O LIBERALISMO É PECADO

Pe. Félix Sardá y Salvany

Introdução

Não te assustes, pio leitor, e não comeces desde o princípio a mostrar cara feia a este opúsculo. Não o rejeiteis com espanto ao folheá-lo, porque por mais abrasadas e candentes que sejam as questões que nele ventilamos, e iremos esclarecer nestas familiares e amistosas conferências, não queimarás teus dedos com elas, pois o fogo de que se trata aqui é metáfora e nada mais.

Já sei, e em tom de desculpa me dirás, que não és o único que sente invencível repulsa e profundo horror por essas matérias. Sei muito bem o quanto esta maneira de pensar e sentir tornou-se uma enfermidade, uma espécie de mania quase que geral. Mas, diz-me, em consciência: se fugimos das questões candentes, isto é, das questões vivas, palpitantes, contemporâneas e atuais, a que assuntos de verdadeiro interesse a controvérsia católica pode consagrar-se? A combater inimigos vencidos há séculos, e que como mortos e putrefatos, jazem esquecidos de todos no panteão da história? Ou a tratar a sério e com muita cortesia assuntos de hoje, é verdade, mas acerca dos quais não há nenhum desacordo na opinião pública, e nada de hostil aos direitos sagrados da verdade?

Por Deus! E será para isto que nós nos chamamos soldados, nós os católicos, e dizemos representar como exército a Igreja, e chamamos capitão a Nosso Senhor? É será essa a vida de luta a que somos sem cessar intimados, desde que pelo batismo e pela crisma fomos armados cavaleiros de tão gloriosa milícia? Será guerra de brincadeira em que se luta contra inimigos imaginários, com armas de festim e espadas sem ponta, a que somente se exige que brilhem e façam vão ruído, porém sem ferir nem causar nenhum prejuízo ao inimigo? 

Claro que não; porque se o catolicismo é a verdade divina, como de fato é, verdade e dolorosa verdade são também seus inimigos; verdade e sangrenta verdade, os combates que contra eles trava. Reais, portanto, e não pura fantasia de teatro, seus ataques e defesas. Verdadeiramente devemos nos lançar nessas empresas, verdadeiramente levá-las a cabo. Reais e verdadeiras devem ser, por conseguinte, as armas que se usem, reais e verdadeiros os  golpes e revezes que se deem, reais e verdadeiros as feridas que se causem ou recebam.

Se abro a história da Igreja, em todas as suas páginas encontro essa verdade escrita muitas vezes com letras de sangue. Jesus Cristo, nosso Deus, anatematizou com energia sem igual a corrupção judaica; e frente a frente com as mais delicadas preocupações nacionais e religiosas da sua época, hasteou a bandeira da sua pregação, pagando-a com a vida.

Os apóstolos, ao sair do Cenáculo em dia de Pentecostes, não hesitaram um só minuto em lançar em rosto dos príncipes e magistrados de Jerusalém o assassinato judicial do Salvador; e por ter ousado, naquele momento, tocar uma questão tão candente, foram de pronto açoitados, e depois mortos.

Desde então, todo herói de nosso glorioso exército tornou famosa a respectiva questão candente que lhe coube elucidar, a questão candente, a do dia e não a já fria e passada, que não interessa mais; nem a questão futura, que permanece nos segredos do porvir.

Os primeiros apologistas as elucidaram, no embate corpo a corpo com o paganismo coroado e sentado no trono imperial. Eram, portanto, questões candentes em que se arriscava a vida.

Atanásio, por exemplo, sofreu persecuções, desterros, fugas, ameaças de morte, excomunhões de falsos concílios, por causa da questão candentíssima do arianismo, que conturbou todo o mundo. E Agostinho, o grande campeão de todas as questões candentes do seu século, por acaso teve medo dos grandes problemas levantados pelos pelagianos, por que eram problemas de fogo?

Assim, de século em século, de época em época, a cada questão candente que o inimigo de Deus e do gênero humano traz incandescente das fornalhas infernais, a Providência suscita um homem, ou muitos homens que, como martelos de grande potência, batem fortemente nos erros candentes. Pois martelar sobre ferro candente é bom trabalho; e martelar sobre ferro frio é trabalhar em vão.

Martelo dos simoníacos e dos concubinários da Alemanha foi Gregório VII; Martelo de Averróis e dos falsos aristotélicos foi Tomás de Aquino; martelo de Abelardo foi Bernardo de Claraval; martelos dos albigenses foi Domingos de Gusmão, e assim até nossos dias. E se perderia muito tempo ao percorrer a história passo a passo para comprovar uma verdade que, de tão evidente, não merece discussão; mas, assim deve ser, por causa de tantos infelizes que, à força de levantar poeira, se empenham em obscurecer a própria evidência. 

Basta pois deste assunto, amigo leitor; e dando um pequeno passo a mais, te direi, em segredo, para que ninguém nos ouça, que assim como cada século teve suas questões candentes, também o nosso deve necessariamente ter as suas. E uma delas, a questão das questões, a questão maior, tão incandescente que não se pode tocá-la sem que solte fagulhas por todos os lados, é a questão do liberalismo.

"São muitos os perigos que corre a fé do povo nestes tempos”, disseram há pouco os sábios e valentes prelados da província eclesiástica de Burgos, “mas se resumem num só: que é, digamos assim, seu grande denominador comum: o naturalismo... Chame-se racionalismo, socialismo, revolução ou liberalismo, por sua maneira de ser e sua própria essência será sempre a negação franca ou artificiosa, mas radical, da fé cristã, e por conseguinte importa evitá-lo com diligência, assim como importa salvar as almas".

A questão candente de nosso século está oficialmente formulada nesta grave declaração. E, com ainda maior autoridade e claridade, pronunciou-se no mesmo sentido e repetidamente, em centenas de documentos, o grande Pio IX. Pronunciou-se assim também ao mundo, não com menos afinco, nosso atual Pontífice Leão XIII, na Encíclica Humanus Genus. Encíclica que deu, dá e dará o que falar, e que talvez não seja ainda a última palavra da Igreja de Deus sobre essas matérias.

E por que o liberalismo haveria de ter, sobre todas as demais heresias que o precederam, um privilégio especial de respeito e quase de inviolabilidade? Seria porque na negação radical e absoluta da soberania divina ele as resume e compreende todas? Seria porque mais que qualquer outra, estendeu sua infecção e gangrena por todo o corpo social? Ou seria porque, como justo castigo de nossos pecados, realizou o que jamais havia realizado nenhuma heresia: ser erro oficial, legalizado, entronizado nos conselhos dos príncipes e todo-poderoso no governo dos povos? Não, porque esses motivos são precisamente os que devem mover e forçar todo bom católico a pregar e sustentar contra o liberalismo, custe o que custar, aberta e generosa cruzada.

A este inimigo, a este lobo, temos nós, que recebemos do céu a missão de cooperar para a saúde espiritual do povo cristão, temos de gritar a todas as horas, seguindo a ordem do Pastor Universal.

A campanha está aberta, e esta série de breves e familiares conferências começada. Não será antes, porém, que eu tenha declarado que todas e cada uma das minha afirmações, nos menores detalhes, ficam sujeitas ao inapelável juízo da Igreja, único oráculo seguro de infalível verdade.

Sabadell, mês do Santíssimo Rosário,1884

1. Existe hoje algo que se chama liberalismo?

Sem dúvida alguma, e a não ser que todos os homens de todas as nações da Europa e da América, regiões principalmente infestadas desta epidemia, tenham concordado em nos enganar ou nos fazer de enganados, seria desnecessário ocuparmo-nos em demonstrar a seguinte assertiva: existe hoje no mundo uma escola, um sistema, um partido, uma seita, ou chame-se como quiser, conhecida por seus amigos e por seus inimigos com o nome de liberalismo.

Os seus jornais, associações e governos qualificam-se abertamente de liberais. Seus adversários lançam-lhes ao rosto este nome e eles não protestam, se desculpam nem atenuam a acusação.

Mais ainda: lê-se diariamente que existem correntes liberais, tendências, reformas, projetos, personagens, datas e recordações, idéias e programas liberais. Em contrapartida, dá-se o nome de anti-liberalismo, clericalismo, reacionarismo ou ultramontanismo a tudo o que se opõe ao sentido dado à palavra “liberal”.

É, portanto, incontestável que existe atualmente uma certa coisa que se chama liberalismo e uma certa outra coisa que se chama anti-liberalismo. Como muito acertadamente já se disse, liberalismo é uma palavra de divisão, pois tem dividido o mundo em dois campos opostos.

Mas não é só uma palavra, pois a toda palavra corresponde uma idéia; nem é só uma idéia, pois a uma idéia corresponde de fato toda uma ordem de acontecimentos exteriores. Existe então o liberalismo, isto é, existem doutrinas liberais, obras liberais e, conseqüentemente, existem homens que professam doutrinas e praticam obras liberais. Ora, esses homens não são indivíduos isolados; eles vivem e trabalham como um grupo organizado com um fim comum, unanimemente aceito, sob a direção de chefes nos quais reconhecem o poder e a autoridade. O liberalismo, pois, não é apenas uma idéia, uma doutrina, uma obra, mas é sobretudo uma seita.

Portanto é evidente que quando tratamos de liberalismo e de liberais, não estudamos seres imaginários, puros conceitos intelectuais, mas realidades verdadeiras e palpáveis do mundo exterior. Bastante verdadeiras e palpáveis, infelizmente!

Sem dúvida nossos leitores terão observado que, em tempos de epidemia, a primeira preocupação que se manifesta é sempre a de sustentar que ela não existe. Não há lembrança, nas diferentes epidemias que nos afligiram no século presente ou nos séculos passados, de que uma só vez tenha deixado de se passar este fenômeno:

A enfermidade já devorou em silêncio grande número de vítimas e dizimou a população, quando enfim se começa a reconhecer que ela existe. Os comunicados oficiais têm sido por vezes os mais entusiasmados propagadores da mentira, e há casos em que a própria autoridade impôs até penas aos que afirmaram a realidade da epidemia.

O que se produz na ordem moral de que estamos tratando é análogo. Depois de cinqüenta anos ou mais vivendo em pleno liberalismo, ainda ouvimos pessoas respeitáveis nos perguntarem com assombrosa candidez: “Ah! Levas a sério essa de liberalismo? Não serão talvez apenas exageros do rancor político? Não valeria mais esquecer essa palavra que nos divide e nos indispõe uns contra os outros?”

Quando a infecção se difunde na atmosfera a ponto de a maior parte dos que a respiram se habituarem à contaminação e já não sentirem mais a infecção no ar, é sinal de um gravíssimo sintoma!

Logo o liberalismo existe, caro leitor; é um fato, e disto não te permitas nunca duvidar.

2. Que é o liberalismo?

Ao estudar um objeto qualquer, depois da pergunta sobre sua existência, an sit?, faziam os antigos escolásticos a de sua natureza, quid sit? É desta que vamos nos ocupar no presente capítulo.

Que é o liberalismo?

Na ordem das idéias, é um conjunto de idéias falsas; na ordem dos fatos, é um conjunto de fatos criminosos, conseqüência prática daquelas idéias.

Na ordem das idéias, o liberalismo é o conjunto dos chamados princípios liberais, com as conseqüências lógicas que deles derivam. São princípios liberais: a absoluta soberania do indivíduo, com inteira independência de Deus e de sua autoridade; a soberania da sociedade, com absoluta independência do que não provenha dela mesma; a soberania popular, isto é, o direito do povo de legislar e governar com absoluta independência de todo critério que não seja o da sua própria vontade, expressa primeiro por sufrágio e depois pela maioria parlamentar; a liberdade de pensamento sem limites políticos, morais ou religiosos; a liberdade de imprensa, igualmente absoluta ou insuficientemente limitada; e a liberdade de associação também ilimitada.

São esses os princípios liberais em seu mais cru radicalismo.

O seu fundo comum é o racionalismo individual, o racionalismo político e o racionalismo social, de onde derivam: a liberdade de culto, mais ou menos restrita; a supremacia do Estado em suas relações com a Igreja; o ensino laico ou independente, sem laço algum com a religião; o matrimônio legislado e sancionado unicamente pela intervenção do Estado. Sua última palavra, que tudo abarca e sintetiza, é “secularização”, isto é, a não intervenção da religião em qualquer ato da vida pública, verdadeiro ateísmo social que é a conseqüência última do liberalismo.

Na ordem dos fatos, o liberalismo é um conjunto de obras inspiradas e reguladas por esses princípios; tais como as leis de desamortização[1]; a expulsão das ordens religiosas; os atentados de todo gênero — oficiais e extraoficiais — contra a liberdade da Igreja; a corrupção e o erro publicamente autorizados, seja na tribuna, na imprensa, nas diversões e nos costumes; a guerra sistemática contra o catolicismo e tudo o que é tachado de clericalismo, teocracia, ultramontanismo etc.

É impossível enumerar e classificar os atos que constituem a ação prática liberal, pois compreendem desde o ministro e o diplomata que legislam ou intrigam, até o demagogo que discursa no clube ou que assassina na rua; desde o tratado internacional ou a guerra iníqua, que usurpa do papa o seu principado temporal, até a mão que ambiciona o dote da monja ou que se apodera da candeia do altar; desde o livro pretensamente profundo e erudito que se passa como leitura na universidade, até a vil caricatura que faz a alegria dos bufões na taverna. O liberalismo prático é um mundo completo: tem suas máximas, modas, artes, literatura, diplomacia, leis, maquinações e atropelos. É o mundo de Lúcifer, disfarçado hoje sob o nome de liberalismo, e em oposição radical e guerra aberta com a sociedade dos filhos de Deus — a Igreja de Jesus Cristo.

Eis o liberalismo do ponto de vista da doutrina e da prática.


[1] Série de leis de confisco e desapropriação da propriedade visando, principalmente, à propriedade eclesiástica.

3. Se o Liberalismo é pecado, e que pecado é.

O liberalismo é pecado, seja considerado na ordem das doutrinas, seja na ordem dos fatos.

Na ordem das doutrinas, é pecado grave contra a fé, porque suas doutrinas são uma heresia.

Na ordem dos fatos, é pecado contra os mandamentos da lei de Deus e de sua Igreja, porque infringe a todos. Para esclarecer: na ordem das doutrinas, o liberalismo é a heresia radical e universal, porque compreende todas as heresias. Na ordem dos fatos, é a infração radical e universal da lei de Deus, porque autoriza e sanciona todas as outras infrações.

Procedamos por partes na demonstração.

Na ordem das doutrinas o liberalismo é uma heresia. Heresia é toda doutrina que nega formalmente e de maneira pertinaz um dogma da fé cristã. Ora, o liberalismo doutrinal começa por negar todos os dogmas do cristianismo em geral, e depois nega cada um deles em particular.

Ele os nega todos em geral quando afirma ou supõe a independência absoluta da razão individual no indivíduo, e da razão social ou critério público na sociedade.

Dizemos “afirma” ou “supõe", porque às vezes o princípio liberal não é afirmado nas conseqüências secundárias, mas tem-se já por suposto e admitido.

Ele nega a jurisdição absoluta de Cristo Deus sobre os indivíduos e as sociedades e, por conseqüência, nega a jurisdição delegada que o chefe visível da Igreja recebeu de Deus sobre todos e cada um dos fiéis, qualquer que seja sua condição e dignidade.

Nega a necessidade da revelação divina e a obrigação que tem o homem de admiti-la, se quer alcançar seu fim último.

Nega o motivo formal da fé, isto é, a autoridade de Deus que revela, admitindo da doutrina revelada apenas algumas verdades que seu curto entendimento alcança.

Nega o magistério infalível da Igreja e do Papa e, desta forma, nega todas as doutrinas definidas e ensinadas por eles.

E, depois dessa negação geral e em bloco, o liberalismo nega cada um dos dogmas, parcialmente ou por inteiro, à que medida que, segundo as circunstâncias, os encontra opostos ao seu juízo racionalista. Assim, por exemplo, ele nega a fé do batismo quando admite ou supõe a igualdade dos cultos; nega a santidade do matrimônio quando estabelece a doutrina do chamado matrimônio civil; nega a infalibilidade do Pontífice Romano quando recusa admitir como leis seus mandatos oficiais e seus ensinamentos, sujeitando-os ao seu exequatur, não para assegurar-se da autenticidade, como se praticava outrora, mas para julgar o seu conteúdo.

Na ordem dos fatos, o liberalismo é a imoralidade radical.

Ele o é porque destrói o princípio, ou regra fundamental de toda moral, que é a razão eterna de Deus impondo-se à razão humana; porque canoniza o absurdo princípio da moral independente, que é no fundo a moral sem lei, a moral livre, ou, o que é o mesmo, a moral que não é moral, pois a idéia de moral implica não só a idéia de direção, mas contém ainda essencialmente a idéia de refreio ou de limite. Ademais, o liberalismo é todo imoralidade, porque em seu processo histórico cometeu e sancionou como lícita a infração de todos os mandamentos, desde o que manda o culto de um só Deus, que é o primeiro do Decálogo, até o que prescreve o pagamento dos direitos temporais da Igreja e que é o último dos cinco que Ela promulgou[1].

Pode-se dizer então que o liberalismo, na ordem das idéias, é o erro absoluto, e que na ordem dos fatos é a desordem absoluta. Por conseguinte, nos dois casos, é pecado grave, ex genero suo, pecado gravíssimo, pecado mortal.


[1] Quinto Mandamento da Igreja: Ajudá-la em suas necessidades materiais.

4. Da especial gravidade do pecado do Liberalismo

Ensina a teologia católica que nem todos os pecados graves são igualmente graves, mesmo na condição essencial que os distingue dos pecados veniais.

Há graus no pecado, mesmo dentro da categoria dos pecados mortais, assim como há graus de boas obras dentro da categoria das boas obras e conformes à lei de Deus. A blasfêmia, por exemplo, que ataca diretamente a Deus, é um pecado mortal mais grave do que um pecado que ataca diretamente o homem, como o roubo.

Pois bem, à exceção do ódio formal contra Deus e da desesperação absoluta, que raríssimas vezes são cometidos pela criatura, a não ser no inferno, os pecados mais graves de todos são os pecados contra a fé. A razão é evidente. A fé é o fundamento de toda a ordem sobrenatural e o pecado é pecado enquanto ataca algum ponto dessa ordem sobrenatural; por conseguinte, o pecado máximo é aquele que ataca o fundamento primordial dessa ordem.

Um exemplo para aclarar: talha-se uma árvore, cortando-lhe algum de seus ramos. Quanto mais importante o ramo que se retira, maior será o dano. Se se cortar o tronco ou a raiz o dano será mais grave ou mortal. Santo Agostinho, citado por Santo Tomás, dá ao pecado contra a fé esta fórmula incontestável: Hoc est peccatum quo tenentur cuncta peccata — “Este é um pecado que contêm todos os pecados”.

O Doutor Angélico discorre sobre esse ponto com sua habitual clareza: “Tão mais grave é um pecado, quanto mais por ele o homem se separa de Deus. Pelo pecado contra a fé, o homem se separa o mais que pode de Deus, pois se priva de seu verdadeiro conhecimento; daí que, conclui o Santo Doutor, o pecado contra a fé é o maior que se conhece.” [1]

Porém, o pecado contra a fé é ainda mais grave quando não é simplesmente uma ausência culpável dessa virtude e desse conhecimento de Deus, mas negação e ataque formal aos dogmas expressamente definidos pela revelação divina. Neste caso, o pecado contra a fé, em si gravíssimo, adquire uma gravidade ainda maior, que constitui o que se chama “heresia”. Ele inclui toda a malícia da infidelidade, além de um protesto expresso contra um ensinamento da fé que, sendo falso e errôneo, é condenado pela mesma fé. Esse pecado gravíssimo contra a fé é agravado pela obstinação e contumácia, e por uma preferência orgulhosa: a da razão própria à razão de Deus.

Portanto as doutrinas heréticas e as obras heréticas constituem o maior pecado de todos, à exceção do ódio formal a Deus, ódio de que são capazes, como já dissemos, apenas os demônios e os condenados.

Por conseguinte o liberalismo, que é uma heresia, e as obras liberais, que são obras heréticas, são os pecados máximos que conhece o código da fé cristã.

Desta maneira, salvo os casos de boa-fé, de ignorância e de indeliberação, o fato de ser liberal constitui um pecado maior do que ser blasfemo, ladrão, adúltero, homicida, ou qualquer outra coisa que proíba a lei de Deus e que castigue sua justiça infinita.

O moderno naturalismo não o entende assim, é verdade. Mas as leis dos Estados católicos sempre o creram assim, até o advento da presente era liberal. A lei da Igreja assim prossegue ensinando, e assim continua julgando o tribunal de Deus. Sim, a heresia e as obras heréticas são os piores pecados de todos, e, portanto, o liberalismo e os atos liberais são, ex genere suo, o mal acima de todo mal.


[1] II-II, q.10, a.3.

5. Dos diferentes graus que podem existir e existem na unidade específica do Liberalismo

O liberalismo, como sistema de doutrinas, pode ser chamado de escola; como organização de adeptos para difundi-las e propagá-las, de seita; como agrupamento de homens dedicados a fazê-las prevalecer na esfera do direito público, de partido. Mas, quer se considere o liberalismo como escola, seita, ou partido, vê-se que ele oferece, dentro de sua unidade lógica e específica, diferentes graus ou matizes que o teólogo católico deve estudar e expor.

Antes de tudo, convém notar que o liberalismo é uno, isto é, constitui um organismo de erros perfeita e logicamente encadeados, motivo pelo qual o chamamos de sistema. Com efeito, se partirmos do seu princípio fundamental, a saber, que o homem e a sociedade são perfeitamente autônomos ou livres, com absoluta independência de qualquer outro critério natural ou sobrenatural que não seja o individual, chegaremos, por uma perfeita dedução de conseqüências, a tudo aquilo que a demagogia mais avançada proclama em seu nome.

A Revolução não tem nada de grande, a não ser sua inflexível lógica. Até os seus atos mais despóticos, executados em nome da liberdade, e que à primeira vista tachamos de inconseqüências monstruosas, obedecem a uma elevadíssima lógica. Porque se a sociedade reconhece como única lei social a opinião da maioria, não admitindo outro critério ou regulador, como se pode negar ao Estado o direito absoluto de cometer todo tipo de atropelo contra a Igreja, todas as vezes que, segundo seu único critério social, achar conveniente fazê-lo?

Admitindo-se que a maioria tem sempre razão, admite-se também que a única lei é a do mais forte, e assim, muito logicamente, se pode chegar até as últimas brutalidades.

Entretanto, apesar dessa unidade lógica do sistema, os homens não são sempre lógicos, e isto produz dentro dessa unidade a mais assombrosa variedade ou gradação de tintas. As doutrinas derivam necessariamente e por virtude própria umas das outras; mas os homens, ao aplicá-las, são em geral ilógicos e inconseqüentes.

Se os homens levassem até as últimas conseqüências seus princípios, eles seriam todos santos, quando os princípios fossem bons; e todos demônios do inferno, quando os princípios fossem maus.

É a inconseqüência que faz meio bons os homens bons, e meio maus os homens maus.

Aplicando essas observações ao presente assunto do liberalismo, nós diremos que, pela graça de Deus, encontram-se relativamente poucos liberais completos; o que não impede que a maioria, ainda que não tenha atingido o último limite da depravação liberal, seja composta de verdadeiros liberais, ou seja, verdadeiros discípulos, partidários ou sectários do liberalismo (conforme se considere o liberalismo uma escola, seita ou partido).

Examinemos estas variedades da família liberal.

Há liberais que aceitam os princípios, mas fogem das conseqüências, pelo menos das mais cruas e extremas.

Outros aceitam uma ou outra conseqüência ou aplicação que lhes agrada, enquanto são escrupulosos em aceitar radicalmente os princípios.

Quiseram alguns o liberalismo aplicado tão somente ao ensino; outros, à economia; outros tão só às formas políticas.

Só os mais avançados pregam sua aplicação em tudo e para tudo. As atenuações e mutilações do credo liberal são tão numerosas quanto numerosos são os favorecidos ou prejudicados por sua aplicação. Pois, geralmente, existe o erro de crer que o homem pensa com a inteligência, quando o usual é que pense com o coração, e muitas vezes ainda com o estômago.

Daí que os diferentes partidos liberais preguem o liberalismo em diversos graus, assim como o taberneiro serve aguardente em diversos graus, ao gosto do consumidor.

É por isso que não existe liberal para quem seu vizinho mais avançado não seja um brutal demagogo, ou seu vizinho menos avançado não seja um furioso reacionário. É questão de escala alcoólica e nada mais. Assim, tanto os que em Cádis batizaram hipocritamente em nome da Santíssima Trindade seu liberalismo, como os que, nestes últimos tempos, têm como lema o grito "Guerra a Deus!", ocupam degraus diferentes na escala liberal. E a prova disto é que todos aceitam e invocam o denominador comum de liberal.

O critério liberal ou independente é sempre o mesmo para todos, ainda que as aplicações sejam mais ou menos acentuadas de acordo com os indivíduos.

De que depende essa maior ou menor intensidade? Muitas vezes dos interesses; não poucas vezes do temperamento; de certos traços de educação que impedem alguns de darem os passos precipitados que outros dão; de respeitos humanos, talvez, ou de considerações de família; de relações e amizades etc., etc. Sem contar a tática satânica que às vezes aconselha o homem a não radicalizar uma idéia, a fim de não alarmar as pessoas, de torná-la mais viável e facilitar sua aplicação.

Essa maneira de proceder pode, sem juízo temerário, ser atribuída a certos liberais conservadores, entre os quais sob a máscara de conservadorismo se oculta, comumente, um franco demagogo.

Mas, nos “semi-liberais”, em geral, a caridade pode supor certa dose de candor e de natural bonhomie ou tolice, que, embora não os torne inimputáveis, como mostraremos depois, obriga, não obstante, que se tenha para com eles alguma compaixão.

Fica pois demonstrado, caro leitor, que o liberalismo é um só, ao passo que os liberais, assim como o mau vinho, têm diferentes cores e sabores.

6. Do chamado liberalismo católico ou catolicismo liberal

De todas as inconseqüências e antinomias que se encontram nos graus médios do liberalismo, a mais repugnante e odiosa é a que pretende nada menos que unir o liberalismo com o catolicismo, para formar o que se conhece na história dos modernos desvarios pelo nome de “liberalismo católico” ou “catolicismo liberal”. E todavia ilustres inteligências e honradíssimos corações, que não podemos crer mal-intencionados, pagaram tributo a esta absurdidade! O liberalismo teve sua época de moda e prestígio que, graças ao céu, vai passando ou já passou.

