O GENERAL FRANCO E A REVOLUÇÃO de 1976
Como a Hidra de Lerna, a Revolução possui cem cabeças e cem faces, muitas vezes muito diferentes, ou mesmo opostas, a ponto de ser por vezes muito difícil reconhecê-las como pertencentes a um mesmo corpo.
O problema, já complexo no plano das doutrinas, torna-se quase inextricável quando se aborda o domínio da ação, nomeadamente política; a este nível, de fato, atua toda uma série de restrições que levam facilmente a esquecer ou, pelo menos, a colocar entre parênteses os princípios iniciais.
Por este motivo, a condução da ação contrarrevolucionária afigura-se muito delicada, e o exemplo da Espanha e de Portugal, onde a experiência terminou como se sabe, é rico em lições.
É, contudo, um domínio ainda pouco explorado, e mesmo praticamente intocado. Valorizamos ainda mais poder apresentar-vos este artigo escrito por um dos nossos correspondentes estrangeiros, que revela alguns aspectos desconhecidos da situação espanhola nos últimos quarenta anos.
As revoluções não acontecem num dia. Este axioma permanece verdadeiro, quer se trate da Revolução Francesa (1789), da Russa (1917) ou da Portuguesa (1974). E certamente assim é com o que podemos chamar a "revolução" espanhola de 1976. Não se pode atribuir o rápido triunfo da democracia, do parlamentarismo e do liberalismo na Espanha após a morte do General Francisco Franco (novembro de 1975) apenas a Adolfo Suárez ou apenas ao Rei Juan Carlos. As suas causas são mais profundas e a sua história remonta a tempos mais antigos.
É ao próprio General Franco que se deve imputar, em grande parte, a culpa pela situação atual da Espanha. Apesar da alta reputação de que gozava em todos os países entre os católicos tradicionais, um exame mais rigoroso da recente história da Espanha fará surgir uma certa perplexidade em relação a este "herói" católico. A tentação de encontrar uma explicação atenuadora para as falhas mais recentes e mais evidentes ("Ele morreu traído", diz-se, e assim o fardo das responsabilidades pelos últimos anos é convenientemente jogado para outros ombros) cai por terra, uma vez que, com isso, se omite a explicação das importantíssimas decisões dos anos 40 e 50 que moldaram a política espanhola até hoje.
Propomo-nos aqui elaborar uma lista de eventos recentes da história espanhola, com os quais os tradicionalistas estão, sem dúvida, pouco familiarizados, mas dos quais se deve ter em conta para rever a sua avaliação do período franquista. Esta lista está longe de ser completa; muitas coisas não figuram nela – por exemplo, a importância do Opus Dei na política espanhola, a perseguição aos movimentos tradicionalistas, etc. – porque as informações de fonte segura ainda são escassas. No entanto, os fatos aqui reunidos permanecem muito instrutivos.
1 - O primeiro plano para o levantamento militar de 1936, um mês antes que a insurreição ocorresse (plano aprovado pelos generais Mola, Franco, etc., em 5 de junho de 1936), continha os seguintes pontos: "Assim que o movimento nacional triunfar, será constituído um diretório do qual farão parte um presidente e quatro outros representantes do exército. Estes últimos serão encarregados dos ministérios da guerra, da marinha, do governo e das comunicações. (...) Os decretos-leis em questão serão revistos como convém por uma assembleia parlamentar constituinte eleita por uma forma de sufrágio a ser especificada. (...) A defesa da ditadura republicana... será efetuada pelo diretório sem a intervenção dos tribunais de justiça. (...) Separação da Igreja e do Estado; liberdade de cultos e respeito a todas as religiões. (...) O diretório compromete-se, durante a sua função, a não modificar o regime republicano..." (Citado por Antonio UZARZA IRRIBAREN, Memorias de la conspiración, Pamplona, Editorial Gómez, 1954, p. 95-96). Sob a pressão da Comunhão Tradicionalista (carlista), a qual deveria assegurar o sucesso da insurreição no Norte, este programa foi modificado posteriormente.
