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Anexo 2 - Artigo de Sodalitium n°52 de janeiro de 2002 denunciando a reabilitação de Rosmini, este sacerdote condenado pela Igreja sob o pontificado de Leão XIII

O caso Rosmini: o “in proprio Auctoris sensu

contra “uma distinção astuciosa” do cardeal Ratzinger

(extrato de Sodalitium n°52 de janeiro de 2002)

Monsenhor Benigni relata em sua Storia sociale della Chiesa [História social da Igreja] sobre os arianos: “O grupo em que se destacava o exilado Eusébio de Nicomédia (daí a denominação de grupo dos eusébicos) retratava sua subscrição não à doutrina de Nicéia, mas à condenação de Ário: isto é, afirmava que não era a doutrina ariana que o Concílio havia condenado. Esta astuciosa distinção criou escola: e entre tantos outros, encontra-se o exemplo notório das distinções jansenistas nas condenações papais da doutrina do bispo de Ipres” (1).

As notas históricas do “Denzinger” explicam o episódio ao qual Monsenhor Benigni faz alusão: “depois que foram condenadas as cinco proposições de Jansênio, seus partidários, sob a liderança de Antônio Arnauld, distinguiram entre a ‘quæstio facti’ e a ‘quæstio iuris’: a condenação não se referiria a uma heresia fictícia, mas sim à verdadeira concepção de Jansênio” (2). O Papa Alexandre VII teve então que, pela Constituição Ad sanctam beati Petri sedem (16 de outubro de 1656), refutar a “astuciosa distinção”: “Uma vez que … para grande escândalo dos fiéis de Cristo, certos filhos da iniqüidade não temem afirmar que as cinco propostas (…) ou não se encontram no livro mencionado de Cornelius Jansen, mas foram montadas de forma fictícia e arbitrária, ou não foram condenadas segundo o sentido visado por este, Nós (…) declaramos e definimos que estas cinco proposições foram tiradas do livro do mencionado Cornelius Jansen, bispo de Ipres, que tem o título ‘Augustinus’, e que foram condenadas segundo o sentido visado por este mesmo Cornelius Jansen (“in sensu ab eodem Cornelio Jansenio intento, DS 2010-2012). Esta Constituição de Alexandre VII demonstra como a Igreja tem autoridade para definir não apenas que a doutrina de tal autor é errônea, mas também que foi de fato sustentada por este autor no sentido que a Igreja lhe atribuiu; ao contrário, o exemplo dos arianos primeiro e dos jansenistas depois demonstra, por sua vez, que negar que uma doutrina condenada pela Igreja tenha sido realmente sustentada por seu autor é uma escapatória típica dos hereges.

Uma velha escapatória volta à atualidade

Nihil novi sub sole... [Nada de novo sob o sol] A velha escapatória utilizada no passado pelos arianos e jansenistas (entre outros), tornou-se mais atual do que nunca com o Vaticano II e o “magistério” que se seguiu. De um lado, de fato, o Vaticano II sustentou - em vários pontos - uma doutrina e uma prática contrárias à doutrina e à prática da Igreja. Do outro, a menos que renunciem a toda legitimidade, não é possível aos partidários do Vaticano II admitir explicitamente a existência dessa contradição e a realidade dessa ruptura. Para os partidários da nova doutrina e da nova prática conciliar, o principal problema consiste, portanto, em apresentar uma nova doutrina sem renegar explicitamente o passado.

No que diz respeito à prática, mais ligada ao contingente, a tática escolhida é a do “mea culpa”, ou seja, de pedidos incessantes de perdão, através dos quais se pode denunciar todo o passado da Igreja. A escapatória utilizada consiste em pedir perdão não pelas “faltas da Igreja”, mas pelas faltas dos “filhos da Igreja” (como se, em muitos casos, esses “filhos da Igreja” não tivessem atuado na qualidade de autoridade suprema da Igreja).

No que diz respeito à doutrina oficial, as coisas são mais difíceis (mesmo que menos evidentes). Pensou-se em relativizar os documentos do passado, diminuindo sua autoridade (não infalíveis, mas sim apenas prudenciais) e historicizando-os (válidos apenas para uma época dada e um contexto determinado) etc.

