Parte VIII: Tudo flui para o Tibre! A sincrética “Igreja Vindoura”
A eclesiologia distorcida de modo perigoso, infundida com o espírito do que o Venerável Papa Pio XII condenou como um “antiquarianismo exagerado e sem sentido”, e ainda mais poluída por um “falso misticismo” adulatório sobre o qual esse mesmo santo pontífice soou o alarme (ver Parte VI), é provavelmente o que leva o esotérico responsável da Angelico Press, Dr. Michael Martin, em um post de blog refletindo sobre as implicações dos crimes hediondos do ex-Cardeal Theodore McCarrick, a concluir:
“Para mim, pelo menos, o escândalo McCarrick... põe em questão a própria noção de um Magisterium – por que alguém confiaria em um corpo tão disposto a jogar cordeiros aos lobos? E não me refiro apenas a voltar ao Vaticano II, ou Vaticano I, ou Trento, ou mesmo IV de Latrão. E eu tenho que me questionar se muitos dos assim chamados hereges ao longo dos tempos foram meras vítimas de alguma política intramuros muito viciada, para não mencionar a coerção de Teilhard [de Chardin] e [Henri] de Lubac. Você vê? De repente, tudo é suspeito…”
“[A] Igreja, a verdadeira Igreja, pode agora ser, em grande parte, invisível. E provavelmente sempre foi...”
A esta última declaração, o Catecismo de Baltimore responde inequivocamente: “A Igreja é a congregação de todos aqueles que professam a fé em Cristo, participam dos mesmos Sacramentos e são governados por seus pastores legítimos sob uma cabeça visível”. Mas o Dr. Martin provavelmente reluta em levar a sério um livro tão “terrível” (ver a Parte VII). O Papa Leão XIII acrescentaria: “Aqueles que arbitrariamente evocam e imaginam uma Igreja oculta e invisível estão em erro grave e pernicioso”; e Pio XII, da mesma forma, “Erram em matéria de verdade divina [aqueles] que imaginam a Igreja invisível, intangível, algo... pelo qual muitas comunidades cristãs, embora difiram umas das outras em sua profissão de fé, estão unidas por um vínculo invisível” – para citar apenas dois pronunciamentos magisteriais da Santa Sé. Para que não sejam demasiado modernos para o gosto de antiquário de Martin, podemos também acrescentar o testemunho de Santo Inácio de Antioquia, escrevendo em 107 DC: “Onde está o bispo, ali está o povo, assim como onde está Jesus Cristo, ali está a Igreja Católica”.
Os “chamados de hereges” do Dr. Martin, entre os quais ele conta o cabalista e rosacruz inglês Robert Fludd, o alquimista galês Thomas Vaughan, o astrólogo Sir Kenelm Digby (um inglês católico que apostatou em prol de sua carreira política), “e muitos da coorte a que dediquei minha atenção acadêmica não eram malucos ou pontos fora da curva. Na verdade, se foram algo, foram tradicionalistas contra um neoescolasticismo intelectualizado e corrupto... Em suma, eles estavam defendendo o que entendiam como tradição cristã” Estes, Martin afirma – mais uma vez, no blog oficial da Angelico Press – são os verdadeiros tradicionalistas:
“Pode ser que esses chamados hereges possuam algo que muitos cristãos supostamente ‘fiéis’ não possuíam: uma abordagem sincera da figura de Jesus, livre de obrigações dogmáticas. Por causa de tal sinceridade, Jesus é capaz de sangrar para além da obscuridade e da fábula. Isso não acontece, infelizmente, com uma quantidade significativa da teologia ortodoxa.”
“Opiniões hereges ou heterodoxas – ou simplesmente ideias antigas – muitas vezes assustam as pessoas que sentem a necessidade de aderir a um pacto de lei e não a um pacto de sabedoria…”
“No entanto, aprendi muito sobre Jesus com os hereges. Que eles sejam abençoados”.
Já vimos (na Parte VII) que Roger Buck – o autor tradicionalista católico e incansável promotor de Valentin Tomberg cuja alardeada semi-autobiografia, Cor Jesu Sacratissimum, primeiro me alertou para o crescente problema do ocultismo entre os católicos tradicionais (ver Parte I) – recomenda fortemente os escritos de Michael Martin “a qualquer um que tente entender o projeto de Tomberg para curar o Ocidente”. Ele conclui a resenha do livro (de The Submerged Reality, de Martin, publicado pela Angelico Press) da qual extraí essas palavras, com um apoio efusivo:
“Este livro é uma chama viva no escuro. Se você se preocupa com o destino da humanidade, peço que considere estudar Martin. Ele está, junto a Valentin Tomberg, apontando para a única esperança que tenho para o Ocidente: um catolicismo obediente, piedoso e profundamente tradicional, que não tem medo de abraçar o cristianismo oriental, nem mesmo qualquer sabedoria cristã, onde quer que se encontre”.
