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Parte I: Valentin Tomberg e Sua Herança

Eu li um livro peculiar recentemente: Cor Jesu Sacratissimum: From Secularism e Nova Era para uma Cristandade Renovada, um trabalho semi-autobiográfico no qual o autor, Roger Buck, relata sua conversão ao Catolicismo de um movimento espiritual estilo Nova Era e emite um comovente apelo para um retorno à Tradição Católica. Assim como em seu livro anterior, The Gentle Traditionalist, o qual Buck descreve retrospectivamente como “a versão ‘gibi’ desse trabalho muito maior, mais aprofundado,” Cor Jesu Sacratissimum foi recebido com considerável reconhecimento por Católicos tradicionais após o seu lançamento em dezembro de 2016.

“Roger Buck prestou um grande serviço para a Igreja”, escreveu Dr Joseph Shaw no popular blog Rorate Caeli, um site geralmente considerado como uma voz autorizada da Tradição na blogosfera Católica. “Buck é um dos poucos autores que escrevem atualmente que captam a íntima conexão entre a fé Católica e a cultura Católica,” acrescenta Thomas Storck, provavelmente o maior expoente do Ensino Social Católico tradicional do mundo Anglófono, que recomenda Cor Jesu Sacratissimum por oferecer aos leitores Americanos “a possibilidade de escapar da prisão do triste mundo intelectual e espiritual da cultura Protestante.” O autor tradicionalista Católico Charles A. Coulombe também se juntou ao coro dos admiradores, chamando-o um “livro refinado” que “habilmente critica o mundo moderno, com seus gêmeos horrorosos do materialismo arrogante e ‘espiritualidade’ indeterminada.”

Críticas Positivas que foram feitas para The Gentle Traditionalist e seu sucessor, The Gentle Traditionalist Returns, do mesmo modo vieram do Dr Peter Kwasniewski, que foi tão longe a ponto de incluir Cor Jesu Sacratissimum juntamente com Fundamentals of Catholic Dogma e o Catechism of the Council of Trent de Ludwig Ott na sua lista de oito “livros recomendados para estudo”, publicada no LifeSiteNews, outro site largamente lido por católicos de tendência tradicionalista. A popularidade de Buck entre Católicos tradicionais é ainda mais evidenciada pelo fato de que suas obras, incluindo Cor Jesu Sacratissimum, está disponível para compra na loja online de livros da Latim Mass Society (LMS) do Reino Unido e da comunidade tradicional Beneditina do Priorado de Silverstream da Irlanda.

Eu considero esse livro “muito peculiar” por duas razões. A primeira se acha nos Agradecimentos, que termina do seguinte modo:

E restam dois autores já falecidos, Valentin Tomberg e Hilaire Belloc a quem, acima de todos, devo por esse livro ... Ambos os escritos de Belloc e Tomberg me guiam e inspiram como nenhum outro. E isso é tão verdade, que embora eu nunca os tenha encontrado neste mundo, dificilmente eu poderia omití-los da lista de meus mais queridos amigos, familiares e apoiadores.” [1]

Belloc, certamente, dispensa a apresentação, mas os leitores provavelmente não estão familiarizados com Tomberg, a quem Buck credita o fato de tê-lo “guiado, não somente para a Igreja, mas, a cada ano, em direção a um Catolicismo tradicional mais profundo.” [2] Buck é tão ligado a Tomberg, que quis que fosse lida uma passagem de sua magnum opus em seu casamento. [3]

E qual é essa magnum opus de Tomberg? É Meditations On Tator: A Journey into Christian Hermeticism, publicado pela primeira vez (anonimamente) em 1980. Esse é o livro que Buck louva como o “trabalho de um gênio – o fruto da vida de um homem idoso que demostravelmente atingiu o mais lúcido pensamento com o mais terno dos corações. Um tour de force de 600 páginas, que caracteriza uma espantosa síntese de teologia, filosofia, história, política, psicologia, ciência --- e, de fato, também assuntos de natureza mais esotérica.” [4]

De fato. Valentin Tomberg, que morreu em 1973 (seu Meditations foi publicado postumamente), era um Russo ocultista e mago que, em seus últimos anos, foi recebido na Igreja Católica. Foi durante esse último período de sua vida que ele escreveu Meditations on the Tarot. O falecido Hamilton Reed Armstrong, escrevendo para o jornal Católico Christian Order, faz o seguinte resumo deste bizarro tomo:

O autor ´anônimo´ apresenta Gnosticismo, Magia, Cabala e Hermetismo não somente como compatíveis, mas essencial para a verdadeira crença Católica. À medida em que cita São Paulo e São João Evangelista e exalta as visões de católicos místicos como São João da Cruz, Teresa de Ávila e São Francisco de Assis, assim como cita Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e São Boaventura, ele dá igual importância aos ‘iniciados’ Maçons... Papus, Louis Claude de Saint Martin (Martinismo), Saint-Yves dÁlveydre, reconhecido Luciferiano, Stanislau de Guaita, o Mago Satanista Elephias Levy, assim como o falso Messias Cabalista Sabbatai Zevi, Madame Blavatsky, Swami Vivekananda, Rudolf Steiner, Telhard de Chardin, Jacob Boehme, Swedenborg, Carl Jung, e muitos outros.

“A premissa geral do livro – dedicado à Virgem de Chartres – é que há uma energia cósmica geral denominada ‘egregore’ (Deus) que perpassa todas as religiões, assim como a Franco maçonaria. Essa energia unificada é manifestada na dualidade: claro-escuro, macho-fêmea, bem-mal, etc., a qual no Hinduísmo é chamada Advaita Vedanta, Monismo entre osseguidores de Spinoza, e na tradição Cristã (citando São João fora de contexto), estão unidas pelo ‘Amor’ (p. 32). Todos os mestres espirituais entram misticamente nessa espiritualidade cósmica pela ‘iniciação’, entendida como ‘o estado de consciência onde tudo, a eternidade e o momento presente são um’. Nesse estado de consciência, poderes mágicos são adquiridos (p. 87). Jesus era um iniciado, assim como aqueles que viram antes dele. i.e. o Hebreu Moisés e o Egípcio Hermes Trimegisto, assim como Eliphias Lévi, Stanislau de Gauita, e Saint-Yves d’Alveydre, etc. Reincarnação é ‘simplesmente um fato da experiência’ (p. 93), por exemplo, Jesus era consciente de seus poderes ‘mágicos’, e o teurgista Senhor Philip ‘fez de si mesmo um instrumento da divina magia de Jesus Cristo’ (p. 193). A Santíssima Trindade é formada pela Pai, Filho e Espírito Santo ou, Pai, Mãe e Filho intercambiavelmente. A cruz é símbolo do casamento dos opostos (p. 259) e a Virgem Maria é ‘uma entidade cósmica, Sabedoria, A Virgem da Luz da [Gnóstica] Pistis Sophia, ... a Shekinah dos Cabalistas’ (pp. 547-549, 582). ‘O grande Mani [fundador do Maniqueísmo] ensinou uma síntese [que mobilizou] a boa vontade de toda a humanidade – Pagã, Budista e Cristã – para um único e universal esforço de ‘sim’ em direção ao espírito eterno e ‘não’ em direção às coisas da matéria’ (p. 471).

“O autor tece conjuntamente essas crenças sincretistas, Gnósticas, Cabalistas e Maniqueístas, e ao mesmo tempo sustenta que que tudo o que foi dito acima está em conformidade com a Fé Católica ortodoxa...”

Esse ecletismo teológico, Buck concede, é “definitivamente problemático para os Católicos”, mas ele desconsidera esses elementos ocultos por serem “não primários, nem secundários ou mesmo terciários ...” De minha parte, contudo, estou longe de estar convencido de que eles podem ser tão facilmente desconsiderados como apenas obter dicta (apenas retórica); pelo contrário, eu suspeito que eles são substancialmente prejudiciais à ortodoxia católica. De fato, mesmo se pudesse ser dito que Valentin Tomberg fosse noventa porcento ortodoxo e “somente” um por cento herético, nós poderíamos ainda lembrar a advertência do Papa Leão XIII de sua encíclica de 1896 Satis Cognitum:

Não há nada mais perigoso do que aqueles hereges que admitem quase toda a doutrina, e ainda que seja por uma palavra, como uma gota de veneno, infectam a fé simples e real por Nosso Senhor e transmitida pela tradição Apostólica.

