Donato e “A Liturgia da Missa Segundo o Concílio Vaticano II”
Transcrevemos abaixo os pontos críticos do livro “A Liturgia da Missa Segundo o Concílio Vaticano II” escrito por Donato.
A LITURGIA DA MISSA
SEGUNDO O CONCÍLIO
VATICANO II
I
Para um mundo cada vez mais irreversivelmente comprometido com o progresso material em evidente detrimento e abandono das realidades eternas, a decisão de convocar o Concílio Vaticano II, vigésimo primeiro da série dos Concílios Ecumênicos, foi anunciada em 1959, no dia da festa da conversão do Apóstolo São Paulo. Segundo São Bernardo, a data não poderia ter sido mais sugestiva:
"A Igreja faz solene memória desta conversão",
diz São Bernardo,
"para que ninguém perca a esperança, por maiores que sejam os seus extravios, ao ouvir como Saulo, ainda arquitetando ameaças e mortes contra os discípulos do Senhor, foi convertido subitamente em vaso de eleição. Quem, daqui para a frente,
oprimido pelo peso de suas iniqüidades, poderá dizer que não pode mais levantar-se a uma vida santa, ao ver Saulo, no mesmo caminho, sedento de sangue, de perseguidor crudelíssimo transformar-se em pregador fidelíssimo? Nesta única conversão manifesta-se com todo o esplendor a grandeza da misericórdia de Deus e a eficácia de sua graça". PL 183, 359
Tão repentina como a conversão de São Paulo foi também a convocação do Concílio Vaticano II. Nesta data Sua Santidade, o Papa João XXIII, estava na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, junto ao local onde vinte séculos antes havia sido martirizado o apóstolo São Paulo. Junto com ele estavam diversos cardeais. Subitamente veio-lhe uma inspiração. Não nomeou nenhuma comissão para estudar previamente o assunto, não consultou nenhum especialista, não fêz perguntas a ninguém, nem estudou o problema longamente por si próprio. Naquele mesmo local, dali a poucos momentos, anunciou aos cardeais o seu firme propósito de convocar o Concílio Vaticano II.
Mais tarde João XXIII referiu-se várias vezes a este fato:
"A idéia do Concílio não amadureceu como fruto de prolongada consideração, mas como o florir espontâneo de uma inesperada primavera". Alocução 9/8/59
"Consideramos inspiração do Altíssimo a idéia de convocar um Concílio Ecumênico, que desde o início de nosso pontificado
se apresentou à nossa mente como o florir de uma inesperada primavera". M.P.Supernu Dei Nutu,5/6/60
"A idéia mal surgiu em nossa mente e logo a comunicamos com fraternal confiança aos senhores cardeais, lá na Basílica Ostiense de São Paulo Fora dos Muros, junto ao sepulcro do Apóstolo dos Gentios, na festa comemorativa de sua conversão,
a 25 de janeiro de 1959". Alocução 20/6/62
A decisão de convocar o Concílio Ecumênico, portanto, não necessitou de tempo para amadurecer na alma do Pontífice. Surgiu, consumou-se e foi comunicada à Igreja em questão de poucos momentos. Muito diversa, entretanto, era a natureza dos motivos que levaram João XXIII a esta convocação. Os concílios ecumênicos nunca foram assembléias que se reunissem a intervalos regulares; todos os vinte concílios anteriores aos Vaticano II haviam sido convocados por motivos graves e excepcionais. É, portanto, uma questão importante saber que problemas João XXIII tinha em mente, tão graves e excepcionais, a ponto de fazê-lo julgar necessária a convocação de um concílio ecumênico.
O próprio João XXIII respondeu a esta pergunta no discurso que fêz aos cardeais naquele 25 de janeiro de 1959, ao anunciar pela primeira vez o Concílio. Não há melhor exposição do que suas próprias palavras:
"Se o bispo de Roma estende o seu olhar sobre o mundo inteiro, de cujo governo espiritual foi feito responsável pela divina missão que lhe foi confiada, que espetáculo triste não contempla diante do abuso e do comprometimento da liberdade humana que, não conhecendo os céus abertos e recusando-se à fé em Cristo Filho de Deus, redentor do mundo e fundador da Santa Igreja, volta-se todo em busca dos pretensos bens da terra, sob a tentação e a atração das vantagens da ordem material que o progresso da técnica moderna engrandece e exalta.