2 - O primeiro "manifesto" de Franco a todos os espanhóis, datado de 18 de julho de 1936, em Tenerife, Ilhas Canárias, terminava com estas palavras: "Saberemos como salvar o que é compatível com a paz interior da Espanha e com a grandeza que lhe desejamos, realizando, em nossa nação, pela primeira vez e nesta ordem, a trilogia: fraternidade, liberdade e igualdade" (F. DIAZ PLAJA, La guerra de España en sus documentos, Madrid, 1966, p. 129; Albores de la gesta española, Santa Cruz de Tenerife, 1937, p. 113).
3 - Em 1º de outubro de 1936, Franco foi nomeado Chefe do Governo espanhol (título que foi posteriormente alterado nos documentos oficiais para "Chefe de Estado espanhol"), apesar da oposição de alguns membros da junta militar, em grande parte graças às manobras hábeis de seu irmão, Nicolás Franco (Hugh THOMAS, La guerra civil española, Paris, España Contemporânea, 1962, p. 235). A anglofilia de Nicolás Franco era de ampla notoriedade.
4 - Em 5 de junho de 1937, uma delegação de maçons espanhóis, representando "oficiosamente" o governo republicano de Valência, encontrava uma delegação homóloga de maçons franceses em Paris, na sede da Grande Loja. Entre as personalidades presentes, notavam-se Léon Blum, Camille Chautemps e Yvon Delbos (Edouard Daladier, não se sabe bem porquê, não estava presente. O objetivo da reunião era a "Peticion y exposición de los hermanos españoles" (Petição e relatório dos Irmãos espanhóis). Após a intervenção de Barcia, representante dos republicanos espanhóis, solicitando insistentemente a ajuda das democracias e exigindo que a França e a Grã-Bretanha recusassem reconhecer a Franco o estatuto de beligerante, o francês Delbos interveio: "Para a França, o problema espanhol é muito complicado", disse ele, começando, "quanto à Inglaterra, ela está disposta a reconhecer Franco (...). A política da Alemanha, durante esta guerra perigosa... consistiu em impedir qualquer aproximação da Inglaterra e da França com Franco". Depois, o "irmão" Delbos começou a elogiar Franco, em particular o seu bom senso e a sua moderação. Acrescentou: "... A tentativa de (Indalecio) Prieto (um líder comunista espanhol) falhou. Esta guerra é perigosa para a paz na Europa. A França e a Inglaterra orientam todas as suas energias diretamente nesse sentido (...).
A guerra da Espanha deve ser encerrada, e pensamos que, para alcançar este objetivo, não pode existir nenhum obstáculo nem nenhum preconceito intransponível". (José BERTRÁN Y MUSITI, Experiencias de los S.I.F.N.E. durante la guerra, citado por José-Oriol CUFFI CANADELL, em Cristiandad, Barcelona, nº 177-178, ano VIII, 1-15 de agosto de 1951).
5 - Já em janeiro de 1938, o Cardeal Pedro Segura, de Sevilha, publicou uma pastoral em defesa da liberdade das associações católicas contra os ataques dos funcionários governamentais falangistas, os quais desejavam centralizar o seu domínio sobre os assuntos eclesiásticos. Perto do fim da guerra civil, Segura considerava essas tendências totalitárias e agnósticas, particularmente em matéria de censura e vigilância da imprensa religiosa, como "muito graves" dentro do novo governo (Ramón GARRIGA ALEMANY, El Cardenal Segura y el Nacional-Catolicismo, Barcelona, Editorial Planeta, 1977, p. 260-262).
6 - Desde 1946, o governo espanhol, desejoso de parecer religiosamente moderado aos olhos dos poderes do pós-guerra, concedeu cada vez mais liberdades aos protestantes e aos judeus. Daí o proselitismo protestante. Um certo número de bispos espanhóis pronunciou-se contra essa tolerância: Modero Casaus, de Barcelona; Pildain, de Tenerife; e Segura. "Os ataques de Segura contra a tolerância de que desfrutavam os protestantes na Espanha franquista", diz um biógrafo do cardeal, "foram constantes" (CARRIGA, p. 293). De facto, a pastoral de Segura, em 1947, contra a tolerância do evangelismo protestante foi proibida pelo governo espanhol, que considerava as suas críticas embaraçosas (Ibid., p. 294).
