# CONTRA A DEVOTIO MODERNA # As Armadilhas do Simbolismo: O Caso de Jean Hani
![](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000136-52b7252b74/jh.jpeg?ph=4df81238fe) **Jean Hani** ![](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000137-7ce097ce0a/etienne-couvert-qm9kuj94yaody9oc2m8pheul3dqasj5ar6vrmxae2g.jpeg?ph=4df81238fe) **Etienne Couvert**
30/12/2024 Tradução por: Prof. Gabriel Sapucaia Autor: Etienne Couvert (C.B nº 15) ##### **As Armadilhas do Simbolismo: O Caso de Jean Hani** O simbolismo é a utilização de elementos materiais para evocar e melhor compreender as realidades espirituais. Trata-se, portanto, de um procedimento comum a todas as épocas, povos e religiões. O cristianismo, também, recorreu ao simbolismo para expressar suas próprias realidades, utilizando elementos naturais universais. Facilmente se percebe as ambiguidades que tal recurso pode conter, e, em breve, precisaremos publicar um estudo sobre esta questão importante: o interesse e o perigo do simbolismo. Contudo, hoje nos deparamos com algo além da ambiguidade natural — um uso deliberadamente confuso, destinado a favorecer a transição do simbolismo cristão para um simbolismo gnóstico e panteísta. O artigo sobre a subversão da ideia de criação na obra de Jean Borella, publicado no *Boletim nº 13*, já forneceu vários exemplos desse uso fraudulento. Outro caso dos mais interessantes é o de Jean Hani, helenista acadêmico, especialista em religião grega e membro do *Centro de Estudos das Mitologias* da Universidade de Paris Nanterre. O Sr. Jean Hani publicou recentemente duas obras que obtiveram certo sucesso entre os católicos tradicionalistas: *"O Simbolismo do Templo Cristão"* e *"A Divina Liturgia"*. Nós as lemos com toda a atenção necessária. Inicialmente, ficamos impressionados com o conteúdo gnóstico desses livros. Posteriormente, uma análise mais detalhada permitiu-nos reconhecer no Sr. Jean Hani um verdadeiro discípulo de René Guénon. Também soubemos que ele participa de encontros e colóquios esotéricos em companhia de figuras como Jean Borella, Daniel Cologne, Frithjof Schuon e outros conhecidos guénonianos. Tal situação deveria servir como alerta para os cristãos, especialmente para os sacerdotes, contra uma leitura tão perigosa. Infelizmente, sabemos por experiência que nossos amigos tradicionalistas se lançam, de forma imprudente e irrefletida, em toda uma literatura esotérica que lhes parece a quintessência da mística. Eles não percebem que esses senhores gnósticos lhes armam uma cilada tão antiga quanto o próprio cristianismo: transmitir, por meio de fórmulas simbólicas, toda a doutrina panteísta e fundamentalmente anticristã dos primeiros gnósticos. O Sr. Jean Hani distingue dois tipos de simbolismo: **Um simbolismo de ordem teológica**, aquele que é ensinado por meio da Revelação e da Liturgia cristã desde a origem da Igreja e que todos os cristãos batizados conhecem bem: a água do batismo, o pão eucarístico, o lírio da pureza, o sangue dos mártires, etc. Este simbolismo corresponde, segundo o Sr. Jean Hani, a um primeiro significado da palavra "Tradição", que designa "os cânones eclesiásticos próprios à arte cristã enquanto tal". **Um simbolismo de ordem cosmológica**, que corresponde a outro significado da palavra "Tradição", referindo-se aos "cânones universais da Arte Sagrada, deduzidos de conhecimentos metafísicos". Uma primeira observação se impõe: o simbolismo da Igreja é apresentado como um uso particular e local de um simbolismo mais universal, não ensinado pela Igreja, mas extraído ou "deduzido" de uma Metafísica. Veremos ao longo do livro que essa Metafísica nada mais é do que o eterno panteísmo dos gnósticos, algo que será demonstrado com citações claras e irrefutáveis. O simbolismo teológico descrito pelo autor é, de fato, o da Igreja Católica, e ele acumula referências bíblicas e dos Padres da Igreja para demonstrar a ortodoxia de suas proposições. Contudo, ao longo do capítulo, o discurso desvia-se para o simbolismo cosmológico, de forma sutil e quase imperceptível. Neste momento, o autor deixa de fornecer referências explícitas. Sempre que trata deste simbolismo — que, na realidade, é panteísta —, a Tradição da Igreja já não lhe fornece respaldo ortodoxo. No entanto, Jean Hani conhece muito bem as numerosas referências que poderia ter extraído dos gnósticos dos primeiros séculos, amplamente denunciadas por São Irineu no *Contra as Heresias*. Contudo, ele evita mencioná-las, pois isso tornaria evidente que suas proposições não são totalmente ortodoxas. O autor limita-se a citar escritores não condenados, mas impregnados de neoplatonismo, como o Pseudo-Dionísio Areopagita (Denys, o Areopagita), um autor eclesiástico por muito tempo confundido com São Dionísio, cujo prestígio era grande na Idade Média, e São Clemente de Alexandria, sobre quem falaremos mais adiante. Estas são as referências habituais de Jean Borella. No restante, o leitor é remetido à bibliografia no final do volume, que é altamente sugestiva: destacam-se principalmente autores ligados à maçonaria. Concluímos, assim, que o primeiro simbolismo é, de fato, o ensinamento constante da Igreja, enquanto o segundo foi introduzido de forma sub-reptícia pelos modernos gnósticos. Ele não pertence à Tradição da Igreja, que o rejeitou já nos primeiros séculos. Por ser hoje desconhecido, Jean Hani e seus amigos guénonianos conseguem dar a ele um prestígio renovado e uma aparência de ortodoxia. Jean Hani vai além: "Os símbolos teológicos", afirma ele, "só são frequentemente compreensíveis por referência aos símbolos cosmológicos que lhes são subjacentes e, por assim dizer, os sustentam. Isso ocorre por uma razão muito simples\[1\]: o Homem, estando imerso no mundo sensível, deve alcançar o divino através das 'figuras' deste mundo, justamente com o auxílio da Arte." Os **Padres da Igreja** não entenderam que cada símbolo possui um duplo significado: um significado ensinado por eles e outro, secreto e esotérico, que eles não transmitiram. Assim, os símbolos se tornam incompreensíveis para aqueles que não estudaram a metafísica de René Guénon. Os **símbolos cosmológicos** são considerados os verdadeiros símbolos, pois são universais e necessários. Já os **símbolos teológicos** são apresentados como formas particulares, pertencentes à Igreja, e, portanto, desprovidos de universalidade. Esses símbolos teológicos têm um significado exotérico, considerado comum, banal e sem relevância, o que leva Jean Hani a afirmar: *"Tentaremos resgatar o simbolismo cosmológico subjacente."* Ou seja, o verdadeiro simbolismo, propósito para o qual seu livro foi escrito. O objetivo é ensinar aos cristãos que a Igreja ignorou, desde sempre, o verdadeiro significado dos símbolos que ela própria nunca compreendeu plenamente e que utilizou de maneira equivocada. Estamos aqui no domínio da Gnose maçônica. René Guénon escreveu: *"É necessário restituir à doutrina do catolicismo integral, sem alterar a forma religiosa sob a qual se apresenta ao público (exoterismo), o sentido profundo que ela possui em si mesma (esoterismo), mas que seus representantes atuais parecem não mais compreender, assim como sua unidade essencial com outras formas tradicionais..."* Este trecho está citado em *De la Gnose à l'Oecuménisme* (p. 46). A Maçonaria também afirma: *"Todas as religiões que existiram até agora possuíam um núcleo de verdade (esoterismo) que foi coberto de erros, corrompido e misturado a ficções (exoterismo)"* (*De la Gnose à l'Oecuménisme*, p. 32). Estas são as verdadeiras fontes do simbolismo de Jean Hani. ##### O Caso de São Clemente de Alexandria Sabemos muito pouco sobre a vida de São Clemente de Alexandria, conhecendo-o apenas por suas obras, especialmente os *Stromates*. Segundo Clemente, a Gnose pressupõe a fé, mas a supera. Ela acrescenta à fé uma inteligência das verdades, chegando a uma ciência infalível ou a uma compreensão perfeita. O gnóstico crê e sabe. Por meio de sua ascensão espiritual, ele alcança a perfeição. Ele contempla Deus, um estado que Clemente chama de "Teoria" ou "Epopteia". Contudo, o **linguagem de São Clemente é ambígua**: com o termo "teoria", ele refere-se, em diferentes momentos, à visão beatífica no além, à contemplação sobrenatural e até mesmo ao conhecimento racional de Deus. Sua obra é impregnada de elementos do neoplatonismo. Encontram-se nele ideias corretas, erros, textos confusos e incertos, assim como uma luz difusa que não permite compreender claramente o alcance de seu pensamento. O **Padre Lebreton, S.J.**, comenta que: *"São Clemente entregou-se ao entusiasmo de seus mestres por uma vida isenta de paixões, fixada em uma contemplação perpétua, elevada acima da humanidade. Essa ambição altíssima, não isenta de ilusões, trouxe consequências graves para sua concepção do Cristianismo e, em particular, para a relação entre fé e gnose..."* Seu estilo carece de precisão e lógica. Sua mente é permeável a diversas ideias, e sua imaginação vaga sem coerência por entre recordações sagradas e profanas, criando uma dificuldade real para acompanhar o raciocínio. ##### A Distinção Entre Gnose Verdadeira e Falsa São Clemente tenta, como os gnósticos modernos, distinguir uma "gnose verdadeira" de uma "gnose falsa". Ele dá grande importância a essa distinção para se afastar dos gnósticos condenados. Contudo, ao longo de sua obra, ele gradualmente reintroduz, de maneira pouco clara, elementos essenciais da gnose herética. Se o termo "gnose" mantivesse apenas seu sentido grego ordinário de "conhecimento", não haveria razão para tanta insistência. Seria apenas uma questão semântica, facilmente resolvida ao abandonar um termo que gera dificuldades. Entretanto, os gnósticos, ao contrário, empenham-se em impor inicialmente o uso do termo e, ao longo de suas exposições, introduzem um novo e inédito significado para "conhecimento". Em qualquer inteligência ordinária, o "conhecimento" é uma operação do espírito que recebe a forma dos objetos conhecidos. Há, portanto, uma identificação com o objeto, mas apenas pela **forma inteligível**, e não pela substância. Isso significa que essa identidade é formal e não real. O objeto conhecido, mesmo presente no espírito, permanece presente fora dele, em sua substância e em si mesmo. Porém, ao usar o termo "Gnose", os modernos gnósticos referem-se a uma **identificação real** com o objeto conhecido. Para eles, conhecer uma coisa por meio da Gnose é **tornar-se realmente essa coisa**, em uma espécie de conhecimento reificante que produz em nós a substância da coisa. Assim, conhecer a Deus pela Gnose significa **tornar-se Deus**, coincidindo com Ele a tal ponto que não há mais distinção, o que eles chamam de "Retorno à Unidade Primordial". É evidente que a escolha do termo "Gnose" está fundamentada em uma doutrina totalmente oposta ao ensinamento da Igreja. Além disso, São Clemente de Alexandria ensina que há uma **tradição secreta**, um ensino esotérico, relacionado a mistérios e iniciações. BOSSUET, em sua polêmica contra Fénelon\[2\], condenou energicamente essa pretensão de São Clemente: *"Essas tradições secretas foram, na Igreja, uma fonte de heresias. Era o último refúgio dos maniqueus e de outras seitas semelhantes, dizer que havia segredos de religião que não eram revelados a todos os fiéis. São Irineu e São Epifânio condenaram essas tradições. Santo Agostinho combateu esse erro em dois tratados sobre São João... Se essas tradições fossem cuidadosamente escondidas, como afirma Bossuet, então os Padres teriam se expressado apenas por meias palavras. Sob esse pretexto, seria fácil fazer os Santos Doutores dizerem qualquer coisa."* Se os Apóstolos e os Padres da Igreja tivessem realmente conhecido o simbolismo cosmológico mencionado por Jean Hani, deveriam tê-lo mantido em segredo. Tal duplicidade destruiria toda a credibilidade deles perante os cristãos. ##### As Fórmulas do Panteísmo Como todo gnóstico coerente consigo mesmo, Jean Hani demonstra uma predileção pelo termo **"Cosmos"**. Se o termo "cosmos" fosse simplesmente sinônimo de "universo", não haveria razão para adotar esse vocabulário. No entanto, em seus textos, "Cosmos" carrega uma concepção nova e contrária ao ensinamento da Igreja. Para a Igreja, o universo é o **conjunto dos seres criados**. Cada ser possui sua própria realidade, sua substância, constituindo uma individualidade distinta das outras. Quando se trata de seres humanos, essa distinção é chamada de **personalidade**, que nos coloca, como indivíduos, em uma posição única e intransferível em nossa espécie. A multiplicidade e a variedade dos seres que compõem o universo formam uma **unidade de ordem**, mas não de substância. O universo não é um ser ou uma coisa em si; é apenas o nome usado para designar essa coleção de seres. Essa coleção não possui uma existência própria. Não se deve "reificar" um termo meramente conveniente e dar substância ao que ele designa. O termo "Cosmos" é frequentemente usado em círculos gnósticos para descrever um único ser **imenso, infinito**, formado de uma única substância, cujos seres que o habitam são meros fragmentos dispersos que deveriam ser reunidos em um conglomerado unificado. Para sustentar essa concepção, os gnósticos afirmam que esse imenso "Cosmos" é permeado por um sopro vital, uma energia interna chamada "energia cósmica", que seria comum a todos os seus elementos. Essa visão mergulha no **vitalismo** e, consequentemente, no **pan­teísmo**, atribuindo os atributos divinos ao "Cosmos". Essa abordagem é absolutamente contrária ao ensinamento constante da Igreja. É necessário sempre manter grande **cautela** diante de quem emprega o termo "Cosmos", pois ele frequentemente carrega consigo uma filosofia pan­teísta subjacente. Citando Jean Hani: "O mundo é um organismo harmonioso, hierarquizado, cuja formulação cristã encontramos em Dionísio, o Areopagita. A partir dele, remontamos a Platão (...). A criação é essencialmente o *Cosmos* sucedendo ao *Caos*, ou seja, a ordem e a organização surgindo do desordem e do *tohu-bohu* da Gênese (*Ordo ab chao*). É o Espírito penetrando a substância informe. Da mesma forma, o arquiteto fabrica um edifício orgânico a partir da matéria bruta e, nessa realização, imita o Criador, chamado, após Platão, de Grande Arquiteto do Universo, porque, como diz o filósofo, 'Deus é Geômetra'. A geometria, base da arquitetura, foi, até o início da era moderna, uma ciência sagrada cuja formulação ocidental provém precisamente do *Timeu* de Platão e, através dele, remonta aos pitagóricos." (*O simbolismo do templo cristão*, p. 45). Essa passagem apresenta um exemplo clássico da linguagem **maçônica**. Elementos como o "Grande Arquiteto do Universo", "geometria sagrada" e "Ordo ab chao" são marcas registradas das doutrinas maçônicas e gnósticas, carregadas de significados ocultos e contrários ao ensino tradicional da Igreja Católica. Analisando essa abordagem sob a ótica do senso comum, surgem várias perguntas: - O que é exatamente esse "Ordo ab chao"? Como a ordem poderia surgir do caos, que é simplesmente a negação da ordem e, portanto, não possui existência própria? - O que significa "substância informe" ou "matéria bruta"? Isso não é nada; não há como organizar algo que seja literalmente "nada". - O "arquiteto" citado seria um criador? E se não, quem criou a matéria informe que ele usou para construir o *Cosmos*? Essas questões fundamentais permanecem sem resposta nos textos de Jean Hani. Hani afirma ainda: "O templo representa, ou melhor, é a Natureza regenerada, como a Igreja (...). Ele é, por sua construção e estrutura, uma manifestação do Espírito descendo à Substância, do Espírito imanente por meio de suas Energias à ordem do mundo. O templo é um *Cosmos* sacralizado e oferecido." (*O simbolismo do templo cristão*, p. 49). Aqui, encontramos conceitos como a **imanência vital** (característica dos modernistas) e a **energia cósmica** ou "elan vital", populares no pensamento de Bergson e seus seguidores. A ideia da "descida do Espírito à Substância" revela a influência do pan­teísmo gnóstico. Para compreender essas ideias mais profundamente, é recomendável a leitura do primeiro capítulo de *De la Gnose à l'Oecuménisme*, onde tais conceitos são analisados e refutados sob a perspectiva da fé católica. ##### **O Retorno ao Estado Primordial** Monsieur Jean Hani escreve na página 65: "Assim como o Templo total, em seu plano, e o Santuário, em sua elevação, representam, ao mesmo tempo, o Homem Arquétipo e o crescimento espiritual do indivíduo humano até sua coincidência com seu Arquétipo, até a 'Estatura de Cristo', como diz São Paulo." **Outras Formulações de Monsieur Hani** *"A interrupção da rotação do mundo e sua fixação em um estado final é a Restauração do Estado Primordial" (p. 37).* *"A cúpula do transepto é frequentemente encimada por uma cruz ou uma flecha erguida que materializa o eixo da abóbada, o que significa a Saída para fora do Cosmos, à imitação de Cristo que, durante a Ascensão, subiu acima de todos os céus" (p. 38).* Toda a metafísica (?) de René Guénon ressurge nessas formulações: o *Homem Arquétipo* designa o Cristo, com quem o indivíduo deve coincidir (segundo São Paulo, aparentemente). A Ascensão de Cristo "acima de todos os céus" e não apenas ao céu significaria a *"Saída para fora do Cosmos"*. É impossível desrespeitar mais impudentemente as Escrituras Sagradas do que tentando reduzi-las sistematicamente às elucubrações dos gnósticos. **O Labirinto e o "Retorno ao Centro"** Citemos este texto sobre o labirinto (pp. 108–109). Nele encontramos resumido todo o ensino de René Guénon: - *A viagem ao centro,* - *A distinção entre corpo, alma, mente e espírito,* - *A expressão "o Eu do Homem", realizar o Eu,* - *As camadas do indivíduo,* - *O Reino de Deus identificado com o centro do Mundo,* - *A concentração no Eu,* e assim por diante. Isso não é francês; é um jargão gnóstico, idêntico ao que se encontra nos textos ocultistas ou esotéricos que abarrotam as livrarias contemporâneas. *"Compreendemos, então, a importância e o novo sentido que adquire, nessa perspectiva, a deambulação do fiel medieval pelo labirinto místico. Não era, como dizia com certo desdém Cisternay, cônego de Chartres, uma 'brincadeira tola em que aqueles que nada têm a fazer perdem seu tempo caminhando em círculos'. A eminente dignidade dessa peregrinação, como de qualquer peregrinação, reside no fato de simbolizar a verdadeira peregrinação, o verdadeiro 'retorno ao centro', que é uma 'viagem interior' em busca do Eu."* **O Eu e o Trabalho Espiritual** O *Eu* do homem não se identifica com: - Seu corpo, domínio das sensações; - Sua alma, domínio dos sentimentos; - Sua mente, domínio das ideias e da razão; - Nem mesmo com seu espírito... ou, como dizem algumas escolas espirituais, seu coração. Este espírito ou coração é chamado, dependendo da tradição, de: - *"Fundo",* - *"Castelo Interior",* - *"Ponta Fina"* ou - *"Cume da Alma".* É aqui que reside a essência humana, *"a imagem de Deus no Homem"*; é o centro de seu ser. Todo o trabalho espiritual, o propósito único da vida — o *unum necessarium* — é *"realizar" esse Eu.* Isso significa tomar consciência, pela graça de Deus, não de forma discursiva, mas vital e ontológica, de que isso é o nosso verdadeiro ser. Assim, todas as outras camadas do indivíduo se dissolvem nesse centro vivo e luminoso, que é *"o Reino de Deus em nós"* e que, por analogia entre o macrocosmo e o microcosmo humano, identifica-se ao Centro do Mundo. *"O homem que, pela graça de Deus, se estabelece nesse centro, vê tudo — o mundo e a si mesmo — com o próprio olho de Deus."* "No esforço longo e difícil de concentração que deve fazer sobre si mesmo para realizar essa incursão ao Centro, o Espírito precisa ser sustentado por suportes externos, que canalizem os fluxos sensíveis e mentais e os façam convergir para a perspectiva do objetivo, ajudando assim o Homem a encontrar seu próprio centro. Esse é o papel das imagens, quaisquer que sejam elas." Este é um linguajar que já não possui nada de cristão. As referências a fórmulas escriturísticas não têm o propósito de esclarecer o encadeamento das ideias, mas sim de dar uma aparência ortodoxa a textos completamente contrários ao ensino da Igreja. ##### **A Teurgia ou Divinização** No capítulo VII de *La Divine Liturgie*, Monsieur Jean Hani apresenta as formulações mais claras do pan­teísmo. O título **"Théosis"** já indica que o autor tratará da deificação, descrita como: *"a operação espiritual pela qual o homem é arrancado de sua condição limitada, individual, saindo de seu Eu para ser assumido na personalidade divina, que é propriamente o objetivo da comunhão à Carne e ao Sangue do Salvador."* (p. 67). Como é difícil encontrar tais formulações na Escritura Sagrada, o autor busca referências na liturgia oriental, onde a linguagem mística permite todas as ambiguidades. Começamos com São Paulo: *"Deus nos trouxe de volta à Vida com Jesus Cristo. Ele nos ressuscitou com Ele e nos fez assentar nos céus em sua Pessoa..."* A repetição da preposição *"com"* deixa claro que não se trata de uma identificação, mas sim de uma comunhão, uma convivialidade. O homem é chamado a compartilhar a vida divina, a participar do perfeito bem-aventurança. O rito bizantino afirma: *"Essa natureza de Adão que renovaste, ó Deus, Tu a elevas hoje contigo acima das Principados... O Filho de Deus incorporou-a em Si mesmo e a colocou à Direita do Pai..."* No entanto, algumas fórmulas da liturgia oriental podem tender ao pan­teísmo: - São Gregório de Níssa escreve: *"O homem foi concebido com a ordem de se tornar Deus."* - São João Crisóstomo: *"Deus misturou seu sangue ao nosso para fazer de nós, homens, um só ser com Ele."* - Máximo, o Confessor: *"Por meio da santa participação nos mistérios puros e vivificantes (a Missa), o homem alcança a intimidade e a identidade com Deus; por ela, o homem obtém tornar-se Deus, sendo homem."* Entretanto, **a Liturgia Romana evita cuidadosamente qualquer fórmula que possa levar a um sentido pan­teísta.** Ela fala sempre de participação, nunca de identificação. Exemplos: - *"Deus, que nos tornas participantes de tua única e soberana Divindade."* (Não há mais de um Deus; participamos de sua divindade.) - *"Ó Deus, faze que, pelo mistério desta água e deste vinho, participemos da divindade daquele que se dignou unir-se à nossa humanidade, Jesus Cristo."* Em Jesus Cristo, a natureza humana não foi absorvida por sua natureza divina de forma a deixar de ser humana. Cristo é perfeitamente homem e perfeitamente Deus. Da mesma forma, nossa natureza humana não será absorvida pela natureza divina de modo que nos tornemos Deus ou coincidamos com Ele, como afirma Monsieur Jean Hani, ou que nos identifiquemos com Ele em uma única Divindade Total, o *Pléroma* dos gnósticos. Não! A liturgia fala sempre de **participação**. Nossa natureza humana, embora distinta da de Deus, será elevada a uma vida divina. Não será destruída, nem consumida, mas assumida — ou seja, elevada e unida a Deus pelo vínculo fortíssimo da visão beatífica face a face. **Entretanto, Monsieur Jean Hani continua:** *"Todos esses textos que acabamos de citar dizem claramente que a Missa é o lugar onde se realiza a Deificação por meio de uma verdadeira transmutação do Homem."* (p. 155). Isso significa que a natureza humana será perdida e uma natureza divina tomará seu lugar. Caso contrário, que sentido inteligível poderia ser dado à palavra "transmutação"? Para concluir, apresenta-se este texto extremamente revelador: *"Quando o homem integrou sua personalidade divina, pode-se dizer que a Imagem de Deus nele alcançou seu Arquétipo celeste. Essa é a definição metafísica da Salvação."* *(Metafísica no sentido guenoniano do termo: transmutação de uma natureza. O homem é divino por sua própria substância. O retorno ao estado primordial é uma integração de si à divindade.)* *"É ao mesmo tempo o ato pelo qual o Sacrifício de Deus, do qual falamos, e que é como a exteriorização de Deus em sua Criação, é anulado, redimido, por assim dizer. Pois, nesse ato, o Homem renunciou a si mesmo em seu estado exteriorizado para refazer, em sentido inverso, o trajeto de Deus em direção à Criatura, de modo que a Criatura retorna ao seu princípio."* *"E, com ela, toda a Criação, porque o homem, ao integrar o Si, não faz sozinho o caminho de retorno a Deus. Como espelho e resumo do Mundo, microcosmo, ele conduz todo o Cosmos no caminho, seguindo o Cristo, que primeiro, como Homem-Deus, mas também como Homem, realizou a redenção de todo o Cosmos."* (p. 163). Ao ler uma profissão de fé pan­teísta como esta, somos levados a refletir sobre as palavras de Cristo que afirmou que não veio para salvar o mundo, mas que Satanás já era o Senhor deste mundo; que, ao sofrer sua paixão, quis redimir os pecados dos homens para salvá-los e retirá-los deste mundo; que haverá uma nova Terra e Novos Céus, entre outras declarações. **Por fim, a Suprema Zombaria:** o sacrifício de Deus é anulado pelo retorno do Homem ao seu princípio, ou seja, à sua natureza divina primitiva. Realmente, pergunta-se qual teria sido a utilidade de tal sacrifício de Deus! Se o homem, por meio da Gnose (o Conhecimento divinizante do Si), é capaz de alcançar seu princípio e integrar sua personalidade divina primitiva, se é o Homem quem renuncia a si mesmo para refazer o trajeto de Deus, então o Sacrifício de Jesus Cristo torna-se perfeitamente inútil. Assim, é o Homem quem, por seu ato de Integração, redime o Sacrifício de Deus, *"por assim dizer"*, é claro... mas ousaram dizer isso! \- Etienne Couvert (C.B nº 15) \[1\] **'Por uma razão muito simples que'** é admirável. Não sabíamos até hoje que a imersão no sensível era a razão suficiente para os símbolos cosmológicos. \[2\] Por ocasião da leitura de uma obra secreta e inédita de Fénelon, intitulada: *"O Gnóstico de São Clemente de Alexandria"*. # A Devotio Moderna: Características e Sintomas de um Católico “Tradicional” 30/12/2024 Tradução por: Prof. Gabriel Sapucaia Autor: Pe. Javier Ravasi ![](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000141-1d2441d245/Thomas_von_Kempen_JS.jpeg?ph=4df81238fe) **A Devotio Moderna: Características e Sintomas de um Católico "Tradicional"** Há algum tempo, entre leituras e conversas, venho meditando e refletindo sobre essa corrente de espiritualidade católica que tanto impacto causou nos melhores ambientes (e até mesmo em nós mesmos). Sem pretensão de esgotar – nem de longe – o tema, apresento aqui algumas reflexões em forma de síntese, que serão complementadas por outra abordagem similar em breve. Acredito que a leitura será útil, especialmente para os ambientes católicos "tradicionais" ou "conservadores", e também para que nos animemos a fazer um exame de consciência sobre nossa espiritualidade. **Que não lhe contem uma versão incompleta...** **Pe. Javier Olivera Ravasi** --- **A DEVOTIO MODERNA** **Características e Sintomas** **Pe. Javier Olivera Ravasi** Diversos e renomados autores têm se dedicado em nossas terras a um tema tão delicado como o que começamos a tratar aqui.1 Dizemos "começamos a tratar" porque o que pretendemos apresentar é meramente um esboço do tema, com alguns aportes próprios.2 Para começar, digamos que a **Devotio Moderna** ou "devoção moderna" foi (e é) uma corrente espiritual que surgiu na segunda metade do século XIV, principalmente nos Países Baixos. Seus fundadores reconhecidos e visíveis foram **Gerardo Groote** (1340-1384) e seu discípulo **Florêncio Radewijns** (1350-1400). Essa escola espiritual teve sua expressão mais notável em uma comunidade religiosa conhecida como os **Irmãos da Vida em Comum**, cujas raízes estavam no agostinianismo e no franciscanismo. Essa informação inicial não é irrelevante e, se destacamos, é porque terá certa importância no desenrolar da questão. É importante sublinhar os **origens históricos** da espiritualidade moderna, pois comumente se tende a associar, sem maiores distinções e de forma direta, a **Devotio Moderna** à Companhia de Jesus. