IX - Deus, Pai Justo
Tirai, pois, dos vossos olhos essa venda no qual vos cega o amor-próprio, e que vos impede de crer em uma verdade assim evidente, dando-vos as ideias mais falsas sobre a justiça de Deus. "Pai Justo! O mundo não vos conheceu portanto", diz Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele não diz Pai Todo-Poderoso, Pai Bondosíssimo, Misericordioso, Ele diz: "Pai Justo", para nos fazer entender que de todos os atributos de Deus, nenhum é tão pouco conhecido como Sua Justiça, porque os homens recusam crer no que eles tem receio de experimentar. Tirai pois o véu que vos cobre os olhos, e diga com lágrimas: Ai de mim! A maior parte dos católicos, a maior parte dos habitantes desse lugar, e talvez mesmo desse auditório, será condenada. Qual tema merece mais vossas lágrimas? O rei Xerxes, vendo do alto de uma colina seu exército composto de cem mil soldados dispostos em ordem de batalha, e considerando que de tudo isso não haveria um só homem vivo em cem anos, não pôde conter suas lágrimas. Não temos nós muito mais razão de chorar pensando que, de tantos católicos, a maior parte será condenada?
Esse pensamento não deveria ele tirar de nossos olhos córregos de lágrima ou ao menos excitar em nossos corações o sentimento de compaixão que provou certa vez o venerável
Marcelo de São Domingos, religioso Agostiniano? Como ele meditava um dia sobre as penas eternas, o Senhor mostrou-lhe quantas almas iam naquele momento ao inferno e fez-lhe ver um caminho muito largo onde vinte dois mil reprovados corriam em direção ao abismo, batendo-se uns nos outros. A essa vista, o servo de Deus, estupefato, exclamava! "Oh! Que número! Que número! E ainda vem outros. Ó Jesus! Ó Jesus! Que loucura!" (3) Deixai-me pois repetir com Jeremias: "Quem dará água à minha cabeça e uma fonte de lágrimas aos meus olhos, e eu chorarei aqueles que a filha de meu povo perdeu". Pobres almas! Como correis vós assim tão ansiosos para o inferno? Parem por favor, e escutem-me um instante. Ou vós compreendeis isso que eu quero dizer e se salvar, ou bem, vós não compreendeis e se perder por toda a eternidade. Se vós o compreenderes, e se malgrado isso vós não vos decidirdes hoje a mudar de vida, a fazer uma boa confissão, e calcar o mundo aos pés, em uma palavra, a fazer todos os vossos esforços para ser do pequeno número daqueles que se salvam, eu digo que vós não tendes a Fé. Se vós não o compreendeis, vós sois mais desculpáveis; pois, é preciso dizer que você perdeu o sentido. Se salvar durante toda a eternidade! Se perder (danar) por toda a eternidade! E não fazer todos seus esforços para evitar um e assegurar o outro, é uma coisa que não se pode conceber.
Talvez não acrediteis ainda as verdades terríveis que eu venho vos ensinar. Mas esses são os teólogos mais consideráveis, os Padres mais ilustres que vos falou pela minha boca. Como podeis vós, pois, resistir à essas razões fortificadas por tantos exemplos, por tantas palavras da Escritura? Se, malgrado isso, vós hesiteis ainda, e se vosso espírito pende para a opinião oposta, essa só consideração não é suficiente para vos fazer tremer? Ah! Vós fazeis ver por isso que vós haveis pouca preocupação com a vossa salvação! Nesse negócio importante, um homem de bom senso é mais atacado pela ignorância do perigo que ele corre pela evidência de uma ruína completa em seus outros negócios onde a alma não é pois interessada. Também, um de nossos religiosos, o bem-aventurado Gille, tinha costume de dizer que, se um só homem devia se condenar, ele teria feito todo o possível para assegurar que não seria ele. Que devemos nós, pois, fazer, nós que sabemos que, não somente entre todos os homens, mas ainda entre os católicos, a maior parte será condenada? O que devemos nós fazer? Tomar a resolução de pertencer ao pequeno número daqueles que se salvam. Se o Cristo, dizeis vós, queria me condenar, por que ele me colocou no mundo? Cale a boca, língua temerária! Deus não criou ninguém, nem mesmo os Turcos, para os condenar; mas, quem quer que se condena, se condena porque ele bem quis. Eu quero, pois, empreender agora a defesa da bondade de meu Deus, e de a vingar de toda blasfêmia: esse será o tema do segundo ponto.