É essa tática que foi utilizada, como veremos, no caso que tomamos aqui em consideração.

Existe uma outra tática: a de afirmar que o magistério passado da Igreja - sempre válido, claro! - não tem mais atualmente nenhuma eficácia: os anátemas solenes do Concílio de Trento sobre a justificação, por exemplo, atingiriam protestantes imaginários, ou no máximo protestantes falecidos, pois os protestantes de hoje não sustentariam mais a doutrina condenada. Trata-se de uma sutil variação da escapatória ariano-jansenista da qual falávamos acima. No caso que eu examino aqui, a escapatória é, por outro lado, reapresentada tal como é, e é o que veremos...

Reabilitar Rosmini, e além...

Nesse contexto, parece previsível e necessário reabilitar Rosmini, condenado post mortem, em 1887, pelo Decreto do Santo Ofício Post obitum. Este sacerdote da cidade de Rovereto é, antes de tudo, um representante eminente do pensamento católico liberal que o Vaticano II adotou (o cardeal Ratzinger ele mesmo o admitiu). Além disso, ele foi “vítima” - conjuntamente - do Santo Ofício e da filosofia e teologia tomistas, vitimas por sua vez do Vaticano II. Um “mea culpa” sobre o caso Rosmini era previsível, e até mais. De fato, existe uma nova maneira de enterrar o passado da Igreja sem deixá-lo à mostra; consiste em beatificar e canonizar personagens outrora afastados; já para lançar sombra sobre a santidade de São Pio X, João XXIII desejou a beatificação do cardeal Ferrari e a quis com todas as suas forças. A canonização de Rosmini, já prevista, ofuscará ainda mais a Igreja “pré-conciliar” e dará aos liberais um novo patrono.

Uma “Nota” da Congregação para a Doutrina da Fé “reabilita” Rosmini e abre o caminho

para sua “beatificação”

Em 1° de julho de 2001, o cardeal Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, e Monsenhor Bertone, o secretário, assinaram uma Nota “sobre o valor dos Decretos doutrinais concernentes ao pensamento e às obras de Antonio Rosmini Serbati”. (L’Osservatore Romano, 1-2 de julho de 2001; La Doc. Cath., 5-19 de agosto de 2001, n° 2253, p. 725-726).

A Nota, como lembra a Postulação de Rosmini, “responde ao texto apresentado pelo Postulador Geral em dezembro de 1999 no intuito de esclarecer a ‘questão rosminiana’ (com referência particular ao Decreto ‘Post obitum’) como foi pedido no decreto de 22 de fevereiro de 1994, quando o Prefeito da Congregação para as causas dos santos da época concedia o ‘nihil obstat’ da parte do Santo Sé à abertura da Causa de Beatificação do Servo de Deus Antonio Rosmini. O decreto em questão assinalava que ‘…a Congregação para a Doutrina da Fé deveria ser novamente interpelada a respeito do julgamento doutrinal definitivo sobre este assunto’” (3).

De qualquer forma, a resposta positiva da Congregação para a Doutrina da Fé não poderia faltar depois que João Paulo II, no mesmo ano de 1999, tivesse publicado a encíclica Fides et ratio, na qual Rosmini se encontra “incluso entre os pensadores mais recentes em que se realiza um encontro fecundo entre saber filosófico e Palavra de Deus” (8). João Paulo II deve, portanto, ser considerado responsável por esta reabilitação de Rosmini, tanto por tê-la solicitado pela encíclica Fides et ratio, quanto por ter pessoalmente aprovado a Nota da Congregação para a Doutrina da Fé (4).

A reabilitação era, portanto, necessária; mas como realizá-la?

A “astuciosa distinção” resgatada para reabilitar Rosmini e enterrar - sem dizer - o magistério da Igreja

Isso estabelecido, peço ao leitor que se lembre do que é dito no início deste artigo sobre a tática dos hereges para despojar um decreto de condenação da Igreja de todo valor: essa tática consiste em afirmar que esse decreto condena uma heresia fictícia, imaginária, que nunca foi realmente sustentada pelo autor ao qual é atribuída essa doutrina. E isso foi o que fez a Congregação para a Doutrina da Fé...

