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Parte III: A Metafísica Gnóstica da Cabala

O que é essa “velha fé primitiva” que, segundo os maçons, é o “fundamento de todas as religiões”? Todo o opúsculo de Albert Pike é uma resposta maçônica a esta pergunta:

Todas as religiões verdadeiramente dogmáticas saíram da Cabala e volvem a ela: tudo que é científico e grandioso nos sonhos religiosos de todos os illuminati, Jacob Boehme, Swedenborg, Saint-Martin e outros, é tomado de empréstimo da Cabala; todas as associações maçônicas devem a esta seus segredos e seus símbolos.”

“Somente a Cabala consagra a aliança da Razão Universal e do Verbo Divino; estabelece, pelos contrapesos de duas forças aparentemente opostas, o eterno equilíbrio do ser; só ela reconcilia Razão com Fé, Poder com Liberdade, Ciência com Mistério; tem as chaves do Presente, do Passado e do Futuro.”

“A Bíblia, com todas as alegorias que contém, expressa, de maneira apenas incompleta e velada, a ciência religiosa dos hebreus...”

“A Cabala é a tradição primeva... e nas Tradições Secretas da Cabala encontramos uma Teologia inteira, perfeita, única... O Segredo do EQUILÍBRIO UNIVERSAL… entre o Bem e o Mal, a Luz e as Trevas no mundo, que assegura que tudo é obra da Sabedoria Infinita e de um Amor Infinito...”

A Cabala (como se escreve mais comumente) é uma tradição mística judaica esotérica de origem incerta. O rabino Geoffrey W. Dennis, professor de Cabala na Universidade do Norte do Texas e autor de The Encyclopedia of Jewish Myth, Magic, and Mysticism, oferece a seguinte introdução aos princípios básicos e à prática no site oficial da Union for Reform Judaism:

“Cabala (também grafada Kabbalah, Cabala, Qabala) – às vezes traduzida como ‘misticismo’ ou ‘conhecimento oculto’ – é uma parte da tradição judaica que lida com a essência de Deus…”

“Seus praticantes tendem a ver o Criador e a Criação como um continuum, e não como entes díspares, e desejam experimentar intimidade com Deus... Dentro da alma de cada indivíduo há uma parte oculta de Deus que está esperando para ser revelada..., o cabalista Moses Cordovero escreve: “A essência da divindade encontra-se em cada coisa, nada existe senão Ela ... Ela existe em cada existente”.

“Há três dimensões em quase todas as formas de misticismo judaico, que provavelmente serão compreendidas por apenas um pequeno número de pessoas que possuem conhecimento especializado ou interesse no tópico:”

“O aspecto especulativo da Cabala envolve a busca da realidade oculta do universo e do conhecimento secreto sobre suas origens e sua organização – uma busca que é mais esotérica do que mística…”

“A dimensão da experiência da Cabala envolve a busca real pela experiência mística: um encontro direto, intuitivo e imediato com uma Divindade próxima, mas oculta. Como escreveu Abraham Joshua Heschel, os místicos ‘… querem provar todo o trigo do espírito antes que seja moído pelas mós da razão’. Os místicos buscam especificamente extasiante de Deus, e não meramente o conhecimento sobre Deus...”

“A dimensão prática da Cabala envolve rituais para ganhar e exercer poder para efetuar mudanças em nosso mundo e nos mundos celestiais além do nosso. Este poder é gerado pela ação dos mandamentos, convocando e controlando forças angélicas e demoníacas, e de outra forma explorando as energias sobrenaturais presentes na Criação… O verdadeiro mestre desta arte cumpre o potencial humano de ser um co-criador junto a Deus…

Se tudo isso – o dualismo, o panteísmo, os segredos, a feitiçaria – parece ao leitor católico com o odor fragrante da heresia gnóstica, não parece erroneamente. O filósofo israelense Gershom Scholem, o proeminente estudioso moderno da Cabala, admite isso na Encyclopaedia Judaica:

“Desde o início de seu desenvolvimento, a Cabala abraçou um esoterismo próximo ao espírito do gnosticismo, que não se restringia à instrução no caminho místico, mas também incluía ideias sobre cosmologia, angelologia e magia”.

Com base na erudição de Scholem, o falecido professor Orlando Fedeli, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, explica que, como os gnósticos, “a Cabala supõe que há dois princípios opostos em Deus: o do bem e o do mal... [Citando Scholem:] “Tudo o que é diabólico tem suas raízes em alguma parte do mistério de Deus”.