Antes de ir mais longe, recolhei de um lado todos os livros e todas as heresias de Lutero e de Calvino, e do outro os livros das heresias dos Pelagianos, dos semi-pelagianos, e colocai no fogo. Uns destroem a graça, outros a liberdade, e todos são cheios de erros; jogai-os, pois, ao fogo. Todos os reprovados trazem gravados em suas frontes o oráculo do Profeta Oséias: Tua perda vem de ti, afim de que eles possam compreender que quem quer que se condene, se condena por sua própria malícia, e porque ele quer se condenar.
Peguemos em primeiro lugar por base essas duas verdades incontestáveis: "Deus quer que todos os homens se salvem". "Todos tem necessidade da graça de Deus". No entanto, se eu vos demonstro que Deus tem a vontade de salvar todos os homens, e que por isso Ele lhes dá, a todos, Sua graça, com todos os outros meios necessários para obter esse fim sublime, vós sereis forçados a concordar que quem quer que se condene deve a responsabilidade à sua
própria malícia, e que, se o maior número de cristãos são reprovados, é porque eles querem. "Tua perda vem de ti; em Mim está somente o seu seguro"
Que Deus tenha verdadeiramente vontade de salvar todos os homens, Ele nos declara em cem lugares dos livros santos. "Eu não quero a morte do pecador, mas antes que ele se converta e que ele viva. Eu vivo, diz o Senhor, eu não quero a morte do ímpio - convertei-vos e vivei". Quando alguém deseja muito uma coisa, dizemos que ele morre de desejo, é uma hipérbole. Mas, Deus quis, e quer ainda, tão fortemente a nossa salvação que Ele por ela morreu de desejo, e Ele sofreu a morte para nos dar a vida: "et propter nostram salutem mortuus est". Essa vontade de salvar todos os homens não é, pois, em Deus, uma vontade afetada, superficial e aparente, é uma vontade verdadeira, efetiva e benfeitora, pois Ele nos fornece todos os meios mais perfeitos para nos salvar, Ele nos dá, não para que eles não tenham então seu efeito ou porque Ele quer que eles não tenham; mas Ele nos dá com uma vontade sincera, com a intenção de que elas obtenham seus efeitos e, se eles não o obtém, Ele se mostra aflito e ofendido. Ele ordena aos reprovados a que eles mesmos empreguem a obra de sua salvação, Ele para isso os exorta, para isso os obriga, e, se eles não fazem, eles pecam. Eles podem, pois, o fazer e assim se salvarem.
Bem mais, Deus, vendo que sem Sua ajuda nós não poderíamos mesmo nos servir de Sua graça, nos dá outros socorros e se eles ficam algumas vezes ineficazes, a culpa disso é nossa, porque com esses mesmos socorros, in actu primo, como dizem os teólogos, com esses mesmos socorros no qual um o abusa e com os quais ele se condena, um outro pode fazer o bem e se salvar; ele o poderia mesmo com socorros menos poderosos. Sim, pode acontecer que um abuse de uma graça maior e se perca, enquanto outro que coopera com uma graça menor se salve.
"Se, pois, alguém se afasta da justiça (santidade), exclama Santo Agostinho_, ele é arrebatado_ por seu livre arbítrio, incitado por sua concupiscência, enganado por sua própria persuasão. Mas para aqueles que não escutam a teologia, aqui está o que eu tenho a dizer-lhes: Deus é tão bom que, quando Ele vê um pecador correndo para sua perdição, Ele corre atrás dele, chama-o, suplica-lhe e o acompanha até as portas do inferno; e o que não faz Ele, então, para o converter? Ele envia-lhe boas inspirações, santos pensamentos, e, se ele não aproveita, Ele se zanga, se indigna, e o persegue. Vai Ele ferir-lhe? Não: Ele deixa isso de lado, e o perdoa. Mas o pecador não se converte ainda: Deus envia-lhe uma doença mortal. Tudo está acabado para ele, sem dúvida. Não, meus irmãos, Deus o cura; o pecado se obstina no mal, Deus procura na Sua Misericórdia algum novo meio; Ele lhe dá ainda um ano, e, o ano acaba, e aceita dar ainda um outro. Mas se, malgrado tudo isso o pecador quer se lançar no inferno, que faz Deus? O abandona? Não: ele o toma pela mão, e enquanto ele tem um pé no inferno e outro fora, ele o exorta ainda, e suplica-lhe a não abusar de Suas graças. No entanto, eu vos pergunto, se esse homem se condena, não é verdade que ele se condena contra a vontade de Deus e porque ele quer se condenar?" Venham dizer-me agora: se Deus queria me condenar, por que colocou-me Ele no mundo? ...