Aqui está, de fato, o argumento essencial da Nota, expresso nos números 6 e 7 do documento: “Além disso, deve-se reconhecer que um estudo científico global, sério e rigoroso do pensamento de Antonio Rosmini, que se expressou no âmbito católico por teólogos e filósofos pertencentes a diversas escolas de pensamento, demonstrou que essas interpretações contrárias à fé e à doutrina católica não correspondem, de fato, à posição autêntica de Rosmini. A Congregação para a Doutrina da Fé, após um exame aprofundado dos dois decretos doutrinais promulgados no século XIX, e considerando os resultados fornecidos pela historiografia e pela pesquisa científica e teórica das últimas décadas, chegou à seguinte conclusão:

Atualmente, pode-se considerar que os motivos de preocupação e as dificuldades doutrinárias e prudenciais que determinaram a promulgação do Decreto ‘Post obitum’ de condenação das “quarenta proposições” extraídas das obras de Antonio Rosmini estão agora superados. E isso se deve ao fato de que o sentido das proposições, tal como foi compreendido e condenado por esse Decreto, não pertence, na realidade, à posição autêntica de Rosmini, mas sim a conclusões possíveis da leitura de suas obras”.

Essa é a substância da Nota sobre Rosmini: as 40 proposições foram condenadas porque compreendidas “numa ótica idealista, ontológica e em um sentido contrário à fé e à doutrina católica” (n. 7). Mas, na realidade, esse não era o pensamento do autor, Antonio Rosmini Serbati.

O decreto de condenação de Rosmini afirma o contrário do que sustenta a Nota de reabilitação, a qual contradiz, portanto, o magistério da Igreja

Mas o Santo Ofício - solicitado e aprovado por Leão XIII - realmente condenou 40 teses extraídas das obras de Rosmini sem comprometer sua própria autoridade sobre o fato de que essas teses refletem o pensamento de Rosmini?

Lembremos ao leitor que, segundo a Constituição Ad Sanctam de Alexandre VII citada acima, é certo que a Igreja pode não apenas condenar proposições, mas também definir que essas proposições estão realmente contidas nessa obra e mesmo que as proposições em questão foram condenadas no sentido entendido pelo autor. A autoridade da Igreja, envolvida em um decreto desse tipo, se estende também ao fato de que as teses condenadas foram condenadas justamente e precisamente no sentido entendido e desejado pelo autor, e não no sentido atribuído por terceiros ou pela Igreja.

Ora, aqui estão as palavras do famoso decreto Post obitum, qualificado de “ultrapassado” pela Nota da Congregação para a Doutrina da Fé:

“A Santidade de Nosso Senhor Leão XIII Papa, por divina providência, a quem é caro acima de tudo que o depósito da doutrina católica seja conservado puro e isento de erro, incumbiu o Sagrado conselho dos Muito Eminentes Cardeais, Inquisitores gerais em toda a república cristã, de examinar as proposições denunciadas. A Suprema Congregação, portanto, como é de costume, iniciou um exame dos mais diligentes e procedeu à confrontação dessas proposições com as outras doutrinas do autor, especialmente aquelas que se destacam claramente dos livros póstumos; a Suprema Congregação julgou que devem ser reprovadas, condenadas, segundo o sentido visado pelo Autor, as seguintes proposições que este decreto geral [Post obitum] reprova, condena e proscreve efetivamente: sem que isso permita a quem quer que seja deduzir que as outras doutrinas do mesmo Autor, que não são condenadas por este decreto, sejam de qualquer forma aprovadas. Após isso, um relatório cuidadoso de tudo isso sendo apresentado à Santidade de N.S.

Leão XIII, Sua Santidade aprovou, confirmou o decreto dos Eminentes Padres e ordenou que fosse observado por todos” (5).

