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4 - Uma tradição babeliana

No sistema de Guénon, portanto, a tradição metafísica, por ser puramente intelectual, intuitiva e universal, exerce uma supremacia sobre a filosofia, que se move na zona inferior do racional e do sensorial. Agora vamos ver que ela também exerce uma supremacia análoga sobre a religião.

A supremacia da tradição sobre a religião é justificada, de acordo com Guénon, pela SENTIMENTALIDADE que constitui o fundo mental de toda religião no pleno sentido da palavra, requerendo a união de três elementos: o dogma, a moral e o culto. No entanto, cada um desses três elementos está impregnado de sentimentalidade.

O CULTO religioso é necessariamente de ordem sentimental, pois é devocional por definição. O DOGMA não pode ser puramente intelectual, já que é contaminado pela noção de salvação, na qual a emoção pessoal é o componente principal. Quanto à MORAL, também, uma vez que se trata não apenas de conhecimento puro, mas de comportamento prático no qual o sentimento (por exemplo, o altruísmo) desempenha um papel crucial.

Portanto, os três elementos constitutivos da religião são de ordem sentimental. Ao contrário, a "tradição metafísica", uma vez que não possui dogma, moral ou culto, mas apenas princípios abstratos, permanece puramente intelectual.

E, portanto, ela pode reivindicar, de acordo com este sistema, a hegemonia sobre a religião, assim como sobre a filosofia. O Oriente reconhece, de fato, essa hegemonia da tradição. Claro, lá se observam devoções religiosas, como o Brahmanismo, o Vishnuísmo e o Shivaísmo, mas isso se refere especificamente à devoção e não à religião no sentido judaico-cristão da palavra. É na tradição, e não na devoção de tipo religioso, que, na Índia, as instituições, a filosofia e até mesmo as ciências buscam seus princípios. Pelo menos assim era antigamente.

Depois de separar a religião da tradição e definir sua posição relativa, Guénon fará uma observação histórica que nos permitirá, por sua vez, uma importante dedução. Encontramos, ele observa, apenas uma única família espiritual que reúne os três componentes necessários para constituir uma religião, e esta é a família judaico-cristã, incluindo a parte puramente religiosa do Islã (a infraestrutura esotérica do Islã, que é o sufismo, pertencente à tradição e não à religião propriamente dita).

"Em nenhum outro lugar encontramos as três partes que acabamos de caracterizar (dogma, moral e culto) reunidas." (Introdução ao Estudo das Doutrinas Hindus, 2ª parte, capítulo IV).

Essa observação de Guénon de que a tradição e a religião constituem DUAS DISCIPLINAS ESPIRITUAIS DIFERENTES é extremamente perspicaz. Mas, então, ela nos leva a fazer uma pergunta que Guénon, aliás, não faz, pelo menos abertamente.

Em que época a família religiosa se separou da família tradicional? Em outras palavras, em que circunstâncias a religião judaico-cristã se separou do tronco tradicional antigo? Não vemos outro episódio histórico possível além da TORRE DE BABEL.

Quando, na segunda parte, estudaremos as dificuldades de transmissão da Revelação primordial, voltaremos nossa atenção para este episódio bíblico, que é de importância capital.

Observamos desde já que, após a confusão das línguas feita por Deus mesmo em Babel, as nações se dispersaram carregando uma tradição muito antiga. E é nessa mesma região que, algumas gerações depois, Deus fez a CHAMADA de ABRAÃO. Ele o retirou dessa antiga tradição para lhe confiar, a ele e a seus descendentes, uma Nova Revelação, e o fez o "Pai dos Crentes", ou seja, o Patriarca da "religião", cuja grande diferença, o próprio Guénon observa corretamente, é o contraste com a tradição metafísica. Portanto, é nessas circunstâncias que ocorreu a separação das duas famílias espirituais.

Naturalmente, não teremos a mesma opinião que Guénon sobre os fatos. Mostraremos, facilmente, aliás, e sem recorrer a subterfúgios, que a religião judaico-cristã constitui, na realidade, o tronco antigo; e é a tradição metafísica que é o ramo separado.

Achamos que, em última análise, e embora Guénon não o escreva explicitamente, a tradição oriental pode ser chamada de TRADIÇÃO BABÉLICA.