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Parte V: O Renascimento do Neoplatonismo e a Tradição Hermética

Intimamente relacionado ao fenômeno da Cabala está o Hermetismo, o qual, de acordo com Albert Pike, “pode ser precisamente definido como Cabala em ativa realização...” Os assim chamados Hermetistas são discípulos de (o mitológico) Hermes Trimegistro – um suposto oráculo (ou algumas vezes a encarnação humana) do antigo deus Egipcio Thoth – e estudantes de antigos textos a ele atribuídos, coletivamente conhecidos como Corpus Hermeticum. É para esses praticantes das ocultas “ciências Herméticas” que Valentim Tomberg endereça as epístolas que compõem seu Meditations on the Tarot.

Já vimos (na Parte Um) que Roger Buck, o celebrado autor de Cor Jesu Sacratissimum e The Gentle Traditionalist, simultaneamente se identifica como um “Católico tradicional” e “um aspirante ao Hermetismo Cristão” (“A tradição Hermética originando com Hermes Trimegistro deve ser Cristianizada – não repudiada,” ele defende[1]); e (na Parte Três) que o “tradicionalista Católico” Professor Wolgang Smith concebe o Hermetismo como um afluente da “única grande doutrina perene, a qual ... jorra de Cristo Mesmo.”[2] Na lista desses defensores do Hermetismo podemos adicionar o já mencionado Dr Michael Martin – um confesso “Rosacruciano” – e Stratford Caldecott, que argumentou que “os escritos Herméticos ... fornecem muitos dos recursos que nós precisamos para desenvolver uma mistagogia contemporânea efetiva”; e, em outro lugar:

[Citando Tomberg:] Agora é o momento para o movimento Hermético fazer a verdadeira paz Cristã com a Igreja e deixar de ser seu filho semi-ilegítimo, levando uma vida parcialmente tolerada mais ou menos na sombra da Igreja – e para tornar-se eventualmente uma criança adotada, e mesmo um filho reconhecido como legítimo. Mas ‘são precisos dois para que haja amor’ ... [fim da citação.]”

“O desafio de desenvolver uma ciência dos ‘milagres’ (no senso comum e largo da palavra) é sério. Não se deve descartar todo o movimento Hermético como se significasse somente o ressurgimento da heresia e culto satânico.”

Num post em um blog, “imaginação Hermética,” o escritor tradicional Católico Charles A. Coulombe – o autor de muitos livros Católicos, incluindo o recém lançado Blesses Charles of Austria: A Holy Emperor and His Legacy (O Bendito Carlos da Austria: Um Santo Imperador e Sua Herança), da tradicionalista TAN Books – que fez um grande elogio para Cor Jesu Sacratissimum (ver Parte Um), inicia com uma “extensa citação [que] serve bem como uma introdução à visão de mundo Hermética ou Mágica”:

Além desses campos e dessa fronteira há o lendário mundo-maravilha da teurgia, assim chamado, da Magia e Bruxaria, um mundo de fascinação e terror, e à medida que a mente o observa ela é acalmada, mas de qualquer modo é a antítese de uma possibilidade que possa ser admitida. Lá todos os paradoxos parecem ser realizados, contradições coexistem logicamente, o efeito á maior do que a causa e a sombra é mais do que a substância. Lá o visível derrete no não visto, o invisível é manifestado abertamente, o movimento de um local a outro é alcançado sem que se atravesse a distância que os separa, matéria atravessa matéria. Lá duas linhas retas podem definir um espaço; o espaço tem uma quarta dimensão, e campos inexplorados além dele; sem metáfora e sem fraude, o círculo é matematicamente quadrado. Lá a vida é prolongada, a juventude renovada, a imortalidade física assegurada. Lá a terra se torna ouro, e ouro terra. Lá palavras e desejos possuem poder criativo, pensamentos são coisas, o desejo realiza seu objeto. Lá, também, os mortos vivem e as hierarquias de inteligência extra-mundana se comunicam facilmente, e se tornam ministros ou algozes, guias ou destruidores do homem. Lá a Lei da Continuidade é suspensa pela interferência da lei superior da Fantasia. (A.E. Waite, The Book of Ceremonial Magic, University Books, NY 1961, pp. 3-4)”

Se o “lendário mundo-maravilha” de Waite parece totalmente estranho e pertubador, o que segue é mais estranho ainda – porque o texto de quase 8.000 palavras que este longo excerto precede é uma aprovação da “visão mágica do mundo” que ele descreve. Mais que isso, é praticamente um tributo à oculta Ordem Hermética Golden Dawn (na qual o notório Satanista Aleister Crowley começou sua diabólica carreira) e aos gigantes literários cuja espiritualidade esotérica ele influenciou:

A G.D. [Golden Dawn] aspirava não somente a ser uma academia completa de conhecimento oculto... mas também um forum para a prática Místico-Mágica – e essa Mágica era entendida no mesmo sentido que dava Eliphas Levi. Nas palavras de Stephan Hoeller, Mágico nesse sentido é ‘um termo guarda-chuva para o crescimento ou expansão da consciência por meio de modalidades simbólicas.’ Para transmitir ambos conhecimento e prática, um elaborado sistema de graus foi estabelecido; à medida que o estudante alcançava esses graus, ele ou ela aprendia habilidades ainda mais esotéricas. Essas incluíam conhecimentos de Cabala (a qual... era a estrutura conceitual básica da G.D.); Tarot; Geomancia; Astrologia; Alquimia; e ritual Mágico. Os trabalhos associados a esse último incluíam a confecção de símbolos mágicos e talismãs, comunhão com espíritos, evocação de Demônios, e invocação de Anjos. Além disso, o iniciado na Golden Dawn aprendia a ‘perscrutar,’ o que incluía tanto a clarevidência quanto a viagem astral ...