Nasceu este funesto erro de um desejo exagerado de conciliar e pacificar a coexistência de doutrinas forçosamente inconciliáveis e inimigas por sua própria essência.

O liberalismo é o dogma da independência absoluta da razão individual e social. O catolicismo é o dogma da sujeição absoluta da razão individual e social à lei de Deus.

Como conciliar o sim e o não de doutrinas tão opostas?

Isto pareceu fácil aos fundadores do liberalismo católico. Alegaram uma razão individual, sujeita à lei do Evangelho, e inventaram uma razão pública ou social, coexistente com ela e livre de todo entrave. Disseram: “O Estado como tal não deve ter Religião, ou deve tê-la somente até certo ponto, que não disturbe os que não queiram tê-la”. Assim, o cidadão particular deve sujeitar-se à revelação de Jesus Cristo, mas por sua vez o homem público pode comportar-se como se a revelação não existisse. Deste modo compuseram a célebre fórmula: “Igreja livre no Estado livre”. Fórmula para cuja propagação e defesa se juramentaram na França vários católicos insignes, e entre eles um ilustre bispo [1].

Esta fórmula devia ser suspeita, desde que Cavour a tomou como divisa da revolução italiana contra o poder temporal da Santa Sé, porém nenhum de seus autores ainda se retratou formalmente, segundo sabemos, malgrado o seu evidente fracasso.

Esses ilustres sofistas não viram que, se a razão individual tem a obrigação de submeter-se à lei de Deus, a razão pública e social não pode dela se subtrair, sem cair num dualismo extravagante, que submete o homem à lei de dois critérios opostos e de duas consciências opostas. De modo que a distinção do homem privado e do homem público, o primeiro obrigado a ser cristão, e o segundo autorizado a ser ateu, cai imediatamente ao chão sob o peso esmagador da lógica integralmente católica. O Syllabus, do qual falaremos adiante, acabou de afundar esta tese, sem chance de remissão. Resta ainda desta brilhante mas funestíssima escola um e outro discípulo tardio, que já não se atreve a sustentar publicamente a teoria católico-liberal da qual foram em outros tempos fervorosos panegiristas, mas à qual ainda seguem obedecendo na prática; talvez, não se dão conta de que querem pescar com redes que, de tão conhecidas e usadas, o diabo já mandou recolher.


[1] Alusão à famosa reunião presidida por Dom Félix Dupanloup no castelo de la Roche-em-Breny, na Borgonha, na casa de Montalembert, que colocará em seguida, ele mesmo, na sua capela privada, a seguinte inscrição: “Neste oratório, Félix, Bispo de Orléans, distribuiu o pão da palavra e o pão da vida cristão a um pequeno rebanho de amigos que, depois de longo tempo acostumados a combater juntos pela Igreja livre na pátria livre, renovaram o pacto de consagrar o resto de suas vidas a Deus e à liberdade. 12 de outubro de 1862.”

Estavam presentes: Alfredo, conde de Falloux, Théophile Foisset, Augustin Cochin, Charles de Montalembert; ausente de corpo mas presente de espírito: Alberto, príncipe de Broglie.

7. Em que consiste provavelmente a essência ou razão intrínseca do liberalismo católico

Se refletirmos sobre a essência do liberalismo chamado católico (comumente chamado “catolicismo liberal”), veremos que, provavelmente, ela consiste apenas num falso conceito do ato de fé. Os católicos liberais parecem fundamentar toda a razão de sua fé não na autoridade de Deus, infinitamente veraz e infalível, que Se dignou revelar-nos o caminho único que nos há de conduzir à bem-aventurança sobrenatural, mas na livre apreciação de um juízo individual, que dita ao homem ser melhor uma crença do que qualquer outra. Não querem reconhecer o magistério da Igreja como único autorizado por Deus a apresentar aos fiéis a doutrina revelada e a determinar-lhe o verdadeiro sentido. Ao contrário, fazendo-se a si mesmos juízes da doutrina, aceitam dela o que lhes agrada, reservando-se porém o direito de crer no contrário, sempre que supostas razões pareçam demonstrar como falso hoje o que parecia verdadeiro ontem.

Para refutar essa pretensão basta conhecer a doutrina fundamental de Fide, exposta sobre esta matéria pelo Santo Concílio Vaticano [1].

Ademais, os católicos liberais se intitulam católicos porque crêem firmemente que o catolicismo é a verdadeira revelação do Filho de Deus; mas se intitulam católicos liberais, ou católicos livres, porque julgam que uma crença não lhes pode ser imposta, a eles nem a ninguém, por nenhum motivo senão o da sua livre apreciação. De maneira que, sem perceberem, o diabo maliciosamente substituiu neles o princípio sobrenatural da fé pelo princípio naturalista do livre exame. Com isso, ainda que julguem ter a fé das verdades cristãs, não a têm verdadeiramente, mas possuem simples convicção humana, a qual é essencialmente distinta daquela.

Por conseguinte, julgam a sua inteligência livre para crer ou não crer, e igualmente livre a de todos os outros. Na incredulidade, pois, não vêem um vício, enfermidade, ou cegueira voluntária do entendimento e mais ainda do coração, mas um ato lícito do foro interno de cada um, tão senhor de si para crer em certa coisa, como para não crer em coisa alguma. O seu horror à toda pressão exterior moral ou física, que previna ou castigue a heresia decorre dessa doutrina, e produz entre eles o seu horror às legislações civis francamente católicas. Daí o profundo respeito com o qual querem sempre tratar as crenças alheias, mesmo as mais opostas à verdade revelada; porque, para eles, as mais falsas são tão sagradas quanto as verdadeiras, já que todas nascem de um mesmo princípio igualmente sagrado: a liberdade individual. É assim que se erige em dogma o que se chama tolerância, e que se impõe à apologética católica contra os hereges um novo código de leis, que nunca conheceram na antiguidade os grandes polemistas do catolicismo.

Sendo essencialmente naturalista seu conceito primário da fé, segue-se que é naturalista também todo seu desenvolvimento no indivíduo e na sociedade. Daí resulta que a apreciação primeira e, às vezes, exclusiva que os católicos liberais fazem da Igreja, se limita às vantagens culturais e civilizacionais que proporciona aos povos. Esquecem e quase nunca citam seu fim primário, sobrenatural, que é a glorificação de Deus e a salvação das almas. Diversas apologias católicas escritas na época presente estão repletas deste falso conceito. De modo que, para tais pessoas, se o catolicismo por infelicidade tivesse sido causa em algum tempo de atraso material para os povos, já não seria verdadeira nem louvável, em boa lógica, essa religião. E, com certeza, assim já se passou [na história], pois que, para alguns indivíduos e famílias, o ser fiéis à sua religião é ocasião de verdadeira ruína material; e nem por isso deixa ela de ser menos excelente e divina.

Este critério é o que dirige a pluma da maior parte dos periódicos liberais; se eles lamentam a demolição de um templo, só assinalam ao leitor a profanação da arte. Se advogam em favor das ordens religiosas, é apenas para ponderar os benefícios que prestaram às letras; se exaltam as Irmãs da Caridade, é tão-só em consideração aos serviços humanitários com que suavizam os horrores da guerra; se admiram o culto, não é senão por causa de seu brilho exterior e poesia; se na literatura católica respeitam as Sagradas Escrituras, é porque se fixam apenas em sua majestosa sublimidade.

Deste modo de louvar as coisas católicas apenas por sua grandeza, beleza, utilidade ou excelência material, resulta logicamente que o erro, quando reunir essas condições, merece iguais louvores, como sem dúvida as reúne, aparentemente e em certos momentos, algumas das falsas religiões.

A maléfica ação deste princípio naturalista chega até mesmo à piedade, e a converte em verdadeiro pietismo, quer dizer, em falsificação da piedade verdadeira. Vemos isto em tantas pessoas que não buscam nas práticas devotas senão a emoção, o que é puro sensualismo da alma e nada mais. Também vemos inteiramente enfraquecido hoje em muitas almas o ascetismo cristão, que é a purificação do coração por meio da repressão dos apetites, e desconhecido o misticismo cristão, que não é a emoção, nem a consolação interior, nem outra dessas delícias humanas, mas a união com Deus por meio da sujeição à sua santíssima vontade e do amor sobrenatural.

Por isso, o catolicismo de um grande número de pessoas em nosso tempo é um catolicismo liberal, ou, mais exatamente, um catolicismo falso. Não é catolicismo, mas um simples naturalismo, um racionalismo puro; é, numa palavra, se nos permitem a expressão, paganismo com linguagem e formas católicas.


[1] Vaticano I (1870-1871).

8. Sombra e penumbra, ou a razão extrínseca desta mesma seita católico-liberal

Após termos visto no capítulo anterior a razão intrínseca, ou formal, do liberalismo católico, passemos agora a examinar o que poderíamos chamar sua razão extrínseca, histórica, ou material, se a nossos leitores agradar mais essa classificação escolástica.

As heresias que estudamos hoje, no vasto curso dos séculos que intervalam a vinda de Jesus Cristo e os tempos em que vivemos, mostram-se a nós, à primeira vista, como pontos clara e definitivamente circunscritos a seu respectivo período histórico. De modo que parece possível demarcar, como que a compasso, o ponto onde elas começam e onde acabam, ou seja, a linha geométrica que separa esses pontos negros do restante do campo luminoso em que se estendem.

Mas essa apreciação, se a consideramos com atenção, não é mais que uma ilusão causada pela distância. Um estudo mais aprofundado, que com a lente de uma boa crítica nos aproxime dessas épocas, e nos ponha em contato intelectual com elas, permite-nos observar que nunca em nenhum período histórico os limites que separam o erro da verdade foram bastante geometricamente definidos. Não que a verdade, em sua realidade própria, não esteja clarissimamente formulada nas definições da Igreja, mas, porque, na sua apreensão e profissão exterior, a respectiva geração manifesta um modo mais ou menos franco de negá-la ou professá-la.

O erro na sociedade é como uma mancha num precioso tecido. Identifica-se claramente, mas é difícil precisar seus limites. Suas fronteiras são vagas como os crepúsculos que separam o dia que morre da noite que se aproxima, ou como a aurora que religa as últimas sombras da noite ao dia que renasce. Esses limites precedem o erro, que é uma negra sombra; eles o seguem e rodeiam de uma vaga penumbra, que pode por vezes ser identificada com a própria sombra, iluminada ainda por um e outro reflexo de luz moribunda, ou com a própria luz, encoberta e escurecida já pelas primeiras sombras.

Assim, todo erro claramente formulado na sociedade cristã teve em torno de si outra atmosfera do mesmo erro, porém menos densa, e mais tênue e mitigada. O arianismo teve o seu semi-arianismo; o pelagianismo, o semi-pelagianismo; o luteranismo feroz, o jansenismo, que não foi senão um luteranismo moderado. Do mesmo modo na época presente, o liberalismo radical tem em torno de si seu semi-liberalismo, que outra coisa não é que a seita católico-liberal que estamos aqui examinando.

É o que o Syllabus chamou de racionalismo moderado; é o liberalismo sem a franca crueza de seus princípios descobertos, e sem o horror de suas últimas conseqüências: o liberalismo para uso dos que não consentem ainda em deixar de parecer ou crer-se católicos.

O liberalismo é o triste crepúsculo da verdade que começa a obscurecer-se na inteligência, ou da heresia que ainda não tomou completa possessão dela. Observamos com efeito que costumam ser católicos-liberais os católicos que vão deixando de ser firmes católicos, e os liberais puros que, desiludidos em parte de seus erros, não chegaram ainda plenamente aos domínios da verdade íntegra. É o meio sutil e engenhosíssimo que encontrou sempre o diabo para reter em seu serviço muitos que, de outro modo, teriam detestado verdadeiramente, se as tivessem conhecido, suas maquinações infernais.

Este meio satânico consiste em permitir que tenham um pé no terreno da verdade, desde que tenham o outro já completamente no campo oposto. É desta forma que os que ainda não têm a consciência calejada evitam os salutares horrores do remorso; é assim igualmente que os espíritos pusilânimes e vacilantes, que são a maior parte, evitam os compromissos das resoluções decisivas; é assim que os oportunistas conseguem figurar, segundo lhes convém, um pouco em cada campo, mostrando-se em ambos como amigos e filiados; é assim que, finalmente, o homem pode aplicar um paliativo oficial e reconhecido à maior parte de suas misérias, debilidades e inconseqüências.

Talvez a presente questão não tenha sido ainda devidamente estudada por este lado, na história antiga e contemporânea. Se este lado é o menos nobre, é por isso mesmo o mais prático, já que infelizmente, é no menos nobre e elevado que muitas vezes se encontra o mecanismo secreto da maior parte dos fenômenos humanos. De nossa parte, pareceu-nos conveniente fazer aqui esta indicação, deixando a inteligências mais hábeis e experimentadas o cuidado de completá-la e desenvolvê-la.

9. Outra distinção importante: o liberalismo prático e o liberalismo especulativo ou doutrinal

A filosofia e a teologia ensinam que há duas classes de ateísmo: um doutrinal e especulativo, e outro prático. O primeiro consiste em negar franca e redondamente a existência de Deus, pretendendo anular ou desconhecer as provas irrefutáveis em que esta verdade se sustenta. O segundo consiste em viver e agir sem negar a existência de Deus, mas como se Deus não existisse realmente. Os primeiros chamam-se ateus teóricos ou doutrinais, os segundos ateus práticos, e são os mais numerosos.

O mesmo ocorre com o liberalismo e com os liberais. Há liberais teóricos e liberais práticos. Os primeiros são os dogmatizadores da seita: filósofos, professores, deputados ou jornalistas. Ensinam o liberalismo em seus livros, discursos ou artigos, por argumentos e por autoridade, em conformidade com um critério racionalista em oposição velada ou manifesta ao critério da revelação divina e sobrenatural de Jesus Cristo.

Os liberais práticos são a maioria do grupo, os ingênuos, que crêem de pés juntos tudo o que lhes dizem os mestres, ou que, sem o crer, seguem docilmente a quem os conduz. Nada sabem de princípios nem de sistemas, e talvez até os detestariam, se conhecessem toda a sua perversidade. Entretanto, são as mãos que obram, assim como os teóricos são as cabeças que dirigem. Sem eles o liberalismo não sairia do recinto das academias; são os que lhe dão vida e movimento exterior. Pagam o jornal liberal, votam no candidato liberal, apóiam as alianças liberais, aclamam os representantes do liberalismo, celebram suas festas e aniversários. Constituem a matéria-prima do liberalismo, disposta a tomar qualquer forma, e a servir sempre a qualquer tolice. Muitos deles iam à Missa, e mataram os frades; mais tarde assistiam a novenas, punham seus filhos na carreira eclesiástica, e compravam bens roubados da Igreja. Talvez hoje rezem o Rosário e votem no deputado partidário da liberdade de cultos. Formularam para si certa lei de viver com o século, e crêem (ou querem crer) que estão bem assim. Isto os exime de responsabilidade ou de culpa diante de Deus? Não, por certo, como veremos depois.

Liberais práticos são também os que, evitando explicar a teoria liberal, que sabem estar já desacreditada para certas inteligências, procuram contudo sustentá-la no que se refere ao procedimento prático de todos os dias, escrevendo e discursando à moda liberal, propondo e elegendo candidatos liberais, elogiando e recomendando seus livros e homens, julgando sempre os acontecimentos segundo o critério liberal e manifestando sempre ódio tenaz a tudo o que tenda a desacreditar ou menosprezar seu querido liberalismo. Esta é a conduta de muitos jornalistas prudentes, que dificilmente são pegos em delito de formular proposições concretamente liberais, mas que, todavia, em tudo o que dizem ou calam não deixam de fazer a maldita propaganda sectária. De todos os répteis liberais, são esses os mais venenosos.

10. O Liberalismo de todo matiz e caráter já foi formalmente condenado pela Igreja?

Sim, o liberalismo, em todos os seus graus e em todas as suas formas, está formalmente condenado. De modo que, além das razões de malícia intrínseca que o fazem mau e criminoso, todo fiel católico tem acesso à suprema e definitiva declaração da Igreja a respeito do liberalismo: ela o julgou e anatematizou. Não se podia permitir que um erro de tal transcendência deixasse de ser incluído no catálogo das doutrinas oficialmente reprovadas, e aliás foi ele incluído em várias ocasiões.

Já quando apareceu na França, em sua primeira Revolução, a famosa Declaração dos Direitos do Homem, que continha em germe todos os desatinos do moderno liberalismo, foi condenada por Pio VI. Mais tarde, esta doutrina funesta foi desenvolvida e aceita por quase todos os governos da Europa, mesmo pelos príncipes soberanos, o que é uma das mais terríveis cegueiras que a história das monarquias ofereceu. Tomou em Espanha o nome pelo qual hoje é conhecida em toda parte: liberalismo.

Ocorreram as terríveis contendas entre monarquistas e constitucionalistas, que se designaram mutuamente pelos nomes de servis e liberais. Da Espanha essa denominação estendeu-se a toda a Europa. Pois bem, na maior força da luta, por ocasião dos primeiros erros de Lamennais, Gregório XVI publicou sua Encíclica Mirari vos[1], condenação explícita do liberalismo, tal como era então entendido, ensinado e praticado pelos governos constitucionais.

Com o tempo, a corrente avassaladora dessas idéais funestas cresceu, tomando até, em virtude de alguns extraviados talentos, a máscara de catolicismo. Suscitou Deus à sua Igreja o Pontífice Pio IX, que, com toda razão, passará à história com o título de açoite do liberalismo.

O erro liberal, em todas as suas faces e matizes, foi desmascarado por esse papa. Para que mais autoridade tivessem suas palavras neste assunto, dispôs a Providência que a repetida condenação do liberalismo saísse dos lábios de um Pontífice que os liberais, desde o princípio, procuraram apresentar como seu partidário. Depois dele, já não restou mais subterfúgio algum ao qual pudesse recorrer este erro. Os numerosos Breves e Alocuções de Pio IX mostraram ao povo cristão o liberalismo tal qual é, e o Syllabus colocou o último selo na condenação.

Vejamos o conteúdo principal de alguns desses documentos pontifícios. Citaremos apenas alguns, dentre muitos que poderíamos citar.

Em 18 de junho de 1871, Pio IX, respondendo a uma comissão de católicos franceses, falou-lhes assim:

“O ateísmo nas leis, a indiferença em matéria de religião e as máximas perniciosas chamadas católico-liberais, são, sim, verdadeiramente a causa da ruína dos Estados; foram elas a perdição da França. Crede-me, o mal que vos anuncio é mais terrível que a Revolução, e ainda mais que a Comuna. Sempre condenei o catolicismo-liberal, e voltarei quarenta vezes a condená-lo, se preciso for.”

No Breve de 6 de março de 1873, dirigido ao presidente e aos membros do Círculo de Santo Ambrósio de Milão, o soberano pontífice se expressa assim:

“Não falta quem tente fazer uma aliança entre a luz e as trevas, e uma associação entre a justiça e a iniqüidade, em favor das doutrinas chamadas católico-liberais, que, baseadas em perniciosos princípios, mostram-se favoráveis às invasões do poder secular nos negócios espirituais; inclinam seus partidários a estimar ou ao menos tolerar leis iníquas, como se não estivesse escrito que ninguém pode servir a dois senhores. Os que procedem assim são, sob todos os ângulos, mais perigosos e funestos do que os inimigos declarados, não só porque, sem que sejam advertidos, talvez mesmo sem que percebam, secundam as tentativas dos maus, mas também porque, mantendo-se dentro de certos limites, eles se mostram com aparências de probidade e sã doutrina para alucinar os amigos imprudentes da conciliação, e seduzir as pessoas honradas que teriam certamente combatido o erro manifesto.”

No Breve de 8 de maio do mesmo ano, à Confederação dos Círculos Católicos da Bélgica, ele afirmou:

“O que sobretudo louvamos em vossa religiosíssima empresa é a absoluta aversão que, segundo me consta, professais aos princípios católico-liberais, e vossa intrépida vontade de desarraigá-los de seus adeptos. Em verdade, ao esforçar-vos em combater esse erro insidioso, tão mais perigoso que a inimizade declarada quanto mais se encobre sob o especioso véu de zelo e caridade, e em procurar com afinco apartar dele as pessoas simples, extirpareis uma funesta raiz de discórdias e contribuireis eficazmente para unir e fortalecer os ânimos. Seguramente, vós, que acatais com tão plena submissão todos os documentos desta Sé Apostólica, e que conheceis as reiteradas reprovações dos princípios liberais, não necessitais destas advertências.”

No Breve ao La Croix, jornal de Bruxelas, em 21 de maio de 1874, o papa diz o seguinte:

“Não podemos deixar de elogiar o propósito expresso em vossa carta, e ao qual soubemos que satisfaz plenamente o vosso jornal, de publicar, divulgar, comentar e inculcar nos ânimos tudo quanto esta Santa Sé tem ensinado contra as perversas, ou ao menos falsas doutrinas professadas em tantas partes, e particularmente contra o liberalismo católico, empenhado em conciliar a luz com as trevas e a verdade com o erro.”

Em 9 de junho de 1873, escreveu ao presidente do Conselho da Associação Católica de Orleães, e, sem nomeá-lo, retratou o liberalismo pietista e moderado nos seguintes termos:

“Ainda que vossa luta tenha que ser travada rigorosamente contra a impiedade, talvez por este lado não vos ameace um perigo tão grande, como por parte desse grupo de amigos imbuídos daquela doutrina ambígua que, ainda que rejeite as últimas conseqüências dos erros, retêm obstinadamente seus germes, e não querendo abraçar-se com a verdade íntegra, nem se atrevendo a rejeitá-la por inteiro, afanam-se em interpretar as tradições e doutrinas da Igreja, ajustando-as ao molde de suas opiniões privadas.”

Mas, para não nos tornarmos intermináveis e cansativos, nos contentaremos em ajuntar algumas passagens de outro Breve, o mais expressivo de todos, e que portanto não podemos em consciência omitir. É aquele dirigido ao bispo de Quimper, em 28 de julho de 1873. Nele o Papa diz o seguinte, referindo-se à Assembléia Geral das Associações Católicas, que acabava de ser celebrada naquela diocese:

“Seguramente tais associações não se apartarão da obediência devida à Igreja nem pelos escritos, nem pelos atos com que, mediante injúrias e invectivas, a perseguem; mas essas opiniões chamadas liberais poderão pô-las na escorregadia senda do erro, já que são aceitas por muitos católicos, homens de bem e piedosos, que, em razão da própria influência de sua religião e piedade, podem ter seus ânimos facilmente captados e induzidos a professar máximas muito perniciosas. Inculcai, portanto, venerável Irmão, aos membros dessa assembléia católica, que quando nós repreendemos tantas vezes os sequazes dessas opiniões liberais, não temos em vista os inimigos declarados da Igreja, os quais seria ocioso denunciar, mas a esses outros que aludimos há pouco, que, conservando o vírus oculto dos princípios liberais que beberam com o leite, como se não estivesse impregnado de palpável malignidade, e como se fosse tão inofensivo para a Religião como eles pensam, o inoculam facilmente nos ânimos, propagando assim a semente dessas discórdias que há tanto tempo revolvem o mundo. Procurem, pois, evitar estas ciladas, e esforcem-se em dirigir seus golpes contra este insidioso inimigo, e certamente merecerão a homenagem da Religião e da pátria.”

Nossos amigos e também nossos adversários o vêem: o papa diz tudo que se pode dizer sobre esta questão nesses Breves, particularmente no último, que nós devemos estudar em todos os detalhes.


[1] 15 de abril de 1832.

11. Da última e mais solene condenação do Liberalismo: o Syllabus

Resumindo tudo o que foi dito do liberalismo pelo papa em diversos documentos, devemos indicar os seguintes e duríssimos epítetos com que, em diferentes ocasiões, ele o qualificou.

Em seu Breve a Mons. de Ségur[1], a respeito de seu conhecido livro Hommage[2], ele chamou o liberalismo de pérfido inimigo; em sua alocução ao bispo de Nevers[3], chamou-o de verdadeira calamidade atual; em sua carta ao Círculo Católico de Santo Ambrósio de Milão[4], pacto entre a justiça e a iniqüidade; nesse mesmo documento, qualificou-o de mais funesto e perigoso do que um inimigo declarado; na já citada carta ao bispo de Quimper[5], vírus oculto; no Breve aos Belgas[6], erro insidioso e encoberto; em outro Breve a Monsenhor Gaume[7], peste perniciosíssima. Todos esses documentos podem ser lidos na íntegra no citado livro de Mons. de Ségur, Hommage aux catholiques libéraux.

No entanto, o liberalismo poderia com certa aparência de razão recusar a autoridade dessas declarações pontifícias, pois todas foram feitas em documentos de caráter meramente privado. A heresia é sempre tenaz e capciosa, agarra-se a qualquer pretexto ou escusa para eludir uma condenação. Fez-se necessário, portanto, um documento oficial, público, solene, de caráter geral, universalmente promulgado e, por conseguinte, definitivo. A Igreja não podia negar à ansiedade de seus filhos esta formal e decisiva palavra de seu soberano magistério. E ela foi dada, com o Syllabus de 8 de dezembro de 1864.

Todos os bons católicos o acolheram com entusiasmo igual aos paroxismos de furor com que o saudaram os liberais. Quanto aos católicos-liberais, eles creram mais prudente feri-lo de soslaio por meio de interpretações capciosas. Uns e outros tinham razão em reconhecer-lhe a devida importância. O Syllabus é um catálogo oficial dos principais erros contemporâneos, em forma de proposições concretas, tais como se encontram nos autores mais conhecidos que os propalaram. Nelas se encontram, pois, em detalhe, tudo o que constitui o dogmatismo liberal. Ainda que o liberalismo só seja nomeado em uma das proposições, é certo que a maior parte dos erros ali expostos são erros liberais e, portanto, a condenação separada de cada um deles resulta na condenação total do sistema. Enumeraremos rapidamente estas proposições.

Condenação da liberdade de cultos (proposições 15ª, 77ª e 78ª); do beneplácito régio (proposições 20ª e 28ª); da desamortização (proposições 26ª e 27ª); da supremacia absoluta do Estado (proposição 39ª); do laicismo no ensino público (proposições 45ª, 47ª e 48ª); da separação da Igreja e do Estado (proposição 15ª); do direito absoluto de legislar sem Deus (proposição 56ª); do princípio de não-intervenção (proposição 63ª); do matrimônio civil (proposições 73ª e outras); da liberdade de imprensa (proposição 79ª); do sufrágio universal como princípio de autoridade (proposição 60ª); por fim, do próprio nome “liberalismo” (proposição 80ª).

