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APÊNDICE III

Duns Scot é o principal artífice desse neo-agostinismo construído contra o tomismo.

Não nos equivoquemos, o escotismo é de importância capital no advento da "philosophia modernorum", ou seja, nós o analisamos a título de filósofo e a crítica que dele fazemos não atenta de forma alguma contra a fé magnífica de Duns Scot. Além disso, nosso propósito não é fazer uma análise exaustiva do escotismo, mas simplesmente mostrar que o conflito entre a fé e a razão que abala a Igreja e, de fato, a humanidade inteira não é um fenômeno espontâneo, mas que tem sua origem nesse neo-agostinismo, elaborado contra o tomismo, mantido e propagado contra a vontade do magistério supremo, em particular pelos Franciscanos e Carmelitas entre o povo, e, na inteligência eclesiástica e laica, pelas Universidades que, do século XIV ao XV, se multiplicaram nos países da Europa central, germânica e escandinava, e manifestaram uma independência que beira a revolta em relação à Santa Sé, a qual se esforçava para impor o ensino tomista.

Não nos surpreendamos que esses países tenham caído, ao menor pretexto material, no protestantismo, e que nosso país caia, já que lhe são impostas as teorias e doutrinas que ele engendra. No início do século XIV, os defensores do agostinismo, como dissemos, não se limitaram ao agostinismo ortodoxo, mas quiseram construir uma "filosofia dos modernos", capaz de suplantar o tomismo, utilizando, para tanto, apenas as teorias platônicas do agostinismo refutadas e rejeitadas por S. Tomás. Ora, quem conseguiu essa proeza foi Duns Scot. Mas, por isso, Duns Scot é levado a retomar o racionalismo platônico e cristão que o tomismo havia afastado das mentes, e assim se manifesta, para os agostinianos, como a continuação da tradição agostiniana.

Por exemplo, no plano do conhecimento, Duns Scot quer encontrar um meio-termo entre o que é apenas um conceito atribuível ao espírito e o que corresponde a uma realidade objetiva, e introduz sua famosa distinção formal a parte rei — o que é incorrer no mesmo erro tantas vezes censurado a Platão por S. Tomás de identificar o modo de ser das coisas em si mesmas com o modo dessas mesmas coisas na inteligência. A univocidade escotista deriva daí.

De fato, Duns Scot quer defender contra o tomismo a inteligibilidade direta do singular (e, nesse sentido, é um precursor de Bergson, dos fenomenologistas modernos); mas concordar com a inteligibilidade direta, imediata do singular é deixar, no mínimo, implícito, que o universal é uma pura construção do espírito, sem fundamento na natureza e, de fato, que a ordem imanente ao mundo não é uma realidade objetiva, mas subjetiva: é a porta aberta ao nominalismo, com Ockham, etc.

Além disso, reduzindo assim o universal ao singular para significar sua inteligibilidade imediata: "o universal no singular não é outra coisa senão o singular" (Opus ox. 2, d.42, q.4, N°6), Duns Scot é levado assim a atribuir a inteligibilidade imediata ao singular, porque é o único real, e a realidade aos elementos, às "formalidades" que o compõem, porque são inteligíveis — retomando assim Platão, precisamente no sentido em que foi refutado pelo tomismo, para quem a atribuição imediata da qualidade de ser é reservada ao concreto, não aos seus elementos; componentes, a qualquer grau de abstração a que possam pertencer: o que é o objeto do conhecimento, para quem quer que seja (homem, anjo e Deus), diz S. Tomás, é o ser; os princípios do ser só são conhecidos no ser, sob os auspícios do ser, posteriormente ao ser, e não anteriormente como para compô-lo.

O ser não se compõe de elementos preexistentes: ele só é analisado uma vez que existe, e a análise o falseia, se pretende que o elemento se beneficie de uma concepção à parte, de uma "ideia" que lhe seja própria (Sertillanges em Phil. Thomas). Duns Scot não só retoma o "realismo" de Platão, não sem traí-lo, mas também com o racionalismo de Parmênides, do qual Platão não conseguiu se desvencilhar completamente, segundo o qual nossas condições de conhecimento definem as condições da realidade.

Por fim, concordando com a univocidade do ser, Duns Scot insere Deus diretamente, como um ser particular, no objeto da metafísica — ao passo que S. Tomás só O introduz a título de causa do ser enquanto ser. Com isso, reduzindo de certo modo o Ser incriado e os seres criados a um mesmo denominador, ele compromete a transcendência absoluta de Deus e reduz o domínio do Criador sobre sua criatura, a ponto de o ser criado poder, em rigor, subsistir sozinho, conservar-se sozinho, tendo em si sua própria consistência, independente de sua relação com o Ser incriado. É aí novamente que se abre o caminho para o antropocentrismo e o individualismo dos quais Lutero fará o princípio de sua Igreja e Descartes o de sua filosofia do "eu", por um lado, e por outro, a esse misticismo irracional e panteísmo, do qual Mestre Eckhart será o promotor, e dos quais Fichte, Hegel e os teósofos se declaram filhos espirituais.

H.P.