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INTRODUÇÃO

Nossa análise do anglicanismo contemporâneo se concentrará, em primeiro lugar, em sua atitude em relação a Roma, conforme expressa nos relatórios das Conferências de Lambeth.

A escolha deste ponto de partida justifica-se pelo fato de que o anglicanismo só começou a se desenvolver em uma forma particular de cristianismo, com uma fisionomia própria, a partir da ruptura entre Roma e Canterbury6.

O observador imparcial dificilmente pode decidir qual das duas partes rompeu com a outra: foi Canterbury? Foi Roma? É provável que ele pense que ambas as partes tiveram sua cota de responsabilidade na ruptura. O mesmo se aplica a outras rupturas: a de Roma e Constantinopla, a de Roma e a Reforma, e também a de Roma e a comunidade velho-católica. Em todos esses casos, as Igrejas separadas culpam Roma pelo peso total da responsabilidade por ter lançado a excomunhão, enquanto Roma, por sua vez, está convencida de que a excomunhão foi provocada pelas outras partes e que era plenamente justificada.

Não se pode negar que a ruptura entre Roma e Canterbury trouxe mudanças profundas na Igreja da Inglaterra e que, a muitos aspectos, constituiu um verdadeiro começo. Antes dessa ruptura, a Ecclesia anglicana, a Igreja da Inglaterra, estava em comunhão com a Sé de Roma, em perfeito acordo com a Igreja do Ocidente em todos os domínios da doutrina, liturgia, prática eclesiástica, espiritualidade, vida religiosa, direito canônico e língua eclesiástica.

Apesar da ênfase na continuidade com a Igreja anterior à Reforma, a Igreja da Inglaterra se desenvolveu, após a ruptura com Roma, nessa nova forma de cristianismo que se denomina anglicanismo. Isso permitiu que a Reforma desempenhasse um papel mais importante no anglicanismo e deixasse marcas incomparavelmente mais profundas do que alguns grupos, tanto dentro quanto fora do anglicanismo, pensam e reconhecem.

Uma coisa nos surpreende imediatamente ao empreendermos a análise da atitude anglicana conforme expressa nos relatórios de Lambeth. De fato, a Igreja de Roma nunca é chamada de Igreja Católica. Isso não deve nos surpreender. A Igreja da Inglaterra e as outras Igrejas da Comunhão Anglicana se renunciariam, se identificassem a Igreja de Roma com a Igreja Católica, colocando-se assim fora dela. Elas concordam nesse ponto com todas as outras Igrejas, tanto do Oriente quanto do Ocidente, que não estão em comunhão com a Sé Apostólica, pois não acham que devem aceitar as pretensões particulares dessa Sé.

Nos rapports de Lambeth, a Igreja em comunhão com Roma é geralmente designada pelas expressões « Igreja romana » ou « Igreja de Roma ». Os Relatórios de 1897, 1908 e 1920 preferem o título de « Comunhão latina »; os de 1930, 1948 e 1958, a denominação « Igreja católica romana ».

Essa incerteza na terminologia revela uma busca e um gropamento para encontrar o lugar que, segundo a concepção anglicana, pode ser atribuído sem inconveniente à Igreja de Roma entre as outras Igrejas.

É importante para a compreensão exata do anglicanismo observar que essa questão terminológica não se cruza com a que divide Constantinopla e Roma, ou seja, qual das duas é a autêntica Igreja, isto é, qual é a única Igreja católica. Uma questão semelhante não pode ser levantada no anglicanismo. De fato, segundo a eclesiologia anglicana, nenhuma Igreja particular tem o direito de se considerar a única Igreja autêntica, pois todas as comunidades de batizados são verdadeiras Igrejas, desde que a Palavra de Deus seja anunciada e que os sacramentos do batismo e da Ceia sejam administrados nelas. Além disso, nenhuma Igreja neste mundo pode ser chamada de « verdadeira » Igreja, no sentido de Igreja infalível, isenta de erro, e de Igreja perfeita, sem mancha ou ruga. Na terminologia anglicana, a expressão « verdadeira Igreja » designa uma Igreja « real » ou « autêntica ». A rigor, só há uma única « verdadeira » Igreja, a saber, a Igreja que está edificada sobre o fundamento lançado pelos Apóstolos. É suficiente saber que a Igreja à qual se pertence, in casu a Igreja anglicana, pertence a essa verdadeira, autêntica e real Igreja apostólica de Cristo.

O artigo 1º do direito eclesiástico anglicano, em sua revisão de 1959, declara que

a Igreja da Inglaterra (...) pertence à verdadeira Igreja apostólica de Cristo e, conforme o que exige nosso dever em relação a esta Igreja da Inglaterra, estabelecemos e ordenamos que nenhum de seus membros terá a faculdade de sustentar ou afirmar o contrário[7].

Essa declaração parece ser um aviso direcionado a certos anglo-católicos romanizantes que, às vezes, dão a impressão de ver na Igreja da Inglaterra pouco mais do que uma simples expressão ou uma ramificação da Igreja católica.

No vocabulário anglicano, as expressões « Igreja católica » ou « Igreja universal » abrangem toda a comunidade de todos os cristãos crentes e batizados. Edificada sobre Cristo, seu único fundamento, ela é, devido ao pecado e à inclinação ao erro dos homens, by schisms rent asunder, by heresies distrest, como canta um hino (« dilacerada pelos cismas, afligida pelas heresias »). É por isso que ela sempre precisa de reforma e renovação, segundo o adágio dos reformadores: ecclesia reformata semper reformanda, uma Igreja reformada sempre precisa de uma nova reforma.


[6] Veja acima p. 35.

[7] «A Igreja da Inglaterra ... pertence à verdadeira e apostólica Igreja de Cristo; e, como nosso dever para com a mencionada Igreja da Inglaterra exige, nós constituímos e ordenamos que nenhum membro dela terá liberdade para manter ou manter o contrário». (Canon Law Revision 1959, Londres, 1960, p. 2.)