De los Nombres de Cristo, considerada sua obra mais importante em castelhano, da qual selecionaremos trechos para este estudo. Fray Luis de León faleceu em 1591, em Madrigal de las Altas Torres, poucos anos antes da morte de Felipe II.
Álvaro Alonso, editor da poesia de Fray Luis de León, ao descrever o contexto da época em que ele viveu, nos diz o seguinte:
Filosoficamente, o esforço para harmonizar a herança pagã com a cristã encontrou um sólido ponto de apoio nas doutrinas de Platão. O platonismo renascentista não se fundamentava apenas nas obras do filósofo ateniense, mas também no neoplatonismo alexandrino dos séculos I a.C. e I d.C., de forte inclinação mística, assim como no Corpus Hermeticum. Este último é um conjunto de tratados atribuídos ao lendário Hermes Trismegisto, frequentemente associado à sabedoria egípcia e a uma antiguidade fabulosa. No entanto, as obras atribuídas a Hermes foram escritas nos primeiros séculos da era cristã e apresentam uma curiosa fusão de elementos filosóficos e religiosos, sobretudo de matriz neoplatônica e estóica. Em meados do século XV, na Florença dos Médici, Marsílio Ficino traduziu o Corpus para o latim e enxergou em seu autor o primeiro dos teólogos, um representante da prisca theologia, que antecipava muitas das doutrinas do cristianismo.
Álvaro Alonso acrescenta um dado muito interessante: o nome do mestre de Fray Luis em hebraico e teosofia, que também foi professor de Arias Montano. Como já mencionamos, era natural que as universidades incorporassem e expressassem essas formas de espiritualidade. A Universidade de Alcalá de Henares foi a mais aberta a essas correntes. No início do século, de lá saiu a Bíblia Poliglota, uma das grandes obras do humanismo na Espanha. Mais tarde, na década de 1530, vários professores de prestígio da universidade foram processados pela Inquisição. Algum tempo depois, o espírito de Alcalá encontrou expressão em um dos mestres de Fray Luis, o cisterciense Fray Cipriano de la Huerga. Filósofo rigoroso, ele fundamentava suas explicações bíblicas nos textos gregos e hebraicos e, em suas interpretações, recorria frequentemente aos filósofos pagãos, especialmente Platão e o Corpus Hermeticum.
Agora, iniciamos nossa jornada pela poesia de Fray Luis com o poema mais citado, ainda que parcialmente, cujas ressonâncias horacianas são evidentes:
"Que descansada vida / a do que foge do ruído mundano / e segue o caminho escondido / por onde foram / os poucos sábios que no mundo houveram!"
Desde os primeiros versos, a poesia ressalta a primazia da sabedoria e o caminho estreito que conduz a ela por meio de um processo vital:
"Quero viver comigo; / gozar do bem que devo ao céu, / a sós, sem testemunha, / livre de amor, de ciúme, / de ódio, de esperanças, de receio."
"Na encosta do monte / com minhas mãos plantei um pomar, / que com a primavera, / coberto de belas flores, / já mostra, na esperança, o fruto certo."
"E como ansiosa / por ver e aumentar sua formosura, / desde a cume arejada / uma fonte pura / até lá corre apressada."
"E logo, serena, / desviando seu curso entre as árvores, / vai cobrindo o chão, / com verde de passagem, / espalhando diversas flores."
"O ar refresca o pomar / e oferece mil odores aos sentidos; / as árvores balançam / com um ruído brando, / que do ouro e do cetro faz esquecer..."
Nada poderia ser mais requintado do que este ambiente sereno, fresco e delicado, que reflete um estado de espírito onde reina a sabedoria, um verdadeiro paraíso interior renovado.
"À sombra deitado, / coroado de hera e louro eterno, / atento ao doce som / harmonioso, / da lira sabiamente tocada."
A menção ao som e à música é essencial em sua criação poética, pois segue a tradição de Pitágoras, Platão e dos neoplatônicos renascentistas, que viam na música a manifestação da Harmonia Mundi.
