Quinta Chaga
A CHAGA NO PÉ ESQUERDO: AS RESTRIÇÕES NO LIVRE USO DE SEUS PRÓPRIOS BENS PELA IGREJA.
A Igreja dos primeiros tempos era pobre, mas livre
O leitor contemporâneo das Cinco Chagas encontrará este capítulo muito estimulante para a Igreja. As quatro primeiras chagas ainda são muito atuais hoje, e o caminho ainda é longo antes que o trabalho de cura seja concluído. No entanto, está-se mais consciente da necessidade de encontrar remédios eficazes, e o Concílio Vaticano II certamente produziu documentos marcantes que refletem a verdadeira intenção da Igreja de se reformar de dentro para fora.
Mesmo após uma leitura superficial do capítulo da quinta chaga, é claro que a visão da Igreja que Rosmini tinha era que a Esposa de Cristo abraçava a mesma pobreza que seu Esposo, que dizia: "AS RAPOSAS TÊM SEUS TUGÚRIOS, E AS AVES TÊM SEUS NINHOS, MAS O FILHO DO HOMEM NÃO TEM ONDE RECLINAR A CABEÇA". Rosmini pede que os papas, os bispos e os padres adotem a pobreza evangélica, assim como era na Igreja dos primeiros tempos. "A PROFISSÃO DE PAUPERDADE FOI DURANTE MUITO TEMPO A GLÓRIA DO MINISTÉRIO SACERDOTAL; A MAIORIA DOS HOMENS CHAMADOS AO SACERDÓCIO ABANDONAVAM SEUS BENS OU OS DOAVAM AOS POBRES... AS MÃOS ESTENDIDAS DOS POBRES, DAS VIÚVAS, DOS LEPRAS, DOS ESCRAVOS, DOS PEREGRINOS E DOS INDIGENTES FORMAVAM OS CELARES ONDE A IGREJA PODIA DEPOSITAR SEUS TESOUROS SEM TEMER O ROUBO".
Poucas pessoas hoje estariam dispostas a admitir que a Igreja oficial é pobre. Papas, bispos, padres e ordens religiosas não são considerados os melhores exemplos de pobreza, com algumas exceções. A opinião geral é que o clero está pelo menos confortavelmente bem, muitas vezes mais do que confortável, e ocasionalmente rico. Essa percepção pode ser imprecisa, mas é frequentemente repetida; e muitos não estão convencidos pelo argumento de que ser pobre é viver de acordo com os padrões da maioria das pessoas que o clero serve. Alguns dirão que Cristo e os Apóstolos não escolheram viver de acordo com os padrões dominantes; escolheram a pobreza dos pobres e sua existência precária. A Igreja dos primeiros tempos era pobre, mas livre. Sua pobreza evangélica era resguardada por sete máximas que regulavam a aquisição, administração e uso dos bens materiais. Rosmini explica em um apelo apaixonado essas antigas máximas que a Igreja de seu tempo, a Igreja de nosso tempo, poderia novamente seguir se desejar ser o sal da terra e a luz do mundo.
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A primeira exigência era que todas as ofertas feitas à Igreja devem ser "espontâneas". Cristo obrigava os fiéis a sustentarem aqueles que trabalhavam pelo Evangelho, mas apelava para a aceitação livre do Seu Evangelho por parte dos fiéis e para sua reação moral. São Paulo, embora reconhecendo que tinha o direito moral de "comer e beber" para pregar o Evangelho, raramente o reivindicava, preferindo trabalhar arduamente por sua comida e pela de seus companheiros. Mais ainda, a obrigação imposta por Cristo ao fiel de sustentar o clero não ia além do estritamente necessário para os pregadores do Evangelho, [que] "MORAM NA MESMA CASA, COMENDO E BEBENDO O QUE PODIAM OBTER". Este preceito é enfatizado por Tertuliano no início do século III: "AQUELE QUE PODE PÕE CADA MÊS UM DINHEIRO DE LADO, OU QUANDO DECIDIR. NINGUÉM É FORÇADO; TODOS DÃO ESPONTANEAMENTE. ESTE DINHEIRO É UM INVESTIMENTO DE PIETY". A espontaneidade terminou quando as ofertas foram forçadas por sanções impostas pelo braço secular. Isso ocorreu com a instituição do "feudalismo" no século VIII. Para Rosmini, o feudalismo foi um desastre total