“Não pode haver dúvida de que muitos irmãos e irmãs da G.D. alcançaram em suas próprias vidas devocionais a mesma síntese entre Hermetismo/Neoplatonismo e Cristianismo Sacramental que caracterizou os Ultra-Realistas Medievais [e] Humanistas Renascentistas... Em uma palavra, seu Cristianismo, enquanto ligados aos dogmas da Revelação, viu o mundo tanto como um símbolo e ocultação de realidades mais elevadas, contato que era alcançado através de mágica e adivinhação, quanto num mais puro e mais elevado nível, através dos Sacramentos.”

“O maior representante destes foi talvez o Católico A.E. Waite, o qual ... escreveu sobre a própria Golden Dawn: ‘Não está em competição com Igrejas Cristãs externas, mas é uma Igreja dos Eleitos, uma Assembleia Oculta e Santa... é uma Casa do Santo Graal na santidade de um Elevado Simbolismo, onde o sagrado intento da Ordem é consumado sobre Pão e Vinho’...

[A ideia de uma “Igreja dos Eleitos”, secreta e mística, tipicamente identificada com o Apóstolo São João, distinta (embora nunca separada) da visível e “exotérica” Igreja de São Pedro, é um tema recorrente na tradição Cristã-Hermética, e é explícita nas Meditations de Tomberg (p. 6): “O discípulo amado que ouviu o coração do Mestre era, é, e sempre será o guardião deste coração... A missão de João é manter a vida e a alma da Igreja viva até a Segunda Vinda do Senhor... Este é o espírito do Hermetismo.”]

“Por diversas razões escritores Cristãos e não-Cristãos tentam estabelecer uma dicotomia entre elementos Cristãos e ocultos nos textos deles [os autores que discutimos]... onde na verdade o que há é uma síntese...

“Essa união do Católico com o Hermético, do Cristão com o Esotérico, teria... feito todo sentido para o Ultra-Realista, o Humanista, ou o camponês...”

“Todos esses conceitos, aplicados à Cristandade, podem parecer peculiares... Mas somente é idiossincrático se alguém se refere às formas Aristotélicas e/ou à pós-Reforma do Cristianismo...”

“O hermetismo Cristão contemplado pela Golden Dawn, como todo Hermetismo deste tipo, poderia bem... ser simbolizado pelo Ás de Copas do Baralho de Tarot. Considerado meramente como uma ferramenta de advinhação da sorte, ele pode significar planos ou pensamentos ocultos, pronto para ser posto em ação mas cujo sentido ainda está escondido. Em um nível mais elevado pode significar proteção e conhecimento. Mas sua aparência sugere um mundo de significados. Pois ele mostra um cálice sustentado por uma mão que sai de uma nuvem. A Pomba do Espírito Santo leva uma hóstia, que tem gravada uma cruz, diretamente para dentro do cálice, e água pura e viva sai do cálice e jorra para o mar. Nós temos num só desenho a representação do sistema Sacramental (a Eucaristia e o Batismo), e do Santo Grall. Dois mistérios, um conquistado somente no fim de uma longa busca, e o outro tão próximo que pode ser considerado garantido. Ainda que, de fato, eles sejam um. Este é certamente o mais profundo Hermetismo Cristão. É uma honra para a Golden Dawn que a Ordem ao mesmo tempo desenvolveu uma autêntica vertente desse Hermetismo, e atraiu membros do calibre necessário para transmiti-lo a um mundo que necessita dele.”

[Coulombe – outro dos admiradores de Tomberg – tem uma particular afinidade com o Tarot, como veremos.]

A síntese Cristã-Hermética exemplificada pelos ocultistas da Golden Dawn, nos asseguram repetidamente, teria feito “todo sentido” para os Católicos “Ultra-Realistas” (i.e. Neoplatonistas) da Renascença, e é com esses que Coulombe resolutamente se alinha, como fica evidente em outra de suas postagens em blog, “Ultra-Realism FAQ.” Nesse artigo, o convicto Neoplatonista Coulombe zomba da filosofia “Aristotélica” de São Tomás de Aquino, a qual ele denuncia como “adequada para Católicos débeis”, “simplesmente falsa”, e “uma receita para o desastre” e responsável por “devastar” a Cristandade. “A canonização de São Tomás”, ele lamenta, “e o emprego de sua filosofia (ou, para ser mais preciso, versões mais ou menos distorcidas dela) na Contra-Reforma, pareceu dar a ela um status oficial, como se fosse A filosofia Católica.” Na avaliação de Coulombe, a Cristandade tem percorrido uma espiral em direção à ruína desde então: O Tomismo “contribuiu para o declínio da Igreja... [e] abalou as fundações da Igreja e do Estado Medievais,” ele escreve.

O único modo de parar e reverter esse suposto declínio é repudiar o Tomismo e abraçar a “visão de mundo Mágica” da Golden Dawn; esse é o argumento fortemente implicado no texto citado acima, e dito explicitamente no “A Ortodoxia Esotérica do Catolicismo,” um artigo de 1990 escrito por Coulombe para a décima sexta edição da (agora extinta) revista Gnosis, na qual ele (supostamente)[3] escreveu:

“Ninguém pode dizer com completa precisão o que irá acontecer. Mas nós podemos saber o que deve acontecer para que a Igreja funcione de forma adequada. Ela deve retornar para a... visão mágica da vida; e o processo de batizar o Hermetismo, interrompido pela Reforma, deve ser completado.”

Um malabarismo retórico está sendo feito aqui, já que a “Reforma” Protestante somente pode realmente ser acusada de ter interrompido “o processo de batisar o Hermetismo” na medida em que provocou a Contra-Reforma inaugurada pelo Concílio de Trento, no qual – como o Papa Leão XIII ressaltou em sua (vigorosamente Tomista) encíclica Aeterni Patris – “os Padres de Trento ordenaram que no conclave deve estar presente no altar, juntamente com a sagrada Escritura e os decretos dos supremos Pontífices, a Suma de Tomás de Aquino, para buscar Conselho, razão, e inspiração.”

O Tomismo, em outras palavras, foi efetivamente canonizado em Trento (uma honra frequentemente renovada pelos mais sábios dos Pontífices Romanos, incluindo especialmente Leão XIII e São Pio X) e isso foi este ato Católico – e não a heresia Protestante por ele rejeitada – que bloqueou os esforços dos Hermetistas de insinuarem-se com o Magistério: “Elementos ortodoxos da Contra-Reforma,” explica Dr John F. Nash, Editor Emérito da coleção revisada Esoteric Quarterly, “... [produzida] para abafar qualquer influência que o Hermetismo ainda tivesse nos altos escalões da Igreja Romana. Em uma deliberada desfeita para com o Neoplatonismo Renascentista e para com o Hermetismo, ao qual este último havia dado legitimidade, o Concílio de Trento reafirmou o Aristotelismo de Tomás de Aquino como sendo a filosofia oficial da Igreja Católica.” Que desgosto para Charles A. Coulombe!

É irônico que Coulombe pudesse asseverar que “não podemos dizer ... o que irá acontecer,” porque há inúmeros arquivos de áudio disponíveis online nos quais ele – juntamente com seu amigo de longa data Dr Stephan A. Hoeller, um “bispo” da Ecclesia Gnostica (Igreja Gnóstica) – tenta predizer o futuro através da leitura de cartas de Tarot. Esses são registros do evento anual “Tarot Forecast for the U.S.A.” organizado (numa loja Teosófica) pela Sociedade Gnóstica de Los Angeles, cujo website orgulhosamente anuncia a participação de “nosso bom amigo, Charles Coulombe” na sua “popularíssima sessão de advinhação anual.” Não sou de modo algum um filósofo, mas se isso é a aplicação prática do “Ultra-Realismo” Neoplatonista, que foi colocado de lado pela ascensão do Tomismo, então não estou nem um pouco surpreso ou desapontado de que a Divina Providência tenha escolhido o Doutor Angélico, com sua grande sabedoria e com o trabalho de sua vida, para inocular a Igreja contra maléfica influência.

Charles Coulombe, certamente, é um excêntrico. Mas ele é também um Editor Contribuinte da tradicionalista Crisis Magazine, assim como da “Scholar-in-Residence” na Tumblar House, um editor pequeno mas prestigioso que reclama para si “uma reputação por publicar livros Católicos de qualidade que são aderentes à tradição e ortodoxia Católica,” e cujos autores incluem Robert Cardinal Sarah, Fr Chad Ripperger, e Dr Taylor Marshall. A “Imaginação Hermética” e o “FAQ Ultra-Realismo” de Coulombe, citado acima, foram ambas publicadas no blog oficial da Tumblar House.

Fr Ripperger pode ter sido mais que correto do que imaginou quando ele alertou no mesmo blog (apesar de que um pouco hiperbolicamente) que “o movimento tradicionalista está lentamente se tornando um movimento Gnóstico entre alguns ...”

Notas:

[1] Buck, R., Cor Jesu Sacratissimum: From Secularism and the New Age yo Christendom Renewed (Angelico Press, 2016),p.249

[2] Martin, M. & Smith, W., In Quest of Catholicity: Malachi Martin Responds to Wolfgang Smith (Angelico Press, 2016), p.76

[3] Eu digo supostamente porque não consegui encontrar o artigo em questão online, embora ele certamente exista e foi de fato redigido por Gnosis – como o nome sugere, uma publicação Gnóstica – pelo Sr Coulombe; a citação aqui reproduzida foi postada em um forum de internet Católico.