Vários livros, expondo clara e suscintamente cada uma dessas proposições, foram escritos desde então; os leitores podem consultá-los. Mas a interpretação e o comentário mais autorizado do Syllabus foi dada por seus próprios impugnadores, os liberais de todos os matizes, uma vez que o apresentaram sempre como seu mais odioso inimigo, como o símbolo mais completo do que chamam de clericalismo, ultramontanismo e a reação. Satanás, que é mau mas não bobo, viu muito claramente onde levaria um golpe tão certeiro, e acabou pondo em tão grandioso monumento o selo mais autorizado de todos, depois do de Deus: o de seu profundo rancor. Neste ponto, acreditemos no pai da mentira; pois o que ele aborrece e difama, traduz por si só uma garantia certa e segura de verdade.


[1] 1º de abril de 1874. [2] Título completo: Hommage aux jeunes catholiques-liberaux. [3] 18 de junho de 1871. [4] 6 de março de 1873. [5] 28 de julho de 1873. [6] 8 de maio de 1873. [7] 15 de janeiro de 1872.

12. De algo que parece liberalismo e que não o é, e de algo que é liberalismo, ainda que não o pareça

O diabo é um grande mestre em astúcias e enganos, e sua diplomacia mais hábil consiste em introduzir confusão nas idéias. O maldito perderia metade do seu poderio sobre os homens, se as idéias boas e más, que ele manipula, aparecessem em toda a clareza e franqueza. Observemos, de passagem, que chamar o diabo de diabo não é moda hoje, sem dúvida porque o liberalismo nos acostumou a tratar também o senhor diabo com certo respeito. Portanto, a primeira coisa que faz o diabo em tempos de cismas e heresias é baralhar e desordenar o sentido próprio das palavras: meio infalível de marear e desordenar a maior parte das inteligências.

Assim se passou com o arianismo, a ponto de vários bispos de grande santidade chegarem a subscrever, no Concílio de Milão, uma fórmula que condenava o insigne Atanásio, martelo dessa heresia; e esses prelados apareceriam na história como verdadeiros fautores dela, se o santo mártir Eusébio, legado pontifício, não tivesse acudido a tempo para desenredar desses laços — o que o Breviário chama captivatam simplicitatem — alguns daqueles inocentes anciãos. O mesmo se passou com o pelagianismo; e mais tarde com o jansenismo. Hoje acontece o mesmo com o liberalismo.

Para alguns o liberalismo consiste em certas formas políticas; para outros, num certo espírito de tolerância e generosidade oposto ao despotismo e à tirania; para outros ainda, é a igualdade civil; para muitos, uma coisa vaga e incerta que se poderia traduzir simplesmente como o oposto a toda arbitrariedade governamental. É, portanto, indispensável tornar a perguntar aqui: o que é o liberalismo? Ou melhor: o que o liberalismo não é?

Em primeiro lugar, as formas políticas de qualquer natureza que seja, tão democráticas ou populares que se suponham, não são por si mesmas (ex se) o liberalismo. Cada coisa é o que é; as formas são formas, e nada mais. Uma república unitária, federal, democrática, aristocrática ou mista; um governo representativo ou misto, com mais ou menos atribuições para o poder real, ou seja, com o máximo ou mínimo de rei que se queira pôr na mistura; uma monarquia absoluta ou temperada, hereditária ou eletiva, nada disso tem que ver por si (repare-se bem neste por si) com o liberalismo. Tais governos podem ser perfeita e integramente católicos. Se eles aceitam a soberania de Deus, reconhecem tê-la recebido d'Ele e se sujeitam em seu exercício ao critério inviolável da lei cristã; se dão por indiscutível em seus parlamentos tudo o quanto definido por essa lei; se reconhecem como base do direito público a supremacia moral da Igreja e seu direito em tudo o que é de sua competência, esses governos são verdadeiramente católicos, e ninguém, nem os mais exigentes ultramontanos, pode censurá-los, porque eles são verdadeiramente ultramontanos.

A história nos oferece repetidos exemplos de poderosíssimas repúblicas fervorosamente católicas. Tais foram a república aristocrática de Veneza, a república mercantil de Gênova e a de certos cantões suíços. Como exemplo de monarquias mistas muito católicas, podemos citar a nossa gloriosíssima de Catalunha e Aragão, a mais democrática e, ao mesmo tempo, a mais católica do mundo na Idade Média; a antiga monarquia de Castela, até a casa de Áustria; a monarquia eletiva da Polônia, até o iníquo desmembramento deste religioso reino. Acreditar que as monarquias são por si, ex se, mais religiosas que as repúblicas, é um prejulgamento. Precisamente os mais escandalosos exemplos de perseguição ao catolicismo foram dados nos tempos modernos pelas monarquias, como a da Rússia e a da Prússia.

Um governo é católico, qualquer que seja a sua forma, se sua Constituição, sua legislação e sua política estão baseadas em princípios católicos; ele é liberal se baseia sua Constituição, legislação e sua política sobre princípios racionalistas. Não é o ato de legislar do rei na monarquia, do povo na república, ou dos dois juntos nas formas mistas, que constitui a natureza essencial de uma legislação ou de uma Constituição. O que a constitui é o fato de proceder ou não, em tudo, sob o selo imutável da fé e conforme ou não ao que a lei cristã manda aos Estados e aos indivíduos. Da mesma forma que, entre os indivíduos, um rei com sua púrpura, um nobre com seu brasão, e um trabalhador com sua blusa de algodão podem ser igualmente católicos, assim os Estados podem ser católicos, qualquer que seja o lugar que se lhes dê no quadro sinótico das formas de governo. Por conseguinte, o fato de ser liberal ou anti-liberal não tem nada a ver com o horror natural que todo homem deve professar à arbitrariedade e à tirania, com o desejo de igualdade civil entre todos os cidadãos e muito menos com o espírito de tolerância e generosidade, que, em sua devida acepção, não são mais que virtudes cristãs. Não obstante, tudo isto, na linguagem de certas gentes e mesmo de certos jornais, chama-se liberalismo. Eis, portanto, uma coisa que aparenta ser liberalismo, mas que não o é de forma alguma.

Há porém uma coisa que, não parecendo liberalismo, efetivamente o é. Imaginai uma monarquia absoluta, como a da Rússia, ou como a da Turquia, se preferirdes; ou ainda um desses governos chamados conservadores de hoje, e o mais conservador que se possa imaginar; e suponde que a Constituição e a legislação dessa monarquia ou desse governo conservador seja baseada no princípio da vontade livre do rei ou no da vontade livre da maioria conservadora, em lugar de se basear nos princípios do direito católico, na indiscutibilidade da fé, ou no respeito rigoroso aos direitos da Igreja; essa monarquia e esse governo conservador são perfeitamente liberais e anti-católicos. Pouco importa para o caso que o livre-pensador seja um monarca com seus ministros responsáveis, ou que ele seja um ministro responsável com seus corpos co-legisladores: do ponto de vista das conseqüências, é absolutamente a mesma coisa. Em ambos os casos, aquela política marcha sob a direção do livre-pensamento e, por conseguinte, é liberal. Pouco importa que tenha ou não, entre seus objetivos, agrilhoar a imprensa; que açoite o país por qualquer pretexto; que ela reja seus súditos com vara de ferro: o miserável país poderá não ser livre, mas será certamente liberal. Assim foram os antigos impérios asiáticos, assim várias monarquias modernas; assim será, se o sonho de Bismarck se realizar, o Império alemão; é assim a monarquia atual de Espanha, cuja Constituição declara o rei inviolável, mas não Deus.

Eis portanto o caso de algo que, parecendo não ser liberalismo, o é verdadeiramente, e o mais refinado e desastroso, justamente porque não aparenta sê-lo.

Daqui se verá com que delicadeza se deve proceder, quando se trata de tais questões. É preciso antes de tudo definir os termos do debate e evitar o equívoco, que é o que mais favorece o erro.

13. Notas e comentários sobre a doutrina exposta no capítulo anterior

Dissemos que as formas de governo democráticas ou populares, puras ou mistas, não são liberais por si, ex se, e cremos tê-lo provado suficientemente. Entretanto, o que é verdade especulativamente ou abstratamente falando, não o é tanto na prática, isto é, na ordem dos fatos, à qual o polemista católico deve estar sempre atento.

Com efeito, apesar de que, consideradas em si mesmas, essas formas de governo não são liberais, elas o são em nosso século, tendo em vista que a revolução moderna, que não é senão o próprio liberalismo em ação, no-las apresenta sempre baseadas em suas doutrinas errôneas. Assim o vulgo, que entende pouco de distinções, classifica como liberalismo tudo o que em nossos dias se apresenta como reforma democrática no governo das nações; porque se não o é na essência mesma das idéias, ela o é de fato. Eis por que nossos pais mostraram um grande tino e uma singular prudência quando rechaçavam, como contrária à sua fé, a forma de governo constitucional ou representativa, preferindo-lhe a monarquia pura, que nos últimos séculos era o governo de Espanha. Um certo instinto natural fazia compreender mesmo aos menos avisados que as novas formas políticas, por mais inofensivas que fossem em si mesmas, tal como formas, vinham impregnadas do princípio herético liberal, razão pela qual faziam muito bem em chamá-las de liberais. Semelhantemente, a monarquia pura, que em si podia ser muito ímpia e mesmo herética, aparecia-lhes como uma forma de governo essencialmente católica, pois desde muitos séculos os povos a conheceram imbuída do espírito do catolicismo.

Ideologicamente falando, portanto, nossos monarquistas erravam quando identificavam a religião com o antigo regime político, e reputavam ímpios os constitucionalistas; mas acertavam, praticamente falando, porque, com o claro instinto da fé, eles viam a idéia liberal oculta sob aquilo que lhes queriam apresentar como uma mera forma política indiferente.

Isto sem contar tudo o que os corifeus e sectários do partido liberal fizeram, com blasfêmias e atentados, para que o povo não conhecesse qual era no fundo o verdadeiro significado de sua odiosa bandeira.

Também não é rigorosamente exato que as formas políticas sejam indiferentes à religião, ainda que esta as aceite todas. A filosofia sensata as estuda, as analisa, e sem condenar nenhuma, não deixa de manifestar sua preferência por aquelas que mais a salvo deixam o princípio de autoridade, que se baseia principalmente na unidade; o que nos permite dizer que a monarquia é a forma de governo mais perfeita de todas, porque, mais que as outras, ela se assemelha ao governo de Deus e da Igreja; assim como a mais imperfeita é a república, pela razão inversa. A monarquia exige a virtude de um homem só, a república exige a virtude da maioria dos cidadãos. É, pois, logicamente falando, mais difícil de realizar o ideal republicano que o ideal monárquico. Este último é mais humano que o primeiro, porque exige menos perfeição humana, e se acomoda melhor à ignorância e a aos vícios da maioria.

Mas de todas as razões que deve considerar o católico de nosso século contra os governos de forma popular, a mais forte deve ser o afã constante com que a maçonaria tem procurado em toda parte implantá-los. Por uma intuição maravilhosa, o inferno descobriu que esses sistemas de governo eram os melhores condutores de sua eletricidade, e que nenhum outro poderia servir-lhe mais a seu gosto. É pois indubitável que um católico deve considerar suspeito tudo o que, sob esse conceito, a Revolução lhe recomenda como mais apropriado a seus fins, e, portanto, considerar como liberalismo verdadeiro tudo o que a Revolução exalta e difunde com o nome de liberalismo, ainda que seja apenas questão de formas; porque, neste caso, as formas não são outra coisa senão o invólucro com o qual querem fazer-nos admitir em casa o contrabando de Satanás.

14. Pode o católico gloriar-se de ser liberal?

Permita-nos sobre isto transcrever aqui integralmente um capítulo de outra obra nossa (Coisas do dia), em que essa questão é respondida. Diz assim:

“Que Deus me ajude, caro leitor, com as palavras liberalismo e liberal! Andas realmente enamorado delas, e o amor te deixou cego, como todos os namorados. Que inconvenientes pode ter, me perguntarás, o uso dessas palavras? Para mim tem tantos, que chego a ver nele matéria de pecado. Não te assustes, mas escuta-me com paciência. Tu me entenderás logo e sem dificuldade. Não há dúvida de que a palavra liberalismo significa na Europa, no presente século, uma coisa suspeita e que não está inteiramente de acordo com o verdadeiro catolicismo. Não me digas que exponho o problema em termos exagerados. Deverás, com efeito, conceder-me que, na acepção ordinária da palavra, liberalismo e liberalismo católico são coisas reprovadas por Pio IX. Deixemos de lado, por enquanto, os poucos ou muitos que pretendem poder continuar professando um certo liberalismo que, no fundo, não querem reconhêce-lo como tal. Mas o certo é que a corrente liberal na Europa e na América neste século XIX em que escrevemos, é anti-católica e racionalista. Corramos os olhos pelo mundo: vê o que significa partido liberal na Bélgica, na França, na Alemanha, na Inglaterra, na Holanda, na Áustria, na Itália, nas repúblicas hispano-americanas, e em noventa por cento da imprensa espanhola. Pergunta a todos o que significa, na língua comum, critério liberal, corrente liberal, atmosfera liberal etc.; e vê se, entre homens que se dedicam a estudos políticos e sociais na Europa e América, noventa por cento deles não entendem por liberalismo o puro e cru racionalismo aplicado às ciências sociais.

“Pois bem. Por mais que tu e algumas dezenas de pessoas vos empenheis em dar um sentido de coisa indiferente ao que a corrente geral já marcou com o selo de coisa anti-católica, é indubitável que o uso, árbitro e norma suprema em matéria de linguagem, continua a ter o liberalismo como uma bandeira contra o catolicismo. Por conseguinte, ainda que em meio a mil distinções, exceções e sutilezas, consigas formar para ti apenas, um liberalismo que não tenha nada de contrário à fé, na opinião dos outros, a partir do momento em que te chames liberal, pertencerás como todos à grande família do liberalismo europeu, tal como o mundo o entende. Se tens um jornal e o chamas de ‘liberal’, ele será na opinião geral um soldado a mais entre os que, sob essa divisa, combatem a Igreja Católica de frente ou de flanco. Em vão te desculparás uma vez ou outra. E essas desculpas e explicações, tu não as pode dar todos os dias; isto seria muito trabalhoso. Em compensação, terás de usar em cada parágrafo a palavra liberal. Serás, pois, na crença comum, apenas mais um soldado como tantos outros que militam sob essa divisa, e por mais que, em teu interior, sejas tão católico como o papa (como se jactam de sê-lo alguns liberais), o certo é que, no movimento das idéias, na marca dos sucessos, influirás como um liberal; e mesmo contra a tua vontade, serás um satélite a mover-se dentro da órbita geral em que gira o liberalismo. E tudo isso por causa de uma palavra! Uma simples palavra! Sim, meu amigo, isto é o que ganharás por te chamares liberal e por chamares liberal o teu jornal. Desengana-te. O uso dessa palavra te faz quase sempre, e em grande parte, solidário ao que se ampara à sua sombra. E o que se ampara à sua sombra, já o vês e não podes negá-lo, é a corrente racionalista. Eu teria pois escrúpulos, em minha consciência, de aceitar essa solidariedade com os inimigos de Jesus Cristo.

“Vamos a outra reflexão. É também indubitável que, dentre os que lêem teus jornais e ouvem tuas conversas, poucos são capazes de fazer como tu distinções sutis entre liberalismo e liberalismo. É pois evidente que uma grande parte tomará a palavra no sentido geral, e crerá que tu a empregas assim. Sem ter essa intenção, e mesmo contra tuas intenções, obterias o seguinte resultado: adquirir adeptos para o erro racionalista.

“Diz-me agora: sabes o que é escândalo? Sabes o que é induzir o próximo ao erro com palavras ambíguas? Sabes o que é, por apego mais ou menos justificado a uma palavra, semear a dúvida, a desconfiança, e fazer vacilar na fé as inteligências simples? Quanto a mim, na qualidade de moralista católico, vejo nisto matéria de pecado, e se não tens a desculpa de uma extrema boa-fé ou de algum outro atenuante, matéria de pecado mortal.

“Ouve esta comparação: Sabes que nasceu, quase em nossos dias, uma seita que se chama: a Seita dos velhos católicos[1]. Ela teve o bom humor de chamar-se assim, deixemo-la fazer. Suponhamos agora que eu, por exemplo, que sou, pela graça de Deus e ainda que pecador, católico, e para cúmulo sou dos mais velhos, porque meu catolicismo data do Calvário e do Cenáculo de Jerusalém, datas muito antigas; suponhamos, dizia, que eu funde um jornal mais ou menos ambíguo e o intitule: Diário velho católico. Este título será uma mentira? Não, porque sou um velho católico, no bom sentido da palavra. Mas, dirás tu, por que adotar um título mal soante, que é divisa de um cisma, e que dará ocasião para que os incautos creiam que sou cismático, e para que se encham de júbilo os velhos católicos da Alemanha, crendo que aqui lhes nasceu um novo confrade? Por que escandalizar assim os simples? — Uso esta expressão em bom sentido. — Que seja, mas não seria melhor evitar fazer crer que dizes em mau sentido?

“Eis aqui, pois, o que eu diria a quem ainda se empenhasse em considerar inofensivo o título de liberal, reprovado pelo papa, e causa de tanto escândalo para os verdadeiros crentes. Por que fazer gala de títulos que exigem explicações? Por que suscitar suspeitas, que logo será preciso procurar dissipar? Por que contar-se no número dos inimigos e fazer gala de sua divisa, se no fundo se é dos amigos?

“Dirás: as palavras não têm importância! Elas têm mais do que imaginas, meu amigo. As palavras são a fisionomia exterior das idéias, e tu sabes quanto a boa ou má fisionomia de um assunto é importante ao seu sucesso. Se as palavras não tivessem nenhuma importância, os revolucionários não se empenhariam tanto em trajar o catolicismo com palavras feias, chamando-o a toda hora de obscurantismo, fanatismo, teocracia, reação; eles o chamariam pura e simplesmente catolicismo, e eles mesmos não buscariam adornar-se a cada instante com formosos vocábulos de liberdade, progresso, espírito do século, direito novo, conquistas da inteligência, civilização, luzes, etc., mas se intitulariam sempre com seu próprio e verdadeiro nome: Revolução.

“Foi sempre assim. Todas as heresias começaram como um jogo de palavras, e acabaram como uma luta sangrenta de idéias. Algo semelhante devia já ter ocorrido no tempo de São Paulo, ou o bendito Apóstolo teve a intuição do que se passaria nos tempos futuros quando, dirigindo-se a Timóteo (I Tm 6,20), o exorta a viver prevenido, não só contra a falsa ciência (oppositiones falsi nominis scientiae), mas também contra a simples novidade na expressão ou nas palavras (profanas vocum novitates). Que diria hoje o Doutor das gentes, se visse certos católicos adornarem-se com o adjetivo de liberais, em oposição aos católicos que se chamam simplesmente com o antigo sobrenome da família, e permanecerem surdos às repetidas reprovações que com tanta insistância lançou a cátedra apostólica contra esta profana novidade de palavras? Que diria ao vê-los acrescentar à palavra imutável ‘catolicismo’, esse odioso apêndice que não conheceram nem Jesus Cristo, nem os Apóstolos, nem os Padres, nem os Doutores, nem um só dos mestres autorizados que constituem a magnifica cadeia da tradição cristã?

“Medita nisto, amigo, nos momentos lúcidos, se é que te concede alguma a cegueira da tua paixão, e conhecerás a gravidade do que à primeira vista te parece mera questão de palavras. Não, tu não podes ser católico-liberal, nem podes chamar-te com este nome reprovado, ainda que, por meio de sutis sofismas, chegues a encontrar um meio secreto de conciliá-lo com a integridade da fé. Não, a caridade cristã te proíbe, esta santa caridade que tu invocas a toda hora e que, se entendo bem, é para ti sinônimo da tolerância revolucionária.

“A caridade te proíbe, porque a primeira condição da caridade é de não trair a verdade, de não ser uma armadilha destinada a surpreender a boa-fé dos menos avisados. Não, meu amigo, não; não podes chamar-te liberal.”

Nada mais temos a dizer aqui sobre este ponto, completamente resolvido, para um homem de boa-fé. Ademais, hoje os próprios liberais fazem já menos uso que antes desse nome, de tão gasto e desacreditado que anda, graças à misericórdia de Deus. Mas é todavia freqüente encontrar homens que, renegando a cada dia e a cada hora o liberalismo, estão dele imbuídos até a medula, e não sabem escrever, falar, agir, senão sob sua inspiração: estes homens são, hoje em dia, os que mais devemos temer.


[1] Essa seita reagrupava os católicos alemães que recusaram o dogma da infalibilidade pontifícia definido no Concílio Vaticano I.

15. Uma observação simplíssima que acabará de mostrar a questão sob seu verdadeiro ponto de vista

Não entendo como os liberais de boa-fé, se algum há que mereça ainda este caridoso atenuante de sua triste denominação, não façam cada dia uma reflexão que me fiz mil vezes. Vejamo-la:

Em nossos dias o mundo católico relaciona, com justiça e razão, a idéia de impiedade ao qualificativo de livre-pensador, aplicado a uma pessoa, a um jornal, a uma instituição qualquer. Academia livre-pensadora, sociedade de livres-pensadores, jornal escrito com critério livre-pensador, são expressões odiosas que suscitam horror à maior parte de nossos irmãos, mesmo aos que afetam estar mais afastados da feroz intransigência ultramontana.

E todavia veja-se como são as coisas, e quão pouca importância se dá em geral a meras palavras. As pessoas, as associações, os livros, os governos que não sejam regidos em matéria de fé e moral pelo critério único e exclusivo da Igreja Católica, são liberais. E reconhecem que o são, honram-se de sê-lo, e ninguém se escandaliza com isso, a não ser nós, os terríveis intransigentes!

Mudai porém a palavra; chamai-os de livres-pensadores: logo rejeitam o epíteto como uma calúnia, e dai graças a Deus se não vos pedirem satisfação pelo insulto.

Mas, vejamos, meus amigos, por que essas variações, cur tam varie?

Não haveis banido de vossa consciência, de vosso governo, de vosso jornal ou de vossa academia o veto absoluto da Igreja?

Não haveis erigido a razão livre como critério fundamental de vossas idéias e resoluções?

Pois, dizeis bem: sois liberais e ninguém pode contestar esse título. Mas, sabei-o: sois por isso mesmo livres-pensadores, ainda que esta denominação vos desagrade. Todo liberal, de qualquer grau ou matiz que seja, é ipso facto livre-pensador. E todo livre-pensador, por mais odiosa e ofensiva que seja esta denominação do ponto de vista das conveniências sociais, não é nada mais que um liberal lógico. É doutrina precisa e exata como uma equação matemática!

Aplicações práticas. Sois católicos mais ou menos condescendentes ou contaminados, e pertenceis, por infelicidade de vossos pecados, a um Ateneu[1] liberal. Recolhei-vos por um momento e perguntai-vos: continuaria eu pertencendo a este Ateneu se amanhã ele se declarasse pública e francamente um Ateneu livre-pensador?

Que vos dizem a consciência e o pudor? Dizem que não.

Pois bem! Ordenai que se retire vosso nome do registro desse Ateneu, pois como católicos não podeis pertencer a ele.

Recebeis um jornal, vós o ledes e sem escrúpulo o dais a ler aos vossos, embora ele se intitule liberal e discorra como liberal. Continuaríeis assinando-o, se de repente aparecesse em sua primeira página o título de jornal livre-pensador? Parece-me que não, de forma alguma.

Portanto fechai-lhe logo as portas da vossa casa. Esse liberal, moderado ou violento, há anos não era nada mais nada menos que um livre-pensador.

Ah! De quantos prejuízos nos livraríamos, se apenas prestássemos um pouco de atenção ao significado das palavras! Toda associação científica, literária ou filantrópica, liberalmente constituída, é uma associação livre-pensadora. Todo governo, liberalmente organizado, é um governo livre-pensador. Todo livro ou jornal, liberalmente escrito, é um livro ou um jornal de livres-pensadores. Rejeitar com desgosto a palavra e não a coisa que ela representa, é uma cegueira manifesta. Pensem bem aqueles de nossos irmãos que, com a consciência demasiado endurecida, demasiado mole ou demasiado acomodada, consentem sem escrúpulo algum em fazer parte de círculos, de concursos literários, de redações, de governos, de instituições estabelecidas com plena independência do magistério da fé.

Em todas essas instituições reina o liberalismo e, por conseguinte, o livre-pensamento. Ora, nenhum católico pode fazer parte de um grupo livre-pensador, sem deixar de aceitar como seu o critério livre-pensador do grupo em questão. Logo, tampouco pode pertencer a um grupo liberal.

Quantos católicos, não obstante, servem intrepidamente ao diabo participando de obras desse gênero! Estarão agora convencidos da perversidade do liberalismo? Convencidos do justo horror que um católico deve ter às coisas liberais? Convencidos, enfim, de que nada é mais natural e mais legítimo que nossa intratável intransigência ultramontana?


[1] Estabelecimento destinado a leituras e lições públicas.

16. Pode-se encontrar hoje o erro de boa-fé no liberalismo?

Falei acima de liberais de boa-fé, e me permiti exprimir uma dúvida sobre se existe ou não in rerum natura algum tipo desta raríssima família. Inclino-me a crer que poucos há, e que hoje o erro de boa-fé na questão do liberalismo, que poderia alguma vez tornar desculpável a sua profissão, é quase impossível. Não negarei porém em absoluto que um ou outro caso excepcional possa dar-se, porém defendo que será verdadeiramente um caso fenomenal.

Em todos os períodos históricos dominados por uma heresia, deram-se casos freqüentíssimos de um ou mais indivíduos que, arrastados de certa maneira pela torrente invasora, tornaram-se participantes da heresia, sem que se possa explicar tal participação, a não ser por uma suma ignorância ou boa-fé.

É preciso convir, porém, que se jamais um erro se apresentou isento de aparência alguma que o tornasse desculpável, este erro é o do liberalismo. A maior parte das heresias que assolaram o campo da Igreja procuraram cobrir-se com disfarces de piedade afetada, que dissimulassem sua procedência maligna. Os jansenistas, mais hábeis que qualquer um de seus antecessores, chegaram a ter um grande número de adeptos, a quem pouco faltou para que o vulgo cego tributasse as honras devidas somente à santidade. Sua moral era rígida, seus dogmas tremendos, o exterior de suas pessoas ascético e até iluminado. Acrescente-se que a maior parte das antigas heresias versaram sobre pontos muito sutis do dogma, só discerníveis por um teólogo hábil, e sobre os quais a multidão ignorante era incapaz por si própria de formar um juízo distinto do que recebia confiadamente dos seus mestres. Por isso, era natural que, quando o superior de uma diocese ou província caísse no erro, a maior parte de seus subordinados, plenos de confiança em seu pastor, caísse com ele; sobretudo quando as comunicações, naquela época mais difíceis com Roma, tornavam menos acessíveis para toda a grei cristã a voz infalível do Pastor Universal. Isto explica a difusão de muitas das antigas heresias, que nos permitiremos adjetivar de “puramente teológicas”. Isto dá a razão daquele angustioso grito com que exclamava São Jerônimo no século IV, quando disse: Ingemuit universus orbis se esse arianum: “O mundo inteiro gemeu, assombrado de encontrar-se ariano”. E isto explica também como, em meio aos maiores cismas e heresias, como são o cisma russo e a heresia inglesa, é possível que Deus preserve muitas almas, em quem não está extinta a raiz da verdadeira fé, por mais que esta, em sua profissão exterior, apareça deformada e viciada. Essas almas, unidas ao corpo místico da Igreja pelo batismo, e à sua alma pela graça interior santificante, podem chegar a ser conosco partícipes do reino celestial.

Acontece isto com o liberalismo? Apresentou-se envolto com o disfarce de meras formas políticas; porém este disfarce foi já, desde o princípio, tão transparente, que muito cego havia de ser quem não adivinhou toda a perversidade do miserável assim disfarçado.

O liberalismo não soube conter-se no véu da hipocrisia e do pietismo com que o encobriam alguns de seus panegiristas. Prontamente rasgou-o e anunciou com sinistros resplendores sua origem infernal. Saqueou igrejas e conventos; assassinou religiosos e padres; deu rédea solta a toda impiedade, e até nas imagens mais veneradas cevou seu ódio de condenado. De imediato acolheu debaixo da sua bandeira toda a escória social, e em toda parte a corrupção calculada foi sua precursora e introdutora.

Os novos dogmas que pregava e queria instituir em lugar dos antigos não tinham nada de abstratos e metafísicos: eram fatos brutais, que bastava ter olhos para vê-los e simples bom senso para abominá-los.

Viu-se naquela ocasião um fenômeno importante, de grande utilidade para sérias meditações.

O povo simples e iletrado, mas honrado, foi o mais refratário à novidade. Os grandes talentos, corrompidos pelo filosofismo, foram os primeiros seduzidos, enquanto que o bom senso natural dos povos fez imediatamente justiça aos atrevidos reformadores. Nisto, como sempre, foi confirmado que a pureza de coração vê mais claro que a perspicácia da inteligência. E se o que acabamos de dizer se aplica justamente ao liberalismo em sua aurora, que não se poderá dizer dele hoje, quando tanta luz tem sido lançada sobre seu odioso desenvolvimento?

Jamais um erro teve contra si mais severas condenações: da experiência, da história e da Igreja. Mesmo quem não creia nesta última como bom católico, haverá de persuadir-se pelo testemunho da experiência e da história, a menos que tenha perdido até a sua honradez meramente natural.

O liberalismo, em menos de cem anos de reinado na Europa, já deu todos os seus frutos; a presente geração está recolhendo os últimos, que são bem amargos e perturbam sua tranqüila digestão. A lição do divino Salvador, que nos manda julgar a árvore por seus frutos, raras vezes teve aplicação mais oportuna.

Por outro lado, não se viu claramente desde seu princípio qual era o parecer da Igreja sobre a nova reforma social? Entre seus ministros, alguns, é verdade, foram arrastados à apostasia pelo liberalismo, e era este o primeiro dado com que os simples fiéis haviam de julgar uma doutrina que arrastava tais prosélitos. Mas, o conjunto da hierarquia católica não foi sempre reputado com muita razão como inimigo do liberalismo? A palavra clericalismo, com a qual os liberais têm honrado a escola mais tenazmente oposta a suas doutrinas, que prova ela senão que a Igreja docente foi sempre sua inimiga implacável? Como os liberais têm considerado o papa, os bispos, os padres e religiosos de todos os hábitos, e o comum das pessoas de piedade e de sã conduta? Eles os consideram sempre como clericais, ou seja, como anti-liberais. Como pode, pois, alguém alegar boa-fé num assunto em que aparece tão claramente distinta a corrente ortodoxa da heterodoxa? Logo, os que compreendem claramente a questão podem ver as razões intrínsecas dela; e os que não a compreendem têm autoridade extrínseca de sobra para formar um juízo exato, como deve fazê-lo todo bom cristão sobre as coisas relacionadas à sua fé. Luz não tem faltado, por misericórdia de Deus; o que tem sobrado é indocilidade, interesses bastardos, desejo de vida livre. O que produziu o erro aqui não foi a sedução que deslumbra o entendimento com um falso resplendor, mas a sedução que, envolvendo em negros vapores o coração, obscurece o entendimento.

Cremos, pois, que salvas raríssimas exceções, só grande esforço de engenhosíssima caridade pode fazer que, discorrendo segundo os retos princípios de moral, se admita hoje no católico a desculpa de boa-fé na questão do liberalismo.

17. Dos vários modos como, sem ser liberal, um católico pode tornar-se cúmplice do liberalismo

Um católico pode se tornar cúmplice do liberalismo de diversos modos, sem ser precisamente um liberal. Eis aqui um ponto prático, ainda mais prático que o anterior, e sobre o qual a consciência do fiel cristão nestes tempos deve estar cuidadosamente prevenida.

É certo que há pecados, de que nos fazemos culpados, não por verdadeira e direta comissão, mas por pura cumplicidade ou conivência com seus autores, sendo de tal natureza esta cumplicidade, que chega muitas vezes a igualar-se em gravidade ao ato pecaminoso diretamente cometido. Pode-se, pois, e deve aplicar-se ao pecado de liberalismo tudo quanto sobre esta questão da cumplicidade ensinam os autores de teologia moral.

Nosso objetivo é apenas deixar anotados aqui brevemente os principais modos pelos quais, acerca do liberalismo, se pode hoje tornar-se culpado por cumplicidade.

1° - Filiando-se formalmente a um partido liberal. É a maior cumplicidade nesta matéria, e mal se distingue da ação direta a que se refere. Há muitos que, em seu claro juízo, vêem toda a falsidade doutrinal do liberalismo, conhecem seus sinistros propósitos, e abominam sua detestável história. Mas por tradição de família, rancores hereditários, esperança de ganhos pessoais, reconhecimento de favores recebidos, temor de prejuízos que lhes possa sobrevir ou por outra causa qualquer, aceitam um posto no partido que sustenta tais doutrinas e propósitos, e permitem que sejam contados publicamente entre seus membros, e se honram com seu nome e trabalham sob sua bandeira.

Estes infelizes são os primeiros cúmplices, os grandes cúmplices de todas as iniqüidades do partido; e, mesmo sem conhecê-las detalhadamente, são verdadeiros co-autores delas e participam de sua imensa responsabilidade.

Assim, temos visto em nossa pátria verdadeiros homens de bem, excelentes pais de família, comerciantes ou artesãos honrados, figurar em partidos que trazem em seu programa usurpações e rapinas que nenhuma honradez humana pode justificar. São, pois, responsáveis diante de Deus por estes atentados, como o tal partido que os cometeu, sempre que esse partido os considere não como fatos acidentais, mas como um procedimento lógico do caminho que foi traçado. A honradez de tais sujeitos só serve para tornar mais grave esta cumplicidade, porque é claro que, se um partido mau fosse composto apenas de malvados, não haveria muito a temer dele. O horrível é o prestígio dado a um partido mau por pessoas relativamente boas, que o honram e recomendam figurando em suas fileiras.

2° - Sem estar formalmente filiados a um partido liberal, e mesmo declarando publicamente não pertencer a nenhum, tornam-se cúmplices ao manifestarem simpatias públicas por ele, elogiando seus personagens, defendendo ou desculpando seus jornais, tomando parte em seus festejos. A razão é evidente. O homem, sobretudo se vale alguma coisa por seu talento ou posição social, favoriza muito uma idéia qualquer quando se mostra em relações mais ou menos benévolas com seus fautores. Dá mais com seu prestígio pessoal do que se desse dinheiro, armas, ou qualquer outro auxílio material. Assim, por exemplo, um católico, sobretudo se é sacerdote, quando honra um jornal liberal com sua colaboração, o que faz é favorecê-lo com o prestígio de sua firma, ainda que com esta firma não defenda a parte má do jornal, e ainda que discorde publicamente desta mesma parte. Dir-se-á talvez que escrever ali é um meio de fazer com que muitos ouçam a voz da verdade, que em outro jornal não seria escutada. É verdade, mas por outro lado, a firma de um homem bom serve ali para abonar tal jornal à vista dos leitores pouco hábeis em distinguir as doutrinas de um artigo das de outro. Assim, o que se pretendia que fosse um contrapeso e uma compensação ao mal, se converte, para a maioria dos leitores, em uma efetiva recomendação dele. Mil vezes temos ouvido: "Será mau esse jornal? Ora, não escreve nele D. Fulano de tal?" Assim raciocina o vulgo, e vulgo é quase a totalidade do gênero humano. Por desgraça, é frequentíssima em nossos dias esta cumplicidade.

3° - Torna-se culpado de verdadeira cumplicidade quem vota em candidatos liberais, ainda que não se vote neles porque são liberais, mas por causa de suas opiniões em economia política, administração etc. Por mais que numa questão destas possa tal deputado estar de acordo com o catolicismo, é evidente que nas demais questões falará e votará segundo seu critério herético, e se tornará cúmplice de suas heresias quem o colocou na posição de escandalizar com elas o país.

4.º - É cumplicidade assinar um jornal liberal, ou recomendá-lo em um jornal de sã doutrina, ou lamentar seu desaparecimento ou sua suspensão pelas falsas razões de companheirismo ou de falsa cortesia. Ser assinante de um jornal liberal é dar dinheiro para fomentar o liberalismo. Mais ainda, é fazer com que, pelo exemplo, outro incauto se decida a lê-lo. É, além disso, ministrar à família e aos amigos da casa uma leitura mais ou menos envenenada. Quantos jornais maus seriam obrigados a renunciar da sua perniciosa e deplorável propaganda, se não fossem sustentados por assinantes tão ingênuos! O mesmo dizemos dos chavões dos jornalistas: "nosso estimado colega", ou aquela outra, de desejar-lhe "um grande número de assinaturas", ou a mais comum, "sentimos a perda do nosso colega", clichês usados quando se trata do primeiro número ou da suspensão de um jornal liberal. Não deve haver estes compadrios entre soldados de bandeiras tão opostas, como são a de Deus e a de Satanás. Ao cessar ou ser suspendido um jornal destes, deve-se dar graças a Deus, porque Sua Divina Majestade conta um inimigo a menos; e no dia de sua aparição, longe de saudar sua vinda, deve-se lamentá-la como uma calamidade.

5° - É cumplicidade administrar, imprimir, vender, distribuir, anunciar ou subvencionar jornais ou livros liberais, ainda que se o faça em conjunto com outros que são bons e ainda que seja por mera profissão, como meio material de ganhar o sustento diário.

6° - É cumplicidade dos pais de família, diretores espirituais, chefes de oficinas, professores e mestres, ficar em silêncio quando são perguntados sobre este tema, ou simplesmente não o explicar, quando têm a obrigação de ilustrar as consciências de seus subordinados.

7° - É cumplicidade às vezes ocultar suas boas convicções, dando assim ocasião de suspeitar que elas sejam más. Não se pode esquecer que há mil ocasiões em que é obrigação do cristão dar testemunho público da verdade, mesmo sem ser formalmente requerido.

8° - É cumplicidade comprar, sem autorização da Igreja, propriedades pertencentes ao clero ou obras de beneficência, ainda que a lei de desamortização as ponha em leilão, a não ser que sejam compradas para serem devolvidas ao legítimo dono. É cumplicidade remir foros eclesiásticos sem a permissão do verdadeiro senhor deles, ainda que se apresente muito lucrativa a operação. É cumplicidade intervir como agente em tais compras e vendas, publicar os anúncios de leilões, praticar corretagens etc. Todos estes atos trazem também consigo a obrigação de restituir na proporção do que com eles se contribuiu para a iníqua espoliação.

9° - É cumplicidade, de algum modo, emprestar a própria casa ou alugá-la para obras liberais, tais como: escolas laicas, clubes, redação de jornais liberais etc.

10° - É cumplicidade celebrar festas cívicas ou religiosas em homenagem a atos notoriamente liberais ou revolucionários; assistir voluntariamente a tais festas; celebrar exéquias patrióticas cujo caráter seja mais revolucionário que cristão; pronunciar elogios fúnebres de defuntos notoriamente liberais; adornar seus sepulcros com coroas e fitas etc. Quantos incautos terão vacilado na fé por essas causas!

Fazemos estas indicações compreendendo só as cumplicidades mais freqüentes nesta matéria. Elas podem variar tanto como os atos da vida do homem, que, por serem infinitos, são inclassificáveis.

Grave é a doutrina que acabamos de assentar; porém se a teologia moral é segura, aplicada a outros erros e crimes, por que será menos aplicável ao objeto de nosso atual exame?

18. Sinais mais comuns para reconhecer se um livro, jornal ou pessoa está infectado ou somente manchado de liberalismo

Nesta variedade, ou melhor, confusão de matizes e meias-tintas que oferece a diversificada família do liberalismo, haverá sinais ou notas características com que se pode distinguir facilmente o liberal do não liberal? Eis outra questão também muito prática para o católico de hoje, e que de um modo ou de outro o teólogo moralista tem de resolver freqüentemente.

Para facilitar a solução, dividiremos os liberais (pessoas ou escritos) em três classes.

1° Liberais exaltados.

2° Liberais moderados.

3° Liberais impropriamente ditos, ou apenas eivados de liberalismo.

Ensaiemos uma descrição semi-fisiológica de cada um desses tipos. É um estudo que não carece de interesse.

O liberal exaltado se conhece de imediato, porque não trata de negar nem encobrir sua maldade. É inimigo formal do papa, dos padres, de toda gente da Igreja; basta que qualquer coisa seja sagrada para excitar seu ódio implacável. Dentre os jornais, procura os mais incendiários; vota nos candidatos mais abertamente ímpios; e de seu funesto sistema aceita até as últimas conseqüências. Glorifica-se de viver sem prática alguma de religião, e a duras penas a tolera em sua mulher e filhos. Costuma pertencer às seitas secretas, e quase sempre morre sem nenhum socorro da Igreja.

O liberal moderado costuma ser tão mau como o precedente, mas cuida bastante de não o parecer. As boas formas e as conveniências sociais são tudo para ele; salvo este ponto, o resto pouco lhe importa. Incendiar um convento parece demais para ele; apoderar-se do solar do convento incendiado, parece-lhe coisa muito mais normal e tolerável. Que um jornaleco qualquer, desses de bordel, venda suas blasfêmias em prosa, verso ou gravura a dez réis o exemplar, é um excesso que ele proibiria e até lamenta que um governo conservador não proíba; porém, que se digam absolutamente as mesmas coisas em frases cultas, em um livro bem impresso, ou em um drama de sonoros versos, sobretudo se o autor é acadêmico ou coisa semelhante, já não o acha inconveniente. Ouvir falar de clubes[1] lhe dá calafrios e febre, porque ali, diz ele, se seduzem as massas e se subvertem os fundamentos da ordem social; mas, segundo ele, pode-se muito bem consentir na abertura de escolas livres; afinal, quem condenará a discussão científica dos problemas sociais? Escolas sem catecismo são um insulto à nação católica que paga por elas; mas uma universidade católica, ou seja, uma universidade inteiramente sujeita ao catecismo, ou mais exatamente ao critério da fé, devem ser relegadas aos tempos da Inquisição. O liberal moderado não detesta o papa; só desaprova certas pretensões da Cúria Romana e certos exageros do ultramontanismo[2], que não condizem bem com as idéias de hoje. Ele gosta dos padres, sobretudo dos "esclarecidos", ou seja, dos que pensam à maneira moderna, como ele. Quanto aos fanáticos e reacionários, ele os evita ou deles se compadece. Vai à Igreja, e por vezes até mesmo se aproxima dos sacramentos; porém a sua máxima é que na Igreja se deve viver como cristão, mas fora dela convém viver conforme o século em que se nasceu e não se obstinar em remar contra a corrente. Navega assim entre duas águas, e costuma morrer com o sacerdote ao lado, porém com a biblioteca cheia de livros proibidos.

O católico simplesmente eivado de liberalismo se reconhece assim: Homem de bem e de práticas sinceramente religiosas, ele exala, não obstante, um odor de liberalismo em tudo o que diz, escreve, ou traz entre as mãos. Poderia dizer a seu modo, como Madame de Sevigné: "Não sou a rosa, mas estive perto dela, e peguei algo de seu perfume". Este bom homem fala e age como um liberal sem que se dê conta. O seu forte é a caridade, ele é a caridade em pessoa. Como detesta os exageros da imprensa ultramontana! Chamar mau um homem que difunde más idéias parece, aos olhos desse singular teólogo, pecado contra o Espírito Santo. Para ele não há senão extraviados. Não se deve resistir nem combater; o que se deve procurar sempre é atrair. "Afogar o mal com a abundância do bem", é sua fórmula favorita, que leu um dia em Balmes por acaso, e foi a única coisa que do grande filósofo catalão lhe ficou na memória. Do Evangelho, cita apenas os textos a sabor de açúcar e mel. Explica as terríveis invectivas contra o farisaísmo como excesso de gênio ou de zelo do divino Salvador. O que não o impede de se servir delas, e muito violentamente, contra os insuportáveis ultramontanos, que com seus exageros comprometem a cada dia a causa de uma religião que é toda paz e amor. Contra estes, o contaminado de liberalismo, normalmente tão doce, mostra-se acerbo e violento. Contra estes seu zelo é amargo, sua polêmica ácida, e sua caridade agressiva. A respeito dele exclamou o Pe. Félix, num discurso célebre a propósito das acusações de que era objeto a pessoa do grande Louis Veuillot: "Senhores, amemos e respeitemos até os nossos amigos". Mas não, nosso homem eivado de liberalismo não faz assim; guarda todos os tesouros da tolerância e da caridade liberal para os inimigos jurados da fé! É claro, de que outra maneira o infeliz os atrairá? Em troca, só tem o sarcasmo e a intolerância cruel para os mais heróicos defensores dessa mesma fé.

Em suma, o eivado de liberalismo não consegue compreender a oposição per diametrum[3] de que fala Santo Inácio em seus Exercícios Espirituais. Não conhece outra tática senão a de atacar pelos flancos, tática que, em religião, costuma ser a mais cômoda, porém não a mais decisiva. Bem quisera ele vencer, mas à condição de não ferir o inimigo, nem lhe causar mortificação ou enfado. A palavra "guerra" irrita-lhe os nervos, mas ele se acomoda à discussão pacífica. Está pelos círculos liberais, onde se discursa e delibera, e não pelas associações ultramontanas, onde se dogmatiza e censura. Numa palavra, se pelos frutos se reconhece o liberal exaltado e o liberal moderado, é pelas afeições, principalmente, que se reconhecerá o eivado de liberalismo .

Por esses traços mal delineados, que não chegam a desenho ou esboço, e muito menos a verdadeiro e acabado retrato, será fácil discernir prontamente qualquer um dos tipos da família liberal, em suas diversas gradações.

Para resumir em poucas palavras o traço mais característico da fisionomia de cada um: o liberal exaltado ruge seu liberalismo; o liberal moderado o discursa; o pobre liberal eivado o suspira e o geme.

“Todos são maus”, como dizia dos seus pais aquele velhaco da fábula; porém, é preciso reconhecer que ao primeiro paraliza-o muitas vezes seu próprio furor; ao terceiro a sua condição híbrida, por natureza estéril e infecunda. O segundo é o tipo satânico por excelência, o que em nossos tempos é verdadeira causa da devastação liberal.


[1] Hoje diríamos, por exemplo, “grupos terroristas”.

[2] No século XIX, essa corrente de pensamento representava os defensores do papa, que recusavam todo compromisso com o mundo saído da Revolução Francesa.

[3] Diametralmente oposta.

19. Principais regras de prudência cristã que o bom católico deve observar no trato com os liberais

E não obstante, caro leitor, com os liberais exaltados, os liberais moderados e com os católicos miseravelmente eivados de liberalismo temos de viver no século presente, como com os arianos se viveu no século quarto, com os pelagianos no quinto, com os jansenistas no décimo sétimo. E não é possível deixar de conviver com eles, porque os encontramos em toda parte: nos negócios, nas diversões, nas visitas, talvez até nas igrejas e na própria família.

Como deverá, pois, se portar o bom católico em suas relações com esses empestados? Como prevenir e evitar, ou diminuir pelo menos, o constante risco de contaminação?

É dificílimo indicar regras precisas para cada caso, mas é possível indicar as máximas gerais de conduta, deixando à prudência de cada um o cuidado de aplicá-las no que lhe diz respeito individualmente.

Parece-nos que, antes de tudo, convém distinguir três classes de relações possíveis entre um católico e o liberalismo, ou melhor, entre um católico e um liberal. Dizemos assim porque as idéias, na prática, não se podem considerar como separadas das pessoas que as professam e sustentam. O liberalismo ideológico é um puro conceito intelectual; o liberalismo real e prático são as instituições, as pessoas, os livros e os jornais liberais. Três classes, pois, de relações se podem supor entre um católico e um liberal:

1° - Relações necessárias. As relações necessárias são impostas a cada um por seu estado ou posição particular: não se pode evitá-las. São as que existem entre filhos e pais, marido e mulher, irmãos e irmãs, subordinados e superiores, patrões e empregados, discípulos e professores etc. É claro que, se um bom filho tem a infelicidade de seu pai ser liberal, não deve abandoná-lo por isso, nem a mulher ao marido, nem o irmão ou parente a outros da família, a não ser nos casos em que o liberalismo destes chegasse a exigir de seus respectivos subalternos atos essencialmente contrários à religião, induzindo-os à apostasia formal. Não, quando somente se impedisse a liberdade de cumprir os preceitos da Igreja, pois é sabido que a Igreja não pretende obrigar ninguém sub gravi incommodo[1].

Em todos esses casos, o católico deve suportar com paciência sua dura situação e rodear-se de todas as precauções para evitar o contágio do mau exemplo. Como se aconselha em todos os livros que tratam das ocasiões próximas necessárias, o católico deve ter o coração elevado a Deus, e rogar todo dia pela sua própria salvação e pela das infelizes vítimas do erro; fugir sempre que possível de conversações e discussões sobre tais matérias, e não entrar nelas senão bem munido de armas ofensivas e defensivas; estas armas lhe serão fornecidas na leitura de bons livros e jornais, aprovados por um diretor prudente; contrabalançar a inevitável influência de pessoas contaminadas de tais erros pela freqüentação de outras pessoas de ciência e autoridade, que estejam em posse clara da sã doutrina; obedecer a seu superior em tudo que não se oponha à fé e à moral católica, porém renovar cada dia o firme propósito de negar obediência a quem quer que seja, em tudo que seja direta ou indiretamente oposto à integridade do catolicismo. E não desanime quem se encontra nessa situação. Deus, que observa suas lutas, não faltará com o auxílio conveniente.

Convém observar aqui que os bons católicos de países liberais e de famílias liberais costumam distinguir-se, quando são verdadeiramente bons, por seu especial vigor e têmpera de espírito. É este o constante proceder da graça de Deus, que auxilia com mais firmeza aí onde mais urgente e apertada vê a necessidade.

2° - Relações úteis. Outras relações há que não são absolutamente indispensáveis, mas que o são moralmente, porque sem elas não é possível a vida social, que se baseia toda numa troca mútua de serviços. Tais são as relações de comércio, as do patrão e seus empregados, as do artista com seus clientes etc. Nestas não há a estrita sujeição das relações do grupo anterior; pode-se, pois, agir com mais independência. A regra fundamental é não por-se em contato com tal gente, senão quando o exige a engrenagem da máquina social. Se és comerciante, não traves outras relações que as de comércio; se és empregado, limita-te às que exige o serviço; se és artesão, contenta-te ao “entregue” e ao “recebido” relativos à tua profissão.

Guardando esta prudência, e considerando as precauções gerais recomendadas no grupo anterior, pode-se viver sem prejuízo da fé, mesmo em meio a um povo de judeus; sem esquecer que neste caso não pode haver razão alguma de vassalagem, e que a independência católica tem o dever de manifestar-se com freqüência para impor respeito aos que crêem poder aniquilar-nos com seu liberalismo indecente. E no caso de uma imposição arbitrária, deve-se repeli-la com toda a franqueza, e erguer-se ante a desfaçatez do sectário com toda a nobre e firme intrepidez de um discípulo da fé.

3° - Relações de mera afeição. Estas são as que contraímos e mantemos por gosto ou inclinação e que podemos romper livremente, bastando querê-lo. Com liberais devemos abster-nos delas como de verdadeiros perigos para a nossa salvação. Aqui tem pleno lugar a sentença do Salvador: “Quem ama o perigo perecerá nele” (Eclo 3, 27). Custa? Rompa-se o laço perigoso, ainda que muito custe. Tenhamos presente as seguintes considerações, que certamente nos convencerão, ou pelo menos nos confundirão, se não nos convencem. Se certa pessoa estivesse atacada de uma moléstia contagiosa, terias contato com ela? Sem dúvida não. Se tuas relações com ela comprometessem tua reputação, as manteria? É certo que não. Por acaso a visitaria, se professasse idéias injuriosas com respeito à tua família? Também não. Pois bem, nesta questão que toca à honra de Deus e à salvação espiritual, façamos o que a prudência humana nos aconselha fazer pelo nosso interesse material e nossa honra humana.

Sobre este ponto, lembramo-nos ter ouvido uma pessoa de alta hierarquia hoje na Igreja dizer: "Nada com os liberais; não freqüenteis suas casas, não cultiveis suas amizades!" O Apóstolo São Paulo já antes havia dito a seus contemporâneos: Ne commiscemini: "Não vos relacioneis com eles" (1Cor 5, 9) Cum hujusmodi nec cibum sumere: "Com eles nem sentar-se à mesa." (1Cor 5, 11).