Essa citação mostra, evidentemente, que as 40 proposições de Rosmini foram condenadas não apenas em si mesmas (ou no sentido que lhe foi dado “fora do contexto do pensamento rosminiano em uma ótica idealista, ontológica e em um sentido contrário à fé e à doutrina católica”, como afirma a Nota, no n. 7) mas “in proprio Auctoris sensu, no sentido mesmo do Autor”. Essa é a mesma fórmula utilizada em 1656 para reafirmar que as teses de

Jansênio haviam sido condenadas “segundo o sentido visado por esse mesmo …, in sensu ab eodem… intento” (6).

A contradição entre um texto indiscutível do magistério eclesiástico aprovado pelo Papa Leão XIII e a Nota do cardeal Ratzinger aprovada por João Paulo II é absolutamente evidente e inegável.

Tentativa vã de negar a contradição ao invocar o precedente de 1854, quando as obras

rosminianas foram “retiradas do processo”

a) a influência dos fatores culturais

A Nota da Congregação para a Doutrina da Fé lembra (à sua maneira, como veremos) os precedentes que dizem respeito à “questão rosminiana”. “O Magistério da Igreja (…) interessou-se várias vezes, ao longo do século XIX, pelos resultados do trabalho intelectual do padre Antonio Rosmini Serbati (1797-1855). Ele colocou no Índice duas de suas obras em 1849, depois declarou isentas de todo suspeita [o texto original diz: ‘dimettendo poi dal esame’, o que pode ser traduzido mais corretamente por ‘retirando do processo’, nt], por Decreto doutrinal da Sagrada Congregação do Índice em 1854, a opera omnia, e condenou mais tarde, em 1887, quarenta proposições extraídas de obras na maioria póstumas e de algumas obras publicadas de sua vida, por Decreto doutrinal da Sagrada Congregação do Santo Ofício, intitulado ‘Post obitum’ (Denz 3201-3241). Uma leitura aproximada e superficial dessas diversas intervenções poderia fazer pensar em uma contradição intrínseca e objetiva por parte do Magistério na interpretação do conteúdo do pensamento rosminiano e sua avaliação diante do povo de Deus”_ (nn. 1 e 2). De fato, segundo a versão apresentada pela Nota, “o Decreto de 1854, pelo qual as obras de Rosmini foram lavadas de todo suspeita [o texto original diz ‘vennero dimesse’, mesma observação acima], atestam a reconhecimento da ortodoxia de seu pensamento e de suas intenções declaradas…”. De fato, se um Decreto de 1854 tivesse atestado a ortodoxia do pensamento de Rosmini, enquanto um Decreto de 1887 havia condenado 40 proposições (como a Nota pretende fazer crer), seria difícil negar a existência de certa contradição “intrínseca e objetiva”, e isso, precisamente no Magistério mais “tradicional”! A Nota, que nega essa contradição para poder sustentar que ela mesma não contradiz o decreto de condenação de 1887 (“está na mesma linha que se situa a presente Nota sobre o valor doutrinário desses decretos”_, n. 2), a Nota, dizíamos, se deleita quase em assinalar uma presunta incerteza da Igreja que, em 1854, atesta a ortodoxia do pensamento de Rosmini e, em 1887, atesta sua heterodoxia. Como explicar essa aparente contradição? A Nota a explica ‘à maneira modernista’:

“Uma leitura atenta, não apenas dos textos, mas também do contexto e da situação de sua promulgação” (n. 2) permitirá a Ratzinger explicar a “contradição” inventada por ele: a condenação de 1887 é devida às mudanças dos “fatores de ordem histórico-cultural” (n. 4), ou seja, ao renascimento do tomismo promovido por Leão XIII. Assim, uma condenação de ordem doutrinária é reduzida a uma simples questão entre diversas escolas teológicas; a atual conclusão do neotomismo explica como teses percebidas na época como erradas, não o são mais hoje. A Nota historiciza e, portanto, relativiza o Magistério por meio de uma operação que poderia ser aplicada a qualquer texto do Magistério - mesmo ao mais solene - que, devido às mudanças dos “fatores de ordem histórico-cultural”, se tornaria, assim, “ultrapassado” (7).

