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II. OS ANJOS E OS HOMENS NO PENSAMENTO DIVINO

O homem tem três inimigos a temer: o demônio, o mundo e ele mesmo. É sobre o primeiro desses três inimigos, o demônio, que vamos focar nossa investigação. Vamos estudar o confronto entre homens e demônios. Esse é o tema deste estudo.

Os demônios são anjos expulsos do céu. Eles mantiveram, em grande parte, sua natureza angelical. Para conhecer nossos inimigos, precisamos primeiro compreender a natureza angelical. Mas para estudar a natureza angelical, precisamos remontar ao início da criação.

"No princípio, Deus criou o céu e a terra" (Gên. I, 1).

Neste texto, de acordo com a maioria dos comentaristas, a palavra "Céu" refere-se ao conjunto dos espíritos celestiais; refere-se ao mundo dos espíritos invisíveis, ou seja, os anjos. E a "Terra" refere-se ao conjunto do mundo material, incluindo o homem, que faz parte dele, uma vez que o Criador formou o corpo humano a partir da terra.

Todas as criaturas pertencem ou ao mundo dos espíritos, ou ao mundo dos corpos. Do texto do Gênesis fica claro que Deus não criou um mundo intermediário. No entanto, a maioria dos gnósticos hoje ensina, mais ou menos abertamente, a existência de um mundo intermediário. Os cristãos devem estar alertas contra essa noção equivocada de "mundo intermediário".

Esses dois mundos, o mundo invisível dos anjos e o mundo visível dos humanos, Deus os criou ao mesmo tempo. "Aquele que vive na eternidade criou todas as coisas simultaneamente" (Eclesiástico XVIII, 1).

Ele criou de uma vez todos os anjos, e ao mesmo tempo fez surgir do nada, igualmente de uma vez, toda a substância de que ele precisaria, e formou o que é chamado de caos. Esse caos, que não era desordem, mas apenas a matéria informe do universo, ele organizou ao longo de seis intervenções divinas, onde ainda exercia seu poder criativo. Essas seis operações divinas sucessivas são os seis dias da criação. Os seis dias criativos são chamados de "Hexameron".

Portanto, foi "no princípio" que os anjos foram criados. Para corroborar essa crença totalmente universal na Igreja, invoca-se especialmente estes três versículos do livro de Jó:

"Quem fixou as dimensões da Terra? Você sabe? Quem estendeu sobre ela o cordel? Sobre o que estão fundadas suas bases, ou quem colocou sua pedra angular, quando as estrelas da manhã cantavam juntas e todos os filhos de Deus davam gritos de alegria." (Jó XXXVIII, 5-7)

Os "filhos de Deus" e os "astros da manhã" são os anjos. Eles são chamados "da manhã" precisamente porque foram criados no início.

Com este ponto bem estabelecido, avancemos em nosso raciocínio. Os meios pelos quais Deus realiza Suas obras exteriores são chamados de Seus caminhos. O que nos revela a Escritura sobre os caminhos de Deus?

"Universæ viæ Dornini rnisericordia et veritas. Todos os caminhos do Senhor são misericórdia e verdade" (Salmo XXIV, 10 Vulgata).

Esta ideia de que existe uma dualidade e um equilíbrio entre misericórdia e verdade é repetida nas Sagradas Escrituras com uma insistência que não pode passar despercebida e que certamente tem um significado.

Apenas para observar adequadamente essa insistência, é necessário recorrer à versão latina da Vulgata, pois traduções francesas, provavelmente para evitar monotonia na expressão, traduzem 'misericordia' e 'veritas' por uma série de termos aproximativos, o que impede de notar a repetição presente no próprio texto. Aqui estão alguns dos trechos mais notáveis:

I. "Que a Vossa misericórdia e a Vossa verdade me sustentem sempre" (Salmo XXXIX, 12).

II. "Carregue a Vossa misericórdia e a Vossa verdade para guardá-lo" (Salmo LX, 8).

III. "A misericórdia e a verdade se encontraram" (Salmo LXXXIV, 11).

IV. "A misericórdia e a verdade preparam o bem" (Provérbios XIV, 22).

V. "A misericórdia e a verdade redimem as iniquidades" (Provérbios XVI, 6).

VI. "A misericórdia e a verdade vigiam sobre o rei" (Provérbios XX, 28).

Todos esses trechos são resumidos pelo verso que citamos primeiro. Vamos revisá-lo agora, pois é importante mantê-lo em mente:

"Todos os caminhos do Senhor são misericórdia e verdade" (Salmo XXIV, 10).