Horror, pois, à heresia que é o mal acima de todo mal! Em país empestado, o que primeiro se procura é isolar-se. Quem nos dera poder estabelecer hoje um cordão sanitário absoluto entre os católicos e os sectários do liberalismo!


[1] Se disso se resultasse um grave inconveniente .

20. Sobre a necessidade de precaver-se contra as leituras liberais

Se esta conduta convém observar com as pessoas, muito mais conveniente, e por sorte muito mais fácil, é observá-la com as leituras.

O liberalismo é sistema completo, como o catolicismo, ainda que em sentido contrário. Tem, pois, suas artes, suas ciências, suas letras, sua economia, sua moral, ou seja, um organismo inteiramente próprio e seu, animado por seu espírito, marcado com seu selo e sua fisionomia. Também o tiveram as mais poderosas heresias, como por exemplo, o arianismo na antiguidade e o jansenismo nos tempos modernos. Há, pois, não só jornais liberais, mas livros liberais, ou contaminados de liberalismo; são abundantes e, triste é dizê-lo, deles se nutre principalmente a geração atual, motivo por que mesmo sem saberem ou suspeitarem, são tantos os que se encontram miseravelmente contaminados.

Que regras dar neste caso? Regras análogas ou quase idênticas às que demos com relação às pessoas. Leia-se o que dissemos há pouco, e aplique-se aos livros o que se disse dos indivíduos. Não é trabalho difícil e popupará, a nós e aos leitores, o incômodo da repetição.

Daremos aqui apenas uma advertência, especialmente em relação aos livros. É que nós devemos nos guardar de desfazer-nos em elogios a livros liberais, seja qual for seu mérito científico ou literário, a menos que o façamos com grandíssimas reservas e ressalvando sempre a reprovação que merecem por seu espírito ou sabor liberal.

Insistamos um pouco neste ponto. Muitos católicos ingênuos (mesmo no jornalismo católico), querem ser considerados imparciais, e dar-se um verniz de saber sempre lisonjeiro. Deste modo, tocam bombo e sopram a trombeta da fama em favor de qualquer obra científica ou literária vinda do campo liberal. Dizem que assim agem para provar que aos católicos não custa reconhecer o mérito, onde quer que se encontre (maldito sistema de atração, que acaba por tornar-se o jogo de ganha-perde, pois, sem sentir, somos nós os atraídos); e que, finalmente, não há perigo algum nisto, mas sim notório espírito de equidade.

Que pena nos deu há poucos meses ler num jornal fervorosamente católico repetidos elogios e recomendações de um poeta célebre que escreveu, em ódio à Igreja, poemas como Visão de Pe. Martinho e A Última Lamentação de Lorde Byron! Que importa seja grande ou não o seu mérito literário, se serve para assassinar as almas que devemos salvar? Seria o mesmo que ter consideração para com o bandido pelo brilho da espada com que nos ataca, ou pelos belos entalhes que adornam o fuzil com que dispara contra nós. A heresia envolvida nos artificiosos afagos de uma rica poesia é mil vezes mais mortífera do que a revestida de silogismo escolástico, árido e fastidioso. A grande propaganda herética de quase todos os séculos foi sempre ajudada por versos sonoros. Os arianos tiveram seus poetas de propaganda; tiveram-nos também os luteranos, entre os quais muitos se prezavam, com seu Erasmo, de cultos humanistas. Quanto à escola jansenista de Arnauld, de Nicole e de Pascal, é desnecessário dizer que foi essencialmente literária. Todos sabem a que Voltaire deveu o começo e a duração de sua espantosa popularidade. Como é possível, pois, que nós, os católicos, nos façamos cúmplices de tais sirenes do inferno, dando-lhes nome e fama, e ajudando-os em sua obra de fascinação e corrupção da juventude? O que lê em nossos jornais que tal ou qual poeta é um admirável poeta, ainda que liberal, vai e compra na livraria aquele admirável poeta, ainda que liberal; e o devora avidamente, ainda que liberal; assimila-o e envenena com ele o seu sangue, tornando-se por fim tão liberal como seu poeta favorito. Quantas inteligências e corações foram perdidas pelo infeliz Espronceda! Quantas, o ímpio Larra! Quantas, há pouco, o malfadado Bécquer! Sem falar dos vivos, que poderíamos citar às dezenas. Por que temos de fazer à Revolução o serviço de pregar suas glórias funestas? Para que fim? Para parecer imparcial? Não, a imparcialidade não é permitida quando ofende a verdade, cujos direitos são imprescritíveis. Uma mulher de má vida é infame por bela que seja, e quanto mais bela, mais perigosa é. Seria por gratidão? Não, porque os liberais, mais prudentes que nós, não recomendam nossas obras, ainda que sejam tão belas quanto as suas; ao contrário, antes procuram desacreditá-las pela crítica, ou enterrá-las pelo silêncio.

Santo Inácio de Loyola, diz seu ilustre biógrafo, o Pe. Ribadeneyra, era tão zeloso neste ponto, que nunca permitiu se lesse em suas aulas obra alguma do famoso humanista de sua época, Erasmo de Roterdã. E o motivo é que, embora muitos de seus elegantes escritos não se referissem à religião, a maior parte deles tinha sabor protestante.

Do Pe. Faber[1], que ninguém acusará de pouco letrado, inserimos aqui um precioso trecho a propósito de seus famosos compatriotas Milton e Byron. Dizia assim o grande escritor inglês, em uma de suas belíssimas cartas:

“Não compreendo a estranha anomalia das gentes do mundo, que citam com elogio homens como Milton e Byron, manifestando ao mesmo tempo que amam a Cristo e põem n'Ele toda a esperança de salvação. Se amam a Cristo e à Igreja, por que louvam na sociedade os que blasfemam da Igreja e de Cristo? Bradam contra a impureza como coisa odiosa a Deus, mas exaltam um autor cuja vida e obras estão saturadas deste vício. Não posso compreender a distinção entre o homem e o poeta, entre as passagens puras e as passagens impuras. Se alguém ofende o objeto de meu amor, não posso receber dele consolo nem prazer, e não posso conceber que alguém, tendo amor ardente e delicado a nosso Salvador, possa gostar das obras de seus inimigos. A inteligência admite distinções, o coração não. Milton (maldita seja a memória do blasfemo!) passou grande parte de sua vida escrevendo contra a divindade de meu Senhor, minha única esperança e meu único amor. Este pensamento me exaspera! Byron, esquecendo os seus deveres para com a pátria e todos os afetos naturais, rebaixou-se vergonhosamente, vestindo com formosos versos o crime e a incredulidade. O monstro que colocou (ousarei dizê-lo?) Jesus Cristo no nível e como companheiro de Júpiter e de Maomé, não é para mim outra coisa que uma besta feroz, mesmo em suas passagens mais puras, e nunca me arrependi de ter lançado no fogo, em Oxford, uma bela edição de suas obras em quatro volumes... A Inglaterra não precisa de Milton. Como pode meu país necessitar de uma política, de um mérito, de um talento ou de qualquer outra coisa amaldiçoada por Deus? E como pode o Pai Eterno abençoar o espírito e a obra de quem, em prosa e em verso, renegou, ridicularizou e blasfemou da divindade de seu Filho? Si quis non amat Dominum Nostrum Jesum Christum, sit anathema, dizia São Paulo.”

Nestes termos escrevia o grande literato católico inglês, um dos maiores nomes da literatura inglesa moderna. E escrevia antes de ter feito a sua abjuração completa do protestantismo. Assim discorreu sempre a sã intransigência católica, assim falou sempre o bom senso da fé.

Espanto-me de que tenha havido tantas discussões e polêmicas sobre se convinha à juventude a educação clássica, baseada no estudo dos autores gregos e latinos da antiguidade pagã, embora atenuada em seus efeitos pela distância dos séculos, pela diferença das idéias e diversidade das línguas, e que quase nada se tenha dito sobre o veneno mortal da educação revolucionária, que muitos católicos dão ou toleram sem escrúpulo a seus filhos.


[1] Nascido em 24 de junho de 1814 numa família calvinista refugiada na Inglaterra, converteu-se ao catolicismo em 1845 e se tornou padre. Morreu em 26 de setembro de 1863, com 49 anos.

21. Da sã intransigência católica em oposição à falsa caridade liberal

Intransigente! Intransigência! Assim ouço exclamar uma parte de meus leitores mais ou menos eivados de liberalismo, após a leitura do capítulo anterior.

Que modo pouco cristão de resolver a questão!, dizem eles. São os liberais ou não nossos próximos, como quaiquer outros? Onde vamos parar com essas idéias? Como tão descaradamente se recomenda contra eles o desprezo da caridade?

“Lá vêm eles!”, exclamaremos por nossa vez. Já lançam em nossa face a “falta de caridade”. Vamos, pois, responder também a esta crítica, que é para alguns o verdadeiro cavalo de batalha da questão. Se não o é, serve ao menos como verdadeiro parapeito contra nossos inimigos, os quais, como muito a propósito disse um autor, forçam gentilmente a caridade a servir como barricada contra a verdade.

Vejamos, antes de tudo, o que significa a palavra caridade.

A teologia católica nos dá a definição pelo órgão mais autorizado da propaganda popular, o catecismo, tão pleno de sabedoria e filosofia. Define-a assim: A caridade é uma virtude sobrenatural que nos inclina a amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos por amor de Deus. Desta definição, depois da parte que se refere a Deus, resulta que devemos amar o próximo como a nós mesmos, e isto não de qualquer maneira, mas em ordem e com sujeição à lei de Deus e por amor de Deus.

Pois bem, o que é amar? Amare est velle bonum, diz a filosofia: “Amar é querer bem a quem se ama”. E a quem diz a caridade que se há de amar ou querer bem? Ao próximo, isto é, não a tal ou qual homem somente, mas a todos os homens. E qual é o bem que se há de querer, para que dele resulte o verdadeiro amor? Primeiramente, o bem supremo, que é o bem sobrenatural; logo depois, os demais bens de ordem natural, que não são incompatíveis com aquele. E tudo vem a resumir-se naquela frase “por amor de Deus”, e em mil outras de análogo sentido.

Segue-se, pois, que se pode amar e querer bem ao próximo (e muito) desgostando-o, contrariando-o, prejudicando-o materialmente, e até privando-o da vida em certas ocasiões. Tudo se reduz a examinar se naquilo que o desgosta, o contraria, ou o mortifica, age-se ou não para seu próprio bem, para o bem de alguém cujos direitos são superiores aos seus, ou simplesmente para o maior serviço de Deus.

1° - Para o seu próprio bem. Se claramente se demonstra que, desgostando e ofendendo o próximo, age-se para o seu bem, é evidente que neste caso ele é amado, mesmos nas contrariedades e desgostos que lhe sejam impostos. Por exemplo: ama-se o doente queimando-o com o cautério, ou cortando sua gangrena com o bisturi; ama-se o mau corrigindo-o com repreensões ou castigos etc. Tudo isto é excelente caridade.

2° - Para o bem de outro cujos direitos são superiores. Muitas vezes é necessário contrariar alguém, não para seu próprio bem, mas para livrar de um mal a outrem que aquele lhe queira causar. Neste caso, é uma obrigação de caridade defender o agredido da violência injusta do agressor; e pode-se fazer ao agressor tanto mal quanto seja preciso ou conveniente para defesa do agredido. Assim sucede quando, em defesa de um passageiro, se mata o ladrão que o ataca. E então matar o injusto agressor, feri-lo, neutralizá-lo de qualquer modo, é ato de verdadeira caridade.

3.º - Para o serviço devido a Deus. O bem de todos os bens é a glória divina, assim como Deus é para todo homem o próximo de todos os próximos. Por conseguinte, o amor devido aos homens como próximos, deve estar sempre subordinado ao que todos nós devemos a nosso comum Senhor. Para seu amor e serviço, pois, deve-se (se necessário) desgostar os homens, feri-los e até (sempre se necessário) matá-los. Atente-se para a importância dos parênteses (se necessário); eles indicam claramente o único caso em que o serviço de Deus exige tais sacrifícios. Assim como numa guerra justa os homens se ferem e matam pelo serviço da pátria, assim pode-se também ferir e matar pelo serviço de Deus. E assim como, em cumprimento da lei, pode-se executar homens por suas infrações ao Código humano; tem-se o direito, numa sociedade catolicamente organizada, de justiçar os homens por infrações ao Código divino, naquilo que ele obriga exteriormente. Assim se justifica plenamente a criticada Inquisição. Todos esses atos (quando são justos e necessários) são atos de virtude e podem ser mandados pela caridade.

Não a entende assim o liberalismo moderno, e portanto a entende mal. Por isso, ele possui e dá aos seus adeptos uma falsa noção de caridade, e desconcerta os católicos mais firmes com suas censuras e acusações banais de intolerância e intransigência, renovadas sem cessar. Nossa fórmula é muito clara e concreta. É a seguinte: a suma intransigência católica não é senão a suma caridade católica. Esta caridade se exerce em benefício do próximo quando, para o seu próprio bem, ela o confunde, o envergonha, o ofende e o castiga. Ela se exerce em benefício de um terceiro quando, para livrá-lo do erro e de seu contágio, desmascara seus autores e fautores, chamando-os pelo verdadeiro nome, de maus, perversos, tornando-os odiáveis e desprezíveis como devem ser, denunciando-os à execração pública, e, se possível, ao zelo da autoridade social encarregada de os reprimir e castigar. Ela se exerce, finalmente, dirigida a Deus, quando por sua glória e serviço faz-se necessário impor silêncio a todas as considerações humanas, saltar todos os obstáculos, afrontar todo respeito humano, ferir todos os interesses, expor a própria vida e todas as vidas cujo sacrifício seja necessário para tão alto fim.

E tudo isto é pura intransigência no verdadeiro amor, e por isso, é suma caridade. Os tipos dessa intransigência são os heróis mais sublimes da caridade, como entende a verdadeira religião. E porque hoje há poucos intransigentes, há também pouca gente verdadeiramente caridosa. A caridade liberal, hoje em moda é, na forma, condescendente, afetuosa, e mesmo tenra, porém no fundo é o desprezo essencial dos verdadeiros bens do homem e dos supremos interesses da verdade e de Deus.

22. Da caridade nas chamadas “formas de polêmica”, e se têm nisto razão os liberais contra os apologistas católicos

Mas não é este último principalmente o terreno em que o liberalismo coloca a questão, porque sabe que no campo dos princípios seria irremediavelmente vencido. Ele prefere, em sua propaganda, acusar os católicos de pouca caridade, e é neste ponto que, como temos dito, certos católicos, bons no fundo, mas influenciados da maldita peste liberal, costumam especialmente insistir. O que há, pois, sobre este particular?

Há o seguinte: Que nós, os católicos, temos razão nisto como no mais, e que os liberais não têm nem sombra dela. Fixemo-nos para isto nos seguintes pontos:

1° Pode claramente o católico dizer a seu adversário liberal que é de fato um liberal. Ninguém porá em dúvida esta proposição. Se um autor, jornalista ou deputado começa a jactar-se de liberalismo, e não oculta nem pouco nem muito suas idéias ou afeições liberais, que injúria se faz em chamá-lo de liberal? É um princípio do direito: Si palam res est, repetitio injuriam non est: “Não é injúria repetir o que está à vista de todos”. Muito menos em dizer do próximo o que ele diz de si mesmo a todas as horas. Quantos liberais, no entanto, particularmente os do grupo dos mansos ou moderados, tomam como grande injúria que um adversário católico os chame de liberais ou amigos do liberalismo?

2° Dado que o liberalismo é coisa má, não é falta de caridade chamar maus os defensores públicos e conscientes do liberalismo.

Isto é, em substância, aplicar ao caso presente a lei de justiça que foi aplicada em todos os séculos. Nós, os católicos de hoje, não fazemos inovação neste ponto, nos atemos à prática constante da antigüidade. Os propagadores e fautores de heresias foram em todos os tempos chamados hereges, como os seus autores. E como a heresia foi sempre considerada na Igreja como mal gravíssimo, tais fautores e propagadores foram chamados sempre pela Igreja maus e malvados. Consultai as coleções dos autores eclesiásticos. Vede como os Apóstolos trataram os primeiros heresiarcas e como seguiram tratando-os os Santos Padres e depois os controversistas modernos e a própria Igreja em sua linguagem oficial. Não há, pois, falta de caridade em chamar ao mau, mau; aos autores, fautores e seguidores do mal, malvados; e ao conjunto de todos seus atos, palavras e escritos, iniqüidade, maldade e perversidade. O lobo foi sempre chamado lobo e nada mais, e nunca se acreditou que, ao chamá-lo assim, se fizesse obra má ao rebanho nem a seu dono.

3° Se a propaganda do bem e a necessidade de atacar o mal exigem o emprego de frases duras contra os erros e seus reconhecidos corifeus, seu emprego nada tem contrário à caridade. É um corolário ou conseqüência do princípio anterior. É preciso tornar o mal detestável e odioso; e não se pode fazer isto senão denunciando-o como mau, perverso e desprezível. A oratória cristã de todos os séculos autoriza o emprego das figuras retóricas mais violentas contra a impiedade. Nos escritos dos grandes atletas do cristianismo é contínuo o uso da ironia, da imprecação, da execração, dos epítetos depreciativos. A lei de tudo isto deve ser unicamente a oportunidade e a verdade.

Há ainda outra razão. A propaganda e apologética popular (e a religiosa é sempre popular) não pode guardar as formas sofisticadas e sóbrias da academia e da escola. Não se convence o povo senão falando-lhe ao coração e à imaginação, que só se emocionam com a literatura calorosa, inflamada e apaixonada. A paixão produzida pela santa paixão da verdade não é má. As chamadas intemperanças do moderno jornalismo ultramontano, além de muito leves se comparadas com as do jornalismo liberal (temos exemplos recentes por aí a cada passo), estão plenamente justificadas, basta abrir em qualquer página as obras dos grandes polemistas católicos dos melhores tempos.

São João Batista começou por chamar aos fariseus “raça de víboras”. Jesus Cristo Nosso Senhor não se absteve de lançar-lhes os epítetos de “hipócritas”, “sepulcros caiados”, “geração perversa e adúltera", sem que com isso cresse manchar a santidade de sua mansíssima pregação. São Paulo dizia, dos cismáticos de Creta, que “eram mentirosos, bestas más, ventres preguiçosos”[1]. Ao sedutor Elimas, o mago, chama o mesmo Apóstolo “homem cheio de toda fraude e embuste, filho do diabo, inimigo de toda verdade e justiça”.

Se abrimos as coleções dos Padres, encontramos por toda parte tratos desta natureza, que não hesitaram empregar a cada passo em sua eterna polêmica com os hereges. Citaremos apenas um ou outro dos princiapais: São Jerônimo, disputando com o herege Vigilâncio, lança-lhe em rosto sua antiga profissão de taberneiro e lhe diz: “Outras coisas aprendeste (e não teologia) desde tenra idade; a outros estudos te dediscaste. Averiguar ao mesmo tempo o valor das moedas e o dos textos da Escritura; provar os vinhos e ter a inteligência dos profetas e dos apóstolos certamente não são coisas que um mesmo homem possa bem executar”. E vê-se que o santo controversista tinha afeição a esta maneira de desautorizar o adversário, pois em outra ocasião, atacando o mesmo Vigilâncio, que negava a excelência da virgindade e do jejum, pergunta-lhe com muita graça “se pregava assim para não perder o consumo de sua taverna”. Oh! Quantas queixas teria feito um crítico liberal, se tivesse escrito isto um de nossos controversistas contra um herege de hoje!

Que diremos de São João Crisóstomo na sua famosa invectiva contra Eutrópio, cujo caráter pessoal e agressivo só tem comparação com as cruéis invectivas de Cícero contra Catilina ou contra Verres? O melífluo São Bernardo não era certamente de mel ao tratar com os inimigos da fé. Chama Arnaldo de Bréscia, o grande agitador liberal de sua época, com todas as letras de “sedutor, vaso de injúrias, escorpião, lobo cruel”.

O pacífico Santo Tomás de Aquino esquece a calma de seus frios silogismos para lançar contra seu adversário Guilherme de Saint-Amour e seus discípulos, as violentas apóstrofes de “inimigos de Deus, ministros do diabo, membros do Anticristo, ignorantes, perversos, réprobos”. Nunca disse tanto o ilustre Louis Veuillot. O seráfico São Boaventura, tão cheio de doçura, dirige increpções a Geraldo com os epítetos de “imprudente, caluniador, espírito maléfico, ímpio, impudico, ignorante, embusteiro, malfeitor, pérfido e insensato”. Ao chegar a época moderna, vemos aparecer a figura encantadora de São Francisco de Sales, que, por sua distinta delicadeza e mansidão, mereceu ser chamado a imagem viva do Salvador. Credes que ele mostrou alguma consideração pelos hereges de seu tempo e país? Vamos então! Perdoou-lhes as injúrias, cobriu-os de benefícios, procurou até salvar a vida a quem tinha atentado contra a sua. Chegou a dizer para um rival: “Se me arrancasses um olho, não deixaria com o outro de olhar-te como irmão”. Pois bem; com os inimigos da sua fé não mostrava nenhum tipo de comedimento e consideração. Perguntando por um católico se podia dizer mal de um herege, que espalhava suas venenosas doutrinas, respondeu: “Sim, podeis, contanto que não digais dele coisa contrária à verdade, e só pelo sabeis da sua má conduta, falando do que é duvidoso como duvidoso, e segundo o grau maior ou menor de dúvida que sobre isto tenhais”.

Em sua Filotéia, livro tão precioso como popular, ele se exprime ainda mais claro: “Os inimigos declarados de Deus e da Igreja devem ser culpados e condenados com toda força possível. A caridade obriga a todos a gritar: ‘o lobo!’, quando este se introduzir no rebanho, e até em qualquer lugar em que se encontre.”

Haverá necessidade de dar a nossos inimigos um curso prático de retórica e de crítica literária? Em resumo, acabamos de dizer tudo o que há sobre a tão decantada questão das formas agressivas usadas pelo escritores ultramontanos, vulgo católicos verdadeiros. A caridade nos proíbe fazer aos outros o que razoavelmente não queremos para nós mesmos. Note-se o advérbio razoavelmente, no qual está todo o quid da questão.

A diferença essencial entre o nosso modo de ver e o dos liberais neste assunto, é que estes senhores consideram os apóstolos do erro como simples cidadãos livres, que, no uso do seu perfeito direito, opinam em matéria de religião diferentemente de nós. Por conseguinte, se crêem obrigados a respeitar essa opinião e não contradizê-la, senão nos termos de uma discussão livre. Nós, ao contrário, não vemos neles senão inimigos declarados da fé que estamos obrigados a defender, e em seus erros não vemos livres opiniões, mas heresias formais e culpáveis, tal como ensina a lei de Deus. Com razão, pois, diz um grande historiador católico aos inimigos do catolicismo: “Fazei-vos infames com vossas ações; pois bem, eu acabarei de vos cobrir de infâmia com meus escritos”. E com igual teor a lei das Doze Tábuas ensinava a viril geração romana dos primeiros tempos de Roma: Adversus hostem aeterna auctoritas esto, que se pode traduzir “contra os inimigos, guerra sem tréguas”.


[1] Tito, 1, 12.

23. Se é conveniente, ao combater o erro, combater e desacreditar a personalidade de quem o sustenta e divulga.

Dirá alguém: “É certo que assim se passa com as doutrinas abstratas. Mas será conveniente combater o erro, por maior que seja, ao se fixar e encarniçar contra a personalidade de quem o sustenta?” Eis a nossa resposta: Sim, muitíssimas vezes é conveniente, e não só conveniente, mas até indispensável e meritório diante de Deus e da sociedade. E ainda que se possa deduzir essa afirmação do que anteriormente foi exposto, queremos todavia tratá-la aqui ex professo, pois é grande a sua importância.

Com efeito, não é pouco frequente a acusação que se faz aos apologistas católicos de preocupar-se sempre com pessoas, e quando se lança essa acusação a um dos nossos, parece aos liberais e aos contaminados de liberalismo que já não há mais que dizer para condená-lo. E contudo não têm razão; não, não a têm. As idéias más devem ser combatidas e desacreditadas, e é preciso torná-las odiosas, desprezíveis e detestaveis à multidão, a quem elas tentam enganar e seduzir.

Assim como as idéias não se sustentam em nenhum caso por si mesmas, elas não se difundem nem se propagam sozinhas; não poderiam, por si mesmas, produzir todo o mal de que sofre a sociedade. São como as flechas ou balas, que a ninguém iriam ferir, se não houvesse quem as disparasse com o arco ou o fuzil.

Ao arqueiro e ao fuzileiro devem se dirigir, pois, os tiros de quem pretenda destruir a sua mortal pontaria. E qualquer outro modo de fazer guerra será tão liberal como queiram, mas não terá senso comum.

Os autores e propagandistas de doutrinas heréticas são soldados com armas de envenenados projéteis; suas armas são o livro, o jornal, o discurso público, a influência pessoal. Não basta, pois, desviar-se para evitar o tiro. Não, a primeira coisa a se fazer, a mais eficaz, é inabilitar o atirador.

Assim, convém desautorizar e desacreditar o livro, o jornal e o discurso do inimigo; e não só isto, mas também, em certos casos, desautorizar e desacreditar a sua pessoa. Sim, a sua pessoa, pois este é o elemento principal do combate, como o artilheiro é o elemento principal da artilharia, e não a bomba, a pólvora ou o canhão. Pode-se, pois, em certos casos revelar em público suas infâmias, ridicularizar seus costumes, cobrir de ignomínia seu nome e sobrenome. Sim, leitor, e pode-se fazer em prosa ou em verso, a sério ou de piada, em caricaturas e por todos os meios e procedimentos que no futuro se possa inventar. É importante apenas não pôr a mentira a serviço da justiça. Isso não; não se pode sob pretexto algum faltar com a verdade, nem um iota. Porém, sem sair dos estritos limites desta verdade, lembremo-nos daquele dito de Crétineau-Joly: A verdade é a única caridade permitida à história; poderíamos acrescentar: e à defesa religiosa e social.

Os mesmos Santos Padres, que já citamos, provam esta tese. Os próprios títulos de suas obras dizem claramente que, ao combater as heresias, o primeiro tiro procuravam dirigi-lo contra os heresiarcas. Quase todos os títulos das obras de Santo Agostinho se dirigem ao nome do autor da heresia: Contra Fortunatum manichoeum, Adversus Adamanctum; Contra Felicem; Contra Secundinum; Quis fuerit Petilianus; De gestis Pelagii; Quis fuerit Julianus etc. De modo que quase toda a polêmica do grande Agostinho foi pessoal, agressiva, biográfica, por assim dizer, tanto como doutrinal; lutando corpo a corpo com o herege, como também contra a heresia. E o que dizemos de Santo Agostinho poderíamos dizer de todos os Santos Padres.

