V - Exame dos diversos estados
Ah! percebo que falando assim de todos em geral, eu falto com meu objetivo: Apliquemos então essa verdade aos diversos estados, e vós compreendereis que é preciso ou renunciar a razão, a experiência e ao senso comum dos fiéis, ou confessar que a maior parte dos católicos se perdem. Existe no mundo um estado mais favorável à inocência, onde a salvação parece mais fácil e no qual nós temos uma mais alta ideia que aquele dos Padres, que são os tenentes de Deus? Quem não acreditará, de primeira impressão, que a maior parte dentre eles são não somente bons, mas ainda perfeitos; e, no entanto, eu estou tomado de horror, quando escuto um São Jerônimo adiantar que, embora o mundo seja pleno de padres, deles apenas um sobre cem padres vivem de uma maneira conforme o seu estado; quando ouço um servo de Deus atestar que aprendeu por revelação que o número de padres que caem diariamente no inferno é tão grande, que não lhe parecia possível restar ainda tantos padres sobre a terra; quando eu escuto São João Crisóstomo escrever com lágrimas nos olhos: "Eu não creio que tenha muitos padres que se salvam, mas eu creio no contrário, que o número daquele que se perdem é bem maior"
Olhai mais alto ainda; veja os prelados da Santa Igreja, os párocos tendo o encargo das almas: o número daqueles que se salvam entre eles é maior que o número dos que se perdem?
Escutai Tomás de Cantimpré, ele vos recordará um fato, isto será encarregado a vós de dele tirar as consequências. Teve um sínodo em Paris: um grande número de prelados e de párocos encarregados de almas ali se achavam; o rei e os príncipes vieram ainda acrescentar por sua presença a centelha dessa assembleia. Um célebre pregador foi convidado a pregar; e durante a preparação de seu sermão, um horrível demônio apareceu-lhe e disse-lhe: "Deixai de lado todos teus livros; se você quer fazer um sermão útil a esses príncipes e prelados, contentai- vos em dizer-lhes de nossa parte: "Nós, príncipes das trevas, vos rendemos graças, a vós príncipes, prelados e pastores de almas, pois, por vossa negligência, o maior número de fieis se perde; assim, nós nos reservamos de recompensar esse favor, quando vocês estiverem conosco no inferno".
Infelizes de vós que comandeis aos outros: se tantos se perdem por vossa culpa, o que será de vós? Se entre aqueles que são os primeiros na Igreja de Deus, são poucos que se salvam, o que virá a ser de vós? Tomai todos os estados, todos os sexos, todas as condições, maridos, esposas, viúvas, jovens moças, jovens rapazes, soldados, comerciantes, artesãos, ricos, pobres, nobres, plebeus; que diremos de todas essas pessoas que vivem tão mal em outros lugares? São Vicente Ferrer vos mostrará por um fato o que vós deveis pensar. Ele relata que um subdiácono de Lyon, tendo renunciado à sua dignidade e estando retirado em um deserto para lá fazer penitência, morreu no mesmo dia e na mesma hora que São Bernardo. Aparecendo a seu bispo depois de sua morte, disse-lhe: "Sabei, meu senhor, que na mesma hora que eu expirei, trinta e três mil pessoas morreram. Sobre esse número, Bernardo e eu subimos ao céu sem demora, três entraram no Purgatório, e todos os outro caíram no inferno".
Nossas crônicas testemunham um fato mais assustador ainda. Um de nossos religiosos franciscanos, célebre por sua doutrina e sua santidade, pregando na Alemanha, representou com tanta força a feiura do pecado da impureza que uma mulher caiu morta de dor à vista de todos. Depois, voltando à vida, ela disse: "quando eu fui apresentada diante do Tribunal de Deus, sessenta mil pessoas chegaram lá ao mesmo tempo de todas as partes do mundo; sobre esse número, três foram salvas passando pelo purgatório, e todo o resto foi condenado".
Ó abismo dos julgamentos de Deus! De trinta e três mil, cinco somente se salvaram! De Sessenta mil não tiveram senão três que foram ao céu! Pecadores que me escutais, de qual número sereis vós? ... Que tendes a dizer? ... O que pensais?