para a Igreja, a causa mais profunda de todas as cinco chagas da Igreja. "O FEUDALISMO – DIZ ROSMINI – EXTINGUIU A LIBERDADE DA IGREJA E GEROU SUAS AFLIÇÕES". Os reis bárbaros se consideravam os proprietários de tudo o que estava em seu território, incluindo os bens da Igreja. Eles distribuíam favores aos bispos e esperavam em troca lealdade e submissão totais a eles. Os chefes bárbaros consideravam que as pessoas e os bens eram "deles" por direito de conquista. "PODEMOS IMAGINAR FACILMENTE O QUE ACONTECEU QUANDO SEUS BENS NÃO ESTIVERAM MAIS EM LIVRE POSSE DA IGREJA, MAS DETIDOS SOB A DOMINAÇÃO DE UM PODER TEMPORAL. AS OFERTAS ERAM EXTORQUINDAS À FORÇA, O ÚNICO PODER DE COAÇÃO DISPONÍVEL E COMPREENDIDO PELO BRAÇO SECULAR". O uso da força modificou a verdadeira natureza das ofertas ao clero. Os fiéis não gostavam de ser forçados a dar e seu apego e amor pelo clero desapareceram. O clero passou a ter a garantia de uma renda constante que não dependia da soma de seu trabalho. Além disso, todas as doações à Igreja eram consideradas, em última instância, como propriedade do chefe feudal, que podia apropriar-se dessas doações conforme desejasse. Esta "semente funesta", diz Rosmini, levou à confiscação dos bens dos mosteiros e das igrejas ao longo dos séculos seguintes, incluindo o recente decreto de 2 de Novembro de 1789, no qual a Assembleia Nacional Francesa declarou todos os bens da Igreja à disposição do Estado.
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O segundo preceito protegendo a Igreja da corrupção era que os bens deveriam ser possuídos, administrados e dispensados em comum. Inicialmente, os fiéis traziam o fruto do que havia sido vendido e o depositavam aos pés dos Apóstolos. A distribuição era feita a cada um segundo suas necessidades. Podemos apenas admirar o amor e a união entre os crentes e nos maravilhar com a vida comum entre o clero e os fiéis. Esta exigência foi preservada durante um longo período. O bispo, como sucessor dos Apóstolos, distribuía normalmente todo mês o que era necessário para o sustento do clero que exercia o ministério em seus dioceses. Os fundos proviam das posses da igreja, ninguém tinha bens próprios. Quando Constantino autorizou os legados em favor da Igreja em 321, ele decretou: "QUALQUER PESSOA TEM O DIREITO DE FAZER O LEGADO QUE QUISER AO SANTO E CATÓLICO CONSELHO DA SANTA IGREJA CATÓLICA". O imperador Valente fez uma lei proibindo legados pessoais em favor de membros do clero; São Ambrósio e São Jerônimo aprovaram a lei. Os bens detidos em comum e administrados pela prudente solicitude dos bispos, após consulta a seu clero, eram de grande auxílio para produzir e preservar a união entre o clero e entre o clero e os fiéis. Tudo isso terminou com o feudalismo, que implicava vassalagem, servidões ao chefe, que se tornou o senhor de tudo o que os bispos possuíam. O bispo, com seus bens, tornou-se um indivíduo isolado, um homem como os outros, um cortesão compartilhando a vida da corte, às vezes um chefe de homens armados. O bispo, tornando-se senhor ou barão em seu próprio nome e no de seu chefe, fez com que a Igreja deixasse de ser visível nele; ele não era mais bispo e chefe de sua igreja, e dos fiéis que estavam unidos a ele. "ESSA TERRÍVEL E ARTIFICIAL TRANSFORMAÇÃO DOS HOMENS DE IGREJA INSTALOU NO ESPÍRITO DOS BISPOS MEDIEVAIS A IDEIA DE SUA PRÓPRIA INDIVIDUALIDADE, E ENFRAQUECEU A NOÇÃO DE UNIDADE DO CORPO DOS BISPOS E DOS CLÉRIGOS. ELA DOBROU OS DIOCESES ÀS LIMITES DO ESTADO OU DAS FRONTEIRAS FEUDAL. AO FINAL, QUASE TODOS OS BENS DA IGREJA FORAM ADMINISTRADOS E BENEFICIARAM CLÉRIGOS PESSOAIS".
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O terceiro e precioso preceito era que o clero não deveria usar os bens da igreja exceto para seu sustento exclusivamente; o restante deveria ser consagrado a obras piedosas, especialmente aos donativos para os pobres. Cristo fundamentou o apostolado na pobreza e na entrega à Providência, sendo Ele mesmo o perfeito exemplo. Consequentemente, durante o melhor período da Igreja, entrar nas fileiras do clero equivalia a fazer profissão de pobreza evangélica. O estado de pobreza foi durante muito tempo a glória do ministério sacerdotal; a maioria dos homens chamados ao sacerdócio abandonava seus bens ou os doava aos pobres. Esses homens nunca usaram a riqueza da Igreja para seu próprio benefício como se lhes pertencessem, mas a aceitavam em depósito para os pobres. O bispo, o primeiro entre os pobres e aquele responsável por sua distribuição, podia justamente tomar algo para si e para o clero. Rosmini cita Júlio Pomério, um discípulo de Santo Agostinho, que, após louvar São Paulino e São Hilário por terem adotado a pobreza vindo de um estado de grande riqueza, escrevia: "É FÁCIL COMPREENDER QUAL ERA A SANTIDADE DESTES HOMENS (QUE RENUNCIARAM A TUDO PARA SE TORNAREM DISCÍPULOS DE CRISTO) QUE ESTAVAM PERFEITAMENTE CONSCIENTES DE QUE OS BENS DA IGREJA PERTENCIAM AOS POBRES. ELLES NUNCA FIZERAM USO DESSA RIQUEZA PARA ELES MESMOS, MAS A ACEITARAM EM DEPÓSITO PARA OS POBRES". O feudalismo pôs fim a essa época abençoada. Quando os bispos e os padres se tornaram subordinados a seus senhores políticos, os bens depositados na Igreja pela generosidade dos fiéis "Em vez de fluir para os pobres, ou permaneceram inutilizados, ou acabaram nas mãos do senhor local voraz", e os pobres deixaram de ser uma carga sagrada confiada aos cuidados das igrejas.
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O quarto preceito que governava os bens da Igreja e salvaguardava a integridade do clero era que as riquezas eclesiásticas usadas para fins piedosos e caritativos também podiam ser consagradas a trabalhos determinados para prevenir que o arbítrio e o interesse pessoal interferissem na gestão dos bens. Na Igreja das origens, os recursos eram atribuídos a empregos definidos segundo uma distribuição em quatro divisões: para ajudar o bispo, o clero e os pobres, e as despesas de manutenção dos edifícios da igreja e do culto. "É CERTO – DIZ ROSMINI – QUE O MELHOR REMÉDIO CONTRA A CORRUPÇÃO ACOMPANHANDO AS RIQUEZAS CONSISTIA EM ESTABELECER NOS DIVERSOS CONCÍLIOS LEIS REGULANDO PRECISAMENTE SEU USO; " A corrupção e a ruína de muitos antigos mosteiros deve ser imputada à falta de objetos precisos para os quais direcionar as grandes riquezas que possuíam as casas religiosas. Resultou que os abades e outros superiores controlando as finanças gastaram as receitas segundo sua vontade. O feudalismo destruiu a justa distribuição dos bens da Igreja em quatro categorias, acumulando, ao contrário, toda a riqueza entre as mãos de poucos dominantes.
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O quinto preceito salvaguardando a Igreja do perigo das riquezas era "uma alma generosa, pronta a dar, lenta a receber". A grande regra fixada nos corações humanos eram as nobres palavras de Cristo: "é mais vantajoso dar do que receber". Os bispos consideravam o dinheiro e a administração como um fardo, devendo ser carregados unicamente por motivos de caridade. Santo Ambrósio rejeitava legados e doações se soubesse que parentes pobres do doador poderiam sofrer em decorrência. Santo Agostinho teve que se defender da seguinte acusação: "O bispo Agostinho dá com total generosidade, mas não aceita nada". Que acusação gloriosa, diz Rosmini! Agostinho dizia que preferiria viver feliz com os dons do povo de Deus do que ser carregado com a responsabilidade das finanças, e estava disposto a ceder aos fiéis de modo que todos os servos e ministros de Deus pudessem viver compartilhando sobre o altar. Mas os leigos recusaram firmemente sua oferta. É verdadeiramente doloroso e prejudicial para os verdadeiros interesses da Igreja, além de escandaloso, que a opinião pública esteja convencida em todo lugar de que a Igreja está sempre de mão estendida para receber, mas nunca para dar. É triste encontrar pessoas que pensam que o que a Igreja coloca em seu tesouro nunca sai de lá; o resultado é o desprezo, a inveja, a diminuição da generosidade entre os fiéis, e a impressão de que as riquezas da Igreja se acumulam século após século sem preocupação com as necessidades dos pobres.
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O sexto preceito obrigava a Igreja a tornar pública a gestão de todos os seus bens. Nos primeiros tempos da Igreja, os bispos consultavam o clero e os fiéis em todas as áreas, incluindo o uso das riquezas da Igreja. Além disso, os sacerdotes e diáconos encarregados da administração deveriam ser aprovados por toda a igreja, de acordo com a tradição Apostólica. Santo João Crisóstomo não temia prestar contas sobre sua gestão das receitas da igreja: "Estamos prontos para informá-los sobre nossa gestão". O mesmo espírito e as mesmas práticas animavam todos os bispos dos primeiros tempos. As pessoas que dão devem ser informadas sobre o que é feito de suas doações. Rosmini sugere que os fiéis sejam envolvidos desde o início, desde a escolha das obras às quais os fundos devem ser consagrados, até o relatório sobre como o dinheiro foi gasto. Ao tornar públicas todas as finanças, a Igreja brilharia diante do mundo, e a tentação de usar os fundos de maneira indevida seria consideravelmente reduzida. "A OBRIGAÇÃO DE APRESENTAR AOS FIÉIS, E AO PÚBLICO EM GERAL, UM RELATÓRIO DE SUA GESTÃO ESTIMULARIA O NECESSÁRIO DESPERTAR DE MUITAS CONSCIÊNCIAS ADORMECIDAS, E GARANTIRIA QUE AS FUNÇÕES DA IGREJA SÃO EXERCIDAS POR PESSOAS HONESTAS, SINCERAS E DEDICADAS".
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O sétimo e último preceito é que a Igreja deve administrar seus bens com vigilância e prudência. Os bens da Igreja pertencem a Deus e aos pobres, e ela deve prestar a Deus um rigoroso contas sobre como gerenciou Seus bens. É verdade, diz Rosmini, que ao longo dos séculos a avareza voraz dos soberanos e dos Estados privou a Igreja de muitas de suas posses. Mas sem dúvida, muitas de suas riquezas foram dilapidadas por homens da Igreja que as usaram egoisticamente para seus próprios desígnios como se lhe pertencessem. Rosmini acrescenta: "SE CONSIDERARMOS O QUE A IGREJA RECEBEU DURANTE SEUS SEIS SÉCULOS DE EXISTÊNCIA, E TUDO O QUE FOI PERDIDO DEVIDO A UMA GESTÃO FALTANDO SERIEDADE E CUIDADO, PODEMOS APENAS IMAGINAR ONDE ELA ESTARIA SE SEUS BENS TIVESSEM SIDO SEMPRE ADMINISTRADOS COM PRUDÊNCIA".
Na época moderna, a doutrina social da Igreja certamente despertou as consciências em todos os locais. Desde Rerum Novarum até Populorum Progressio, passando por Mater et Magistra e Pacem in Terris, a Igreja falou de maneira muito eloquente em favor dos pobres, dos oprimidos, dos desfavorecidos econômicos no mundo. Ao longo dos séculos, a Igreja foi a melhor defensora e uma mãe para os doentes, os marginalizados, os rejeitados. Dentre todas as instituições humanas, existe alguma que possa ser comparada à Igreja em seu empenho e dedicação aos pobres durante sua longa história?
E ainda, Rosmini sugere que a própria Igreja precisa fazer um exame de consciência e considerar que as sete máximas que a ajudaram nos tempos antigos a viver de acordo com a pobreza evangélica desejada por seu divino Fundador aparecem como muito autênticas e pertinentes, hoje como ontem. Os documentos do Concílio Vaticano II falam da pobreza evangélica na vida religiosa. Porém, para Rosmini, a pobreza evangélica é uma característica, uma qualidade, uma necessidade de toda a Igreja. É a Igreja que deve ser pobre, e os sete preceitos deveriam ser as linhas mestras de toda a Igreja.