De onde o liberalismo tirou, pois, a novidade de que ao combater os erros se deve prescindir das pessoas e até mesmo as lisonjear e agradar? Firmem-se no que ensina sobre isto a tradição cristã, e deixem-nos a nós, os ultramontanos, defender a fé como se defendeu sempre na Igreja de Deus.

Que penetre, pois, a espada do polemista católico; que fira e vá direto ao coração! É a única maneira real e eficaz de combater.

24. Resposta a uma objeção, à primeira vista grave, contra a doutrina dos dois capítulos precedentes

Uma dificuldade, à primeira vista gravíssima, podem os nossos adversários opor à doutrina estabelecida nos capítulos anteriores. Convém-nos, antes de avançar, deixar nosso caminho livre e desembaraçado de escrúpulos ou outros obstáculos dessa natureza.

O papa, dizem, e é certo, tem recomendado várias vezes aos jornalistas católicos a temperança, a moderação, o respeito e a caridade nas formas de polêmica. Quer que se evitem as maneiras agressivas, os epítetos depreciativos e as invectivas injuriosas. Ora, dirão agora, a doutrina que acabais de expor é diametralmente oposta às recomendações pontifícias.

Com ajuda de Deus, vamos demonstrar que não há contradição entre nossas indicações e os sábios conselhos do papa. E não nos custará, por felicidade, dar a prova evidente.

Com efeito, a quem se dirigiu o Santo Padre nas suas reiteradas exortações? Sempre à imprensa católica, sempre aos jornalistas católicos, supondo-os que o são. Por conseguinte, é evidente que, ao dar esses conselhos de moderação e temperança, o Santo Padre dirigiu-se a católicos que tratavam de questões livres com outros católicos, e não a católicos que travavam contra anti-católicos declarados o feroz combate da fé.

É evidente que não aludiu às incessantes batalhas entre católicos e liberais; porque diante do fato de que o catolicismo é a verdade e o liberalismo a heresia, as batalhas travadas entre seus representantes devem considerar-se, em boa lógica, como batalhas entre católicos e hereges.

É claríssimo que o papa quis que se aplicassem os seus conselhos só em relação com nossas dissidências de família, infelizmente muito comuns, e não pretendeu que com os inimigos da Igreja e da fé lutássemos com espadas sem fio e sem ponta, usadas só em justas e torneios.

Por conseguinte, não há oposição entre a doutrina por nós exposta e a contida nos Breves e Alocuções de Sua Santidade, porque a oposição, em boa lógica, deve ser ejusdem, de eodem et secundum idem, o que não ocorre aqui. E como poderia a palavra do papa interpretar-se corretamente de outra maneira? É uma regra de sã exegese que um texto da Sagrada Escritura deve ser interpretado em sentido literal, quando este sentido não se opõe ao contexto; e só deve recorrer-se ao sentido livre ou figurado quando esta oposição se apresenta. Igualmente, podemos seguir a mesma regra ao tratar da interpretação dos documentos pontifícios.

Poderá supor-se o papa em contradição com toda a tradição católica, desde Jesus Cristo até os nossos dias?

Poderão crer-se condenados por um risco de pena o estilo e a maneira dos mais célebres apologetas e polemistas da Igreja, desde São Paulo até São Francisco de Sales?

É evidente que não. E é evidente que assim seria, se tais conselhos de moderação e temperança devessem ser entendidos no sentido em que (para conveniência de sua causa) os interpreta o critério liberal. Por conseguinte, a única conclusão admissível é que os conselhos do papa, que todo bom católico deve considerar como ordens, não se referiu às polêmicas entre católicos e inimigos do catolicismo, como são os liberais, mas às dos bons católicos, entre si, em suas dissidências e diferenças.

Não, não pode ser de outra maneira, o próprio senso comum o diz. Nunca em batalha alguma o capitão proibiu seus soldados de ferirem gravemente o adversário; nunca lhes recomendou brandura para com eles; nunca afagos nem atenções. Guerra é guerra, e nunca foi feita de outra maneira senão causando danos. É suspeito de traidor quem, no fragor do combate, anda gritando entre as filas dos combatentes: "Cuidado para não incomodar o inimigo! não lhe ataque no coração!".

Que mais dizer? O próprio Papa Pio IX nos deu a interpretação autêntica de suas santas palavras, e mostrou de que maneira seus conselhos de temperança e moderação devem aplicar-se. Aos sectários da Comuna, numa ocasião memorável, chamou demônios, e aos sectários do catolicismo-liberal [1] chamou piores do que aqueles demônios. Esta frase correu o mundo, e saída dos lábios mansíssimos do papa, permanece gravada na testa do liberalismo como estigma de eterna execração. Quem depois dela temerá exceder-se na dureza dos qualificativos?

As próprias palavras da Encíclica Cum multa, de que tanto abusou contra os mais firmes católicos a impiedade liberal, são as mesmas palavras com que nosso Santíssimo Padre Leão XIII recomenda aos escritores católicos que “evitem o tom de violência na defesa dos direitos sagrados da Igreja e recorram de preferência às armas mais dignas da moderação, de sorte que o peso das razões mais que a aspereza e violência do estilo, deem a vitória ao escritor.” É evidente que o Santo Padre não fala aqui senão de polêmicas entre católicos e católicos sobre o melhor modo de servir a sua causa comum, e não das polêmicas entre católicos e inimigos declarados do catolicismo, tais como os sectários formais e conscientes do liberalismo.

A prova está à vista de qualquer um, basta olhar o contexto da admirável encíclica citada.

O papa a termina exortando para que se mantenham unidas as associações e os indivíduos católicos. E depois de ponderar as vantagens desta união, assinala como meio principal de conservá-la, essa moderação e temperança no estilo, que acabamos de indicar.

Daqui deduzimos um argumento que não tem contestação.

O papa recomenda a suavidade do estilo aos escritores católicos, para que esta os ajude a conservar a paz e a mútua união. Esta paz e mútua união, o papa não pode, evidentemente, querê-la senão entre católicos e católicos, e não entre católicos e inimigos do catolicismo. Logo, a suavidade e moderação que o papa recomenda aos escritores só se referem às polêmicas dos católicos entre si, e nunca às que existem entre católicos e sectários do erro liberal.

Ainda mais claro: O papa ordena esta moderação e temperança como meio de alcançar como fim a união. Este meio deve, por conseguinte, caracterizar-se por este fim a que está ordenado. Ora, este fim é puramente a união entre católicos, e nunca (quia absurdum) entre católicos e inimigos do catolicismo. Logo, aquela moderação não pode entender-se aplicada a outra esfera.


[1] Em 18 de junho de 1871, à deputação francesa que foi a Roma festejar o 25º aniversário de seu pontificado, Pio IX declarava: “Meus queridos filhos, é preciso que minhas palavras vos digam bem aquilo que trago no coração. O que aflige vosso país e o impede de merecer as bênçãos de Deus, é a mescla de princípios. Direi a palavra, e não a calarei: o que temo, não são todos esses miseráveis da Comuna de Paris, verdadeiros demônios do inferno que passeiam pela terra. Não, não é isso; o que temo, é esta infeliz política, esse liberalismo católico que é o verdadeiro flagelo. Disse-o mais de quarenta vezes; e vos repito, por causa do amor que vos tenho. Sim, é este jogo... Como se diz em francês? Em italiano chamamo-lo altalena... Sim, justamente, esse jogo de básculo que destruiria a religião. É preciso sem dúvida praticar a caridade, fazer o possível para reunir os que estão dispersos: mas para isso não é necessário compartilhar de suas opiniões.”

25. Confirmação do que ultimamente disse um ponderadíssimo artigo de La Civiltá Cattolica

Duvidamos que se encontre uma saída a este argumento, porque simplesmente não há. Mas como a questão é da mais alta importância e tem sido nestes últimos tempos objeto de uma acalorada controvérsia, sendo além disso escassa e de pouco peso a nossa autoridade para falar definitivamente sobre ela, pedimos a nossos leitores permissão de reproduzir, em favor de nossa doutrina, um voto de mais reconhecida, para não dizer incontestável e incontestada, competência.

É o da Civiltá Cattolica, o primeiro jornal religioso do mundo, senão oficial em sua redação, ao menos em sua origem, pois foi fundado por um Breve especial de Pio IX, e por ele confiado aos Padres da Companhia de Jesus. Este jornal cujos artigos, ora em forma séria, ora em sátira, não deixam sossegar os liberais italianos, viu-se várias vezes repreendido pelos mesmos liberais por falta de caridade. Para responder a essas farisaicas homilias sobre a moderação e a caridade, a Civiltá Cattolica publicou um graciosíssimo artigo, tão pleno de humor como de profunda filosofia.

Vamos reproduzi-lo aqui para consolação de nossos liberais e desengano de tantos pobres católicos contaminados de liberalismo, que fazem coro com eles, escandalizando-se a todas as horas de nossa tão anatematizada falta de moderação. O artigo se intitula: "Um pouco de caridade!", é como se se

”De Maistre diz que a Igreja e os papas nunca pediram para sua causa mais do que a verdade e a justiça. Ao contrário dos liberais, os quais por um respeitoso horror que naturalmente professam à verdade e sobretudo à justiça, não fazem senão pedir-nos a caridade a todas as horas.

“Há cerca de doze anos que, por nossa parte, estamos assistindo a este curioso espetáculo dado pelos liberais italianos, que não cessam um segundo de mendigar, com lágrimas, a nossa caridade, suplicando-nos, de braços cruzados, em prosa e em verso, em folhetos e em jornais, em cartas públicas e privadas, anônimas e pseudônimas, direta ou indiretamente, que por amor de Deus tenhamos com eles um pouco de caridade; que não mais nos permitamos fazer o próximo rir à sua custa; que não nos entretenhamos em examinar tão detalhada e minuciosamente os seus sublimes escritos; que não sejamos tão pertinazes em trazer ao público suas gloriosas façanhas; que façamos vista grossa e ouvidos surdos aos seus descuidos, solecismos, mentiras, calúnias e mistificações; que, numa palavra, os deixemos viver em paz.

“Pois em última análise, caridade é caridade; e que os liberais não a tenham, é natural e compreende-se bem, mas que não a usem os escritores, como os da Civiltá Cattolica, isso é outra história.

“Justo castigo de Deus é que os liberais, que tanto aborreceram a mendicidade pública, a ponto de a proibirem em muitos países sob pena de prisão, se vejam agora forçados a tornar-se mendicantes públicos, pedindo em nome do céu, como ardilosos reacionários... um pouco de caridade!

“Com esta edificante conversão ao amor da mendicância, os liberais imitaram aquela outra não menos célebre e edificante, a do rico avarento à virtude da esmola. Este, tendo assistido uma vez ao sermão e ouvido uma exortação muito fervorosa à prática da esmola, de tal modo se comoveu, que chegou a ter-se por verdadeiramente convertido. Em verdade, fora tão fortemente tocado pelo sermão, que dizia ao sair da Igreja: É impossível que esses bons cristãos que o ouviram não me dêem de vez em quando alguma coisa por caridade.

Assim os nossos sempre estupendos liberalaços, depois de haverem demonstrado (cada um segundo os seus meios), por atos e escritos, que têm à caridade o mesmo amor que o diabo tem à água benta; quando depois, ouvindo falar em caridade, voltam a si e se recordam que há no mundo algo que se chama a virtude da caridade e que esta pode em certas ocasiões ser-lhes proveitosa, mostram-se de repente furiosamente enamorados dela e vão pedi-la com gritos ao papa, aos bispos, ao clero, aos frades, aos jornalistas, a todos... até aos redatores da la Civiltá!

“E é preciso ouvir as belas razões que sabem aduzir em seu favor! Se neles crermos, teríamos de pensar que não falam por interesse próprio. Santo Deus, não! Se assim falam, é com o interesse de nossa santíssima religião, que eles têm no íntimo do coração e que por certo sairá muito prejudicada de nossa maneira tão pouco caridosa de defendê-la. Falam no interesse dos próprios reacionários e, especialmente (quem o acreditará?) em nosso próprio interesse, no interesse dos redatores da Civiltá Cattolica.

“Que necessidade tendes — dizem, em tom confidencial — de meter-vos nessas querelas? Não tendes já bastantes hostilidades para enfrentar? Sede tolerantes e vossos adversários o serão convosco. Que ganhais com esse triste ofício de cães ululando sempre aos ladrões? E se no final saís batidos e golpeados, a quem dareis a culpa, senão a vós mesmos e a esta indomável obstinação que tendes em procurar as pancadas?

“Sábia e desinteressada maneira de discorrer, cujo único defeito é o de assemelhar-se muito àquela que o comissário de polícia recomenda a Renzo Tramaglino no romance Os noivos, quando tentava levá-lo à prisão persuadindo-o, presumindo que, se usasse de força, o jovem não se deixaria conduzir. ’Creia-me, dizia Renzo, tenho prática nessas coisas. Caminha devagarinho e sempre adiante, sem ir de um lado para o outro, e sem que o notem. Assim, ninguém nos reparará, ninguém advertirá o que se passa, e conservarás portanto tua reputação.’ Mas aqui observa Manzoni[1] que Renzo não acreditava em nenhuma de suas belas razões. Não podia acreditar que o comissário o estimasse, que se interessasse por sua honra e reputação, ou tivesse verdadeira intenção de favorecê-lo. De sorte que tais exortações só serviram para confirmá-lo no desígnio já pré-concebido de portar-se inteiramente ao contrário do que lhe foi aconselhado.”

“Este desígnio, falando com franqueza, nós também estamos muito tentados a formá-lo; porque não podemos persuadir-nos de que os liberais se importem pouco ou muito com o dano que possamos causar à religião, ou que se preocupem com o que possa nos convir. Cremos, ao contrário, que se os liberais julgassem verdadeiramente que o nosso modo de agir prejudicava à religião ou pelo menos a nós mesmos, não somente se guardariam de nos advertir, porém ainda nos incentivariam com aplausos.

“Consideremos que mostrarem-se zelosos conosco, rogar-nos que modifiquemos o nosso estilo, são sinais claros de que a religião nada perde com isso, e que os nossos escritos têm alguns leitores, o que para um escritor não deixa de ser sempre uma consolação.

“No que diz respeito a nossos interesses e ao princípio utilitário, visto que os liberais têm sido com justa razão considerados sempre como mestres neste ponto, e têm fama de haver aplicado sempre este princípio muito mais em proveito próprio do que em nosso favor, é preciso que nos permitam crer, como temos crido até hoje, que em toda controvérsia sobre nosso modo de escrever contra eles, não somos nós os que saem mais prejudicados, nem tampouco é a religião.

“Por conseguinte, havendo manifestado esta nossa pobre opinião, e supondo que as razões que poderíamos chamar intrínsecas e independentes do princípio utilitário, que alegam os liberais em favor próprio e contra nosso modo de escrever, têm sido já muitas vezes refutadas nas séries passadas da Civiltá Cattolica, só nos restaria aqui despedir com bons modos esses mendigos de nova espécie, aconselhando-os que cumpram daqui em diante o seu ofício de advogados em causa própria, melhor do que faziam com Renzo aqueles esbirros do século XVII.

“Mas, porque muitos entre eles continuam a mendigar, e recentemente publicaram em Perusa um opúsculo intitulado: Que é o partido chamado católico?, que consagraram inteiramente a mendigar à Civiltá Cattolica um pouco de caridade, não será inútil repetir mais uma vez, no princípio desta quinta série, as mesmas antigas respostas contra as mesmas antigas objeções. E será isto também grande caridade, não certamente aquela que os liberais imploram de nós, mas outra bastante meritória: a caridade de escutá-los com paciência pela centésima vez.

Do resto, o tom humilde e queixoso com que, desde algum tempo, eles andam nos pedindo um pouco de caridade, não merece menos.”


[1] Autor italiano do romance em questão (1785-1873).

26. Continua a bela e contundente citação da Civiltá cattolica

O famoso artigo da Civiltá Cattolica e nossa oportuníssima citação continuam assim:

”Se os liberais nos pedem a verdadeira caridade, a única que lhes convém e que nós, como redatores da Civiltá Cattolica, lhes podemos e devemos dar, tão longe estamos de querer negá-la que, ao contrário, julgamos tê-la prodigado bastante até agora, senão segundo todas as suas necessidades, ao menos segundo a nossa possibilidade.

“Os liberais cometem um intolerável abuso de palavras dizendo que nós não usamos de caridade para com eles. A caridade, una em seu princípio, é variada e multiforme em suas obras. Muitas vezes, o pai que bate fortemente em seu filho, tanto usa de caridade como o que o cobre de beijos. E ocorre freqüentemente que a caridade do pai que beija seu filho seja inferior à do pai que o castiga.

“Nós batemos nos liberais, não negamos, e batemos neles com muita freqüência (com palavras, é claro), mas quem poderá concluir deste fato que nós não os amamos, que não temos caridade para com eles? Isto poderia ser dito antes daqueles que, malgrado as prescrições da caridade, interpretam mal as intenções do próximo. No que nos diz respeito, tudo o que os liberais poderão dizer é que nossa caridade para com eles não é a caridade que desejam. Mas nem por isso deixa de ser caridade, sim senhor, e grande caridade; e visto que são eles que pedem caridade, e nós os que lha concedemos em vão, bem poderiam recordar aqui o velho provérbio: ’A cavalo dado não se olhe para o pelo’.

“A caridade que queriam de nós, seria a de os louvar, admirar, apoiar, ou de ao menos os deixar agir à vontade. Nós, ao contrário, não queremos fazer-lhes senão a caridade de gritar-lhes, repreendê-los, exortá-los por mil modos a sair do seu mau caminho. Quando dizem uma mentira, semeiam uma calúnia ou pilham os bens alheios, os liberais gostariam que lhes encobríssemos estes e outros pecados veniais com o manto da caridade. Nós, ao contrário, os apostrofamos de ladrões, embusteiros, caluniadores, exercendo assim para com eles a caridade mais excelente de todas, a de não adular nem enganar aqueles a quem queremos bem. Quando lhes escapa algum disparate gramatical, de ortografia, de linguagem, ou simplesmente de lógica, gostariam que fizéssemos vista grossa; e choram, e lamentam-se quando os advertimos em público, queixando-se de que faltamos com caridade. Nós, ao contrário, fazemos-lhe uma boa obra obrigando-os a apalpar com suas próprias mãos uma coisa que não devem ignorar, a saber: que não somente não são mestres, como pensam, mas que não passam de estudantes medíocres. Deste modo contribuímos, na medida de nossas forças, à cultura das belas artes na Itália, e ao exercício da humildade cristã no coração desses liberais que têm, como se sabe, grande necessidade dela.

“Os senhores liberais gostariam sobretudo que fossem tomados sempre muito a sério, estimados, reverenciados, obsequiados, e tratados como figuras importantes. Resignar-se-iam a que os refutássemos, sim, contanto que o fizéssemos de chapéu em mão, corpo inclinado e cabeça baixa em reverente e humilde atitude. Daí vêm suas queixas, quando às vezes são caricaturados, isto é, quando se zomba deles. Deles! Os pais da pátria, os verdadeiros italianos, a própria Itália, como costumam dizer de si mesmos! Quem tem, pois, a culpa, se é tão ridícula essa pretensão que ao próprio Heráclito faria soltar uma gargalhada?

“Pois bem! Devemos, para o seu agrado, passar a vida reprimir todo movimento natural de riso? Deixar-nos rir quando certamente não se pode deixar de o fazer é também obra de misericórdia, que os liberais poderiam outorgar-nos de boa vontade, já que por sua parte não custa muito. Todos compreendem muito bem que, assim como fazer rir honestamente, à custa do vício e dos viciosos, é em si coisa muito boa, segundo o dito castigat ridendo mores, e aquele outro ridendo dicere verum, quid vetat?, assim, fazer rir uma e outra vez os nossos leitores, à custa dos liberais, é verdadeira obra de misericórdia e caridade para os mesmos leitores, que certamente não hão de estar sempre sérios e rigorosos, enquanto lêem o jornal. E afinal os mesmos liberais, se bem considerarem, ganham muito em que os outros riam à sua custa, porquanto deste modo todo mundo vem a conhecer que nem todos os seus feitos são tão horríveis e espantosos, como podem parecer, já que normalmente só costumam provocar o riso as deformidades inofensivas.

“Não nos agradecerão nunca o caráter ingênuo com que procuramos apresentar algumas de suas picardias? Como não percebem que não há meio mais eficaz para conseguir que se corrijam delas, do que a chacota e o riso daqueles que as vêem por nós expostas em sua devida luz? E como não vêem que não têm direito algum de acusar-nos, quando assim o fazemos, de não obrar com eles como manda a caridade?

“Se tivessem lido a vida do seu grande Victor Alfieri, escrita por ele mesmo, saberiam que, quando pequeno, sua mãe que o queria muito bem educado costumava, quando o apanhava em alguma travessura, mandar-lhe ir à missa com a gorra de dormir. E conta Alfieri que este castigo, que não era senão expô-lo um pouco ao ridículo, de tal maneira o afligiu uma vez, que por mais de três meses se portou do modo mais impecável. “Depois disto, diz ele, quando, ao primeiro sinal de travessura, ameaçavam-me com a terrível gorra de dormir, imediatamente eu entrava tremendo na linha de meus deveres. Um dia, tendo caído em certo pecadilho, disse à senhora minha mãe uma solene mentira para desculpá-lo, e por isto fui de novo sentenciado a levar em público a gorra de dormir. Chegou a hora; a gorra fora colocada em minha cabeça, eu chorava e gritava em vão. Meu aio pegou-me pela mão para sairmos e um criado me empurrava por detrás.” Porém por mais que ele chorasse, gritasse e pedisse caridade, a mãe que queria o seu bem, permaneceu inexorável. E qual foi o resultado? “Foi, continua Alfieri, que por muito tempo não me atrevi a dizer outra mentira. E quem sabe se àquela bendita gorra de dormir não devo o haver-me tornado um dos homens mais inimigos da mentira!” Nesta última frase mostra-se de passagem o fariseu, que sempre costuma ter-se por melhor que os outros homens. Nós, portanto, que devemos supor que todos os liberais têm em alta conta os elevados sentimentos do seu grande Alfieri, por que razão não esparíamos nós corrigi-los do vício vergonhoso de dizer mentiras, ou pelo menos impedir de publicá-las, enviando-os com a gorra de dormir malgrado seus gritos, esperneios e apelos à caridade... não à missa, que isso é impossível, mas a dar uma volta pela Itália, e isso nem sempre que lhes escape uma mentira, pois que seria demasiado freqüente, mas ao menos todas as vezes que imprimam um milhar delas de uma só vez?

“Não insistam, pois, os liberais na queixa de que não os tratamos com caridade. Digam antes, se quiserem, que a caridade que lhes damos, esta não a recebem de boa vontade. Já o sabíamos. Mas isso só prova que, por seu estragado gosto, precisam ser tratados com a sábia caridade que empregam os cirurgiões com seu doentes, ou os médicos do manicômio com seus loucos, ou as boas mães com seus filhos mentirosos.

“Mas ainda que fosse verdade que não tratamos com caridade os liberais, e que os tais nada disso hão de agradecer-nos, nem por isso teriam direito algum a queixar-se de nós. É sabido que nem a todo mundo é possível fazer caridade. Nossas faculdades são muito escassas: fazemos caridade segundo a medida delas, preferindo, como é nosso dever, aqueles que a mesma lei de caridade bem ordenada manda preferir.

“Dizemos (entenda-se bem) que fazemos aos liberais toda a caridade que podemos, e cremos tê-lo demonstrado. Mas na suposição de que não a fazemos, insistimos ainda que nem por isso devem fatigar-nos com queixas os liberais.

“Eis um fato semelhante que vem muito ao caso. Um assassino de punhal na mão está agarrado a um pobre inocente para cravá-lo em sua garganta. Acontece passar na ocasião alguém que leva na mão um bom taco, e dá no assassino uma forte tacada na cabeça; deixa-o inconsciente, o amarra e entrega à justiça, livrando assim, por sua boa estrela, da morte a um inocente, e de um malfeitor a sociedade.

“Faltou este terceiro com caridade em algum ponto? Se escutarmos o assassino, para quem naturalmente lhe dói o golpe, dirá que sim. Discorrerá talvez que, contra a chamada norma inculpatae tutelae, o golpe foi forte demais, e com menos força teria bastado. Mas, à exceção do assassino, todos louvarão o passageiro, e dirão que praticou um ato não só de valor, mas ainda de caridade, não certamente em favor do assassino, mas da vítima; e que se para salvar este, teve de abrir a cabeça do outro sem ter muito tempo para medir escrupulosamente a força do golpe, não foi certamente por falta de caridade, mas porque a urgência da situação era tal que não se podia usar de caridade para com um, sem sacudir bem o outro. Teria ele tempo para demorar-se em sutilezas sobre o mais ou o menos da inculpata tutela.

“Apliquemos a parábola. Publica-se, por exemplo, um folheto maledicente, calunioso e escandaloso contra a Igreja, contra o papa, contra o clero, contra qualquer coisa boa. Muitos crêem que tudo naquele folheto é pura verdade, já que seu autor é um célebre, distinto e honrado escritor, qualquer que seja. Se, para defender os caluniados e livrar os leitores do erro, alguém dá umas tantas pauladas no desavergonhado autor, terá faltado com a caridade?

“Não poderão agora negar os liberais, eles se encontram mais freqüentemente na situação de salteadores do que na de vítimas. Que haverá de espantoso, portanto, que levem por isto uma paulada? Que haverá de estranho se queixarem de que não são tratados com caridade? Parem de comportar-se como desordeiros e arruaceiros; acostumem-se a respeitar os bens e a honra dos outros; não contem tanta mentira; não levantem tanta calúnia; pensem um pouco antes de falar sobre qualquer coisa; tenham em maior conta as leis da lógica e da gramática; sejam sobretudo honrados, como há pouco aconselhou o barão de Ricasoli, com pouca esperança de bom êxito, apesar da autoridade e exemplos de tal conselheiro, e poderão então queixar-se com razão se não são tratados com o respeito de que, como aquele da liberdade, pretendem ser os absolutos monopolizadores.