Aqui, novamente, ouvimos o som do clarim para forjar a “visão expansiva do catolicismo” apresentada por Tomberg, que é tão ampla que abrange todos os tipos de hereges e suas heresias, ao mesmo tempo em que se disfarça de “um catolicismo obediente, piedoso, profundamente tradicional...”. O professor Wolfgang Smith – um “celebrado tradicionalista católico”, nos dizem – aceita esse desafio em seu In Quest of Catholicity (também publicado pela Angelico Press, e citado na Parte III), uma troca epistolar entre ele e o saudoso Pe. Malachi Martin, no qual prescreve que “nos incumbe alargar o nosso horizonte ontológico – abrir portas e janelas, se assim se pode dizer, que estão fechadas há muito tempo...
“O que é realmente necessário é uma compreensão radicalmente mais profunda do cosmos: a descoberta – ou redescoberta, para ser preciso – de estratos ontológicos inacessíveis não apenas à percepção sensorial comum, mas também ao modus operandi da ciência contemporânea... O que está em questão são as chamadas ciências ‘tradicionais’, que também podem ser chamadas de ciências ‘sagradas’ na medida em que pertencem potencialmente à busca religiosa...”
“Em certos aspectos, o caso da ciência tradicional, lamento dizer, é ainda pior entre os católicos conservadores [do que entre os progressistas]: o fato de que essas ciências sejam ‘sagradas’ – que elas constituem, em outras palavras, um complemento à religião – é, em geral, o suficiente para provocar uma denúncia no mesmo instante: ‘superstição pagã’ parece ser o termo canônico. Agora, sempre considerei tal resposta instintiva como indigna de um católico, como ‘un-katholikos’ de fato. Mas indo direto ao ponto: investi décadas na exploração de tais ‘superstições pagãs’, não apenas por meio de fontes escritas, mas por meio de contatos pessoais envolvendo meia dúzia de longas estadias em partes da Índia e do Nepal, por exemplo, onde felizmente a nossa cultura de McDonald’s ainda não havia penetrado. E, à luz dessas investigações, estou convencido de que existe uma sabedoria pré-cristã de origem supra-humana, perpetuada por meio de cadeias ininterruptas de transmissão de mestre a discípulo – começando concebivelmente com o próprio Adão – cujos vestígios ainda podem ser encontrados em várias partes do mundo. Além disso, passei a acreditar que a sabedoria em questão – essa verdadeira ‘sophia perennis’ – é algo de que nós da época atual precisamos urgentemente...”
“Desde o início, senti-me inclinado a submeter minhas – às vezes aparentemente ‘não ortodoxas’ – concepções ao escrutínio deste grande homem e sacerdote, [P. Malachi Martin,] que era alguém qualificado para julgar e aconselhar... que, de um ponto de vista católico ultratradicional, muito desse material era suspeito, para dizer o mínimo, e que seria de fato fútil abrir meus pensamentos sobre tais assuntos para teólogos de base de cada lado do racha contemporâneo. Percebi, ao mesmo tempo, que partes do que eu tinha a dizer seriam de fato bem recebidas pelos aficionados do Vaticano II; mas deixe-me ser absolutamente claro: submeto-me sem reservas ao ensinamento autêntico da Igreja Católica, que transcende tanto a estreiteza pedante e às vezes farisaica da extrema direita teológica quanto às fantasias liberais e os sonhos da esquerda...”
“Isso me leva finalmente ao meu ponto final: além de qualquer interesse humano que as cartas de Malachi Martin possam ter e a luz que possam lançar sobre este grande homem, seu significado primordial, parece-me, reside no fato de que elas testemunham a Igreja, não apenas como era, mas também – e especialmente – como será. Ele parece estar de olho tanto no futuro quanto no passado, e nos dá a entender que, enquanto as verdades essenciais de nossa fé católica precisam naturalmente ser preservadas, há elementos estranhos a serem descartados e fronteiras artificiais a serem destruídas. Certamente tudo o que é ortodoxo será encontrado novamente na Igreja que está se formando agora silenciosamente sob os escombros da atual desintegração; no entanto, essa Igreja vindoura estará, sem dúvida, livre das limitações de perspectiva e idiossincrasias endêmicas desta ou daquela época, como também da autocracia de qualquer estilo teológico particular: por exemplo, do Tomismo como geralmente o concebemos. E isso explica não apenas por que ‘precisamos realmente de um novo Tomás de Aquino’, mas também coloca em perspectiva a resposta afirmativa de Malachi Martin às várias doutrinas ‘estranhas’ com as quais o confrontei, começando com os ensinamentos de Jacob Boehme, o visionário que, na opinião de alguns, ‘cristianizou’ a sabedoria alquímica pertencente à tradição Hermética. Isso explica por que Malachi Martin pôde abraçar tais doutrinas ‘suspeitas’ com alegria sem fingimento e visível entusiasmo... No lugar das referências costumeiras, abertas ou veladas, a ‘superstições pagãs’, encontramos... a perfeita receptividade de uma mente e coração purificados no Sangue de Cristo. E quem pode duvidar que este padre fala, ainda agora, pela Igreja vindoura!”
