VI - Os dois caminhos
Eu vejo que quase todos vós abaixais a cabeça, apreendidos de surpresa e de horror. Retirai, porém, vosso estupor, e ao invés de nos aliciarmos, tentemos tirar de nosso receio alguma vantagem. Não é verdade que existem duas vias que conduzem ao Céu, que são a inocência e o arrependimento? Ora, se eu vos demonstro que são pouquíssimos que tomam uma dessas rotas, vós concluís disso, como homens racionais, que são pouquíssimos que se salvam. E para disso vir as provas, qual idade, qual emprego, qual condição vos encontrais onde o número de comerciantes não seja cem vezes mais considerável que aquele dos bons, e do qual pudéssemos dizer: "os bons ali são raros e os comerciantes numerosos"? Podemos dizer de nossos tempos o que São Salviano (1) disse do dele_: é mais fácil achar uma multidão_ inumerável de pecadores mergulhados em toda sorte de iniquidades que alguns inocentes.
Quantos há entre eles, entre os servidores, que sejam inteiramente honestos e fieis em seu ofício? Quantos entre os mercadores, que são justos e equitativos em seu comércio? Quantos, entre os artesãos, são exatos e verídicos? Quantos, entre os negociantes, são desinteressados e sinceros? Quantos, entre os homens da lei, que não traem a equidade? Quantos soldados que não calcam com os pés a inocência? Quantos chefes que não retém injustamente o salário daqueles que os servem ou que não procuram dominar seus inferiores? Em toda parte os bons são raros e os perversos numerosos. Que não sabe que hoje existe tanto libertinagem entre os jovens rapazes, tanta malícia entre os homens maduros e tanta liberdade entre as jovens moças, de vaidade entre as mulheres, de licenças na nobreza, de corrupção na burguesia, de dissolução do povo, tanta audácia entre os pobres, que podemos dizer o que Davi disse de seu tempo: "Todos parecem extraviados... e não há quem faça o bem, nem mesmo um só" (Ps. XIII e LII)
Nós chegamos, ai de nós! Chegamos a esse dilúvio universal de vícios predito por Oseias:
maledictum et mendacium et furtum et adulterium inundaverunt.
Percorrei as ruas e as praças, os palácios e as casas, as vilas e os campos, os tribunais e os cursos, e mesmo os templos de Deus: onde achareis vós a virtude? "Ai de nós! Diz São Silvano, à exceção de um grande pequeno número que fogem do mal, o que é a assembleia dos cristãos, senão um porão de todos os vícios?" Não achamos em toda parte senão interesse, ambição, gula e luxúria. Não é verdade que a grande parte dos homens se contaminaram pelo vício da impureza, e São João não tinha ele razão de dizer que o mundo, se é que podemos chamar assim alguma coisa também tão imunda, está inteiramente posto no mal? Não sou eu quem vos diz, é a razão que vos força a crer que entre tantas pessoas que vivem assim tão mal, são pouquíssimos os que se salvam.