7 - A intervenção brutal do presidente americano Harry Truman, exigindo a liberdade religiosa completa na Espanha, só obteve uma resposta evasiva do ministro espanhol das Relações Exteriores, Alberto Martín Artajo. O Cardeal Segura, por outro lado, replicou vigorosamente. Atacou tanto Washington quanto Madrid. Em particular, Madrid havia omitido ocupar-se do crescente proselitismo dos protestantes que se propagava às escondidas na Espanha: segundo uma declaração pública do embaixador americano, o governo espanhol havia "prometido" garantir a liberdade religiosa na Espanha. Ao saber disso, Segura declarou: "Esta afirmação é muito grave; ela explica perfeitamente a grande liberdade em que se deixa, em nosso país, o proselitismo protestante; o qual, uma vez rompida a barreira da tolerância, avançará para a plena liberdade religiosa." (Ibid., p. 302).
8 - No início de 1954, D. Zacarias de Vizcarra, bispo responsável pela Ação Católica espanhola, publicou um artigo em ECCLESIA, a publicação oficial do episcopado espanhol, no qual notava a perversão dos ideais da "cruzada" nacional. Seu artigo era em parte baseado em documentos maçônicos apreendidos. "É bem conhecido", afirmava D. de Vizcarra, "que antes do fim do primeiro ano de guerra, a maçonaria internacional havia previsto a derrota comunista e que estava a implementar os meios para roubar da Cruzada Nacional os frutos da sua vitória. (...) Consequentemente, a maçonaria internacional recrutou astutamente colaboradores nas fileiras anti-marxistas... para alcançar os seus objetivos e, muito habilmente, manobrou sob o pretexto da união e da concórdia entre todos os espanhóis, própria para evitar novos desastres (...)
Os seus três principais meios eram: (A) trabalhar primeiro com vista a um armistício entre as duas Espanhas combatentes, de modo que se pudesse chegar a uma paz negociada; (B) atenuar progressivamente a influência católica na zona nacionalista; (C) utilizar como tática exaltar em toda a ocasião os valores intelectuais de esquerda, silenciando os valores católicos. Estes objetivos, cuidadosamente propagados na zona nacionalista, despertaram um eco imediato, mesmo nos meios acima de qualquer suspeita" (D. de VIZCARRA, "Peligro para el bien común", ECCLESIA, 20 de fevereiro de 1954, nº 658, p. 204). Como exemplo deste processo, ele citava a ampla recepção dada a autores tão anticatólicos como José Ortega y Gasset e Miguel Unamuno (ibid.).
9 - A censura contra as obras de Unamuno e Ortega y Gasset foi levantada em 1955. Os "intelectuais" de esquerda, escritores e professores, começaram a ocupar as cadeiras universitárias na Espanha (GARRIGA, p. 300). Nesse mesmo ano, o bispo de Tenerife, D. Pildain, publicou uma pastoral na qual enumerava um certo número de erros contidos nas obras de Unamuno; mais tarde, no mesmo ano, o General Franco presidiu a uma cerimônia de homenagem em honra de Unamuno, na universidade de Salamanca, da qual ele havia sido reitor antes da guerra civil.
10 - Sob a direção do ministro dos Negócios Estrangeiros, Fernando Castiella, o governo de Franco aprovou, em 24 de fevereiro de 1967, um estatuto que concedia liberdade religiosa completa para todos os cultos, em conformidade com as diretivas do Vaticano II. É certo que algumas pressões foram exercidas sobre o governo pelo Vaticano para esta medida. Mas deve-se lembrar que a reforma de 1967 apenas se seguia a um projeto idêntico (1964-1965) para o qual a influência do Vaticano foi mínima (GARRIGA, p. 336-338).
11 - Em 15 de dezembro de 1938, Franco restituiu todos os direitos e todos os bens ao rei Afonso XIII de Bourbon, no exílio (ele havia sido deposto após a sua abdicação de 1931) (Boletín oficial del Estado, 20 de dezembro de 1938, nº 173, p. 1085).