Todo este progresso, enquanto distrai o homem da procura dos bens superiores, debilita as energias do espírito, com grave prejuízo daquilo que constitui a força de resistência da Igreja e de seus filhos aos erros, erros que, no curso da história do Cristianismo, sempre levaram à decadência espiritual e moral e à ruína das nações.
Esta verificação desperta no coração do humilde sacerdote que a divina providência conduziu a esta altura do Sumo Pontificado uma resolução decidida para a evocação de algumas formas antigas de afirmações doutrinárias e de sábias ordenações da disciplina eclesiástica que, na história da Igreja, em épocas de renovação, deram frutos de extraordinária eficácia para a clareza do pensamento e para o avivamento da chama do fervor cristão.
Veneráveis irmãos e diletos filhos!
Pronunciamos diante de vós, por certo tremendo um pouco de emoção, mas ao mesmo tempo com humilde resolução de propósito, o nome e a proposta de celebração de um Concílio Ecumênico para a Igreja Universal".
Este texto é muito importante, porque mostra que João XXIII, ao ter convocado o Concílio Vaticano II, não estava pensando, pelo menos de modo principal, na unidade dos cristãos, na reforma litúrgica, nem em outros temas específicos. Ele estava na realidade aflito diante do triste espetáculo do homem contemporâneo,
"distraído da busca dos bens superiores, envolvido com os bens da terra, que o progresso da técnica engrandece e exalta".
Não era a primeira vez que um papa apontava a preocupação da Igreja perante um fato tão grave e para o qual a própria humanidade nele envolvida vinha perdendo, a cada geração, cada vez mais a capacidade de apreciá-lo em seu justo significado. Na sua mensagem de Natal de 1953, Pio XII havia abordado este problema com a mesma clareza de proporções que em 1959 levaria João XXIII a convocar o Concílio:
"O moderno progresso técnico, em suas múltiplas aplicações, com a absoluta confiança que infunde e com as inexauríveis possibilidades que promete, estende diante dos olhos do homem de nossa época uma visão tão vasta que para muitos passa a ser confundida com o próprio infinito",
disse na época Pio XII.
"A conseqüência deste fato é que os homens passam a atribuir a estas realidades uma autonomia impossível, e, não obstante isso, esta suposta autonomia passa a se constituir no fundamento de uma concepção de vida e do mundo que consiste em:
- Considerar como o mais alto valor do homem e da vida humana extrair o maior proveito possível das forças e dos elementos naturais; - Fixar como objetivos preferenciais a todas as demais atividades humanas o desenvolvimento de novas tecnologias de produção de bens materiais;
- Colocar nestes processos a perfeição da cultura e da felicidade terrena.
Qualquer um poderá ver, porém, que um mundo conduzido desta maneira não pode mais dizer-se iluminado por aquela luz, nem possuído daquela vida que o Verbo de Deus, esplendor da glória divina, fazendo-se homem, veio trazer aos homens". Alocução de Natal 1953
No Natal de 1961 João XXIII retomou novamente o mesmo assunto e, na Bula Humanae Salutis voltou a expor as causas da convocação do Concílio Ecumênico, as mesmas que havia apontado no dia em que, três anos antes, falou pela primeira vez sobre o assunto:
"A Igreja assiste hoje a grave crise da sociedade. Enquanto para a humanidade surge uma nova era, obrigações de uma gravidade e amplitude imensas pesam sobre a Igreja, como nas épocas mais trágicas de sua história. A sociedade moderna se caracteriza por um grande progresso material a que não corresponde igual progresso no campo moral. Daí enfraquecer-se o anseio pelos valores do espírito e crescer o impulso para a procura quase exclusiva dos gozos terrenos, que o avanço da técnica põe, com tanta facilidade, ao alcance de todos. Diante do espetáculo de um mundo que se revela em tão grave estado de indigência espiritual, acolhendo como vinda do alto uma voz íntima de nosso espírito, julgamos estar maduro o tempo para oferecermos à Igreja Católica e ao mundo o dom de um novo Concílio Ecumênico. Ao mundo perplexo, confuso e ansioso sob a contínua ameaça de novos e assustadores conflitos, o próximo Concílio é chamado a suscitar pensamentos e propósitos de paz, de uma paz que pode e deve vir sobretudo das realidades espirituais e sobrenaturais da inteligência e da consciência humana".