b) omissões e falsificações sobre o Decreto de 1854

Se a “contradição” entre os dois decretos (aquele de 1854 sob Pio IX e aquele de 1887 sob Leão XIII) não é resolvida pela nebulosa explicação do contexto cultural, como solucioná-la? Deveríamos admitir – como os partidários mais ferrenhos de Rosmini no século passado? – que a contradição existe e que Leão XIII… não era Papa!? (8). De jeito nenhum. Na realidade, é a Nota do cardeal Ratzinger que, com suas omissões e suas falsificações, impõe ao leitor um problema que não existe.

Aqui está a falsificação: afirmar que o Decreto de 1854 reconheceu a ortodoxia do pensamento de Rosmini. Quanto à omissão, ela consiste em não falar minimamente sobre esses documentos do Magistério que negam explicitamente essa falsa interpretação.

Um pouco de história esclarecerá as ideias do leitor. Após a inclusão de duas obras de Rosmini no Índice em 1849, muitos católicos denunciaram à Congregação do Índice sua opera omnia editada até então. “Após os censores terem examinado suas obras durante três anos, os cardeais decidiram na sessão de 3 de julho de 1854, presidida por Pio IX: ‘dimittantur’ [retirar da consideração]” (9). Mas que interpretação dar a essa fórmula? “Os amigos de Rosmini e o teólogo da cúria papal interpretaram a decisão dos cardeais no sentido de uma aprovação tácita. A Civiltà Cattolica e L’Osservatore Romano negaram que houvesse aprovação:

A obra de Rosmini é simplesmente não proibida” (nota 9). A Sagrada Congregação do Índice, a mesma que “retirou da consideração” (absolveu) a obra de Rosmini em 1854, teve então - forçada pelas falsas interpretações dos rosminianos - que intervir pela primeira vez em 21 de junho de 1880 (e deste decreto a Nota do cardeal Ratzinger não faz menção): “A Sagrada Congregação do Índice … declarou que a fórmula ‘a retirar’ [dimittantur] significa somente que uma obra que é retirada não é proibida” (10). Assim, ficou evidente que a Congregação dava razão aos adversários de Rosmini e erro a seus discípulos. Mas estes insistiram. “O desacordo – escrevia a Civiltà Cattolica – não cessou, porque os discípulos de Rosmini entenderam esse ‘não proibidas’ como se, devido à sua qualidade e ortodoxia notórias, não poderiam ser proibidas e, portanto, que os filósofos e teólogos nada poderiam encontrar para censurá-las nem filosoficamente nem teologicamente”

(11). Não é essa a tese do cardeal Ratzinger: o decreto de 1854 garantiu a ortodoxia das obras rosminianas? Mas essa pretensão (e hoje a de Ratzinger e da sua Nota) foi mais uma vez desmentida pela Congregação do Índice, à qual foram feitas as seguintes perguntas: “1. Obras que foram denunciadas à Sagrada Congregação do Índice e que foram retiradas por ela do processo, ou que não foram proibidas, devem ser consideradas como isentas de todo erro contra a fé e os costumes?

2. Se a resposta for sim, as obras que foram retiradas pela Sagrada Congregação do Índice ou que não foram proibidas podem ser atacadas tanto filosoficamente quanto teologicamente sem incorrer no reproche [sic] de temeridade?

No dia 5 de dezembro de 1881, a Congregação do Índice respondeu negativamente à primeira pergunta (os livros retirados do processo não são, portanto, necessariamente isentos de todo erro contra a fé e os costumes) e afirmativamente à segunda (pode-se, assim, criticar as obras em questão sem temeridade, ou seja, sem estar em oposição ao decreto de 1854). O Papa Leão XIII aprovou essa resposta em 28 de dezembro (12). Também não há registro dessa segunda decisão da Congregação do Índice na Nota da Congregação para a Doutrina da Fé que, no entanto, afirma ter praticado uma “exame aprofundado”. O motivo é evidente: referir-se a esses dois decretos significaria destruir totalmente a falsa interpretação que se queria dar ao decreto de 1854: este não “atestou” [não] _a reconhecimento da ortodoxia de sua [de Rosmini] pensamento e de suas intenções” (n. 2), como se pretende fazer crer na Nota, mas concede apenas uma absolvição “por insuficiência de provas” a Rosmini (13).