Ouvimos essa perfeição em um poema dedicado a Francisco de Salinas, amigo músico e cego:
"O ar se serena / e veste-se de beleza e luz jamais vistas, / Salinas, quando soa / a música sublime, / governada por vossa sábia mão."
"Ao som divino, / a alma, que no esquecimento estava submersa, / recobra o juízo / e a memória perdida, / esclarecida de sua origem primeira."
"E ao se reconhecer, / melhora-se em sorte e pensamento; / desconhece o ouro / que o vulgo vil adora, / e a beleza efêmera e enganosa."
"Atravessa o ar inteiro / até alcançar a mais alta esfera, / onde ouve outro tipo / de música imperecível, / que é a fonte e a primeira."
"Ó desmaio ditoso! / Ó morte que dá vida! Ó doce esquecimento! / Que dure em teu repouso, / sem ser jamais restituído / a este mundo baixo e vil!"
Essa busca existencial pelo conhecimento e a ascensão na escala da música das esferas são temas recorrentes em sua obra. O poeta expressa o desejo de transcender a existência terrena:
"Quando será que possa / livre desta prisão voar ao céu, / e, na órbita / que mais se afasta da terra, / contemplar a pura verdade, sem dor?"
Fray Luis também manifesta indignação pela orfandade do verdadeiro conhecimento, seu discurso se torna peremptório e lamentoso, como na Ascensão:
"E deixas, Pastor Santo, / teu rebanho neste vale fundo e escuro, / em solidão e pranto; / e tu, rompendo o ar puro, / vais ao imortal refúgio?"
"Os antes afortunados / e agora tristes e aflitos, / criados sob teu peito, / privados de ti, / para onde voltarão seus sentidos?"
Por fim, ele retorna à vida simples, sem artifícios, onde se reencontra após sair da prisão:
"Aqui a inveja e a mentira / me tiveram encerrado. / Feliz o humilde estado / do sábio que se retira / deste mundo perverso, / e com pobre mesa e casa, / no campo aprazível, / com Deus apenas se compõe / e sozinho sua vida passa, / sem ser invejado nem invejoso."
Em um fragmento atribuído a ele, intitulado Do Conhecimento de Si Mesmo, reflete sobre sua própria existência e sua origem no não-ser:
"No profundo do abismo eu estava, / encerrado no nada e detido, / sem poder nem saber sair, / e tudo o que sou me faltava: / vida, alma, corpo e sentidos, / enfim, meu ser era então o não-ser."
Agora, adentramos sua obra De los Nombres de Cristo, na qual ele esclarece que esses nomes não são os de Deus, mas de Cristo. No entanto, sendo Cristo Deus, também lhe correspondem outros nomes da Trindade. Esses nomes, segundo ele, são dez, assim como na tetraktys pitagórica e nas dez sefirot da Cabala judaica. É muito provável que Fray Luis tenha tido contato com esse conhecimento tanto por sua ascendência hebraica quanto pelo fato de a Cabala ter se desenvolvido amplamente na Espanha. Ali, teve inúmeros seguidores e estudiosos, e foi transmitida por meio de textos publicados, entre eles o Zohar.
Seus poemas e sua grande obra testemunham um profundo conhecimento de um universo esotérico e secreto, inacessível aos profanos, ao qual ele dedicou sua investigação, sempre baseada na experiência e na tradição. Para ele, seguindo Platão no Crátilo e os princípios do esoterismo renascentista, o nome era a própria essência da coisa nomeada. Ou seja, as coisas são criadas no momento em que são nomeadas, em plena concordância com o Sefer Yetsirah e toda a Cabala gnóstica medieval e renascentista.
Como bem declarou Jorge Luis Borges no poema intitulado El Golem:
"Se (como afirma o grego no Crátilo)
O nome é o arquétipo da coisa,
Nas letras de rosa está a rosa
E todo o Nilo na palavra Nilo."
Seguindo nosso raciocínio, deixemos que os protagonistas falem por si mesmos para que possamos apreciar diretamente suas ideias. De Los Nombres de Cristo foi escrita em forma de diálogo e, ao ler Fray Luis de León, é sempre importante considerar sua situação delicada perante a Inquisição, que já o tinha sob vigilância.
