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Parte IV: Cabala para Católicos? “Católicos hebreus” e seu Cardeal

Quando tomei conhecimento da crescente influência da Cabala no diálogo católico tradicional, entrei em contato com um estimado padre-teólogo franciscano em boas relações com a Igreja, a quem conheço pessoalmente e em cujo julgamento em tais assuntos confio de maneira tácita. Perguntei-lhe diretamente se a Cabala poderia ter alguma aplicação legítima na teologia católica ortodoxa. Sua resposta foi estranhamente incisiva: “Não, não pode”. De fato, como eu li mais tarde na Enciclopédia Católica, “várias de suas doutrinas lembram as de Pitágoras, Platão, Aristóteles, os neoplatônicos de Alexandria, os panteístas orientais, ou egípcios, e os gnósticos das primeiras eras cristãs. Suas especulações sobre a natureza e a relação de Deus com o universo diferem materialmente dos ensinamentos da Revelação”.

Deve-se notar neste ponto, para evitar dúvidas, que a radical irreconciliabilidade da Cabala com o Depósito da Fé não é de forma alguma um preconceito dos tradicionalistas católicos judeufóbicos, e até os estudiosos católicos e filo-semitas reconheceram o fato. O Dr. John Lamont, da Universidade Católica da Austrália, por exemplo, ao escrever o que é um tratamento extremamente simpático ao judaísmo (intitulado “Por que os judeus não são os inimigos da Igreja”) para a revista de grande circulação Homiletic & Pastoral Review, interpola uma qualificação importante: “Deve-se mencionar que a Cabala… não é compatível com o monoteísmo”. Não apenas incompatível com o cristianismo, mas até com o monoteísmo!

A extensão em que os Cabalistas estão ganhando força no meio da Tradição Católica é difícil de quantificar com precisão, mas talvez possamos avaliar um pouco considerando o caso da Associação de Católicos Hebreus (AHC em inglês: Association of Hebrew Catholics), um apostolado leigo antes sediado na Diocese de Lansing, nos EUA, e ostentando cerca de dez mil membros em todo o mundo, cuja missão declarada é “preservar a identidade e a herança dos judeus dentro da Igreja... ajudar todos os católicos a entender as raízes judaicas da fé católica e servir a todas as pessoas em sua jornada espiritual, tanto dentro como fora da Igreja Católica”. A AHC se esforça para alcançar esses objetivos conectando seus membros separados geograficamente para facilitar, entre outras coisas, “Havurot” (no plural; “Havurah” no singular) – irmandades regionais e informais dos chamados “católicos hebreus” que se reúnem regularmente para socializar, rezar e estudar. Um exemplo de atividades típicas de Havurah é dado no site da AHC:

Do Bnei Miriam Havurah, Tasmânia, Austrália…”

“Nossas atividades de Havurah incluem uma celebração semanal da tradicional refeição do Sabá Judaico. Acendemos as luzes usando as orações tradicionais e depois fazemos a oração da noite presente no ofício católico. Rezamos o Salmo judaico do dia e depois cantamos o Lecha dodi (“Vem, meu amado”) em homenagem a Nossa Senhora, a Rainha do Sabá. Também cantamos a canção de boas-vindas aos anjos e rezamos outras orações do Sidur antes de dizer o Kidush. Após a refeição, rezamos o Birkat Mazon (Graça). Durante a refeição conversamos ou compartilhamos algum aspecto da vida judaica da Torá. Em outras ocasiões, também estudamos os ensinamentos de Rebe Nachman [cabalista] ou do Zohar ou outros escritos judaicos à luz de nossa fé católica. Também participamos de certos eventos com a comunidade judaica ortodoxa local em Hobart”.

Entre 2002 e 2004, The Hebrew Catholic, o boletim trimestral oficial da associação AHC, publicou em três edições um ensaio, “A Eucaristia e a Tradição Mística Judaica”[1], no qual o autor, líder da AHC e ativista Athol Bloomer, opina que “o estudo da tradição mística judaica [ie Cabala] à luz da Eucaristia é… essencial no desenvolvimento futuro de uma espiritualidade Católica Hebraica que enriqueceria toda a Igreja”. Para Bloomer, “uma das coisas importantes para o movimento Católico Hebreu é desenvolver uma autêntica teologia e espiritualidade Católica Hebraica que seja centrada na eucaristia. Se vamos ser apenas católicos gentios, helenísticos-romanos, que por acaso já foram judeus, acho que devemos fechar a boca e admitir que o regime da assimilação triunfou”. Seu ensaio foi posteriormente republicado no site da AHC, onde ainda pode ser lido hoje [2].