O caráter inegavelmente gnóstico desse misticismo judaico também é reconhecido por Joseph Dan, professor de Cabala na Universidade Hebraica de Jerusalém, que observou a apresentação da Cabala do “universo como um campo de batalha entre poderes divinos satânicos e poderes divinos benéficos, traçando um mundo paralelo de divinas “emanações da esquerda”, que são os inimigas de Deus, mas são divinas no sentido total do termo... A Cabala crê firmemente que o destino dos poderes divinos é decidido pelas boas e más ações dos seres humanos, e que é tarefa do povo judeu ‘corrigir’ (tikkun) a incompletude da própria divindade”; isto é, unificando os opostos de Deus e Satanás, bem e mal, ser e não-ser, ordem e caos.

Ai de vós os que ao mal chamais bem, e ao bem mal, que tomais as trevas por luz, e a luz por trevas, que tendes o amargo por doce, e o doce por amargo!” (Isaías 5:20). “ “Até quando claudicareis vós para os dois lados (inclinando-nos umas vezes para o Senhor e outras para Baal)? Se o Senhor é Deus, segui-o; se, porém, o é Baal, segui-o”. (1 Reis 18:21)“ “Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há-de odiar um e amar o outro, ou há-de afeiçoar-se a um e desprezar o outro”. (Mateus 6:24) “Pois, que união pode haver entre a justiça e a iniquidade? Ou que sociedade entre a luz e as trevas? Que concórdia entre Cristo e Belial?” (2 Coríntios 6:14-15). Estas são as perguntas bíblicas que eu colocaria não apenas ao maçom Pike e ao judeu Dennis, mas aos autores católicos promovidos pela “principal editora de livros católicos tradicionais de imaginação e intelectualmente rigorosos”, Angelico Press: Valentin Tomberg, prof. Jean Borella, Roger Buck, Stratford Caldecott, prof. Wolfgang Smith e Dr. Michael Martin, como também para aqueles outros católicos, supostamente tradicionais, de opinião teológica semelhante (alguns dos quais encontraremos nas Partes IV e V) .

Já vimos (na Parte I) que a Cabala é uma grande influência nas Meditações sobre os arcanos do tarot de Tomberg, em que, para citar apenas um exemplo, o leitor é informado “que Jesus Cristo é a chave para o mundo, e que o mundo – como era antes da Queda e como será depois de sua Regeneração – é o Verbo, e que o Verbo é Jesus Cristo...” (p. 195) Nesta curta passagem estão contidas as duas doutrinas mais fundamentais (e, acredito, as mais errôneas) da Cabala: emanacionismo e apocatástase, que foram condenadas – e seus proponentes anatematizados – no Concílio Vaticano I[1] e no segundo Concílio de Constantinopla[2], respectivamente. Contra essas heresias gêmeas que o grande padre Reginald Garrigou-Lagrange se levantou quando escreveu seu famoso ensaio de 1946, “Onde nos leva essa ‘nova teologia’?”:

Autores como Téder e Papus, em sua explicação da ‘doutrina martinista’, ensinam um panteísmo místico e um neo-gnosticismo pelo qual tudo sai de Deus por emanação (há então uma queda, um ‘mal cósmico’, um pecado original ‘sui generis’), e todos aspiram ‘ser reintegrados’ na divindade, e “todos” lá chegarão. Isto está em muitas obras de ocultistas recentes tratando do ‘Cristo moderno’, e ‘plenitude em termos de luz astral’, ideias que não são as da Igreja e que são inversões blasfemas porque sempre negam por um meio panteísta o verdadeiro sobrenatural, e muitas vezes até mesmo a negação da distinção entre bem moral e mal moral, a fim de permitir apenas o que é um bem útil ou desejado, incluindo o mal cósmico ou físico, que, com a reintegração [i.e. apocatástase] de todos, sem exceção, desaparecerá”.

O pensamento Gnóstico-Cabalista do autor de Meditações é igualmente claro em uma observação feita por seu amigo (ainda vivo), Dr. Martin Kriele, representante literário e herdeiro de Tomberg:

Ocasionalmente, [Tomberg] falava do mal no qual via não apenas só uma ‘ausência de ser’, mas poderes reais múltiplos e caóticos... Para combater isso, havia a necessidade de um Esoterismo Cristão ‘branco’, do bem, que por si estava à altura dessa tarefa. Poderia desenvolver efeitos ‘mágicos’ se a vontade do homem estiver em perfeita harmonia com a vontade de Deus.

