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PRIMEIROS MARCOS PARA UMA HISTÓRIA DA REVOLUÇÃO LITÚRGICA

"A crise litúrgica, para além de atualmente ocupar os holofotes, é das mais interessantes pelo grande número de elementos que pôs em xeque... Não bastará examinar os seus antecedentes, a degradação da prática litúrgica nos séculos que a precederam, ou a deformação jansenista, mas será indispensável debruçar-se sobre os movimentos paralelos que a influenciaram: a questão social, a questão política e a adesão às formas revolucionárias, a evolução dos estudos religiosos e, nomeadamente, da exegese bíblica, os progressos do ecumenismo prático, a ascensão ao poder das redes progressistas após a Primeira Guerra Mundial e, sobretudo, a Segunda, etc."

Assim escrevíamos na página dez do primeiro número deste boletim, na primavera passada, para sublinhar a amplitude do estudo necessário, estudo que exigirá obviamente muitos colaboradores (1). Convém hoje traçar as grandes linhas dos domínios onde deverão exercer-se os seus esforços, e para maior comodidade partiremos da situação atual, remontando por etapas às causas mais remotas.


A período atual é caracterizado por dois traços principais: a sua diversidade e a sua legalidade. Com efeito, desde o Concílio, e em virtude do "espírito do Concílio", a revolução em matéria litúrgica é oficial, legal e até obrigatória.

Parece, em última análise, bastante inútil ponderar minuciosamente toda essa nova legislação: que seja fundamentalmente ilegal, tanto quanto ilícita, isso importa sem dúvida in aeternum, mas concretamente, e para nós aqui no plano do estudo, é muito mais importante saber que essa legislação exprime bem a vontade, e mais ainda, o pensamento profundo daqueles que exercem o poder na Igreja hoje.

Esse poder é talvez mais ou menos legal em certos níveis, tratando-se, por exemplo, da miríade de diversos gabinetes e comissões, mas de fato e por admissão geral, tanto da base quanto da hierarquia, não é contestado, nem em teoria nem na prática.

E é tanto menos contestado quanto se apresenta como extremamente difuso; da congregação romana ou do Sínodo dos bispos, ao último dos escritórios diocesanos, ou mesmo à pequena equipe interparoquial, a diversidade é infinita, tanto pela autoridade e qualificação quanto pelo objetivo visado e pelos meios empregados; desde o perito romano que ainda se esforça para salvar o que acredita ser possível, até o pequeno vigário ou o militante da Ação Católica que só têm um desejo: "acabar com tudo" e liquidar essa Igreja à qual só os prende um rótulo, cada um pode encontrar uma referência a seu gosto: houve mesmo, durante anos, as alocuções pontifícias de quarta-feira para tranquilizar aqueles que desejavam ser tranquilizados contra a evidência dos fatos.

Resta perguntar qual teologia traduz este estado de coisas, tanto do ponto de vista dos "produtores" quanto dos "consumidores".


É difícil compreender o estado de espírito do clero e dos membros da Ação Católica se não se fizer um sério retrocesso para captar a velha corrente de adaptação ao mundo que os atravessa desde o início do século.

O padre Barbier é um bom testemunho disso, ele cuja vocação de polemista contrarrevolucionário nasceu quando suas funções de capelão regional da ACJF para o Oeste da França o levaram a constatar de perto, de dentro, a penetração revolucionária nos meios cristãos... em 1905.

A situação ainda haveria de piorar muito com a Ação Católica especializada – JAC, JOC, JIC, JEC, etc. –, e o período de 1936-1940 é rico em exemplos disso.


As reflexões não são menores se nos voltarmos para os simples fiéis, quer sigam ou não.

Talvez seja preciso, antes de mais nada, pensar no grande número daqueles que simplesmente se afastaram da Igreja para cair no materialismo puro e simples, ou para se unirem à multidão de seitas que lhes são oferecidas, sobretudo desde há um século.

Que concepção tinham eles da Igreja, da sua natureza, do seu papel e do seu lugar em seu seio? Muito tênue, sem dúvida, para a terem podido abandonar assim.