De alguma forma, o professor Smith é capaz de sustentar essas opiniões e ainda professar – para satisfação de si próprio, se não para os demais – sua submissão “sem reservas ao ensinamento autêntico da Igreja Católica”, assim como Tomberg “tece... crenças sincréticas, gnósticas, cabalísticas e maniqueístas juntas, defendendo que tudo [isso] está em conformidade com a fé católica ortodoxa”. Como é possível? Eu pergunto com toda a sinceridade.
Se minha pesquisa (cujos frutos são apresentados nesta monografia) serve de base, a “igreja por vir” da imaginação dos neotradicionalistas tomberguianos encarna “um catolicismo obediente, piedoso, profundamente tradicional” em toda sua glória pré-conciliar, com sua antiga liturgia e costumes restaurados, mas “que [não] tem medo de abraçar... a sabedoria cristã, onde quer que se encontre” (Buck) e, de fato, a encontra devidamente nos supostos ditos do deus egípcio Thoth – “a sabedoria alquímica pertencente à tradição hermética” da “grande doutrina perene, que... brota do próprio Cristo” (Smith) [1] e “deve ser Cristianizada – não repudiada” (Buck)[2] – e na Cabala, onde vê um “anel da verdade”. (Caldecott) É “com base nesta Cabala assimilada” que a “Igreja vindoura” “realizará sua própria catolicidade autêntica e definitiva”, tendo finalmente “resolvido o enigma das ‘religiões separadas’...”(Smith)[3] Separadas, isto é; não que uma seja falsa, porque “a presença de um elemento central e propriamente divino na religião não-cristã” (Borella) não seria mais negada, mas afirmada: “Os cristãos não podem deixar de reconhecer que Deus falou através do Alcorão”, por exemplo, “...[que] deu inúmeros bons frutos...” (Caldecott).
Esta nova Igreja Católica, mais autenticamente Católica, ao retomar “o processo de batizar o Hermetismo” e retornar à “visão mágica da vida”, finalmente alcançará uma “síntese entre Hermetismo/Neoplatonismo e Cristianismo Sacramental” – uma “união da Igreja Católica com o Hermético” (Coulombe) – tendo se livrado dos grilhões do Tomismo; (Smith, Coulombe) “da Neo-Escolástica intelectualizada e corrompida”; e “o reacionarismo Tridentino da Contra-Reforma”, que durante séculos impediu o desenvolvimento de “uma relação saudável com o cosmos” baseada na astrologia (Martin), que negou o acesso aos “escritos Herméticos... que precisamos para desenvolver uma mistagogia contemporânea efetiva” e uma “ciência dos milagres”; (Caldecott) e “contribuiu para o declínio da Igreja” ao minar “os próprios fundamentos tanto da Igreja Medieval quanto do Estado” (Coulombe).
Como possuiremos uma “visão expansiva do Catolicismo” (Martin), quando a Igreja estiver “livre das limitações de perspectiva e idiossincrasias endêmicas desta ou daquela época, como também da autocracia de qualquer estilo teológico particular” (Smith) e quando os neo-tradicionalistas, seguindo Tomberg, terminarem de “implodir as noções complacentes do que significa ser ‘Católico’...”! (Martin).