Tais ideias, como diria o padre Garrigou-Lagrange, “não são de modo algum as da Igreja”, porque toda a tradição da Igreja testemunha, com São Tomás de Aquino, que “bondade e ser são realmente a mesma coisa... nenhum ser pode ser mal, formalmente como ser, mas apenas na medida em que carece de ser”. Afirmar que o mal existe é insistir que Deus criou o mal e, portanto, é Ele mesmo em certa medida mal – o que, é desnecessário dizer, tanto constitui uma blasfêmia no catolicismo quanto evidentemente um truísmo na Cabala: “Quando o Santo, bendito seja Ele, criou o mundo”, ensina o Zohar, o texto fundamental da Cabala, “…todas as coisas estavam contidas umas nas outras, a boa e a má inclinação, a direita e esquerda, Israel e as nações, branco e preto. Todas as coisas dependiam umas das outras.”

Nada disso, no entanto, impediu a “luz-guia” da Angelico Press, o falecido Stratford Caldecott, de exaltar Valentin Tomberg como um profeta quase como Elias clamando no deserto do catolicismo decrépito, como ele faz quando proclama, na parte de trás capa da edição cuidadosamente revisada e atualizada da Angelico, sobre a magnum opus de Tomberg, “Meditações sobre o Tarot mostra que o cristianismo não foi perdido, mas vive e respira”. Além disso, dois dos livros de Caldecott – All Things Made New [3] e The Radiance of Being – fazem menções frequentes à Cabala, em cujos textos abstrusos, ele afirma, pode-se encontrar “o anel da verdade”.

O amigo e colega de Caldecott, Dr. Michael Martin, um católico bizantino que, em suas próprias palavras, “se inspira muito nas formas espiritualmente nutritivas do catolicismo... na obra de Stratford Caldecott”, é igualmente apaixonado por Tomberg: “As Meditações sobre o Tarot são uma companhia e uma fonte de renovação espiritual”, escreve ele, e defende a crença do autor na reencarnação (que ele considera “provavelmente verdadeira”) alegando que, embora “alguns sugiram que a Bíblia não ensina a reencarnação, eu não acho é tão simples assim... [porque] a cabala, um ensinamento místico judaico nascido da profunda contemplação das Escrituras, propõe uma doutrina de sod ha-gilgul, “a revolução das almas”. O Dr. Martin também se inspira no trabalho de outro “cristão esotérico”, Rudolf Steiner, cujas próprias especulações metafísicas são igualmente Cabalísticas:

Nos últimos anos, achei a concepção de Rudolf Steiner de Lúcifer e Ahriman muito útil para diagnosticar nossas próprias lutas com o Espírito do Tempo. Embora eu discorde de Steiner em certos aspectos de sua cristologia... acho que algo se aproveita em relação a Lúcifer e Ahriman”.

Para Steiner, Lúcifer é o princípio (ou ser espiritual) que nos tenta com promessas de ‘liberdade’, o desejo de autoexpressão, individualização e uma criatividade absoluta. Ahriman, por outro lado, é o princípio (ou ser espiritual) que promete ordem e uma espécie de eficiência tecnológica e corporativa que nos escraviza ao subumano, nos transforma efetivamente em máquinas. Entre essas duas polaridades, Steiner aponta para Cristo como aquele princípio que nos guia através dos perigos das promessas feitas por Lúcifer e Ahriman e nos ajuda a permanecer no real”.

No post do blog citado acima - publicado no site da Angelico Press - vemos ainda outra expressão do dualismo gnóstico no coração da Cabala, que a cristologia de Steiner, como a de Tomberg (e aparentemente também a de Martin), fazem de Nosso Senhor o “princípio” harmonizador no qual a ordem (Ahriman) e o caos (Lúcifer) encontram seu equilíbrio. Tal é a concordância que Cristo tem com Belial; São Paulo tem a resposta.

Mas, de todos os autores da Angelico, nenhum é um devoto mais entusiasmado da Cabala do que o professor Wolfgang Smith. Em nenhum lugar isso é mais claramente evidenciado do que em sua correspondência com o falecido padre Malachi Martin, compilada pela Angelico Press sob o título In Quest of Catholicity e comercializada como uma “fascinante troca de cartas entre dois célebres tradicionalistas católicos...”:

“Se eu fosse mais jovem, adoraria seguir seus passos para aprender hebraico e mergulhar na literatura cabalística – sem, é claro, esquecer Jacob Boehme. Na verdade, parece-me que a Cabala, o Hermetismo e a doutrina da nossa mística alemã dificilmente podem ser separadas. Esses três legados parecem formar uma tradição subjacente, uma grande doutrina perene, que, como você disse, brota do próprio Cristo. O que Boehme fez foi expor essa doutrina mais claramente e em termos abertamente cristãos. Talvez, graças a ele, a Igreja Católica um dia faça da Cabala coisa própria! E eu me pergunto se talvez não será com base nessa Cabala assimilada que a Igreja acabará por resolver o enigma das ‘religiões separadas’ e, ao fazê-lo, realizará sua própria catolicidade autêntica e definitiva” [4].

