A Devotio Moderna e a Mortificação da Carne
30/12/2024
Tradução: Prof. Gabriel Sapucaia
Autor: Pe. Javier Ravasi
Devotio Moderna e a Mortificação da Carne
"Os hereges não podem parecer algo bom, a menos que pintem a Igreja como perversa, falsa e enganadora. Desejam ser considerados os únicos bons, enquanto a Igreja deve ser vista como perversa por todos os lados" (Lutero antes de sua apostasia)1.
Uma Espiritualidade Estoica
Com uma visão quase estoica da vida espiritual, a Devotio Moderna propunha – simplificando seus postulados – que quanto mais se sofre nesta vida, ou quanto mais alguém se determina a abraçar o caminho mais difícil, mais santo se tornará2.
É verdade que, como dizia Nosso Senhor, "o Reino dos Céus pertence aos que se esforçam violentamente" (Mt 11,12). No entanto, isso não significa que todo consolo – espiritual ou sensível – deva ser completamente rejeitado como algo intrinsecamente mau.
Lutero e a Mortificação
Para Lutero, herdeiro dessa espiritualidade moderna, o tema era claro:
**"Um estado religioso, se ele conhece bem, deve estar cheio de padecimentos e dores. Assim, exercerá melhor o batismo do que no estado matrimonial e, por meio de tais sofrimentos, habituar-se-á a esperar a morte com alegria, obtendo, em breve, o fruto do seu batismo"**3.
Seu voluntarismo pelagiano ou semi-pelagiano o impedia de enxergar a obra de Deus nas almas:
**"Nunca pude me dar por satisfeito com meu batismo; sempre me perguntava: quando você vai se tornar santo e satisfazer suas dívidas, para que possa encontrar um Deus benigno? Com esses pensamentos, entrei no claustro, martirizando-me com jejuns, frio e uma vida rigorosa, mas tudo o que consegui foi perder o santo batismo e até renegá-lo"**4.
A Prudência na Tradição
Longe dessa "santidade à força", a Devotio Tradicional sempre defendeu o contrário. Desde a primeira de suas famosas Collationes, Cassiano pregava contra o excesso e a falta de prudência em práticas como jejum, vigílias e oração. Na segunda Colação, ele desenvolve o tema da discrição:
**"Muitos foram iludidos por exercícios indiscretos de penitência, como vigílias e jejuns. Eles negligenciaram a virtude da discrição, chamada no Evangelho de 'o olho e a luz do corpo', que nos ensina o caminho do meio entre o excesso e a carência"**5.
Lutero, no entanto, penitente imprudente6, oscilou entre extremos, primeiro abraçando o rigor e, mais tarde, desprezando essas práticas:
**"Cristo não veio ao mundo para destruir corpo e alma, mas para proteger ambos. Não é razoável que um cartuxo se mate com jejuns e orações. Essa atividade deve ser moderada, de modo que o corpo mantenha sua saúde. Quem se martiriza assim é um verdadeiro suicida. Guarde-se disso como de um pecado mortal"**7.
Do Rigor ao Descontrole
Das penitências rigorosas, Lutero passou ao descontrole, como ele mesmo confessava em 1521:
**"Fico aqui deitado o dia todo, preguiçoso e bêbado"**8.
No ano seguinte (1522), ele observava que, ao escrever, ainda estava sóbrio, pois fazia isso pela manhã:
**"No momento, não estou bêbado, nem confuso"**9.
Para Lutero, embriaguez ocasional era aceitável, mas não habitual:
**"Nosso Senhor deve computar como pecados diários a embriaguez quando inevitável. Pode-se tolerar a ebrietudo (embriaguez ocasional), mas não a ebriositas (embriaguez habitual)"**10.
De beber apenas água, Lutero passou ao extremo oposto, chegando a atribuir dores de cabeça ao vinho:
**"Minha dor de cabeça, contraída em Coburgo pelo vinho velho, ainda não foi curada pela cerveja de Wittenberg"**11.
O Fim de Lutero
Não surpreende que o outrora penitente tenha terminado sua vida após uma de suas habituais bebedeiras. Como relatou o médico que atestou sua morte:
**"Em 15 de fevereiro de 1546, um boticário foi chamado às pressas para atender Lutero. Foi-lhe administrado um clister, e 'assim que o boticário inseriu a cânula, ouviu ventos ruidosos no recipiente devido ao excesso de comida e bebida, pois o corpo estava cheio de substâncias corruptas. Lutero era conhecido por ter uma cozinha bem abastecida e um gosto por vinhos doces e estrangeiros. Certamente, em cada refeição, consumia um grande volume desses vinhos'"**12.
Que não lhe contem outra história...
Pe. Javier Olivera Ravasi
Notas de Rodapé
- Dictata in Psalterium. Weim., III, 445. Cf. também IV, 363 (Heinrich Denifle, Lutero e o luteranismo: Estudados em suas fontes, Tip. Col. Santo Tomás de Aquino, Manila, 1920, p. 16).
- Seguimos aqui as fontes citadas e cotejadas a partir da monumental obra de Fray Heinrich Denifle (já disponível em castelhano aqui e em francês aqui). Os originais de Lutero consultados, tanto em alemão quanto em latim, encontram-se aqui.
- Weim., II, 736 (Henrich Denifle, op. cit., p. 44).
- Erl., 16, 90, ano 1535 (Henrich Denifle, op. cit., p. 416).
- Henrich Denifle, op. cit., p. 427.
- Até mesmo Kempis fala sobre discrição na penitência:
"Os exercícios corporais (isto é, as mortificações) devem ser feitos com discrição e não são igualmente apropriados para todos (...). Alguns indiscretos se destruíram por causa da graça da devoção, pois presumiram fazer mais do que podiam, não observando a medida de sua pequenez, seguindo mais o desejo de seus corações do que o julgamento da razão. Por terem se aventurado além do que Deus queria, logo perderam a graça" (Henrich Denifle, op. cit., p. 437).
- Erl., 2, 464; ano 1533 (Henrich Denifle, op. cit., p. 370).
- Enders, III, 154 (Henrich Denifle, op. cit., p. 116).
- Erl., 30, 363 (Henrich Denifle, op. cit., p. 117).
- Mathesius em Loesche, Anal. Lutherana, p. 100, nº 100 (Henrich Denifle, op. cit., p. 117).
- Enders, VIII, 345 (Henrich Denifle, op. cit., p. 118).
- Ver o documento em Paulus, Luthers Lebensende und der Eislebener Apotheker Johann Landau (Mainz, 1896, p. 5) (Henrich Denifle, op. cit., p. 119).