Uma vez que é “muito mais aberta e liberal” do que a antiga Igreja, “há espaço na [nova] Igreja para pessoas que... estão convencidas da reencarnação” (Spaemann)[4] – um “fato da experiência” (Tomberg , p. 93) que é “provavelmente verdade”, porque a Cabala afirma. (Martin) A “Igreja futura” não será tão “aberta” a ponto de promulgar formalmente isso como dogma, no entanto, pois “vale cem vezes mais... negar a doutrina da reencarnação do que transformar pensamentos e desejos para a futura vida terrestre e, assim, ser tentado...” (Tomberg, p. 361). Qualquer coisa que não seja uma repetida obscuridade sobre o assunto não seria “pastoral…” (Smith). No entanto, “a revolução das almas” (Martin) fará parte de um magistério superior e esotérico de ensinamentos secretos - para incluir também a “afirmação de um elemento sobrenatural no homem ... [que é] ‘incriado e incriável’”, e “a unidade transcendente das religiões”, entre outros - que “são compreensíveis para muito poucos, e… [cuja] divulgação para os fiéis em geral não é apenas desnecessária, mas perigosa ao extremo” (Smith) e, portanto, serão ensinadas apenas aos iniciados, que podem se beneficiar delas. Para todos os outros, o magistério inferior, tradicional e exotérico será suficiente: “Somente aquele com gênio deve (e pode) transcendê-lo”. (Tomberg)
Mas antes que o Corpo Místico de Cristo possa ser transfigurado dessa maneira – antes que o “segundo milagre de Pentecostes” do “aprofundamento, elevação e expansão da tradição” (Tomberg)[5] possa acontecer – o Catolicismo deve passar por “uma completa mudança de paradigma” pelo “abandono da casca de sua organização institucional”, a Igreja de outrora, que “deve se sacrificar – como Cristo, que teve de morrer para que o Cristianismo pudesse emergir”; exceto, neste caso, que o que emerge será “a verdadeira Igreja”, que até agora tem sido “em grande parte invisível” (Martin) conduzida através dos tempos pelo espírito de São João Apóstolo, o “discípulo amado que... foi, é e sempre será o representante e guardião do coração [de Cristo]...” (Tomberg, p. 6). Os católicos não devem se alarmar com essa transformação aparentemente cataclísmica, no entanto, porque a velha Igreja “teve sua vida natural” e “seu propósito foi cumprido; as sementes foram plantadas para uma nova primavera, que desta vez não se seguirá, mas pressagiará à vinda [de Cristo]”. (Caldecott)
E quando Cristo vier, quão melhor Ele será do que o velho Cristo de nossos equívocos tão estreitos! O velho Cristo era apenas um Homem-Deus; o novo e verdadeiro Cristo – revelado a nós pelos “chamados hereges… livre de obrigações com dogmas”, como “aquele princípio que nos guia através dos perigos das promessas feitas por Lúcifer e Ahriman e nos ajuda a permanecer no real” (Martin) – é muito mais do que a mera Segunda Pessoa da Santíssima Trindade: Ele é o próprio universo, pois “Cristo é a chave para o mundo, e esse… mundo – tal como era antes da Queda e tal como será depois de sua Regeneração – é o Verbo, e esse... Verbo é Jesus Cristo” (Tomberg, p. 195) a quem os fiéis de todas as religiões “estão destinados a descobrir e tomar posse no final do caminho, quando eles tiverem, Deo volente, alcançado o que o cristianismo chama de theosis; pois, de fato, essa verdade não é mais uma questão de doutrina, de concepções teológicas ou metafísicas, mas é o próprio Deus”. (Smith)
Ó admirável nova Igreja, que tem gente assim...!
Como diz o Dr. Martin, “ninguém gosta de mudar, muito menos mudar os paradigmas...”, pois é, de fato: “...mas isso é claramente o que nos confronta na obra de Tomberg”. Pode me chamar de ludita, mas não tenho certeza de que essa seja uma direção que o movimento católico tradicional queira tomar – porque nada disso tem qualquer semelhança com a fé na qual fui catequizado quando era apenas um jovem convertido.
Mas, de novo, me ensinaram “o terrível Catecismo de Baltimore”, então que sei eu?
Alistair McFadden é um pseudônimo. Embora ele deseje permanecer anônimo, ele pode ser contactado por e-mail em justacatholic@protonmail.com, ou @JustACatholic1 no Twitter
Notas:
[1] Martin, M. & Smith, W., In Quest of Catholicity: Malachi Martin Responds to Wolfgang Smith (Angelico Press, 2016), p. 76
[2] Buck, R., Cor Jesu Sacratissimum: From Secularism and the New Age to Christendom Renewed (Angelico Press, 2016), p. 249
[3] Martin, M. & Smith, W., In Quest of Catholicity: Malachi Martin Responds to Wolfgang Smith (Angelico Press, 2016), p. 76
[4] Isto é, Pietro Archiati, parafraseando o que ele alega que Spaemann lhe transmitiu (e que Spaemann nunca negou).
[5] Tomberg, V., Lazarus, Come Forth! Meditations of a Christian Esotericist (SteinerBooks, 2006), [sem paginação]