As palavras de João XXIII são particularmente claras: o que preocupa o Pontífice é
"o gravíssimo estado de indigência espiritual da humanidade, por cujos bens ela já nem anseia senão muito debilmente, enfraquecida pela procura quase exclusiva dos gozos terrenos que o progresso põe com grande facilidade ao alcance de todos".
No pensamento de João XXIII, esta foi a preocupação fundamental por trás de seu propósito de convocar o Vaticano II. Resta, porém, perguntar ainda o que ele esperava concretamente que o Vaticano II fizesse para responder a tão grave problema. Vimos como foi convocado o Concílio; vimos também o motivo pelo qual foi convocado. O que se esperava, porém, que ele fizesse?
João XXIII quis ser claro quanto ao que pensava a este respeito. Repetidas vezes, em vários pronunciamentos que antecederam o Concílio, disse o que esperava que o Concílio fizesse e como os cristãos deveriam preparar-se para a celebração deste evento.
No dia 13 de setembro de 1960 ele explicou em linhas gerais qual deveria ser o objetivo do Concílio Ecumênico. Disse então João XXIII:
"A obra do Concílio Ecumênico é verdadeiramente concebida para restituir ao semblante da Igreja de Cristo todo o esplendor dos seus traços mais simples e mais puros das suas origens, a fim de apresentá-la tal como o seu divino fundador a criou".
No dia seguinte, 14 de novembro, João XXIII explicava que, sendo estes os objetivos do Concílio, ele não estava sendo convocado para discutir algum ou alguns pontos específicos da doutrina cristã, como havia sido o caso dos vinte concílios anteriores. Ao contrário, a problemática do mundo contemporâneo era tal que exigia de um Concílio Ecumênico uma tarefa que não havia sido exigida dos anteriores:
"Na época moderna",
disse João XXIII em 14 de novembro,
"num mundo de fisionomia profundamente mudada, no meio das situações e dos perigos da procura quase exclusiva dos bens materiais, no esquecimento ou no enfraquecimento dos princípios da ordem espiritual e sobrenatural que caracterizavam a penetração e a extensão da civilização cristã através dos séculos, mais do que tal ou tal ponto de doutrina, trata-se de repor em todo o seu valor e em toda a sua luz a substância do pensamento e da vida humana e cristã, de que a Igreja é depositária e mestra pelos séculos".
Segundo esta passagem, pois, o objetivo do Concílio não seria discutir um ou outro ponto de doutrina, mas sim
"repor em toda a sua luz a substância do pensamento e da vida cristã".
Em outras ocasiões ele chegou a explicar mais concretamente o que isto queria dizer. Talvez o momento em que o fêz mais claramente foi na alocução de 20 de junho de 1961, quando afirmou que
"O sentido do Concílio Ecumênico por nós pensado desde o princípio é, em poucas palavras e concretamente:
- Fazer com que o clero se revista de novo fulgor de santidade;
- que o povo seja eficazmente instruído nas verdades da fé e da moral cristã;
- que as novas gerações sejam instruídas retamente;
- que se cultive o apostolado social;
- e que os cristãos tenham um coração missionário".
Na intenção de João XXIII, portanto, os principais objetivos do Concílio Ecumênico seriam, diante da materialidade do mundo moderno, encontrar os meios para
"revestir o clero de novo fulgor de santidade e instruir o povo eficazmente nas verdades da fé e da moral cristã".
É importante frisar isto, pois é em torno deste propósito que iremos analisar o que aconteceu no Concílio em relação à reforma litúrgica. João XXIII nutria grandes esperanças de um revigoramento espiritual da Igreja em face ao Concílio Vaticano II. Na exortação apostólica de 6 de janeiro de 1962 ele afirma que
"Todos nós estamos na expectativa de uma nova era, fundada sobre a fidelidade ao patrimônio antigo, que se abra às maravilhas de um verdadeiro progresso espiritual".