Por isso, sua abordagem é literária, por vezes contraditória ou, melhor dizendo, dual e ambígua, embora nunca quando trata de um único Senhor:
"Louva, ó alma, a Deus; Senhor, tua grandeza,
Que língua há que a conte?
Vestido estás de glória e de beleza
E de luz resplandecente.
Sobre os céus estendidos
Deste assento às águas.
As nuvens são teu carro, teus alados
Cavalos são o vento.
São fogo abrasador teus mensageiros,
E trovão e turbilhão.
A terra sobre bases duradouras
Manténs firmemente."
Ou quando fala sobre a criação contínua e eterna:
"Esta geração e nascimento não ocorrem separadamente nem pouco a pouco, nem são eventos que aconteceram uma única vez e ficaram concluídos. Pelo contrário, já que tudo o que tem um começo e um fim é limitado, e Deus não tem limites, desde toda a eternidade o Filho nasce do Pai e eternamente continua a nascer, sempre completo e tão grande quanto o Pai. Por isso, a Sagrada Escritura dá a este único nascimento muitos nomes."
Ele também discorre sobre o sentido iniciático da encarnação e a forma unânime como foi compreendida pelos sábios antigos:
"Aqui Juliano, segurando Marcelo (o personagem principal do diálogo) pela mão, disse-lhe:
- Não se canse com isso, Marcelo, pois o mesmo que disseram Teodoreto e Crisóstomo, cujas palavras nos referiu, também disseram quase todos os santos antigos: Santo Irineu, São Hilário, São Cipriano, Santo Agostinho, Tertuliano, Inácio, Gregório de Nissa, Cirilo, Leão, Fócio e Teofilacto. Assim como é evidente para os fiéis que a carne de Cristo, oculta sob as aparências da hóstia recebida pelos cristãos e consumida no estômago, toca nossa carne e é por ela tocada, também não há dúvida, para quem leu os textos sagrados, de que os santos doutores falam dessa forma ao afirmarem que somos um só corpo com Cristo e que nossa carne é de sua carne e nossos ossos, de seus ossos. Não apenas em espírito, mas também em corpo, estamos todos unidos a Ele."
Assim, Fray Luis nos ensina diretamente sobre Os Nomes em Geral e explica:
"O nome, se quisermos resumir, é a palavra breve que substitui aquilo que nomeia e que se confunde com o próprio objeto nomeado. Não no seu ser real e verdadeiro, mas no ser que nossa boca e entendimento lhe atribuem."
"A perfeição de todas as coisas, especialmente das que possuem entendimento e razão, consiste em que cada uma contenha em si todas as outras e, sendo uma, seja todas, tanto quanto possível. Pois nisso se assemelha a Deus, que contém tudo em si. E quanto mais cresce nessa direção, mais se aproxima Dele, tornando-se semelhante a Ele. Essa semelhança é, se podemos dizer assim, o propósito final de todas as coisas, o alvo para o qual todas as criaturas dirigem seus anseios."
"A perfeição de todas as coisas reside no fato de que cada um de nós seja um mundo completo, de modo que, estando todos em mim e eu em todos os outros, e cada um tendo seu ser nos demais, toda a estrutura do universo se entrelace e reduza à unidade. Dessa forma, a multiplicidade de diferenças, embora distinta, se mistura sem se dissolver; e, permanecendo muitas, deixam de ser diversas. Assim, enquanto a diversidade se expande e se desdobra diante dos olhos, a unidade se estabelece sobre tudo. Isso aproxima a criatura de Deus, de quem emana, pois Ele, sendo três pessoas, é uma única essência; e, sendo infinitas excelências incompreensíveis, é uma única excelência perfeita e simples."
Um pouco mais adiante, relaciona o signo e o significado:
"Se o nome, como dissemos, substitui aquilo que nomeia, e se seu propósito é tornar presente o que está ausente e aproximar o que está distante, é essencial que, no som, na forma ou na origem e no significado de onde surge, ele se assemelhe ao que representa, tanto quanto possível."