Também estão disponíveis no site da AHC – com o objetivo presumido de promover essa “autêntica teologia e espiritualidade Católica Hebraica” – textos como “The Book of Understanding” (O livro do entendimento), do “estudioso das Escrituras e de textos rabínicos”, Michael Anthony, que o falecido rabino Joseph H. Ehrenkranz recomenda como “uma obra enciclopédica que nos permite subir a Escada do Entendimento... Enquanto [o autor] apresenta cada degrau da escada, ele invoca as Sagradas Escrituras, Midrashic e outros textos rabínicos, o Talmude Babilônico e de Jerusalém, o Zohar, além de comentários da tradição Cristã e Judaica”. Confesso que não li esta obra, mas se é uma leitura adequada para a edificação dos católicos, então como é que um rabino judeu ortodoxo – um adepto de uma religião completamente diferente (e falsa) – pode descrevê-la como “em essência um livro para a vida, uma grande contribuição para aqueles que procuram um modo de vida baseado na fé fundamental que conduz ao Entendimento”?

Em 2006, dois anos após o texto “A Eucaristia e a Tradição Mística Judaica” aparecer no The Hebrew Catholic, a AHC transferiu sua sede para a Arquidiocese de Saint Louis, onde o arcebispo em exercício provou ser um anfitrião muito complacente. Em uma carta a David Moss, presidente da AHC, ele escreveu:

“Em primeiro lugar, permita-me expressar minha estima pelo apostolado da Associação dos Hebreus Católicos. A missão da vossa associação responde, da maneira mais adequada, ao desejo da Igreja de respeitar plenamente a característica vocação e herança dos Israelitas na Igreja Católica. A Igreja Católica Romana conhece e valoriza o vosso quinhão particular e privilegiado na economia da salvação, atribuída por Deus Pai ao povo de Israel...”

“A sede da Associação dos Católicos Hebreus é muito bem-vinda vindo para ser realocada na Arquidiocese de Saint Louis. Além disso, se houver algo que eu possa fazer para vos ajudar a estabelecer a sede da Associação na Arquidiocese, por favor me avise. Instruí minha equipe a dar-vos toda a ajuda possível na localização de um local adequado para a sede e aposentos pessoais”.

O mesmo arcebispo - agora emérito - atualmente faz parte do Conselho de Assessores da AHC. Ele é o Cardeal Raymond Leo Burke, o suposto porta-estandarte da Tradição na Hierarquia Católica!

Talvez Sua Eminência desconheça as inclinações cabalísticas da AHC. Talvez o Dr. Taylor Marshall, outro decano do movimento católico tradicional, também não soubesse quando discursou em uma conferência da AHC, em 2010, e depois escreveu em seu blog popular: “Foi um momento maravilhoso e espero participar novamente no futuro”. Não posso falar por nenhum deles, é claro, embora suspeite que o Dr. Marshall – que mais tarde provocaria a ira dos católicos liberais ao se manifestar contra a prática “judaizante” dos cristãos que celebram o Seder de Pessach, que o AHC encoraja ativamente – de fato tenha participado sem plena consciência desses problemas. O Cardeal Burke, por outro lado, participou de pelo menos um desses Seders organizados pela AHC que o Dr. Marshall argumenta convincentemente (citando São Tomás de Aquino e o Concílio de Florença) é pecado mortal para um católico participar. Como se explica isso?

Surpreendeu-me que o Cardeal Burke, por quem sempre tive o maior respeito e admiração, não só deixasse de censurar uma organização sob sua jurisdição que se propõe a “enriquecer toda a Igreja” com uma espiritualidade Gnóstico-Cabalista, mas optasse por endossar e até mesmo associar-se pessoalmente a ela. Eu posso estar mostrando minha ingenuidade de leigo aqui, mas eu teria pensado que qualquer prelado católico que pretenda ser fiel à Tradição necessariamente defenderia essa tradição em sua totalidade, incluindo o decreto de 1887 do Papa Leão XIII proscrevendo os vários textos da Cabala (entre outros), onde se lê, em parte:

Vossa Santidade, o Papa Clemente VIII, em sua Constituição contra escritos ímpios e livros judaicos, publicada em Roma no ano de Nosso Senhor 1592... expressamente e especialmente estabeleceu e desejou que os ímpios Talmúdicos, Cabalísticos e outros nefastos livros dos judeus sejam inteiramente condenados e que devem permanecer sempre condenados e proibidos, e que sua Constituição sobre esses livros deve ser observada perpétua e inviolavelmente”.

Talvez Sua Eminência possa fazer a gentileza de esclarecer sua posição sobre o assunto?

Notas

[1] Parte I (edição nº77 verão-outono de 2002); Parte II (edição №78, inverno-primavera de 2003); Parte III (edição №80, verão de 2004) [PDF indisponível]

[2] Disponível em:

https://www.hebrewcatholic.net/eucharist-jewish-mystical-tradition-part-1/

https://www.hebrewcatholic.net/eucharist-jewish-mystical-tradition-part-2/

https://www.hebrewcatholic.net/eucharist-jewish-mystical-tradition-part-3/