E ainda:
"Nestes últimos meses nosso coração tem se derramado em documentos múltiplos, destinados a preparar o clima espiritual do Concílio Ecumênico que se aproxima. A todos convidamos para uma oração mais acentuada, que dilate os horizontes do fervor religioso e empenhe em maior santidade de vida" Alocução 28/4/62
"É à luz deste próximo Concílio que desejamos orientar e incentivar a atitude de nossos filhos. Todos os que são eclesiásticos sabem por que vias se ascende à familiaridade com o Senhor, fonte de graça e de santificação. A eles foi feito o convite de entesourarem as riquezas que se ocultam no cotidiano sacrifício eucarístico do altar e, mais recentemente, à recitação digna, atenta e devota deste pomo sacro e encantador que é o breviário. À oração mais intensa, em preparação ansiosa dos grandes prodígios da graça celeste, deve-se juntar um cuidado atento e delicado da vida espiritual. Quem é bom cristão é bom entendedor. Poucas palavras resumem toda a substância da grande transformação que esperamos para a pessoa e para a família de cada um, e para a vida social. Interrogue cada um de vós a si mesmo se o ouvido do coração ouve estas palavras:
- desejar a pátria celeste,
- conter os desejos da carne,
- declinar a glória do mundo, - não ambicionar a riqueza alheia,
- dispender as próprias riquezas em socorro da pobreza alheia.
Com estas indicações ficamos entendidos: além da oração prosseguida mais viva e vibrante, estes cinco avisos apostólicos são importantes para assimilar a fisionomia que deverão assumir os bons católicos durante a época do Concílio Ecumênico Vaticano" Carta Romanos 8/4/62
II
Em todos os textos que citamos, João XXIII não se refere nunca à reforma litúrgica como objetivo prioritário do Concílio Vaticano II. É certo que fala da liturgia no último texto, a carta aos romanos de abril de 1962, mas aí não se trata do um objetivo do Concílio, e sim da forma como ele desejava que os cristãos se preparassem para o evento.
As orientações de João XXIII sobre os objetivos do Concílio Ecumênico eram mais genéricas: "revestir o clero de novo fulgor de santidade", "instruir o povo nas verdades da fé e da moral", sem que se mencionasse nelas nenhum problema litúrgico.
Em 5 de junho de 1960 João XXIII instituía onze comissões preparatórias para estudar os diversos problemas da Igreja no mundo moderno, sem dar propriamente prioridade a nenhuma. Havia uma Comissão Teológica, para examinar os problemas relativos à Sagrada Escritura, tradição, fé e costumes; e outras para os bispos e governo das dioceses, disciplina do clero, religiosos, sacramentos, liturgia, seminários, Igreja Oriental, missões, apostolado dos leigos, meios de comunicação. A liturgia estava aí sim, mas como um assunto entre todos os assuntos.
Entretanto, - e é importante salientar este fato à luz das orientações gerais de João XXIII para o Concílio -, ao ser iniciado o Vaticano II em outubro de 1962, verificou-se que a liturgia era na realidade um assunto prioritário, o primeiro assunto a ser discutido e, pode-se dizer também, o único assunto a ser discutido no Concílio durante o pontificado de João XXIII que então chegava ao fim. Dessa discussão resultou a promulgação, no início do pontificado de Paulo VI, do primeiro documento do Concílio, a Constituição Sacrossantum Concilium, versando sobre a liturgia. Obteve a surpreendente votação de 2147 votos contra 4, além de ter sido, dentre todos os documentos que iriam se seguir, o que mais facilmente conseguiu ser aprovado por parte dos padres conciliares. Foi como se eles já soubessem de antemão por um consenso geral que, se se deviam buscar os objetivos de João XXIII, a liturgia deveria ter prioridade e, ademais, como se também houvesse um certo acordo a respeito do sentido em que ela deveria ser prioritária.
Esta orientação que a liturgia ganhou dentro dos objetivos traçados por João XXIII para o Concílio Vaticano II não vinha do próprio João XXIII, pelo menos como de sua principal fonte de inspiração. De onde veio e que sentido os padres conciliares quiseram dar a ela durante o Concílio e após o mesmo é o que constitui o tema deste livro.
Para isto, porém, teremos que tratar o assunto desde as suas raízes. Já que a Missa é o centro da liturgia, e a Missa é um sacrifício, deveremos tratar primeiramente da natureza do sacrifício em geral, depois de como ele entrou no Cristianismo e as intervenções do Magistério da Igreja em relação à missa até antes do Vaticano II. Esperamos com isto dar uma contribuição à obra de santificação que o Concílio começou a empreender para o homem de hoje que, se ainda não produziu todos os frutos que se esperavam, isto se deve em parte à pouca compreensão que os cristãos ainda têm de uma obra tão grandiosa.