E, para esclarecer de uma vez:
"Isso nem sempre se verifica nas línguas; é uma grande verdade. Mas, se quisermos ser honestos, na primeira língua de todas, quase sempre se verifica. Deus, pelo menos, assim o fez nos nomes que atribuiu, como se vê na Escritura. Pois, se não fosse assim, o que significa o trecho do Gênesis que diz que Adão, inspirado por Deus, nomeou cada coisa, e que o nome dado por ele é o verdadeiro nome de cada uma? Isso significa que o nome era naturalmente adequado a cada coisa e que lhe pertencia por alguma razão especial e oculta, de forma que, se fosse atribuído a outra, não lhe caberia tão bem."
Além disso, está claro que o nome YHVH, impronunciável e composto por quatro letras, está contido no nome de Jesus, bastando acrescentar duas letras a ele. Essa observação é notável, pois tanto Pico della Mirandola quanto Reuchlin e outros cabalistas haviam afirmado que bastava adicionar a letra Shin (ש) ao centro de YHVH (יהוה) para formar o nome de Yehoshua (יהשוה), ou seja, Jesus.
"Digo apenas uma coisa: o nome original de Jesus, Iehosuah, como dissemos acima, contém todas as letras do nome de Deus de quatro letras, além de outras duas. Como se sabe, o nome divino de quatro letras, que está contido nesse nome, é impronunciável – seja porque todas suas letras são vogais, seja porque não conhecemos sua pronúncia correta, ou por respeito e reverência que devemos a Deus..."
Não é fácil ler Os Nomes Divinos e seguir o autor em um discurso denso e estruturado. Sua devoção pode, por momentos, parecer incompreensível, a menos que se compreenda que Jesus, o Cristo, não seja apenas um personagem histórico, mas um símbolo sempre vivo e permanente – um estado ao qual Jesus teve acesso e que, por meio da encarnação de seus ensinamentos, nos permite realizar nossa plenitude como seres humanos e entidades espirituais. O Jesus histórico transforma-se em Cristo, nome grego que designa um estado do ser que implica centralidade e hierarquia. Esse conceito se equipara a Metatron na Cabala hebraica, associado a Tiferet, e também ao resplandecente Hermes Solar. Ambos são figuras vivas (como Enoque, Elias e Eliseu), embora desconhecidas pela maioria das pessoas.
Merecem menção especial os escritos de Fray Luis de León sobre a descoberta da América e seu papel providencial, considerando que esse continente era, assim como os povos europeus, herdeiro da Atlântida submersa. No entanto, um acontecimento de tal magnitude, que ampliava cada vez mais as fronteiras do mundo conhecido, não poderia deixar de estar registrado nas Escrituras, especificamente nas profecias. E, de fato, Fray Luis encontra referências à América no Livro de Isaías, nos mesmos trechos onde Cristóvão Colombo as havia identificado em seu Livro das Profecias. Além disso, encontra outras menções no livro do profeta Abdias.
Entretanto, seu interesse pelo tema não se alinha com sua visão dos povos indígenas, pois ele se impressiona com seus costumes considerados selvagens, especialmente o canibalismo.
Os estudiosos Andrés Moreno Mengíbar e Juan Martos Fernández dedicaram um excelente estudo aos escritos de Fray Luis sobre a América. Em seu estudo preliminar, destacam que:
"Uma referência mais clara, ainda que breve, à América pode ser encontrada em Os Nomes de Cristo, publicado pela primeira vez em 1583. A crítica moderna não enfatizou suficientemente a dependência dessa obra em relação à tradição judaica sobre os nomes de Deus e o significado do Tetragrama. Essas especulações ganharam força com o desenvolvimento medieval da Cabala e sua incorporação ao pensamento cristão. Os cabalistas hebreus reconhecem dez nomes divinos, o mesmo número mencionado por Fray Luis na introdução da segunda edição (1585) de Os Nomes de Cristo. A teoria de Fray Luis sobre os nomes está intimamente ligada à Cabala hebraica e cristã (como a de Giustiniani, Reuchlin, Félix Pratensis, Egídio de Viterbo e Sebastian Münster) e corre paralela, com importantes pontos de convergência, ao tratado De Arcano Sermone (1572) de seu grande amigo Arias Montano."
Por outro lado, Fray Luis parece aceitar a hipótese de que os indígenas teriam uma ascendência judaica, assim como seu amigo e colega Arias Montano, que será tratado a seguir. Não comentaremos aqui suas traduções e comentários ao Livro de Jó e ao Cântico dos Cânticos, nem sua obra A Esposa Perfeita (La Perfecta Casada) e o restante de sua produção, pois acreditamos já ter apresentado uma visão abrangente desse grande intelectual e poeta, especialmente no que diz respeito ao seu pensamento judeocristão, neoplatônico, pitagórico, hermético e cabalístico.
Benito Arias Montano
NOTAS
523 "Os antigos biógrafos de Fray Luis, ao abordar sua figura sob perspectivas idealizadas, distorceram por muito tempo seu perfil moral, seja por desconhecimento das fontes mais fidedignas (como os processos inquisitoriais, estudados e publicados, entre outros, por L. G. Alonso Getino, já em 1907, ou mais recentemente por M. de la Pinta Llorente [1956]), seja pelo recurso a fontes poéticas, um método rejeitado na modernidade por A. C. Vega [1951]. No entanto, estudos documentais posteriores levaram a diversas correções desmistificadoras, fundamentando a grandeza de Fray Luis na sua aspiração inatingível por paz e harmonia. O pioneiro nesse caminho foi o Padre Blanco García, no final do século XIX, abrindo espaço para as grandes biografias clássicas de A. Coster [1921] e Aubrey F. G. Bell [1925], posteriormente atualizadas por F. García [1944] e sintetizadas por O. Macrí [1970]." (Fray Luis de León, por Cristóbal Cuevas, em Siglos de Oro: Renacimiento, de Francisco López Estrada. Editorial Crítica, Barcelona, 1980, pág. 382).
524 Esse método hoje é chamado de filológico-poligráfico.
525 Álvaro Alonso, filho de Dámaso Alonso, um dos escritores que mais estudaram Fray Luis de León, embora nem todas as suas opiniões sejam compartilhadas.
526 Fray Luis de León, Poesía. Edição de Álvaro Alonso, Barcelona, 2005, págs. 12-13. Para biografias e estudos críticos sobre a obra de Fray Luis, além dos já mencionados, ver: Antonio Prieto, "Fray Luis de León", em La Poesía española del siglo XVI, II. Cátedra, Madrid, 1987; Soledad Pérez-Abadín Barro, La oda en la poesía española del siglo XVI. Universidade de Santiago, 1995.
527 A coleção Humanistas Españoles de León está publicando as Obras Completas de Cipriano de la Huerga sob a direção de Gaspar Morocho Gayo, dentro das publicações da Universidade. O volume IX é um estudo monográfico coletivo. Esse sábio e sua obra merecem uma análise à parte, um estudo que, infelizmente, não podemos realizar aqui. No entanto, em um estudo de Natalio Fernández Marcos, intitulado La Exégesis Bíblica de Cipriano de la Huerga (volume IX, pág. 25), destaca-se o seguinte: "Afirma-se que, em todo o Antigo Testamento, até a vinda de Cristo, foram mantidas as etimologias e propriedades dos nomes em relação ao seu significado. E essa relação é conectada à Cabala, já que uma das partes principais da arte cabalística se concentra na etimologia dos nomes, sobretudo os distintos nomes de Deus. Os cabalistas transmitiram esse conhecimento aos platônicos, pitagóricos e a Dionísio Areopagita."
528 Poesía, "Vida retirada", op. cit., págs. 47-50.
529 Ibid., "A Francisco de Salinas", pág. 54.
530 Ibid., "A Felipe Ruiz", pág. 80.
531 Ibid., "En la Ascensión", págs. 105 e 106.
532 Ibid., "A la salida de la cárcel", pág. 128.
533 Fray Luis de León, Obras Completas castellanas II. Ed. BAC, Madrid, 1991, págs. 822-823.
534 Fray Luis de León, De Los Nombres de Cristo. Eds. Cátedra, Madrid, 1986.
535 "Assim, tornam-se quase incontáveis os nomes que a Escritura divina atribui a Cristo, pois Ele é chamado de Leão e Cordeiro, e de Porta e Caminho, e de Pastor e Sacerdote, e de Sacrifício e Esposo, e de Videira e Broto, e de Rei de Deus e Sua Face, e de Pedra e Estrela, e de Oriente e Pai, e de Príncipe da Paz e Salvação, e de Vida e Verdade, e de muitos outros nomes incontáveis. No entanto, dentre esses muitos nomes, foram escolhidos apenas dez como os mais essenciais, pois, como se diz, todos os demais podem ser reduzidos ou relacionados a estes de alguma forma." (De Los Nombres de Cristo, op. cit., págs. 169-170).
536 Na magia, apropriar-se do nome equivale a assumir sua identidade.
537 Jorge Luis Borges, Obras Completas. Emecé Editores, Buenos Aires, 1974. El Golem, pág. 885. É sabido que Borges dedicou muito tempo ao estudo da Cabala com G. Scholem e chegou a dar conferências sobre o tema.
538 De Los Nombres de Cristo, op. cit., pág. 306.
539 Ibid., pág. 515.
540 Ibid., pág. 455.
541 "Mas, retomando o que dizia, que fique isso certo: todos os nomes dados por ordem de Deus trazem consigo o significado de algum segredo particular que a coisa nomeada possui em si mesma, e é por meio desse significado que os nomes se assemelham a ela..." Ibid., pág. 162.
542 Ibid., págs. 155-156.
543 Ibid., pág. 159.
544 Ibid., pág. 623.
545 Relembrando: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida." (João 14:6).
546 De sua exposição sobre o profeta Abdias: "Por fim, diz que sua terra foi arrebatada pelos rios, o que parece dissipar qualquer dúvida sobre os índios deste novo mundo, pelo menos para aqueles que leram sobre a Atlântida de Platão. Pois Platão recorda que o que agora chamamos de Novo Mundo esteve, em tempos antigos, unido ao nosso continente. No entanto, devido a uma inundação do mar, chamada Atlântica, ele foi separado do restante do mundo. Desde então, nossos navegadores não puderam mais chegar a ele devido ao risco da travessia, e, sem comunicação, essa terra foi gradualmente caindo no esquecimento." (Fray Luis de León, Escritos Sobre América. Estudo preliminar, tradução e notas de Andrés Moreno Mengíbar e Juan Martos Fernández. Ed. Tecnos, Madrid, 1999, pág. 62).
547 Cristóvão Colombo, Livro das Profecias. Introdução por Kay Brigham. Ed. Clie, Barcelona, 1992. Ver Federico González, Las Utopías Renacentistas, Esoterismo y Símbolo. Editorial Kier, Buenos Aires, 2004, capítulo IX.
548 Ver dados da nota 546.
549 Assim como Diego García e vários outros cronistas.
550 Apenas reproduziremos o início do prólogo:
"Nada há mais próprio a Deus do que o amor; nem há algo mais natural ao amor do que transformar aquele que ama na mesma essência e natureza daquele que é amado. Sobre isso, temos provas claras. Certamente, Deus nos ama, e qualquer um que não esteja completamente cego pode perceber isso nos benefícios constantes que recebe Dele: o ser, a vida, a condução da existência e a proteção de Sua graça, que jamais nos abandona em tempo algum. Que Deus valoriza o amor acima de todas as coisas e que isso lhe seja mais próprio do que qualquer outra virtude, vê-se em Suas obras, pois tudo o que Ele faz visa repartir e conceder Seus bens às criaturas, fazendo com que Sua própria imagem resplandeça nelas. Ele se molda à medida de cada uma para ser contemplado e amado por todos, o que, como dissemos, é a própria obra do amor." (Fray Luis de León, El Cantar de los Cantares. Espasa-Calpe, Madrid, 1944, pág. 7).