Isso significa que, entre as obras de Deus, algumas são especialmente relacionadas à Sua misericórdia, enquanto outras são destinadas a manifestar mais especificamente Sua verdade.

Agora, vamos definir o que são a verdade e a misericórdia de Deus. A verdade de Deus é sua rigorosidade. Os comentaristas equiparam a verdade de Deus à sua justiça. Frequentemente, os termos verdade e justiça são usados de forma intercambiável. A justiça de Deus é rigorosa, exata, ou seja, verdadeira. Ela retribui a cada um conforme o que é devido e "não faz acepção de pessoas". Ela demanda ser satisfeita com rigor.

Por outro lado, a misericórdia divina inclui tudo que está relacionado à Sua bondade, benignidade, condescendência, afeição e predileção. Enquanto a justiça (ou verdade) de Deus define a regra, a misericórdia governa a exceção. É a misericórdia que inspira todas as ternuras do coração divino. Ela preside as preferências. Há uma criatura que personifica de maneira eminente a misericórdia divina, e essa é a Virgem Maria. Deus a encheu da "plenitude de Suas graças". Ela é a criatura de predileção por excelência.

Mas então, como Deus, que "não faz acepção de pessoas" segundo Sua justiça, pode ter preferências segundo Sua misericórdia? Estamos definindo misericórdia como injustiça? Como a misericórdia e a verdade de Deus são compatíveis? Certamente, isso é muito misterioso. A este mistério se aplica a famosa sentença das Escrituras:

« Meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos são os Meus caminhos. Tão altos quanto os céus são superiores à terra são os Meus pensamentos superiores aos vossos pensamentos e os Meus caminhos aos vossos caminhos. » (Isaías LV, 8).

E ainda assim, não devemos interpretar este mistério como se houvesse em Deus o menor vestígio de injustiça, isto é, de mal. São Paulo, antecipando a objeção, afirma claramente:

« Há injustiça em Deus? De modo algum! Pois Ele disse a Moisés: 'Terei misericórdia de quem eu quiser ter misericórdia, e terei compaixão de quem eu quiser ter compaixão.'» (Romanos IX, 15).

Deus, que é justo para com cada uma de Suas criaturas, manifesta preferências por algumas sem causar prejuízo às outras. Este é todo o sentido da parábola dos trabalhadores da última hora. Deveríamos nós, então, ter um olhar invejoso porque Deus é bom? Não há no coração de Deus o menor traço de injustiça nem o menor traço de mal.

Agora sabemos que Deus faz tudo, seja conforme Sua misericórdia, seja de acordo com Sua justiça. Com esse entendimento, vamos compreender melhor o que a natureza angélica pode representar em comparação com a natureza humana.

Os anjos têm origem em um pensamento divino de justiça (também chamada de verdade). Eles adoram especialmente a verdade de Deus, Sua justiça, ou seja, Sua rigorosidade. Em troca, Deus glorifica neles a inocência, a impecabilidade. Os anjos são colocados ao redor de Deus para serem Seus mensageiros rigorosos:

"Bendizei ao Senhor, todos vós, seus anjos, poderosos em força, que executais as suas ordens, obedecendo à voz da sua palavra" (Introito da Missa votiva dos anjos).

Por outro lado, os homens têm origem em um pensamento divino de misericórdia. O que atrai sua gratidão é a misericórdia de Deus. Em troca, Deus glorifica neles não mais a inocência como nos anjos, mas o arrependimento.

Essa aplicação da distinção entre misericórdia e verdade aos homens e aos anjos pode parecer simplista. De fato, é simplificadora. No entanto, é ela, em última análise, que explica por que os homens foram redimidos enquanto os anjos não o foram.