Não menos curiosa é a posição dos fiéis que seguem um pouco de tudo, segundo o arbítrio do perito diocesano e do vigário do setor; desses fiéis que renegaram docilmente vinte séculos de tradição... Qual era, então, a teologia e, por exemplo, o que representava a missa para eles que aceitam tão facilmente substituí-la por uma reunião amigável, ou mesmo um piquenique?

Não era ela com demasiada frequência apenas mais uma obrigação, meio eclesiástica, meio mundana, à qual se dirigiam sem gosto particular e durante a qual se ocupavam como podiam, enquanto o clero "cumpria o seu ofício" no púlpito ou no altar? Que há de surpreendente, então, que as coisas continuem agora da mesma forma, com o número em constante declínio de fiéis que ainda se sentem obrigados, mas que não estão mais envolvidos do que antes e prontos a suportar qualquer coisa sem mais interesse real.

É, aliás, o que constatam, para se admirarem e deplorarem, os novos padres, pois pensavam eles, a nova liturgia em vernáculo deveria entusiasmar fiéis declarados adultos!


Antes de se espalhar pelas paróquias, a avalanche de novidades teve sua fonte no Concílio Vaticano II, de modo que o segundo ponto a ser estudado será a forma como o episcopado ratificou esta formidável reviravolta.

Como e, sobretudo, porquê. A história das manipulações conciliares começa a ser conhecida, um certo número de obras tendo feito o balanço das manobras e das organizações. Por outro lado, resta compreender o estado de espírito desses dois mil bispos e mais: pois a árvore cai para o lado para onde pende, e era preciso que houvesse, nessas mentes episcopais, toda uma predisposição a inclinar-se para o lado onde as maquinações dos líderes os arrastaram.

Esse episcopado, de onde provinha? Qual era a sua origem, a sua formação, os seus grandes temas de pensamento, quais tinham sido os seus mestres?


Acontece que, em matéria litúrgica, a pesquisa é relativamente fácil, um número muito pequeno de organizações tendo preparado a situação conciliar durante os vinte anos que antecederam o Concílio Vaticano II.

Para nos limitarmos provisoriamente à França, uma organização sobretudo teve um papel determinante: o Centro de Pastoral Litúrgica (CPL), que mais tarde se tornou o Centro Nacional (CNPL) quando o episcopado francês o adotou na totalidade. Fundado em 1943, em plena guerra, é preciso notar, e tornando-se operacional em 1945-46, este Centro forneceu as ideias e os homens e assegurou a reciclagem de grande parte do clero entre 1945 e 1960. Inspirou também uma profusão de inovações e experimentações naqueles anos, como a missa de frente para o povo, ou o uso do vernáculo.

Um estudo sério não se limitará obviamente à França e interessar-se-á também pela Alemanha, Bélgica e Itália, tanto para este período como para o do pré-guerra; longe de ser um ponto de partida absoluto, a criação do CPL em 1943 é, ela própria, apenas o ponto de chegada de uma longa elaboração, de um vasto movimento de pensamento que passa então para uma fase de sistematização, após uma gestação de mais de trinta anos.

Porque todo o trabalho fundamental foi realizado entre as duas guerras, numa efervescência da qual a maioria dos fiéis não tem ideia, nomeadamente no seio dos movimentos de jovens, como a Ação Católica ou o escutismo.

A avaliação disso é delicada, tanto o pior se encontra intimamente misturado ao melhor, quer no plano das ideias e das práticas, quer no das intenções.

A ideia central era reencontrar uma liturgia viva, ou seja, capaz de vivificar os fiéis, portanto liberta da ignorância e do formalismo.

Essa corrente, por sua vez, não estava sem raízes nem correspondências. Por um lado, o pós-guerra de 1918 caracterizou-se por uma preocupação em aliviar o peso do passado, de modernização que atingia todos os espíritos e todos os domínios e que não podia deixar de ter impacto em matéria religiosa.

Por outro lado, a descristianização tinha avançado, e setores geográficos ou sociais inteiros, muitas zonas rurais e os subúrbios das cidades, encontravam-se fora de qualquer influência cristã. Daí a ideia de um culto modernizado, diretamente acessível a pessoas descristianizadas, sem cultura cristã, alheias às tradições cristãs.


Este movimento tinha sido preparado antes de 1914 por um importante trabalho dos beneditinos belgas, nomeadamente Dom Lambert Beaudouin. E ele próprio prolongava, embora transformando-o, o longo esforço dos Beneditinos do final do século XIX.

Porque todas essas iniciativas não surgiram ex nihilo, mas sim no prolongamento e na sequência do impulso dado pelo próprio Dom Guéranger.

Com efeito, o meio dos religiosos beneditinos que se entusiasmava então pela questão litúrgica e pelo renascimento litúrgico, é o dos filhos de Dom Guéranger que desejam, seguindo os passos de seu pai fundador, restaurar a liturgia católica, torná-la viva, não só para os clérigos mas também para os leigos, e fazer dela o centro da vida espiritual.

O que, certamente, já não era tanto o caso, e desde há muito tempo, em meados do século XIX, tendo o equilíbrio da vida espiritual, sobretudo dos fiéis, sofrido um desvio progressivo desde o século XIV; trata-se de um fenômeno semelhante ao que se passou em matéria filosófica, domínio em que a Igreja também reagiu por volta da mesma época, no final do século XIX, quando restabeleceu a honra da filosofia do Doutor Comum, minada durante séculos pelo idealismo.

Essa transformação manifestava-se na prática por um estilo subjetivo e individualista, colocando a ênfase na psicologia e no sentimento individual, e minimizando esses meios comunitários e objetivos da Igreja, nomeadamente os meios litúrgicos.

Os avatares da música litúrgica do século XV ao XIX confirmam perfeitamente o movimento e são uma ilustração espetacular, um reflexo que não engana.


Pode-se assim distinguir várias etapas nesse processo da Revolução Litúrgica, cada uma enriquecendo-se de elementos novos capazes de modificar grandemente a configuração do conjunto.

Se quisermos, finalmente, compreender algo sobre esta revolução, e compreender de forma a tirar dela lições para a ação quotidiana, é preciso estudar primeiro a decadência desde a Renascença até o momento em que os membros da Ordem Beneditina dela tomam consciência e iniciam uma restauração de inspiração tradicional.

A segunda etapa seria a dos esforços desses primeiros padres para restaurar a liturgia, livrá-la de suas escórias, restabelecer uma boa compreensão e devolver-lhe o primeiro lugar nos espíritos e na prática da vida cristã.

A terceira etapa seria aquela em que esses beneditinos, ou melhor, seus sucessores, perceberam que essa decadência estava, de fato, muito integrada nos costumes cristãos da época e que, apesar de alguns apoios, incluindo o de São Pio X, a restauração só reunia em torno de si núcleos de fiéis, sem atingir a massa.

Chegamos assim, nesses anos de 1910, a uma virada perigosa onde irão atuar diversas influências que se somarão a essa constatação: o triunfo do liberalismo após a morte de Pio X, os primeiros surtos do ecumenismo e o vento geral de modernização após 1918.

Foi durante este período crucial entre as duas guerras, de 1918 a 1940, que o movimento litúrgico mudou completamente de rumo e que se constituíram as equipes de homens e os esquemas de pensamento que assegurariam a revolução litúrgica.

Não restará mais, a partir desse tempo em que a derrota e a ocupação obnubilam a maioria dos espíritos, senão organizar as estruturas que realizaram a formação da grande massa e a conquista das estruturas eclesiais.

Viria então o tempo de um concílio que faria transbordar os diques, permitindo ao fluxo revolucionário varrer as formas seculares, ao mesmo tempo que o fruto do trabalho dos filhos de Dom Guéranger, a fim de impor a todos uma nova práxis para uma nova religião, a religião ecumênica de amanhã, a religião do Homem.

P.R.


(1) Temos o prazer de constatar que o trabalho começou: há vários números do boletim "Fideliter", o Padre Bonneterre iniciou uma visão geral das organizações e tendências que estiveram na origem da revolução litúrgica.