À medida em que Meditations de Tomberg é conhecido entre Católicos tradicionais é largamente – se não inteiramente – devido ao fato do efusivo Prefácio para a edição em Alemão (e depois em Inglês) que foi escrita por Hans Urs von Balthasar. A preferência por Tomberg do falecido teólogo suíço e Cardeal eleito (ele o chamou um “pensador e pregador Cristão de inconfundível pureza”) e seu esotérico “Hermetismo Cristão” foi muito comentado por blogueiros tradicionais Católicos, incluindo o autor do ensaio que eu acabei de citar, e eu não transcrever o comentário agora. Embora a influência de Balthasar na teologia pós Conciliar – e sobre o Papa “Emérito” bento VXI pessoalmente[5] – dificilmente pode ser subestimada, muitos Católicos tradicionais bem formados já estão a par de seu pensamento heterodoxo, e não o consideram um dos seus.

O mesmo não pode ser dito do filósofo alemão Robert Spaemann, cujo falecimento em 2018 foi lamentado como uma grande perda para a causa da Tradição Católica: “Em Spaemann,” elogiou _Rorate Caeli, “_o mundo intelectual Católico perdeu uma de suas grandes luzes, e um eloquente defensor da Missa tradicional e da doutrina tradicional Católica ...” Martin Mosebach, autor de Heresy of Formlessness, que se tornou algo como um clássico moderno entre os defensores da Missa Tradicional em Latim (e cujo Prefácio foi escrito pelo mesmo Robert Spaemann), tomou as páginas de First Things para pagar o tributo às “longas décadas de batalha de seu camarada pela liturgia tradicional Católica ... Para Spaemann, era somente no rito – abrangendo todas as épocas – que um pessoa pode experimentar a unidade da família humana.” Na época da controvérsia a respeito de Amoris Laetitia, na qual Spaemann pronunciou seu criticismo aos esforços do Papa Francisco para superar os ensinamentos da Igreja sobre o casamento, a celebridade da mídia social “Trad” Fr John Zuhlsdorf aconselhou os leitores de seu blog homônimo Fr Z, “Quando Spaemann fala, nós devemos escutar.” Num post posterior, ele acrescentou, “Embora teólogos alemães hoje deixem a desejar quanto à claridade e a ortodoxia, Spaemann é claramente o melhor teólogo entre eles. E ele tem fé.”

Causa surpresa, então, que um homem com tal reputação a favor da doutrina ortodoxa junte sua voz à aprovação que dá Hans Urs von Balthasar ao livro Meditations on Tarot. E no entanto ele o fez; dos dois prefácios para a edição alemã de Meditations, o segundo foi escrito pelo professor Robert Spaemann: “O tempo certo para esse livro chegou ... Como somos afortunados ... [de ter] o mundo espiritual aberto para nós pelo autor dessas Cartas [que é o que contém o livro Meditations .]”[6]

O entusiasmo do falecido filósofo pelo tratado esotérico de Tomberg (se diz que ele deu de presente ao Papa João Paulo II a edição em dois volumes que apareceu em uma fotografia de 1988 na mesa do pontífice) poderia explicar um outro inexplicável relatório da conversa entre Spaemann e o autor italiano Pietro Archiati, que apostatou formalmente em 1987. Archiati, como Tomberg, passou a crer na realidade da reencarnação e julgou (diferentemente de Tomberg) que ele não poderia em boa consciência permanecer um Católico. Ele lembra que quando informou seu amigo Spaemann de sua decisão de renunciar à Igreja de seu batismo, “Prof Spaemann ... ficou muito perturbado ... [e] disse que ele iria me mostrar que a Igreja era bem mais aberta e liberal do que eu pensava ... e que há espaço na Igreja para pessoas que, como eu, estão convencidas da reencarnação.” Se o próprio professor Spaemann acreditava na reencarnação não se sabe, mas de acordo com Archiati, ele soube “com certeza” que João Paulo II realmente areditava, e que portanto pode ser considerada uma opinião perfeitamente ortodoxa.

Retornando agora ao livro Cor Jesu Sacratissimum, do auto-declarado “aspirante ao Hermetismo Cristão” Roger Buck, a segunda razão que eu chamo “muito peculiar” se deve à editora que o publicou: Angelico Press.

Católicos Tradicionais provavelmente tem ao menos um título da Angelico em suas prateleiras; em suas próprias palavras, Angelico Press é “dedicada a tornar a rica tradição da vida intelectual e cultural Católica mais disponível para as famílias, estudantes e acadêmicos.” Para esse fim, ela tem publicado muitos trabalhos de luminares da Tradição Católica, tais como o Bispo Athanasius Schneider, o historiador Prof Roberto de Mattei, o advogado e jornalista Christopher Ferrara, Prof John Rao (que faz parte também do conselho consultivo da Angelico), o Dr Peter Kwaniewski, o presidente da LMS Dr Joseph Shaw, o Dr Edmund Mazza, e o jornalista Antonio Socci, assim como tem republicado muitos clássicos Católicos de autores como Ven Fulton Sheen, Fr Bryan Houghton, Bella Dodd, G.K. Chesterton, St Thomas Aquinas, Dom Prosper Gueranger, Bl Columba Marmion e São Francisco de Sales. Entre os títulos originais da Angelico, os leitores tradicionais Católicos irão, sem dúvida, reconhecer In Sinu Jesu, um bestseller e clássico da espiritualidade de 2016, endossado por ninguém menos que suas eminências Raymond Leo Cardeal Burke e Arcebispo Carlo Maria Vigano.

Essa visão geral do catálogo da Angelico – repleta como é de volumes sobre Fátima, a antiga liturgia Romana, Chesterbelloc, a heresia Modernista, e a vida e visões de Anne Catherine Emmerich – serve para demonstrar porque eu, e muitos padres e leigos com os quais conversei, considerei, por muito tempo, a Angelico Press não somente uma editora confiável da literatura ortodoxa Católica (“uma das fundamentais editoras do pensamento Católico hoje em dia,” como coloca Rorate Caeli), mas mesmo uma resposta da vanguarda intelectual de resistência contra o Modernismo na Igreja. Essa impressão é evidentemente compartilhada pelo Dr Peter Kwasniewski, por exemplo, que tem louvado a Angelico como “a primeira editora de livros tradicionais Católicos imaginativos e intelectualmente rigorosos,” e “uma das poucas editoras Católicas de hoje em dia e cujas novas edições alguém pode se inscrever para receber e não ficar desapontado com cada título que chega por e-mail. Publicações da Fraternidade, o ramo de livros e publicações da Fraternidade Sacerdotal São Pedro (FSSP), vendeu não poucos livros da Angelico.[7]

Tudo isso para dizer que, para o bem ou para o mal, a Angelico Press contribui de forma significante para o discurso tradicional Católico, e pode, portanto, ser dito que tem uma certa influência na formação intelectual de Católicos tradicionais.

Menos de quatro anos após a publicação de Cor Jesu Sacratissimum, em Janeiro de 2020, a Angelico Press lançou um atraente e ilustrado livro de capa dura que, curiosamente, mesmo um ano após o fato, não pode ser encontrado em nenhuma parte de seu website. Olhando para a contracapa, o leitor é recepcionado por aprovações elogiosas dos autores da Angelico Dr Michael Martin e o falecido Stratford Caldecott, assim como pelo já falecido Prof Robert Spaemann e outros, além da seguinte sinopse:

Publicado agora com um índice extendido, material suplementar, notas recentemente descobertas, e um exaustivo índice bibliográfico, a edição pela Angelico Press desse clássico espiritual, que tem trazido louvores sem limite, é um presente inestimável para os que buscam espiritualidade atualmente.”

De modo incomum para um “clássico espiritual” Católico proclamado (por Dr Martin) como possivelmente “o mais radicalmente ortodoxo ... trabalho do último século,” o livro está atualmente (no momento em que escrevo esse artigo) na posição 77 do ranking da categoria “Hermetismo & Rosacrucianismo” da Amazon, e na posição 129 na categoria “Magia & Alquimia” da Amazon UK.

O título do livro é Meditations on the Tarot: A Journey into Christian Hermeticism.

Notas:

[1] Buck, R., Cor Jesu Sacratissimum: From secularism and the New Age to Christendom Renewed (Angelico Press, 2016), p.15

[2] Ibid, p.239

[3] Ibid, p.240

[4] Ibid, p.238

[5] A propósito, se diz “que Joseph Cardinal Ratzinger, antes de se tornar o Papa Bento XVI, autorizou a edição Russa de Meditations on Tarot.” [https://corjesusacratissimum.org/2013/12/meditations-on-the-tarot-and-the-vatican/]

[6] Anônimo [Tomberg, V.], Meditations on the Trot: A Journey into Christian Hermeticism (Angelico Press, 2020), pp.v-vi

[7] “Não importa se pela Angelico Press, St. Augustine Academy Press ou vários outros lugares, a FSSP opta por vender o que considera os melhores livros tradicionais sendo atualmente impressos.” [https://www.ncregister.com/features/traditional-books-abound-amid-latin-mass-revival]