Dessa forma, entre os dois Decretos, o de 1854 e o de 1887, não existe mesmo uma aparência de contradição intrínseca e objetiva, como pretende fazer crer a Nota: “sob Pio IX – escrevia na época a Civiltà Cattolica – ficou definido que mesmo nas obras de Rosmini retiradas da consideração poderiam existir proposições condenáveis, porque contrárias à fé e aos costumes, e que sob Leão XIII ficou definido que nelas existiriam de fato. Se eu digo que pode chover e, em seguida, chove efetivamente, onde estaria a contradição? A existência de algo não se opõe à sua possibilidade, ela a inclui” (l.c., p. 274).

Para a Nota, a culpa da condenação de 1887 reside no neotomismo. Mas a aversão à Escolástica é um sinal distintivo do modernismo

Segundo a Nota, como vimos, o Decreto de 1887 se enganou ao atribuir a Rosmini erros que ele não professava: “o sentido das propostas, assim entendido e condenado por esse mesmo Decreto, não pertence, na realidade, à posição autêntica de Rosmini” (n. 7). Mas a que se deve esse suposto erro? Para a Nota, o “primeiro fator” de “ordem histórico-cultural” que “coloca as premissas de um julgamento negativo em relação a uma posição filosófica e especulativa como a posição rosminiana” foi o “projeto de renovação dos estudos eclesiásticos promovido pela encíclica Æterni Patris (1879) de Leão XIII, na linha da fidelidade ao pensamento de Santo Tomás de Aquino”. O segundo fator foi a dificuldade de compreender o pensamento de Rosmini, agora falecido, por aqueles que o liam “na perspectiva neotomista” (n. 4). Sem dúvida, a condenação de Rosmini amadureceu no clima da restauração da teologia escolástica e tomista promovida por Leão XIII... Mas nos questionamos: que valor os redatores da Nota, e João Paulo II que a aprovou, atribuem aos muito numerosos documentos do Magistério a favor da escolástica e da doutrina de Santo Tomás? (14). Suponhamos que, como o Decreto Post obitum, eles também devem ser considerados como “ultrapassados”, uma vez que a Nota não parece reconhecer-lhes valor doutrinal e disciplinar para o tempo presente (caso contrário, os princípios tomistas que levaram à condenação de Rosmini em 1887 teriam levado novamente à sua condenação em 2001). Isso é particularmente grave porque não é “especialmente (...) contra o risco do ecletismo” como afirma a Nota (n. 4), que a Igreja recomendou a escolástica e o tomismo, mas também e especialmente contra os erros modernos, proclamando que o fato de se afastar deles traz um grave e perigoso prejuízo à Fé (nota 14). É principalmente ao modernismo que a filosofia escolástica e a doutrina tomista representam um obstáculo, como recordava Santo Pio X na Encíclica Pascendi: “três coisas, eles sentem bem, barram seu caminho: a filosofia escolástica, a autoridade dos Pais e a tradição, o magistério da Igreja. A essas três coisas eles fazem uma guerra feroz. (...)

E é um fato que, com o amor às novidades, vai sempre a par a aversão ao método escolástico; e não há indício mais seguro de que o gosto pelas doutrinas modernistas começa a aparecer em um espírito do que vê nascer o desgosto por este método”. A Nota, de um só golpe, declara “ultrapassados” os três obstáculos ao modernismo: escolástica, tradição e magistério.

Outras inexatitudes da Nota

Até agora, expusemos os erros mais graves da Nota sobre Rosmini. Contudo, ainda haveria muito a dizer: vamos abordar dois pontos.

a) O Decreto de 1887 teria sido apenas a expressão de uma preocupação!

O constrangimento da Nota transparece também na tentativa de minimizar a condenação (reconhecida como tal) de 1887. Ela é apresentada como “uma tomada de distância” (n. 4), um “julgamento negativo” (n. 4), expressando “as preocupações reais do Magistério” (n. 5) e “os motivos de preocupação e as dificuldades doutrinárias e prudenciais” (n. 7). A Nota afirma em particular que a profunda coerência do julgamento do Magistério em suas diversas intervenções sobre o assunto é verificada pelo fato de que este mesmo Decreto doutrinal Post obitum não contém um julgamento que concerne a uma negação formal de verdades de fé por parte do autor, mas trata, antes, do fato de que o sistema filosófico-teológico de Rosmini era considerado como insuficiente e inadequado para guardar e expor certas verdades da doutrina católica, reconhecidas e confessadas pelo próprio autor” (n. 5). No entanto, se lermos o Decreto Post obitum, não encontraremos nada disso. Se não diz explicitamente (mas isso não é excluído) que as proposições condenadas são heréticas, diz-se, no entanto, que elas não são conformes à verdade católica e que, como tais, são condenadas, proscritas e reprovadas: não há vestígio de insuficiência, inadequação ou simples dificuldade doutrinária, e ainda menos de caráter prudencial. Da mesma forma que exagera a importância da “absolvição” das obras feita em 1854, fazendo-a passar por um certificado de ortodoxia, a Nota diminui da mesma maneira a relevância da condenação de 1887, disfarçando-a como uma simples preocupação prudencial por uma doutrina insuficiente. Isso certamente não denota grande honestidade intelectual…

b) As interpretações heterodoxas do pensamento rosminiano seriam atribuídas a não-católicos

Ainda para atenuar a gravidade dos erros de Rosmini e a gravidade de sua condenação, a Nota atribui as “interpretações errôneas e desviantes do pensamento rosminiano” em oposição à fé católica “em uma perspectiva idealista, ontológica e subjetivista” aos “pensadores não católicos” e aos “setores intelectuais da cultura filosófica laicista, marcada pelo idealismo transcendental ou pelo idealismo lógico ou ontológico” (n. 5). Mas o autor do livro Le Rosminianisme, synthèse du Panthéisme et de l’Ontologisme, escrito e publicado em 1881 – com a aprovação do Mestre da sagrada Cúria (teólogo do Papa) – era católico ou não? É possível que católicos e não católicos tenham se enganado ao considerar a pensamento de Rosmini como heterodoxo?

As ambigüidades de Rosmini, ou como “embelezar a pílula”

A Nota admite, de fato, que o pensamento de Rosmini contém ambigüidades e equívocos. Mas se se acredita que assim é, como pode ser considerada a canonização de um pensador que permanece ambiguo e equívoco na Fé? Portanto, tem-se o receio de que essas concessões (o pensamento de Rosmini contém ambigüidades) tenham sido feitas para “embelezar a pílula”, para que logo sejam esquecidas e se tornem, posteriormente, “ultrapassadas”, enquanto permanecem na memória a reabilitação e a próxima beatificação de Rosmini.

Conclusão: um documento de importância aparentemente “menor”, na realidade grave e simbólico

Alguns pensarão que a questão que acabamos de abordar é de importância menor, e que, portanto, perdemos nosso tempo. Rosmini não era um ímpio, mas um sacerdote piedoso; muitos outros erros, muito mais graves do que a reabilitação de Rosmini, nos são continuamente infligidos. É verdade, existem fatos e documentos que em si são mais graves e escandalosos; mas – embora este seja um documento de importância aparentemente menor – ele continua a representar uma realidade grave e sintomática do aniquilamento progressivo e sorrateiro do magistério da Igreja.

Após o Decreto Post obitum, qual será a próxima vítima do “aggiornamento”?

Notas

  1. Mgr Umberto Benigni, Storia sociale della Chiesa, vol. II, tomo I, p. 216, Vallardi, Milão 1912.

  2. Heinrich Denzinger, Símbolos e definições da Fé católica..., editado por Peter Hünermann para a edição original e por Joseph Hoffman para a edição francesa, Ed. do Cerf, Paris 1996, p. 513.

  3. “As dificuldades doutrinárias em relação aos escritos de nosso Pai Fundador podem ser consideradas como superadas”, carta da Postulação da Causa de Beatificação de Rosmini datada de 1º de julho de 2001, assinada pelo Preposto geral do Instituto da Caridade, pela Superiora geral das Irmãs da Providência, pelo Postulador Geral e pelo Vice-Postulador da Causa.

  4. “O Soberano Pontífice João Paulo II, durante a audiência de 8 de junho de 2001, concedida ao subscrito cardeal Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, aprovou esta Nota sobre o valor dos decretos doutrinais concernentes ao pensamento e às obras do sacerdote Antonio Rosmini Serbati, decidida em sessão ordinária, e ordenou sua publicação.”

  5. Nossa tradução francesa do decreto Post obitum publicado por La Civiltà Cattolica, ano XXXIX, vol. X, série XIII, 1888, pp. 63-64.

  6. Os Padres de La Civiltà Cattolica também não deixaram de ressaltar esse ponto do Decreto de condenação de Rosmini: “O mesmo conselho [dos Cardeais] afirma que teve conhecimento do sentido em que Rosmini empregou as proposições em questão, e julgou que é no sentido mesmo empregado pelo autor que elas deveriam ser reprovadas, condenadas e proscritas; e é nesse sentido que ela as reprova, condena e proscreve, propositiones quæ sequuntur, in proprio auctoris sensu reprobandas, damnandas, ac proscribendas esse iudicaverit, prout hoc generali decreto reprobat, damnat, proscribit” (La Civiltà Cattolica, ano 39, vol. X, série 13, 1888, pp. 269-270: Soluzione della questione rosminiana [Solução da questão rosminiana]).

  7. Certamente, não queremos negar a existência de certa influência do contexto histórico sobre os textos doutrinários em geral, e, neste caso particular da condenação de Rosmini, a influência da promoção do tomismo por Leão XIII, assim como não queremos negar a utilidade de conhecer o contexto histórico de um documento para sua melhor compreensão. Mas negamos categoricamente que o exame do contexto histórico e cultural de um documento do Magistério (ou da Escritura Sagrada) possa autorizar a considerá-lo como “ultrapassado” em outro contexto, como se as fórmulas doutrinárias e/ou dogmáticas não tivessem um valor em si, e fossem apenas um produto sociocultural de uma época dada. A posição insinuada pela Nota destrói, de fato, radicalmente o próprio conceito e a permanência do Magistério eclesiástico (e mesmo da Revelação divina).

  8. O fato é autêntico, e eu o encontrei consultando os velhos números de La Civiltà Cattolica, “Soluzione della questione rosminiana”, l.c., p. 273.

  9. Denzinger, op. cit. pp. 703-704.

  10. ASS 13 [1880/81] 92. Denzinger, op. cit., p. 704.

  11. La Civiltà Cattolica, “Solução da questão rosminiana”, l.c., p. 261.

  12. Denzinger, nn. 3154-3155; ASS 14 [1981/82] 288.

  13. É claro que, se sua culpabilidade tivesse sido demonstrada com certeza, ele deveria ser condenado; se sua culpabilidade não tivesse sido demonstrada, ele deveria ser absolvido, ou seja, solto; (…) A certeza prévia é necessária à condenação, porque é uma regra de direito que nemo præsumitur reus nisi legitime probetur; o que vale para qualquer tribunal.” Leia a esse respeito toda a p. 260 de La Civiltà Cattolica, l.c.

  14. Por exemplo, Leão XIII, Enc. Æterni Patris, DS 3139-3140 e a carta ao ministro geral da OFM de 27 nov. 1878; S. Pio X, Enc. Pascendi, m.p. Sacrorum antistitum, m.p. Doctoris angelici, e as 24 Teses, DS 3601-3624; Código de Direito Canônico, cann. 580§1 e 1366§2; Pio XI, c.ap. Deus scientiarum Dominus e Enc. Studiorum ducem, DS 3665-3667; Pio XII, Enc.