“Mas já que agem tão mal como escrevem; já que andam sempre com o punhal na garganta da verdade e da inocência, assassinos de uma e da outra com seus feitos e com seus livros, tenham paciência se não podemos em nossos jornais prodigar-lhes outra caridade que aquela algo dura, que cremos, embora contra seu parecer, seja a mais proveitosa, tanto para eles como para a causa dos homens de bem.”

27. Terminando a tão oportuna e decisiva citação de “La Civiltá Cattolica”

”Temos defendido, prossegue a Civiltá, contra os liberais, a nossa maneira especial de escrever, demonstrando sua perfeita conformidade com a caridade que tão constantemente nos recomendam. E visto que até aqui falávamos a liberais, ninguém se surpreenderá com o tom irônico que temos empregado com eles, e convencidos estamos de que não é excesso de crueldade opor com algumas poucas figuras retóricas os ditos e feitos do liberalismo. Mas já que tocamos hoje neste assunto, não será talvez ocioso que, mudando de estilo e repetindo agora o que já noutra ocasião escrevemos com o mesmo propósito, terminemos este artigo com algumas palavras dirigidas seriamente e com todo o respeito aos que, não sendo de modo algum liberais, mas antes firmes adversários do liberalismo, possam todavia crer que jamais é lícito, escreva-se contra quem quer que seja, sair de certas formas de respeito e caridade, às quais julguem não estarem talvez suficientemente submetidos nossos escritos.

“Querendo responder a esta censura, tanto pelo respeito devido a essas pessoas, como pelo interesse de nossa própria defesa. E cremos não o poder fazer melhor, do que brevemente resumindo aqui o que o Pe. Mamachi, da ordem do Pregadores, diz de si mesmo na introdução ao livro III de sua doutíssima obra, Do livre direito da Igreja de adquirir e possuir bens temporais:

“Alguns, diz, embora confessem estar convencidos de nossas razões, declaram-nos contudo amigavelmente que teriam preferido mais moderação nas respostas que damos a nossos adversários. Não temos combatido por nós, mas pela causa de Nosso Senhor e da Igreja, e por mais que nos ataquem com manifestas mentiras e atrozes imposturas, jamais quisemos sair em defesa de nossa própria pessoa. Se empregamos, pois, alguma expressão que possa parecer a alguém áspera ou exagerada, que não se faça a injustiça de pensar que isso provenha de nosso mau coração ou do rancor que tenhamos aos escritores que combatemos; deles não recebemos injúrias, nem sequer os conhecemos ou com eles temos relações. O zelo que devemos ter pela causa de Deus é que nos colocou na situação de gritar e levantar a nossa voz como voz de trompeta.

“Mas, e o decoro do homem honrado? E as leis da caridade? E as máximas e exemplos dos santos? E os preceitos dos apóstolos? E o espírito de Jesus Cristo?

“Calma, aos poucos chegaremos lá. É verdade que os homens pervertidos e enganados devem ser tratados com caridade, mas apenas quando haja fundada esperança de os conduzir à verdade com tal procedimento. Se não há tal esperança, e sobretudo se está provado por experiência que calar-nos e não revelar publicamente a têmpera e o caráter de quem espalha erros redunda em gravíssimo dano aos povos, seria crueldade não levantar com toda a liberdade o grito contra o propagandista, e deixar de lhe dirigir frontalmente as invectivas que bem merece.

“Os Santos Padres, por certo, tinham conhecimento muito claro das leis da caridade cristã. Por isso, o Doutor Angélico, Santo Tomás de Aquino, no princípio de seu célebre opúsculo Contra os impugnadores da Religião, apresenta Guilherme e seus sequazes (que com certeza não estavam ainda condenados pela Igreja) como ‘inimigos de Deus, ministros do diabo, membros do Anticristo, inimigos da salvação do gênero humano, difamadores, semeadores de blasfêmias, réprobos, perversos, ignorantes, imitadores de Faraós piores que Joviniano e Vigilâncio. Por acaso temos nós chegado a tanto?

“Contemporâneo de Santo Tomás foi São Boaventura, que entendeu dever increpar com a maior dureza a Geraldo, chamando-o de insolente, caluniador, louco, ímpio, asno chapado, fraudulento, envenenador, ignorante, embusteiro, malvado, insensato, pérfido. Alguma vez chamamos assim a nossos adversários?

“Muito justamente — prossegue o Pe. Mamachi — é chamado melífluo São Bernardo. Não nos deteremos a copiar aqui o que escreveu durissimamente contra Abelardo. Contentaremo-nos em citar o que escreve contra Arnaldo de Bréscia, pois havendo este levantado bandeira contra o clero, querendo privá-lo de seus bens, foi um dos precursores dos políticos de nossos tempos. Trata-o, pois, o santo doutor de desordenado, vagabundo, impostor, vaso de ignomínia, escorpião vomitado de Bréscia, visto com horror em Roma e abominação na Alemanha, desdenhado do Sumo Pontífice, glorificado pelo diabo, artífice de iniqüidade, devorador do povo, boca cheia de maldição, semeador de discórdias, fabricador de cismas, lobo feroz’.

“São Gregório Magno, repreendendo João, bispo de Constantinopla, lança-lhe à face seu ‘profano e nefando orgulho, sua soberba de Lúcifer, suas néscias palavras, sua vaidade, seu curto talento’.

“Do mesmo modo falaram São Fulgêncio, São Próspero, São Jerônimo, o papa São Sirício, São João Crisóstomo, Santo Ambrósio, São Gregório Nazianzeno, São Basílio, Santo Hilário, Santo Atanásio, Santo Alexandre, bispo de Alexandria, os santos mártires Cornélio e Cipriano, Atenágoras, Irineu, Policarpo, Inácio de Antioquia, Clemente, todos os Padres enfim, que nos melhores tempos da Igreja se distinguiram por sua heróica caridade.

“Omitirei os cautérios aplicados por alguns destes aos sofistas do seu tempo, ainda que menos delirantes do que os dos nossos, e agitados de menos ardentes paixões políticas.

“Citarei apenas algumas passagens de Santo Agostinho, que observou ‘que os hereges são tão mais insolentes quanto menos repreensão sofrem; e que muitos, dirigem àqueles que os repreendem os epítetos de brigões e provocadores’. E depois acrescenta: ‘que alguns extraviados devem ser tratados com uma caridosa aspereza’. Vejamos agora como colocava em prática as regras traçadas por ele mesmo. A vários chama sedutores, malvados, cegos, tontos, inchados de soberba, caluniadores; a outros, impostores de cujas bocas só saem monstruosas mentiras, perversos, maledicentes, delirantes, néscios estúpidos, furiosos, frenéticos, espíritos das trevas, rostos desavergonhados, línguas insolentes. E a Juliano lhe dizia: ‘Ou tu calunias de propósito, inventando tais coisas, ou não sabes o que dizes, acreditando em embusteiros’; e noutro lugar o chama de ‘enganador, mentiroso, de juízo insano, caluniador, néscio’.

“Respondam agora nossos acusadores: temos dito alguma vez coisa parecida? E não estamos muito abaixo disto?

“Mas basta já desse extrato, em que não pusemos palavra nossa, apesar de termos omitido algumas do Pe. Mamachi, como a indicação da fonte nas obras dos Santos Padres, com intuito de abreviar. Igualmente, não transcrevemos a parte da defesa, em que o mesmo Padre tira do Evangelho iguais exemplos de caridosa aspereza.

“De tais exemplos, pois, nossos amáveis censores bem podem deduzir que a sua crítica, qualquer que seja o motivo, quer se baseie em um princípio moral ou em regras de conveniência social e literária, encontra-se plenamente refutada pelo exemplo de tantos santos, dos quais alguns foram excelentes literatos, ou, pelo menos que ela fica muito desautorizada e reduzida a um valor muito incerto.

“E se agora, à autoridade dos exemplos quisermos reunir à das razões, muito breve e claramente as expôs o Cardeal Pallavicini, no capítulo II do livro I de sua História do Concílio de Trento. Neste capítulo, antes de começar a provar como Sarpi foi ’perverso, de notória malícia, falsário, réu de enormes traições, depreciador de toda religião, ímpio e apóstata‘, o sábio cardeal diz, entre outras coisas, que ’assim como é caridade não perdoar a vida a um malfeitor, para salvar muitos inocentes, assim é caridade não perdoar a fama de um ímpio, para salvar a honra de muitos bons‘. Toda a lei permite que, para defender um cliente de uma falsa testemunha, se mostre em juízo e se prove tudo o que pode infamar esta última, ato que, em outras circunstâncias, seria castigado com gravíssima pena. Por isso eu, que defendo neste tribunal do mundo, não um cliente particular, mas toda a Igreja Católica, seria vil prevaricador, se não estampasse no rosto das testemunhas falsas as nódoas de infâmia que anulem, ou ao menos enfrequeçam o seu testemunho.

“Se, pois, todos julgariam prevaricador o advogado que, podendo demonstrar que quem acusa seu cliente é um caluniador, não o fizesse por razões de caridade, por que então acusar de ter violado a caridade quem cumpriu seu dever contra os perseguidores de toda espécie de inocência? Seria desconhecer a instrução que dá São Francisco de Sales em sua Filotéia, no final do capítulo XX da 2ª parte: “Faço exceção dos inimigos declarados de Deus e de sua Igreja, os quais devem ser difamados tanto quanto possível (sem faltar com a verdade), sendo grande obra de caridade gritar: ‘o lobo!’, quando está entre o rebanho, ou visível onde quer que se encontre.”

 

Assim se exprime La Civiltá Cattolica (vol. I, série V, página 27), cujo artigo tem a força de sua elevada e respeitabilíssima origem; a força das razões irrefutáveis que aduz; a força, por fim, dos gloriosos testemunhos que apresenta. Parece-nos que muito menos era preciso para convencer quem não seja liberal, ou miseravelmente contaminado de liberalismo.

28. Se há ou pode haver na Igreja ministros de Deus atacados do horrível contágio do liberalismo

Por desgraça, é muito comum que se encontrem eclesiásticos contaminados de liberalismo, o qual se favorece em grande medida deste fato. Nestes casos, a singular teologia de certa gente converte em argumento de grande peso a opinião ou os atos de tal ou qual eclesiástico; disto tivemos experiências deploráveis em todos os tempos na Espanha católica. Convém, pois, tratar deste ponto ressalvando todos os respeitos, e perguntar com sinceridade o seguinte: Pode haver ministros da Igreja manchados de liberalismo?

Sim, amigo leitor, sim, infelizmente pode haver também ministros da Igreja que sejam liberais exaltados, liberais moderados ou eivados de liberalismo, exatamente como entre os leigos. Não está isento o ministro de Deus de pagar o miserável tributo à fraqueza humana, e por conseguinte, várias vezes o tem pago ao erro contra a fé.

E que tem isto de extraordinário, se não houve jamais uma única heresia na Igreja de Deus que não tenha sido criada ou propagada por um eclesiástico? Mais ainda, é historicamente certo que, se desde o começo não houvesse clérigos a seu serviço, em nenhum século as heresias teriam causado problemas ou se desenvolvido.

O clérigo apóstata é o primeiro fator que busca o diabo para realizar sua obra de rebelião. Necessita apresentá-la com aparência de autoridade aos olhos dos incautos, e para isso nada lhe serve tanto como a firma de um ministro da Igreja. E como infelizmente nunca faltam nela clérigos corrompidos em seus costumes, corrupção por onde mais comumente a heresia caminha; ou cegos de soberba, causa também muito freqüente de todo erro; daí que a este último, sob todas as formas e em todas as manifestações, nunca lhe tenham faltado apóstolos e fautores eclesiásticos.

Judas, que começou em seu próprio apostolado a murmurar e a semear suspeitas contra o Salvador, e acabou por vendê-lo a seus inimigos, é o primeiro tipo do sacerdote apóstata e semeador de cizânia entre seus irmãos. Ora, notai bem, Judas foi um dos doze primeiros sacerdotes ordenados pelo próprio Redentor.

A seita dos Nicolaítas originou-se com o diácono Nicolau, um dos sete primeiro diáconos ordenados pelos Apóstolos para o serviço da Igreja, e companheiro de Santo Estêvão, protomártir.

Paulo de Samosata, grande heresiarca do século III, foi bispo de Antioquia.

Novaciano, padre de Roma, foi o pai e fundador do cisma dos Novacianos, que tanto perturbou a Igreja universal.

Melécio, Bispo de Tebaida, foi autor e chefe do cisma dos Melecianos.

Tertuliano, também sacerdote e eloqüente apologista, cai na heresia dos Montanistas e nela morre.

Entre os Priscilianistas espanhóis, que causaram tanto escândalo em nossa pátria no século IV, figuram os nomes de Instâncio e Salviano, dois bispos, desmascarados e combatidos por Higínio, e condenados em um concílio reunido em Saragoça.

De todos os heresiarcas que teve a Igreja, Ário talvez tenha sido o principal. O Arianismo chegou a arrastar consigo tantos reinos como o Luteranismo o fez hoje; Ário era um padre de Alexandria, ressentido de não ter alcançado a dignidade episcopal. Esta seita teve um clero tão numeroso que por muito tempo, em grande parte do mundo, não houve outros bispos e sacerdotes senão os arianos.

Nestório, outro famoso herege dos primeiros séculos da Igreja, foi monge, padre, bispo de Constantinopla e grande pregador. Dele procedeu o Nestorianismo.

Eutiques, autor do Eutiquianismo, era padre e abade de um monastério de Constantinopla.

Vigilâncio, o herege taberneiro tão elegantemente satirizado por São Jerônimo, fora ordenado sacerdote em Barcelona.

Pelágio, autor do Pelagianismo, objeto de quase todas as polêmicas de Santo Agostinho, era monge, e doutrinado nos erros sobre a graça por Teodoro, bispo de Mopsuesta.

O grande cisma dos Donatistas chegou a contar com grande número de clérigos e bispos. Deles diz um historiador moderno (Amat, Hist. de la Iglesia de J. C.): “Todos imitaram logo a altivez de seu chefe Donato. Possuídos de uma espécie de fanatismo de amor-próprio, não houve evidência, nem obséquio, nem ameaça que pudesse apartá-los do seu ditame. Os bispos acreditavam-se infalíveis e impecáveis; e os fiéis que seguiam estas idéias se imaginavam seguros, seguindo os seus bispos mesmo contra toda evidência.”

Sérgio, Patriarca de Constantinopla, foi o pai e doutor dos hereges Monotelistas.

Félix, bispo de Urgel, foi dos Adopcianos.

Constantino, bispo de Natólia; Tomás, bispo de Claudiópolis e outros prelados combatidos por São Germano, patriarca de Constantinopla, caíram na seita dos Iconoclastas.

Do grande cisma do Oriente não precisamos nomear os autores, pois é sabido que o foram Fócio, patriarca de Constantinopla, e seus bispos sufragâneos.

Berengário, o perverso detrator da Sagrada Escritura, foi arcediago da Catedral de Angers.

Wicliffe, um dos precursores de Lutero, era pároco na Inglaterra.

João Huss, seu companheiro de heresia, era também pároco na Boêmia. Os dois foram condenados e executados como chefes dos Wiclefitas e Hussitas.

De Lutero basta recordar que foi monge agostinho de Wittemberg.

De Zuínglio, que foi pároco de Zurique.

De Jansênio, bispo de Iprés, que foi autor do maldito Jansenismo.

O cisma anglicano, promovido pela luxúria de Henrique VIII, foi principalmente apoiado pelo seu favorito, o arcebispo Cranmer.

Na Revolução francesa, os mais graves escândalos na Igreja de Deus foram dados pelos padres e bispos revolucionários. As apostasias que afligiram os homens de bem naqueles tristíssimos tempos causam espanto e horror, e a Assembléia Francesa testemunhou cenas que o leitor pode ler em Henrion ou qualquer outro historiador.

O mesmo sucedeu depois na Itália. Conhecidas são as apostasias públicas de Gioberto, de frei Pantaleão, de Passaglia, e do Cardeal Andrea.

Na Espanha, houve padres nos clubes da primeira época constitucional; padres nos incêndios dos conventos; padres ímpios nas Cortes; padres nas barricadas; padres entre os primeiros introdutores do protestantismo depois de 1869. Sob o reino de Carlos III, houve bispos jansenistas em abundância (veja-se sobre isto o tomo III dos Heterodoxos de Menéndez Pelayo). Muitos deles pediram em suas cartas pastorais a iníqua expulsão da Companhia de Jesus, e muitos a aplaudiram. Hoje mesmo, em várias dioceses espanholas, são conhecidos publicamente alguns padres apóstatas e casados após sua apostasia, como é lógico e natural.

Está portanto constatado que, desde Judas até o ex-padre Jacinto, a raça dos ministros da Igreja traidores de seu Chefe e vendidos à heresia se sucede sem interrupção; que, ao lado e diante da tradição da verdade, há também na sociedade cristã a tradição do erro; que, em contraste com a sucessão apostólica dos ministros bons, o inferno possui uma sucessão diabólica dos ministros pervertidos, o que não deve escandalizar ninguém. Recorde-se a este propósito a sentença do Apóstolo, que não se esqueceu de prevenir-nos: É preciso que haja heresias, para que se manifeste quem são entre vós os verdadeiros fiéis.

29. Que conduta deve observar o bom católico com os ministros de Deus contaminados de liberalismo?

Está bem, dirá alguém ao chegar aqui. Tudo isto é facílimo de compreender, e basta apenas folhear a história para tê-lo por averiguado. Mas o delicado e espinhoso é expor a conduta que deve observar, para com tais ministros da Igreja desviados, o fiel leigo, tão santamente zeloso da pureza de sua fé como dos direitos legítimos da autoridade.

É indispensável estabelecer aqui várias distinções e classificações e responder diferentemente a cada uma delas.

1° - Pode ocorrer que um ministro da Igreja seja publicamente condenado por ela como liberal; neste caso, bastará recordar que todo fiel eclesiástico ou leigo, a quem a Igreja separou do seu seio, deixa de ser católico (quanto ao direito de merecer tal consideração), até que, por meio de uma verdadeira retratação e um formal arrependimento, faça-se outra vez admitido à comunhão dos fiéis. Quando isto ocorre com um ministro da Igreja, trata-se de um lobo; não é pastor, nem sequer ovelha. É necessário evitá-lo, e sobretudo rezar por ele.

2° - Pode dar-se o caso de um ministro da Igreja, caído na heresia, mas sem ter sido ainda oficialmente declarado culpável pela Igreja. Neste caso é preciso agir com maior circunspecção. Um ministro da Igreja caído em erro contra a fé não pode ser oficialmente desautorizado senão por quem tenha sobre ele jurisdição hierárquica. Entretanto, no terreno da polêmica puramente científica, pode ser combatido por seus erros e condenado por eles, deixando sempre a última palavra, ou seja, ou a sentença definitiva à única autoridade infalível do Mestre Universal. A grande regra, a única regra em tudo, estamos a dizer, é a prática constante da Igreja de Deus, segundo aquele adágio de um Santo Padre: Quod semper, quod ubique, quod ab omnibus [1]. Pois bem, assim se procedeu sempre na Igreja de Deus. Simples fiéis perceberam num eclesiástico doutrinas opostas às que comumente se ensinaram como as únicas sãs e verdadeiras; deram o grito de alarme contra elas em seus livros, de viva voz e em seus folhetos, pedindo assim ao magistério infalível de Roma a sentença decisiva. São os latidos do cão que advertem o pastor. Não houve heresia no catolicismo que não tenha começado a ser confundida e desmascarada desta maneira.

3° - Pode dar-se o caso de que o infeliz extraviado seja um ministro da Igreja ao qual estamos particularmente subordinados. É preciso então proceder com temperança e discrição ainda maiores. Deve-se respeitar sempre nele a autoridade de Deus, até que a Igreja o declare deposto dela. Se o erro é duvidoso, deve-se chamar a atenção dos superiores imediatos, a fim de que peçam ao suspeito explicações claras. Se o erro é evidente, nem por isto é lícito colocar-se em rebeldia aberta, mas é preciso contentar-se com a resistência passiva à autoridade, nos pontos em que ela se coloca manifestamente em contradição com as doutrinas reconhecidas como sãs pela Igreja. Deve-se, porém, conservar por ela todo respeito exterior que lhe é devido, obedecer-lhe no que não pareça doutrina condenada ou danosa, resistir-lhe pacífica e respeitosamente no que se aparte do sentimento comum católico.

4° - Pode dar-se o caso (e é o mais comum) de que o extravio de um ministro da Igreja não verse sobre pontos concretos de doutrina católica, mas sobre certas apreciações de fatos ou pessoas ligadas mais ou menos com ela. Neste caso, a prudência cristã aconselha olhar com prevenção para esse padre contagiado de liberalismo, preferir aos seus conselhos os de quem não tenha tais contágios, e de recordar esta máxima do Salvador: “Um pouco de levedura faz fermentar toda a massa”. Por conseguinte, uma prudente desconfiança é neste caso a regra de maior segurança; e neste ponto, como em tudo, pedir luz a Deus, conselhos a pessoas dignas e de fé íntegra, procedendo sempre com grande reserva contra quem não julga muito retamente ou não fale muito claro sobre os erros da atualidade.

E eis tudo o que podemos dizer sobre este ponto, cheio de inumeráveis dificuldades, e impossível de resolver em tese geral. Não esqueçamos uma observação que derrama torrentes de luz: conhece-se melhor o homem por suas afeições pessoais, do que por suas palavras e seus escritos. Ser amigo de liberais, mendigar seus favores e louvores é, regularmente falando, para um padre, prova mais que duvidosa de ortodoxia doutrinal.

Que nossos amigos reparem neste fenômeno, e verão quão segura norma e quão infalível critério lhes dá.


[1] “O que foi sempre crido por toda a parte e por todos”, São Vicente de Lerins (primeira metade do século V).

30. O que se deve pensar das relações que o papa mantém com governos e personagens liberais

Mas então, brada alguém, que devemos pensar das relações e amizades que a Igreja tem com os governos e as pessoas liberais, ou, o que é o mesmo, com o liberalismo?

Resposta. Devemos julgar que são relações e amizades oficiais, e nada mais. Não supõem afeto algum particular às pessoas com quem se mantêm, e muito menos aprovação de seus atos, e muitíssimo menos adesão às suas doutrinas ou sanção delas. Este é um ponto que convém esclarecer, porque sobre ele os sectários do liberalismo armam grande aparato de teologia liberal para combater a sã intransigência católica.

Convém antes de tudo observar que há na Igreja de Deus dois ministérios: um que chamaremos apostólico, relativo à propagação da fé e à salvação das almas; e outro que poderíamos muito bem chamar de diplomático, relativo às relações humanas com os poderes da terra.

O primeiro é o mais nobre; é, por assim dizer, o primário e o essencial. O segundo é inferior e subordinado ao primeiro, do qual é unicamente o auxiliar. No primeiro a Igreja é intransigente e intolerante; vai direto ao seu fim, e prefere romper-se a dobrar-se: Frangi non flecti. Veja-se apenas a história das suas perseguições. Trata-se de direitos divinos e de deveres divinos, e portanto não cabe neles atenuação nem transação possíveis. No segundo ministério, a Igreja é condescendente, benévola e plena de paciência. Ela discute, solicita, negocia, elogia com o fim de abrandar, cala-se às vezes para melhor triunfar, recua talvez para melhor avançar e para tirar em seguida um melhor partido da situação. Nesta ordem de relações sua divisa poderia ser: flecti non frangi. Trata-se aqui de relações humanas, e estas admitem certa flexibilidade e uso de recursos especiais.

Neste terreno, tudo o que não é declarado mau e proibido pela lei comum, nas relações ordinárias entre os homens, é licito e bom. Mais claro: nesta esfera a Igreja julga poder valer-se, e vale-se de fato, de todos os recursos que pode utilizar uma diplomacia honrada.

Quem se atreverá a censurá-la, seja porque envia e recebe embaixadores de governos maus e mesmo de príncipes infiéis; seja porque dá e recebe dos mesmos, presentes, obséquios e honras diplomáticas; porque oferece distinções, títulos, condecorações a seus representantes; honra com frases de cortesia e urbanidade as suas famílias e concorre a suas festas por meio de seus representantes?

Porém logo os tontos e os liberais vêm a nosso encontro: “Por que razão deveríamos detestar o liberalismo e combater os governos liberais, quando o papa trata com eles, reconhece-os, e os cobre de distinções?” Malvado ou estúpido — talvez os dois juntos! —, escuta a comparação que vou fazer e julga em seguida.

Supõe que és pai de família e tens quatro ou seis filhas, a quem educas com a mais rigorosa honestidade. Em frente à tua casa ou simplesmente separadas de ti por uma parede vivem umas vizinhas infames. Tu recomendas continuamente a tuas filhas a não ter nenhum tipo de relação com aquelas mulheres de má vida. Tu as proíbe até de olhá-las e saudá-las. Queres que tuas filhas tenham-nas por perversas e corrompidas e que aborreçam sua conduta e suas idéias; que tomem cuidado para em nada se assemelharem a elas, nem pela linguagem, nem pelas obras, nem pelos trajes. Tuas filhas, boas e dóceis, têm o dever evidente de seguir as tuas ordens, que são as de um pai de família prudente e muito ajuizado. Mas eis que uma questão se suscita entre ti e essa vizinhança sobre um ponto de interesse comum, sobre demarcação de limites, ou passagem de águas, por exemplo; e torne-se preciso que tu, honrado pai, sem deixar de o ser, venha a tratar com uma daquelas infames mulheres, que por isso não deixam de ser infames, ou pelo menos com quem as represente. Deves tratar do assunto e ter encontros, e falas e fazes os cumprimentos e fórmulas de cortesia usuais na sociedade, e procuras de todos os modos entender-te e chegar a um acordo sobre a questão em litígio.

Terão razão tuas filhas, se disserem logo: “Já que nosso pai trata com essas vizinhas más, não devem ser tão más como ele diz. Podemos tratar com elas nós também, reputar como bons seus costumes, modestos os seus trajes, e louvável e honrada sua maneira de viver”?

Diz-me: não falariam como néscias tuas filhas, se falassem assim? Apliquemos agora a parábola ou comparação.

A Igreja é a família dos bons (ou dos que deveriam sê-lo e que ela deseja que o sejam); mas está rodeada de governos perversos em maior ou menor grau. Ela diz então a seus filhos: “Detestai as máximas desses governos; combatei-os; sua doutrina é erro, suas leis, iniqüidade”. Porém, ao mesmo tempo, nas questões que envolvem interesse próprio ou de ambos, ela se encontra na necessidade de tratar com os chefes ou representantes desses governos maus; e efetivamente trata com eles, recebe seus cumprimentos e usa para com eles das fórmulas de urbanidade diplomática usuais em todos os países. Pactua com eles sobre assuntos de interesse comum, procurando tirar o melhor partido possível de sua situação entre esses vizinhos. É isto mau? Sem dúvida, não. Mas não é ridículo que saia logo um católico tomando tal conduta como uma aprovação de doutrinas que a Igreja não cessa de condenar, e como uma aprovação de atos que ela não cessa de combater?

Vejamos: por acaso a Igreja aprova o Corão, quando trata de potência a potência com os sectários do Corão? Aprova a poligamia, quando recebe presentes e embaixadas do Grão-Turco? Pois bem! Do mesmo modo, a Igreja não aprova o liberalismo, quando ela condecora seus reis e ministros, quando lhes envia suas bênçãos, que são simples fórmulas de cortesia cristã que o papa outorga até aos protestantes. É um sofisma pretender que a Igreja autoriza com tais atos o que por outros não deixa de condenar. Seu ministério diplomático não anula seu ministério apostólico; e é neste último que se deve buscar a explicação das aparentes contradições de seu ministério diplomático.

Assim se comporta o papa com os chefes das nações, assim o bispo com os da diocese, assim o pároco com os da paróquia. Cada um sabe até onde vão suas relações oficiais e diplomáticas e qual é o seu verdadeiro sentido; só os infelizes sectários do liberalismo e os que estão contaminados dele ignoram isto, ou fingem ignorá-lo.

31. Dos caminhos por onde mais frequentemente os católicos caem no liberalismo

São vários os caminhos por onde o fiel cristão cai no erro do liberalismo, e importa sobremaneira apontá-los aqui, tanto para compreender por seu estudo a universalidade desta seita, como para prevenir os incautos contra suas armadilhas e seus perigos.

Muito freqüentemente, cai-se na corrupção do coração pelos erros da inteligência; é todavia mais freqüente cair no erro da inteligência pela corrupção do coração. A história das heresias demonstra claramente este fato. Seus começos apresentam quase sempre o mesmo caráter: é um ressentimento de amor-próprio, ou um agravo que se queira vingar; é uma mulher que faz o heresiarca perder o juízo e a alma, ou uma bolsa de dinheiro pela qual ele vende sua consciência. Quase sempre o erro se origina, não de profundos e laboriosos estudos, mas daquelas três cabeças de hidra que São João aponta e que chama de concupiscentia carnis, concupiscentia oculorum, superbia vitae[1]. É por aí que se cai em todos os erros, por aí que se vai ao liberalismo. Vejamos esses caminhos nas formas mais usuais:

1° - O homem torna-se liberal por um desejo natural de independência e vida livre.

O liberalismo é necessariamente simpático à natureza depravada do homem, assim como o catolicismo lhe é repulsivo por sua própria essência. O liberalismo é emancipação, o catolicismo é coerção. Ora, o homem decaído ama por uma certa tendência muito natural um sistema que legitime e santifique o orgulho de sua razão e o desenfreio de seus apetites. Daí que assim como a alma, em suas nobres aspirações, é naturalmente cristã, como disse Tertuliano, assim pode-se igualmente dizer que o homem, pelo vício de sua origem, nasce naturalmente liberal. É, pois, lógico que se declare formalmente liberal, logo que comece a compreender que do liberalismo virá proteção para todos os seus caprichos e desenfreios.

2° - Pelo desejo de progredir. O liberalismo é hoje em dia a idéia dominante; ele reina em todas as partes e principalmente na esfera oficial. É, portanto, recomendação segura para fazer carreira.

Sai o jovem do seu lar e, olhando para as distintas vias que conduzem à fortuna, ao renome ou à glória, percebe que em todos é condição necessária ser homem do seu século, ser liberal. Não ser liberal é criar para si mesmo a maior de todas as dificuldades. É necessário, pois, heroísmo para resistir ao tentador, que lhe fala, como a Cristo no deserto, mostrando-lhe um futuro impressionante: haec omnia tibi dabo si cadens adoraveris me: “Tudo te darei se, prostrado, me adorares”. Ora, os heróis são raros. É pois natural que a maior parte da juventude comece sua carreira afiliando-se ao liberalismo. Isto proporciona elogios nos jornais, recomendação de poderosos patronos, reputação de esclarecidos e letrados. O pobre ultramontano precisa de mérito cem vezes maior para dar-se a conhecer e criar nome; e a juventude é geralmente pouco escrupulosa. O liberalismo, ademais, é essencialmente favorável à vida pública que a juventude tanto ama. Ele tem em perspectiva deputações, comissões, redações etc., que constituem o organismo da sua máquina oficial. É, pois, maravilha de Deus e da sua graça encontrar-se um jovem que deteste tão pérfido corruptor.

3° - Pela cobiça. A desamortização[2] foi e continua a ser a principal fonte de prosélitos para o liberalismo. Esta iníqua espoliação dos bens eclesiásticos foi decretada tanto para privar a Igreja de seus meios de influência humana, como para adquirir com sua ajuda fervorosos adeptos da causa liberal. Os próprios corifeus do liberalismo o confessaram, quando foram acusados de ter dado quase de graça a seus amigos as ricas posses da Igreja. E ai daquele que um dia comeu o fruto do jardim alheio! Um campo, uma herança, umas casas que pertenceram ao convento ou à paróquia, e que hoje estão nas mãos de tal ou qual família, encadeiam esta família para sempre no erro liberal. Na maior parte dos casos, não há esperança provável de que renunciem ao liberalismo. O demônio revolucionário soube erguer entre eles e a verdade essa barreira insuperável. Temos visto ricos e influentes lavradores, católicos puros e fervorosos até 1835, e de então para cá liberais decididos e contumazes. Quereis a explicação? Observai aqueles campos irrigados, aquelas terras de trigo ou aqueles bosques, outrora propriedades do mosteiro. Com eles o lavrador de quem falamos aumentou suas fazendas, com eles vendeu sua alma e sua família à Revolução. A conversão de tais injustos possuidores é moralmente impossível. Todos os argumentos de amizade, todas as invectivas dos missionários, todos os remorsos de consciência tropeçam na dureza de sua alma, entrincheirada atrás de suas aquisições sacrílegas. É a desamortização que fez e ainda está fazendo o liberalismo. Esta é a verdade.

Tais são as causas ordinárias da perversão liberal, e a elas podem reduzir-se todas as demais. Quem tiver mediana experiência do mundo e do coração humano dificilmente poderá apontar outras.


[1] I Jo II, 16: “concupiscência da carne, concupiscência dos olhos, orgulho da vida.”

[2] Ver nota 1 do Capítulo II.

32. Causas permanentes do liberalismo na sociedade atual

Além desses caminhos por onde se vai ao liberalismo, há o que poderíamos chamar de causas permanentes dele na sociedade atual, e é nestas que devemos buscar as razões pela quais a sua extirpação se torna tão difícil.

São em primeiro lugar causas permanentes do liberalismo as mesmas que apontamos antes como caminhos e declives que conduzem a ele. Diz a filosofia: Per quae res gignitur, per eadem et servatur et augetur: “as coisas comumente se conservam e aumentam pelas mesmas causas que por que nasceram”. Porém, além dessas causas podemos apontar algumas outras que oferecem caráter especial.

1° - A corrupção dos costumes. A maçonaria a decretou, e à letra se cumpre seu programa infernal. Espetáculos, livros, quadros, costumes públicos e privados, tudo se procura saturar de obscenidade e lascívia. O resultado é infalível: de uma geração imunda, necessariamente sairá uma geração revolucionária. Assim se nota o empenho que tem o liberalismo em dar rédea solta a toda imoralidade. Sabe bem quanto esta o serve. É seu apóstolo e propagandista natural.

2° - O jornalismo. É incalculável a influência que exercem sem cessar os muitos periódicos difundidos todo dia e por todas as partes pelo liberalismo. Eles fazem — parece mentira! — com que o cidadão de hoje, queira ou não, tenha de viver dentro de uma atmosfera liberal. O comércio, as artes, a literatura, a ciência, a política, as notícias nacionais e estrangeiras, quase tudo chega por canais liberais, e tudo, por conseguinte, toma cor e sabor liberal. De tal modo que, sem perceber, o homem pensa, fala e age à moda liberal; tal é a maléfica influência deste ambiente envenenado. O pobre povo o traga com mais facilidade que ninguém, por sua natural boa-fé. Traga-o em verso, em prosa, em gravuras, a sério ou em piadas, na praça pública, na oficina, no campo, por toda parte. Este magistério liberal apoderou-se dele e não o deixa um instante sequer. E a sua ação se torna ainda mais perniciosa pela condição especial do discípulo, como mostraremos agora.

3° - A ignorância quase geral em matéria de religião. O liberalismo, ao rodear por todas as partes o povo de mestres embusteiros, aplicou-se muito habilmente em romper suas comunicações com o único mestre que lhe poderia fazer notar o embuste: a Igreja. Todo o empenho do liberalismo, de cem anos para cá, tem sido de paralisar a Igreja, de emudecê-la, para lhe deixar no máximo um caráter oficial e impedir-lhe todo contato com o povo. Foi este o objetivo — confessaram os liberais — da destruição dos conventos e mosteiros, das travas impostas ao ensino católico, do empenho tenaz em desprestigiar e ridicularizar o clero. A Igreja se vê rodeada de laços artificiosamente armados, para que em nada perturbe a marcha avassaladora do liberalismo. As concordatas, tal como se cumprem hoje em quase todas as nações, são como outras tantas argolas para apertar sua garganta e paralizar seus movimentos. Entre o clero e o povo abriu-se, e continua-se abrindo, mais e mais a cada dia, um abismo de ódios, preocupações e calúnias. De modo que uma parte do nosso povo, cristão pelo batismo, sabe tão pouco de sua religião quanto das de Maomé e de Confúcio. Procura-se, ademais, evitar todo contato possível com a paróquia, pela instituição do registro civil, matrimônio civil, sepultura civil etc., o fim dessas medidas é conduzir à ruptura de todo laço entre o povo e a Igreja. É um programa separatista completo, em cuja unidade de princípios, meios, e fins, se vê bem clara a mão de Satanás.

Poderíamos ainda apontar outras causas, mas a extensão desta obra não o permite, e nem todas se poderiam dizer aqui.

33. Quais são os remédios mais eficazes e oportunos que devem ser aplicados aos povos dominados pelo liberalismo

Indicaremos alguns.

1° - A organização de todos os bons católicos, quer sejam numerosos ou não. Em cada localidade, é preciso que se conheçam, se vejam, se reúnam. Não deve haver hoje uma cidade ou vila católica que não tenha o seu núcleo de homens de ação. Isto atrai os indecisos, encoraja os hesitantes, contrapesa a influência do que dirão, faz forte a cada um com a força de todos. Ainda que sejais apenas uma dezena de corações firmes, fundai uma academia de juventude católica, uma conferência ou ao menos uma confraria. Ponde-vos logo em contato com uma sociedade análoga do povo vizinho ou da capital. Apoiai-vos deste modo em toda fronteira, associações com associações; formando como que a famosa testudo que formavam os legionários romanos, juntando seus escudos, e isto vos tornará invencíveis. Assim unidos, por poucos que sejais, levantai ao alto a bandeira de uma doutrina sã, pura, intransigente, sem ambigüidades nem alteração, sem pacto nem aliança com o inimigo. A firme intransigência tem seu aspecto nobre, simpático e cavalheiresco. É belo ver um homem atingido como um penhasco por todas as ondas e todos os ventos, e que permanece fixo, imóvel, sem retroceder. Bom exemplo, sobretudo, bom exemplo constante! Pregai com toda a vossa conduta, e pregai em todas as partes com ela. Já vereis como vos será fácil, primeiro, impor respeito, logo admiração, depois simpatia. Não vos faltarão prosélitos. Oh, se todos os católicos sãos compreendessem o brilhante apostolado secular que desta maneira podem exercer em suas respectivas comunidades! Unidos ao pároco, aderindo como a hera ao muro paroquial, firmes como seu velho campanário, podem desafiar toda tempestade e fazer frente a toda borrasca.

2° - Os bons jornais. Escolhei, entre os bons jornais, o melhor e que mais se adapte às necessidades e inteligência dos que os rodeiam. Lede-o, mas não vos contenteis com isto. Dai-o a ler, explicai-o e contai-o, fazei dele vossa base de operações. Fazei-vos correspondentes da sua administração, cuidai das assinaturas e pedidos, facilitai esta operação, que é a mais custosa de todas, aos pobres operários e lavradores. Dai-o aos jovens que começam suas carreiras, proponde-o pelo belo de suas formas literárias, pelo seu estilo acadêmico, pela sua vivacidade e elegância. Começarão gostando do molho, e acabarão comendo o cozido. Assim trabalha a impiedade, e assim devemos nós trabalhar. Um bom jornal é uma necessidade neste século. Diga-se o que se quiser de seus defeitos, nunca igualarão suas suas vantagens e benefícios. Convém, ademais, favorecer a circulação de qualquer outro impresso de caráter análogo: o folheto oportuno, o discurso notável, a carta pastoral enérgica etc.

3° - A escola católica. Onde o mestre oficial for um bom católico e de confiança, seja ele apoiado com todas as forças; onde não for, procure-se falar claramente para desautorizá-lo. Um homem assim é a pior praga da localidade. É necessário que todo mundo conheça por diabo aquele que é diabo, a fim de que não se lhe entregue incautamente o principal, que é a educação. Sendo assim, busque-se um modo de colocar escola contra escola, bandeira contra bandeira. Se possível, entregai-a a religiosos; se não os há, ponha-se um leigo íntegro à frente desta boa obra. Que a escola seja gratuita, e que abra no horário mais conveniente para todos: de manhã, de tarde, de noite. Nos dias festivos, que se atraiam as crianças, presenteando-as e animando-as. E que se lhes diga claramente que a outra escola do professor mau é a escola de Satanás. Um célebre revolucionário, Dantón, gritava sem cessar: “Audácia! Audácia!” Nosso grito de sempre há de ser: “Franqueza! Franqueza! Luz! Luz!” Nada vale mais para afugentar esses corvos do inferno, que só podem seduzir com a obscuridade.

34. Sinal claríssimo com o qual se poderá conhecer facilmente o que procede do espírito verdadeiramente católico e o que procede do espírito contaminado de liberalismo ou radicalmente liberal

Vejamos agora outra coisa, a propósito da última palavra do capítulo anterior. A obscuridade é o grande auxiliar da iniquidade. Qui male agit odit lucem, disse o Senhor. Daí o empenho constante da heresia em envolver-se entre névoas. Não há grande dificuldade em descobrir o inimigo que se apresenta de viseira levantada, ou em reconhecer como liberais os que, desde o princípio declaram que o são. Mas esta franqueza não convém ordinariamente à seita. Assim, pois, é preciso adivinhar o inimigo por trás do disfarce; e este muitas vezes é hábil e extremamante cauteloso. Acrescentemos, além disso, que na maioria das vezes o olho que terá de reconhecê-lo não é um olho de lince; torna-se necessário, portanto, um critério fácil, simples, popular para distinguir a cada momento o que é obra católica e o que é infernal armadilha do liberalismo.

Sucede freqüentemente que, no anúncio de um novo projeto, uma nova empresa, uma nova instituição, o fiel católico não consegue distinguir prontamente a que tendências obedece aquele movimento; e se por conseguinte convém a ele associar-se ou opor-se com todas as forças. Isto ocorre sobretudo quando o inferno procura astuciosamente tomar alguma das cores mais atrativas de nossa bandeira, ou mesmo empregar, em certas ocasiões, nosso próprio idioma. Nestes casos, muitos infelizmente fazem o jogo de Satanás, persuadidos de boa-fé que contribuem com uma obra católica! Mas, dirão: “Cada um pode consultar a Igreja, cuja palavra infalível dissipa toda incerteza”. Muito bem, mas a autoridade da Igreja não se pode consultar a cada momento nem para cada caso particular. A Igreja costuma deixar sabiamente estabelecidos os princípios e as regras gerais de conduta; mas a aplicação deles aos mil e um casos concretos de cada dia, ela deixa ao critério prudencial de cada fiel. E os casos desta natureza apresentam-se todos os dias, e devem ser resolvidos instantaneamente, em plena marcha. O jornal que aparece, a associação que se estabelece, a festa pública a que se convida, a assinatura que se pede, tudo isto pode ser de Deus ou do diabo, e o que é pior, pode ser do diabo apresentando-se, como temos dito, com toda a gravidade mística e compostura das coisas de Deus. Como guiar-se, pois, em tais labirintos?

Eis duas regras, de caráter bem prático, que nos parecem dever servir a todo cristão, para que em terreno tão escorregadio possa pisar com segurança.

1° - Observar cuidadosamente que classe de pessoas promovem o assunto. É a primeira regra de prudência e senso comum. Funda-se naquela máxima do Salvador: Não pode uma árvore má dar bons frutos. É evidente que os liberais estão naturalmente inclinados a produzir escritos, obras e trabalhos liberais, lamentavelmente informados de espírito liberal, ou pelo menos contaminados dele. Vejam-se, pois, quais são os antecedentes daquela, ou daquelas pessoas que organizam ou promovem a obra em questão. Se são tais que não podeis confiar inteiramente em suas doutrinas, olhai com cautela todas as suas empresas. Não as reproveis imediatamente, pois há um axioma de teologia que diz que nem todas as obras dos infiéis são pecados, e o mesmo se pode dizer das obras dos liberais. Porém não as considereis imediatamente como boas. Desconfiai delas, sujeitai-as a um detido exame, aguardai os resultados.

2° - Examinar o tipo de pessoas que louvam a obra em questão. É regra ainda mais segura que a anterior. Há no mundo atual duas correntes públicas e perfeitamente distintas. A corrente católica e a corrente maçônica ou liberal. A primeira é produzida, ou melhor, é refletida nos jornais católicos. A segunda é refletida e materialmente produzida cada dia pelos jornais revolucionários. A primeira busca sua inspiração em Roma. A segunda é inspirada pela maçonaria.

Anuncia-se um livro? Publicam-se as bases de um projeto? Olhai se a corrente liberal o aprova e recomenda e o toma por sua. Se sim, o livro e o projeto estão julgados: são coisa sua, porque é evidente que o liberalismo, ou o diabo que o inspira, reconhece imediatamente o que lhes é prejudicial ou favorável, e não são tão néscios a ponto de ajudar os que lhes são contrários, ou de oporem-se aos que favorecem seus projetos. Os partidos e as seitas têm um instinto ou intuição particular (olfactus mentis, como disse um filósofo) que lhes revela a priori o que para eles é bom e o que é hostil. Desconfiai, pois, de tudo o que louvam e admiram os liberais. Se assim o fazem, é claro que reconheceram no objeto, ou origem, ou meios, ou fins favoráveis ao liberalismo. Não costuma equivocar-se nisto o claro instinto da seita. Mais fácil é que se equivoque um jornal católico, louvando e recomendando como boa uma coisa que em si talvez não o seja muito. Em verdade, mais confiamos no olfato de nossos inimigos do que no de nossos próprios irmãos. Ao homem bom, cegam-no às vezes certos escrúpulos de caridade e natural costume de pensar bem, a ponto de ver intenções boas onde, por desgraça, não existem. Não é assim com os maus. Estes desde logo disparam artilharia pesada contra quem não concorda com seu modo de pensar, e tocam, incansáveis, a trombeta de todos os reclames em favor do que, por um lado ou por outro, ajuda a sua maléfica propaganda. Desconfiai, pois, de tudo que vossos inimigos recomendam.

Retiramos de um jornal os seguintes versos, que poderiam ser melhores, mas não poderiam ser mais verdadeiros.

Dizem assim, falando do liberalismo:

Diz que sim? Pois é mentira.

Diz que não? Pois é verdade.

O que ele chama iniquidade

Tu como virtude o mira;

Ao que persegue com ira,

Tem tu por homem honrado;

Mas evita com cuidado

Quem ele por bom queira dar-te;

Fazendo assim da tua parte,

Já o terá estudado.

Parece-nos que estas duas regras de senso comum, que antes poderíamos chamar de bom senso cristão, bastam, se não para nos fazer julgar definitivamente toda a questão, ao menos para nos impedir de tropeçar facilmente nas escabrosidades deste tão acidentado terreno em que marchamos e lutamos hoje.

Não se esqueça o católico, sobretudo o de nosso século, que a terra em que pisa está minada de todos os lados pelas sociedades secretas, que são as que dão voz e tom à polêmica anti-católica, e às quais servem inconscientemente muitas vezes ainda os mesmos que mais detestam seu trabalho infernal. A luta de hoje é, principalmente, subterrânea e contra um inimigo invisível, que raras vezes se apresenta com sua verdadeira divisa. É preciso, pois, cheirá-lo, mais do que vê-lo. É preciso adivinhá-lo com o instinto, mais do que apontá-lo com o dedo. Bom olfato, pois, e senso prático são mais necessários que raciocínios sutis e laboriosas teorias. O binóculo que recomendamos a nossos amigos nunca nos induziu ao erro.

35. Quais são os bons e quais os maus jornais, e o que se deve pensar do bem que se encontra nos maus e do mal que se encontra nos bons

Supondo que a corrente, boa ou má, que aplaude ou condena uma coisa, deve constituir, para o católico simples, um critério comum e familiar de verdade, para viver ao menos com cautela e prevenido; e supondo que os jornais costumam ser o meio em que mais e melhor transparece esta corrente, e aos quais, portanto, se torna necessário recorrer em mais de uma ocasião, pode perguntar-se aqui: Quais devem ser, para o católico de hoje, os jornais que lhe inspirem verdadeira confiança? Ou melhor: Quais devem inspirar-lhe pouquíssima, e quais nenhuma?

Primeiramente, é claro (per se patet) que os jornais que se honram (ou melhor, se desonram) chamando a si mesmos liberais e considerando-se como tais, não devem nos inspirar nenhuma confiança. Como nos fiar a eles, se são precisamente os inimigos contra quem temos de prevenir-nos a toda hora e a quem temos de hostilizar constantemente? Este ponto está portanto fora de toda discussão. O que hoje se chama liberal, certamente o é; e por conseguinte é nosso formal inimigo e da Igreja de Deus. Não se deve, pois, levar em consideração suas recomendações ou aprovação, a menos que o façamos para olhar como suspeito tudo que acerca de religião ele recomende ou aprove.

Há uma classe de jornais, contudo, não tão descarada e pronunciada, que gosta de viver na ambigüidade de cores indefinidas e tintas indecisas. A toda hora ela se proclama católica, e por vezes detesta e abomina o liberalismo, ao menos como palavra. É comumente conhecida pelo nome de católico-liberal. Desta é preciso confiar menos ainda, e não se deixar ludibriar com seus fingimentos e pietismo. É certo que, apurado o caso, predominará nela a tendência liberal sobre a católica, ainda que entre ambas se proponha uma convivência fraterna. Assim se viu sempre e assim deve logicamente suceder.

A corrente liberal é mais fácil de seguir, em prosélitos é a mais numerosa, e ao amor-próprio a mais simpática. A corrente católica é mais áspera na aparência, tem menos seguidores e amigos, exige que se navegue sempre contra o impulso natural e corrompido das idéias e paixões. Em um coração ambíguo e vacilante, como o dos liberais, é portanto normal que esta corrente católica sucumba e que a corrente liberal prevaleça. Não se deve, pois, confiar nos casos difícies da imprensa católico-liberal. Mais ainda, esta apresenta o inconveniente de que seus juízos não nos servem, bem como os da imprensa liberal, para formularmos a prova contraditória, pela simples razão de que seu juízo não é absoluto e radical em nada, mas sim regularmente oportunista.

A imprensa boa é a imprensa integralmente boa, ou seja, a que defende o bem em seus princípios bons e em suas aplicações boas; a mais oposta a todo mal reconhecidamente mal, opposita per diametrum, como diz Santo Inácio, no livro de ouro de seus Exercícios; a que está do lado oposto das fronteiras do erro; a que olha sempre o inimigo de frente; e não a que por vezes anda em suas filas, ou apenas se opõe a certas evoluções suas; a que é inimiga do mal em tudo, porque é no todo que o mau é mau, ainda que, casualmente, possa trazer consigo algum bem.

Vamos fazer uma observação para explicar esta nossa última frase, que a muitos parecerá atrevida.

Os jornais maus costumam às vezes ter algo de bom. Que se deve pensar deste bem que por vezes os jornais maus trazem consigo? Deve-se pensar que não deixam de ser maus, porque é má a sua natureza intrínseca ou doutrina. Antes, este bem pode e costuma ser um artifício satânico para que se recomende o jornal, ou pelo menos para dissimular o mal essencial que ele traz consigo. Algumas qualidades acidentalmente boas não retiram de um ser mau sua natureza má. Um assassino ou um ladrão não são bons porque recitam às vezes uma Ave Maria ou dão esmola a um pobre. São maus, malgrado suas obras boas, porque o conjunto essencial dos seus atos é mau, assim como suas tendências habituais. E se se servem do bem que fazem para mais autorizar a sua maldade, resulta que, mesmo o que em si seria ordinariamente bom, torna-se mau pelo fim a que se propõe.

Ao contrário, sucede algumas vezes que jornais bons caem em tal ou qual erro de doutrina, ou em algum excesso de paixão, e fazem efetivamente algo que não se pode aprovar. Devem por isso ser chamados de maus? Devem ser reprovados? Não, por uma razão inversa, ainda que análoga. O mal neles é acidental, e o bem é substancial e ordinário. Um pecado ou alguns não fazem mau a um homem, sobretudo se protesta contra eles pelo arrependimento e pela emenda. Só é mau quem o é em plena consciência de causa, habitualmente, e protesta querer sê-lo. Os jornalistas católicos não são anjos, mas homens frágeis, miseráveis, e pecadores. Querer, pois, condená-los por um ou outro erro, uma ou outra indiscrição ou excesso, é fazer do bom e do virtuoso um conceito farisaico e jansenista, em desacordo com todos os princípios da sã moral. Se se deve julgar desta maneira, que instituição haverá boa e digna de estima na Igreja de Deus?

Em resumo: há jornais bons e jornais maus; dentre estes últimos devem incluir-se os ambíguos ou indefinidos. O que é mau não se torna bom por ter algumas coisas boas, e o que é bom não se torna mau por causa de alguns defeitos e mesmo de alguns pecados em que incorra. Se o bom católico julgar e decidir lealmente com base nestes princípios, raramente se equivocará.