Jacob Boehme, é claro, era um herege luterano. Mas o odor da heresia não parece nada desagradável ao professor Smith, que não foi dissuadido de “envolver-se” com o pensamento de Boehme, nem com os ensinamentos místicos de Mestre Eckhart (ver a Parte II), censurados pelo papa, como lemos na sinopse da obra Christian Gnosis de Smith (publicado conjuntamente pela Sophia Perennis e Angelico Press):

“Baseando-se em fontes cristãs – literalmente ‘de São Paulo a Mestre Eckhart’ – Wolfgang Smith formula o que chama de um relato ‘não expurgado’ da ‘gnose’, e demonstra seu lugar central na perfeição da vida centrada em Cristo... O ‘fato da gnose’... tem uma influência decisiva na noção teológica de ‘creatio ex nihilo’... O que assim exige-se, ele afirma, é a noção inerentemente cabalística de uma ‘creatio ex Deo et in Deo’ [ie emanacionismo], não para substituir, mas para complementar a ‘creatio ex nihilo’. Isso leva a um envolvimento com a Cabala Cristã (Pico de la Mirandola, Johann Reuchlin e Cardeal Egidio di Viterbo especialmente) e com Jacob Boehme, culminando em uma exegese da doutrina de Mestre Eckhart. O autor argumenta, em primeiro lugar, que Eckhart não defende (como muitos pensaram) uma teologia de “Deus além de Deus”: em outras palavras, não sustenta uma visão inerentemente sabeliana da Trindade. Smith sustenta que Eckhart de fato não transgrediu um único dogma trinitário ou cristológico; o que ele nega implicitamente, fica demonstrado, não é outra coisa senão a ‘creatio ex nihilo’, que de fato Eckhart substitui pela ‘creatio ex Deo’ cabalística. Nessa mudança, além disso, Smith percebe a transição de ‘exotérico’ para ‘esotérico’ dentro do domínio integral da doutrina cristã”.

Por que razão a integração de “noções Cabalísticas” na doutrina católica é “exigida”? Por que é tão desejável que a Igreja “faça a sua própria Cabala”? Acredito ter encontrado a resposta do prof. Smith para essas perguntas, oculta nas páginas de Sophia: The Journal of Traditional Studies:

Há níveis de significado no Novo Testamento também [como no Antigo] – que podem incluir o mais alto! – que provam ser acessíveis apenas por meios cabalísticos”.

Mas, se assim for, e se, como diz São Jerônimo, “ignorar as Escrituras é ignorar a Cristo”; e se, além disso, como nos assegura o Catecismo de Baltimore: “Quando O conhecermos, O amaremos... [e] quanto melhor O conhecermos, mais o amaremos”; então por que é, eu me pergunto, que na marcha dos “Cabalistas Cristãos” que vieram antes de nós – Pico della Mirandola, Johann Reuchlin, Egídio de Viterbo, Francesco Giorgi, Paolo Riccio, Athanasius Kircher, e assim por diante – com toda a erudição mundana que possuíam e “conhecimento” cabalístico inferido de Cristo, nem um foi reconhecido como santo?

Notas:

[1] “Se alguém disser que as coisas finitas, tanto corporais como espirituais, ou pelo menos espirituais, emanam da substância divina; ou que a essência divina, pela manifestação e evolução de si mesma se torna todas as coisas ou, finalmente, que Deus é um ser universal ou indefinido que, por autodeterminação estabelece a totalidade das coisas distintas em gêneros, espécies e indivíduos: seja anátema” (Decretos do Concílio Vaticano I).

[2] Se alguém disser que todos os seres racionais um dia unir-se-ão em um, quando as hipóstases, bem como os números e os corpos, tiverem desaparecido, e que o conhecimento do mundo vindouro levará consigo a ruína dos mundos, e a rejeição dos corpos como também a abolição de [todos] nomes, e que haverá finalmente uma identidade da γνῶσις e da hipóstase; além disso, que nesta pretensa apocatástase, só os espíritos continuarão a existir, como era em uma pretensa forma de preexistência: seja anátema” (Segundo Concílio de Constantinopla – Sessão I – Sumário dos Atos).

[3] “De uma forma erudita e ao mesmo tempo acessível, encontramos consultas à Cabala…” [All Things Made New de Stratford Caldecott].

[4] Martin, M. & Smith, W., In Quest of Catholicity: Malachi Martin Responds to Wolfgang Smith (Angelico Press, 2016), p. 76