12 - Em 14 de maio de 1946, Franco declarou perante a assembleia das Cortes espanholas que a monarquia liberal (cujo último representante tinha sido Afonso XIII de Bourbon) tinha "arruinado e desarmado a Espanha" (cf. Cortes Españolas, 14 de maio de 1946, p. 52). No entanto, foi um membro dessa monarquia (D. Juan Carlos) que ele escolheu para o suceder.
13 - Após a derrota do Eixo, o novo ministério Franco (julho de 1945) "foi apresentado como uma transição entre o sistema autoritário e a democracia que seria completamente restabelecida quando Juan de Bourbon regressasse ao trono do qual o seu pai (Afonso XIII) havia tido de descer em 1931" (GARRIGA, p. 290). Para este novo ministério, Franco escolheu um certo número de democratas cristãos, nomeadamente Alberto Martín Artajo, próximo colaborador do Cardeal Ángel Herrera Oria.
14 - Em 4 de dezembro de 1950, baseando-se nas garantias fornecidas pelo governo espanhol de que respeitaria as liberdades civis e no apoio dos Estados Unidos, as Nações Unidas levantaram as sanções que haviam imposto à Espanha em 1946 (Ibid. p. 292).
15 - As interferências da finança americana e internacional nos assuntos espanhóis, que jamais cessaram – mesmo nos momentos mais difíceis – manifestaram-se abertamente no início dos anos cinquenta. O Instituto Nacional de Indústria, criado para estimular a industrialização da Espanha e visto como um órgão "autônomo" do Estado espanhol, foi fundado diretamente por companhias internacionais como Kuhn, Loeb and Company, S. G. Warburg and Company Ltd, Banque de Bruxelles S. A., Goldman Sachs International Corporation, Morgan and Company International S. A., Lazard Brothers and Company Ltd, e N. M. Rothschild and Sons Ltd. A Telefónica e as ferrovias do Estado (RENFE) também foram beneficiadas pelas vantagens internacionais (cf. La Gaceta ilustrada, Madrid, 15 de outubro de 1972).
16 - Importa notar que a Texaco e outros interesses financeiros americanos ajudaram Franco durante a guerra civil. Joseph Kennedy, embaixador em Londres e pai do presidente John Kennedy, apoiou calorosamente Franco perante o presidente Franklin Roosevelt. O governo americano, encorajado pelos interesses capitalistas, iniciou com Franco, em março de 1947, as negociações que resultaram no reconhecimento do governo espanhol pelos Estados Unidos, em 27 de dezembro de 1950 (GARRIGA, p. 292).
17 - Um acordo militar e econômico foi assinado em 26 de setembro de 1953, entre o governo franquista e os Estados Unidos. Martín Artajo, o General Muñoz Grandes, o Almirante Ruiz Carrero Blanco e outros próximos colaboradores de Franco, participaram nestas negociações. Este acordo provocou um vigoroso protesto por parte do Cardeal Pedro Segura. A Espanha ia submeter-se à finança americana e à "cultura" americana: "... a fidelidade à fé católica", declarou o corajoso cardeal, "tem muito mais valor do que um rio de ouro norte-americano. É contrário à nobreza de coração exigir que um pobre transgrida a lei de Deus por uma côdea de pão" (Ibid., p. 302).
18 - Cinco anos antes da morte de Franco em 1975, uma nova lei geral sobre a educação foi promulgada. Esta lei comprometia gravemente o controlo da Igreja sobre as suas escolas e colégios. Reproduzia praticamente o "modelo" da UNESCO tal como já funcionava em outros países (cf. Julian GIL DE SAGREDO, Educación y subversión, Madrid, Fuerza Nueva, 1973).
19 - A Espanha havia reconhecido o regime comunista na China antes da morte de Franco. Da mesma forma, havia autorizado as esquadras de pesca russas a fazer escala nas Canárias.
Concluímos esta enumeração adotando a avaliação dos redatores de LECTURE ET TRADITION (dezembro de 1975, p. 1): "Franco não é para nós o modelo de chefe de Estado, pois desviou-se do caminho contrarrevolucionário para jogar o perigoso jogo de equilíbrio entre um estatismo jacobino e um liberalismo latente, jogo que é a causa da situação trágica em que a Espanha de hoje se debate".
A. C. (Coor.)