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II. RAZÕES PARA ESTUDAR O ANGLICANISMO

A situação ecumênica que acabamos de descrever parece-me justificar um estudo particular do anglicanismo. Pois a natureza das Igrejas da Comunhão Anglicana e a posição que elas ocupam lhes conferem um lugar à parte. Por sua própria natureza, elas parecem destinadas a desempenhar um papel particular na reunião de todos os cristãos.

A primeira razão reside, parece-me, no fato de que a Igreja da Inglaterra e as outras Igrejas da Comunhão Anglicana se interessaram constantemente, durante três quartos de século, pelo exame das possibilidades de união. Elas se entregaram a um exame sistemático dos problemas ecumênicos, esforçaram-se em estabelecer relações e entrar em diálogo em todas as direções. Nisto tudo, elas agiram como precursoras do movimento ecumênico oficial.

Geralmente se faz coincidir o nascimento do movimento ecumênico com a Conferência Internacional das Missões, realizada em Edimburgo em 1910. Na realidade, as primeiras resoluções e as primeiras atividades conscientemente ecumênicas situam-se, do lado anglicano, na terceira Conferência de Lambeth, assembleia dos bispos da Comunhão Anglicana que ocorreu em 1888.

Uma segunda razão está ligada à primeira. A Comunhão Anglicana dedicou muitos anos ao estudo e à discussão da ideia ecumênica em diálogo com os representantes de outras Igrejas. Isso lhe permitiu propor uma noção cuidadosamente equilibrada para o exame das outras Igrejas, numa época em que as grandes Conferências de Life and Work (Estocolmo 1925) e de Faith and Order (Lausanne 1927) ainda não haviam ocorrido. Referimo-nos aqui ao Apelo de Lambeth, pelo qual a sexta Conferência da Comunhão Anglicana, em 1920, instava todas as Igrejas, sem distinção, a levar muito a sério a restauração da unidade[19].

Percebemos hoje que os tempos não estavam maduros para acolher esse apelo à cooperação de todas as Igrejas. Elas ainda eram muito estranhas umas às outras, ainda muito animadas pelo espírito de controvérsia. Basta lembrar com que hesitação e dificuldade os participantes das Conferências de Estocolmo e Lausanne, e mais tarde também de Oxford e Edimburgo em 1937, abriram caminho no emaranhado de contradições e mal-entendidos com os quais se viram subitamente confrontados. Pense-se também em quão difícil lhes era mostrar-se compreensivos diante da rigidez, suscetibilidades e exigências de Igrejas estranhas a eles.

Há uma terceira razão, de fato a principal, para dar atenção privilegiada ao anglicanismo. É a natureza, o espírito e a mentalidade que lhe são próprios, bem como o lugar à parte que a Igreja Anglicana ocupa entre as demais Igrejas.

O período pré-ecumênico estava impregnado de um espírito de polêmica que tornava difícil ver as coisas dessa maneira. Séculos de lutas pela verdade haviam convencido cada Igreja de que ela possuía a verdade, enquanto o erro pertencia às outras Igrejas. As Igrejas haviam se acostumado a uma atitude puramente negativa em relação às outras. Tornou-se para elas uma certeza a priori que tudo, nelas, era o melhor que havia, enquanto as outras eram condenadas, sem mesmo serem compreendidas, simplesmente pelo motivo de que eram outras.

Nesse ambiente, o anglicanismo não podia esperar muito simpatia da parte das Igrejas não anglicanas. Ele parecia a muitos um fenômeno equívoco, do qual não se sabia bem o que pensar. Os protestantes calvinistas e puritanos o viam como uma ameaça católica. Os católicos romanos o consideravam intrinsecamente protestante. Muitos o viam como uma emanação do Estado, com base no oportunismo, ou como um bastião do humanismo, do idealismo e do racionalismo. Poucos tinham algo de bom a dizer sobre ele.

Na conjuntura ecumênica atual, as Igrejas adquiriram mais humildade. Elas se tornaram mais críticas em relação a si mesmas. Elas não mais consideram as diferenças encontradas nas outras Igrejas como puros produtos do erro ou da decadência. Elas aprenderam a apreciar muitos aspectos de forma positiva. Os contatos ecumênicos fizeram desaparecer boa parte da autossatisfação, dos mal-entendidos e dos preconceitos. Tudo isso faz com que o caminho esteja aberto a uma maior compreensão dos princípios religiosos, eclesiológicos e escriturísticos que têm guiado os anglicanos desde a época da Reforma. Esses princípios estão na base do caráter próprio e original da estrutura eclesiástica do anglicanismo, de seu culto, de sua doutrina e teologia, de sua espiritualidade e de sua mentalidade.

Esse caráter próprio e original do anglicanismo provém, em primeiro lugar, do esforço consciente empreendido pelos bispos e teólogos do século XVI para manter em equilíbrio o barco da Igreja Anglicana no meio das tempestades da época. O curso seguido por eles não foi a busca de um compromisso que pudesse satisfazer todos os partidos. Foi, ao contrário, imposto por um princípio aceito com plena convicção, o princípio da moderação. Isso se depreende não apenas dos documentos oficiais e da volumosa correspondência trocada com os reformadores do continente, mas também da obra dos teólogos anglicanos, principalmente de Jewel e Hooker.

O prefácio do Book of Common Prayer de 1662 expressa isso muito bem, já em sua primeira frase, dirigida aos puritanos:

Foi a sabedoria da Igreja da Inglaterra, desde a primeira redação de sua Liturgia Pública, sempre manter o meio-termo entre os dois extremos: muita rigidez em recusar qualquer mudança, e muita facilidade em admiti-las[20].

Desde a morte de Henrique VIII, ocorrida em 1547, até a Restauração de 1660, o anglicanismo teve que travar uma guerra contínua em dois fronts opostos. Além disso, colocou à prova todas as doutrinas e práticas romanas, confrontando-as com as da Igreja indivisa dos dez primeiros séculos. Com igual perseverança, comparou todas as doutrinas e práticas dos reformados e puritanos com as intenções originais dos reformadores. Ele se referiu ao testemunho primordial da Reforma, testemunho que a Igreja Anglicana sempre aceitou com tanta convicção e firmeza quanto as outras Igrejas oriundas da Reforma.

O "via media" do anglicanismo, portanto, não é um caminho entre a Igreja Católica e a Reforma; ele se mantém expressamente a igual distância entre o extremismo da Idade Média tardia, por um lado, e o extremismo puritano após a Reforma, por outro. Em princípio, o anglicanismo se posicionou, em suas declarações oficiais, ao lado da Reforma. Mas ao mesmo tempo, ele se recusou a se separar da Igreja Católica. O anglicanismo sempre nutriu a convicção de que o Concílio de Trento apenas realizou metade de sua tarefa e não conseguiu purificar a Igreja Católica das ideias, doutrinas, hábitos e práticas medievais que, segundo a convicção dos anglicanos, são opostos ao catolicismo puro, aquele da Escritura e da antiguidade cristã.

Por isso, a Igreja Anglicana sempre se considerou o prolongamento reformado da Igreja Católica na Inglaterra. Ela sempre atribuiu grande importância a uma organização eclesiástica e a uma liturgia que manifestam claramente a continuidade com a Igreja anterior à Reforma.

A marca principal e característica do anglicanismo é originalmente a moderação, que não se deve confundir com a "comprehensiveness". Esta última, frequentemente elogiada, mas também considerada uma fraqueza, é a marca de uma época posterior, embora esteja ligada à tendência humanista que sempre foi mais forte nas Igrejas anglicanas do que nas Igrejas "reformadas" e luteranas. Em última análise, a "comprehensiveness" é um produto do latitudinarismo do século XVII, bem como das tendências afins dos séculos XVIII e XIX, o liberalismo e o racionalismo.

Até o século XVIII, a Igreja Anglicana tentou manter uma certa uniformidade. No entanto, ela não pôde impedir que correntes mais recentes, como o metodismo e o anglo-catolicismo, obtivessem um direito de cidadania de forma duradoura até nossos dias. É aí que reside a principal causa da atual "comprehensiveness" do anglicanismo.

O anglo-catolicismo é a tendência que encontrou a mais forte oposição. Os anglicanos da ala evangélica (low Church), mas também muitos modernistas (broad Church) têm a convicção de que a tendência romanizante é fundamentalmente oposta ao caráter e à posição do anglicanismo autêntico. Não se poderia, portanto, cometer maior equívoco do que julgar o anglicanismo apenas pelo anglo-catolicismo e, consequentemente, classificar a Igreja Anglicana entre as Igrejas de tipo "católico". Espera-se que a documentação apresentada na sequência desta obra forneça uma prova convincente disso.


[19] O Apelo de Lambeth será estudado mais adiante, no capítulo IV, p. 113.

[20] "Tem sido a sabedoria da Igreja da Inglaterra, desde a primeira compilação de sua Liturgia Pública, manter o meio-termo entre os dois extremos, de demasiada rigidez em recusar e demasiada facilidade em admitir qualquer variação dela" (The Book of Common Prayer, o prefácio; a primeira redação data de 1549).