XI
Os apelos e a doutrina de Pio XII contidos na Encíclica Mediator Dei, dirigidos a todos os bispos do mundo, não podiam ficar sem resposta. Não ficaram sem resposta. Conforme veremos adiante, esta resposta concretizou-se no Concílio Vaticano II, e de um modo que, ao contrário do que muita gente hoje está propensa a pensar, o Concílio Vaticano II não representou uma ruptura com a tradição, mas, ao contrário, foi na verdade um fiel continuador desta tradição, e de uma tradição que, conforme viemos mostrando, vem mesmo de muito antes da fundação da própria Igreja.
O anúncio da convocação do Concílio Vaticano II foi dado por João XXIII em janeiro de 1959. Iniciados os trabalhos preparatórios, ficou logo evidente que a matéria a ser tratada seria tão ou mais vasta que a do próprio Concílio de Trento. Entretanto, aberto o Concílio, de uma pauta tão vasta e problemática, o primeiro assunto a ser apresentado à discussão foi precisamente a questão litúrgica. Quando, anos depois, foi encerrado o Concílio, verificou-se que o documento que daí havia resultado, a Constituição Sacrossantum Concilium sobre a Sagrada Liturgia, havia sido, de todos os documentos do Vaticano II, o que menos dificuldades havia causado. Foi o primeiro a ficar pronto e o primeiro a ser aprovado, pela significativa votação sem abstenções de 2147 votos contra 4. A explicação é que na realidade a constituição continuava a tradição de perto, mais de perto do que habitualmente se imagina; e não seria mesmo concebível que se ela representasse a destruição da tradição cristã tivesse havido uma votação tão unânime em tais circunstâncias.
Esteve presenta ao Concílio um teólogo bem conhecido, atualmente bispo da Igreja, que aproveitou a ocasião para escrever a crônica do Concílio Vaticano II, dia por dia. Esta crônica foi posteriormente publicada em cinco volumes, com o título de Concílio Vaticano II, de frei Boaventura Kopplenburg. Nela o cronista procurou produzir um relato tanto quanto possível objetivo do que vinha acontecendo, mas apresentando cada notícia tal como se mostrava ao observador no próprio dia do fato, e não como se lhe pareceu posteriormente, após o término do Concílio. Podemos, assim, seguir novamente ainda hoje o Concílio como se lá estivéssemos, participando dos mesmos dilemas e esperanças por que passaram os padres conciliares.
Receberam o nome de Congregações Gerais, durante o Concílio, as reuniões plenárias dos padres conciliares. Aberto o Concílio, as três primeiras congregações gerais, havidas nos dias 13, 16 e 20 de outubro de 1962 trataram das eleições das comissões de trabalho e dois dias depois começou o Concílio propriamente dito, na quarta congregação geral. O primeiro tema apresentado aos padres conciliares foi a questão litúrgica, debatida da quarta à décima oitava congregação geral, de 22 de outubro a 13 de novembro.
Nosso cronista participou dos trabalhos das comissões preparatórias do Concílio e acompanhou depois o próprio Concílio na qualidade de perito. Vamos recolher aqui alguma coisa de suas impressões:
"Reuniu-se esta manhã, às nove horas, a Quarta Congregação Geral do vigésimo Concílio Ecumênico. Foi iniciado o estudo da Constituição sobre a Sagrada Liturgia que, como já foi anunciado, será o primeiro assunto da discussão propriamente conciliar.
A Constituição incluirá a necessidade de uma sadia educação para a piedade litúrgica. A escolha do esquema `De Sacra Liturgia', como o primeiro assunto a ser tratado nas sessões conciliares, de preferência a outros temas talvez de maior interesse para a opinião pública mundial, compreende-se facilmente se se refletir sobre a finalidade do Concílio. Pois, segundo o pensamento de João XXIII, pretende-se antes de mais nada uma renovação interna da Igreja. Ora, a obra da Redenção, predita por Deus nas Sagradas Escrituras e realizada por Cristo, é continuada pela Igreja principalmente mediante a Liturgia, com o Sacrifício da Cruz perpetuamente renovado sobre o altar".
"Hoje observamos nas celebrações litúrgicas que uma é a oração do sacerdote oficiante e outra, totalmente outra, é a oração do fiel assistente. Não sintonizam.
Enquanto o sacerdote recita belas orações litúrgicas em uma língua que os fiéis não compreendem, os fiéis se defendem rezando o terço. A maioria dos que o assistem o fazem mais com a simples consciência de cumprir um dever do que para buscar doutrina e alimento na mesa da palavra e do Corpo do Senhor. Esta será a primeira vez na história da Igreja que um Concílio Ecumênico, estando literalmente presentes todos os bispos do mundo católico, haverá de tratar ex professo da vida litúrgica não só dos sacerdotes mas, e sobretudo, dos fiéis".
"No debate emergiram cada vez mais claramente alguns grandes princípios que devem orientar a reforma litúrgica. O primeiro é que a principal fonte do verdadeiro espírito cristão está na participação ativa dos sacrossantos Mistérios da Igreja. São as mesmas palavras de São Pio X contidas no Motu Proprio Tra Le Sollecitudini de 1903".
"Foi repetidamente sublinhado que à tarefa agora é favorecer e promover a liturgia, e não fazer novos pronunciamentos dogmáticos'.
Isto é plenamente conforme o discurso de abertura de João XXIII pronunciado na Primeira Congregação Geral:
'O ponto saliente deste Concílio não é a discussão de um ou outro artigo da doutrina fundamental da Igreja, repetindo ou proclamando o ensino dos padres e dos teólogos antigos e modernos, pois isto supõe-se bem presente e familiar ao nosso espírito, e para isto não haveria necessidade de um novo Concílio'".
"O desejo dos padres, repetidas vezes expresso, de facilitar a participação no Santo Sacrifício da Missa e a consciência de um sacerdócio comum a todos os fiéis em virtude do caráter do Batismo e da Crisma, foi uma das características não somente das intervenções da Décima Primeira Congregação Geral, mas de todo o movimento litúrgico".
Estas palavras, redigidas por um perito conciliar fazendo a crônica das sessões plenárias ainda durante os debates preliminares à Constituição sobre a Sagrada Liturgia são muito importantes para se entender porque o texto final aprovado é pobre, quando comparado aos textos anteriores do Magistério da Igreja, em declarações dogmáticas. Isto fêz com que alguns que leram a constituição posteriormente achassem o texto suspeito e que isto teria acontecido devido a intenções escusas; mas deve-se dizer, ao contrário, à luz de todo o conjunto dos fatos, que tal se deu apenas porque desta vez o Magistério da Igreja interveio em alguma coisa onde não havia nenhuma questão controvertida e ser dirimida; o objetivo do documento não era dirimir nada, mas oferecer normas para fomentar a piedade litúrgica dos fiéis.
XII
Aprovada a Constituição sobre a Sagrada Liturgia, suas primeiras palavras, que são também as primeiras palavras do Concílio Ecumênico, visto ter sido este o primeiro dos documentos aprovados, considerando tudo quanto viemos dizendo, não podiam deixar de ser outras:
"O Sacrossanto Concílio propõe-se a fomentar sempre mais a vida cristã entre os fiéis: por isso julga ser seu dever cuidar de modo especial da reforma e do incremento da Liturgia".
Vem em seguida uma exposição sobre a natureza da Liturgia, bastante curta quando comparada com a extensão total do documento. Daí a constituição passa diretamente ao tema a que se propôs, o de estabelecer as normas para fomentar a piedade litúrgica dos fiéis, objeto de todo o restante do texto. "A Sagrada Liturgia", diz a Constituição Sacrossantum Concilium,
"não esgota toda a ação da Igreja". S.C. 9
"Todavia, a Liturgia é o cume para o qual tende toda a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, é a fonte de onde emana toda a sua força". S.C. 10
"Deseja ardentemente a Mãe Igreja",
continua o documento,
"que todos os fiéis sejam levados àquela plena, cônscia e ativa participação das celebrações litúrgicas, que a própria natureza da liturgia exige e à qual o povo cristão, sacerdócio régio, tem direito e obrigação". S.C. 14
"Não havendo, porém, esperança alguma que tal possa ocorrer se os próprios pastores de almas não estiverem antes profundamente imbuídos do espírito e da força da Liturgia e dela não se tornarem mestres, faz-se, por isso, muitíssimo necessário que antes de tudo se cuide da formação litúrgica do clero". S.C. 14
Diante disso a constituição sobre a liturgia passa a estabelecer normas para a formação de professores de liturgia para o clero (S.C. 15), para a formação do clero que será feita através destes professores (S.C. 16-17), para fomentar a vida litúrgica dos sacerdotes já formados (S.C. 18), para a instrução litúrgica do povo (S.C. 19).
Mas o documento estabelece que não é suficiente apenas uma renovação da formação litúrgica do clero e dos leigos:
"A Santa Mãe Igreja deseja com empenho cuidar (também) da reforma geral de sua Liturgia, a fim de que o povo cristão na Sagrada Liturgia consiga com mais segurança graças mais abundantes. Pois a Liturgia consta de uma parte imutável, divinamente instituída, e de uma parte suscetível de mudanças. Estas, com o correr dos tempos, podem ou mesmo devem variar, se se tornarem menos aptas. Com esta reforma o texto e as cerimônias devem ordenar-se de tal modo que de fato exprimam mais claramente as coisas que elas significam e o povo cristão possa compreendê-las facilmente e participar plena e ativamente". S.C. 21
"A fim de que se mantenha a sã tradição, sempre preceda uma cuidadosa investigação teológica, histórica e pastoral de cada uma das partes da Liturgia a serem reformadas. Não se façam inovações, a não ser que a verdadeira e certa utilidade da Igreja o exija e tomando a devida cautela de que as novas formas brotem como que organicamente daquelas que já existiam". S.C. 23
Mesmo assim, a
"regulamentação da Sagrada Liturgia é de competência exclusiva da autoridade da Santa Sé Apostólica e, segundo as normas do direito, do Bispo. Jamais algum outro, ainda que sacerdote, tire ou mude por conta própria qualquer coisa à Liturgia". S.C. 22
"As cerimônias resplandeçam de nobre simplicidade, sejam transparentes por sua brevidade e sejam acomodadas à compreensão dos fiéis e de tal maneira que não necessitem de muitas explicações para serem compreendidas". S.C. 34
Será permitido, dentro deste espírito,
"dar um lugar mais amplo ao vernáculo no lugar do Latim, conforme as normas que serão posteriormente estabelecidas". S.C. 36
"A preocupação de fomentar e reformar a Sagrada Liturgia é tida com razão como sinal dos desígnios providenciais de Deus sobre nossa época, como passagem do Espírito Santo em sua Igreja". S.C. 43
"Na última ceia, na noite em que foi entregue, nosso Salvador instituíu o Sacrifício Eucarístico de seu Corpo e Sangue. Por ele perpetua pelos séculos, até que volte, o sacrifício da Cruz, confiando à sua Igreja o memorial de sua morte e ressurreição; sacramento de piedade, sinal de unidade, vínculo da caridade, banquete pascal, em que Cristo nos é comunicado em alimento, o espírito é repleto de graça e nos é dado o penhor da futura glória". S.C. 47
"Por isso a Igreja com diligente solicitude zela para que os fiéis não assistam a este mistério da fé como estranhos ou expectadores mudos, mas cuida para que participem consciente, piedosa e ativamente da ação sagrada, sejam instruídos pela Palavra de Deus, saciados pela mesa do Corpo do Senhor e dêem graças a Deus. E aprendam a oferecer-se a si próprios oferecendo a hóstia imaculada, não só pelas mãos do sacerdote mas também juntamente com ele e assim tendo a Cristo como mediador, dia a dia se aperfeiçoem na união com Deus e entre si, para que, finalmente, Deus seja tudo em todos". S.C. 48
"Para que o Sacrifício da Missa alcance plena eficácia pastoral, também quanto à forma das cerimônias, o Sacrossanto Concílio determina ..." S.C. 49
"... que o ordinário da Missa seja revisto de tal forma que apareça claramente a índole própria de cada uma das partes, bem como a sua mútua conexão, e facilite a participação piedosa e ativa dos fiéis. As cerimônias sejam simplificadas, conservando cuidadosamente a substância". S.C. 50
"Nas missas celebradas com o povo, pode-se dar conveniente lugar à língua vernácula". S.C. 54
"Vivamente recomenda-se aquela participação mais perfeita da Missa, pela qual os fiéis, depois da comunhão do sacerdote, comunguem o Corpo do Senhor do mesmo Sacrifício". S.C. 55
"Todo o conjunto e cada um dos pontos que foram enunciados nesta constituição agradaram aos Padres do Sacrossanto Concílio. E nós, pela autoridade apostólica por Cristo a nós confiada, juntamente com os veneráveis padres, no Espírito Santo os aprovamos, decretamos e estatuímos. Ainda ordenamos que o que foi assim determinado em Concílio seja promulgado para a Glória de Deus.
4 de dezembro 1963
Paulo, Bispo da Igreja Católica".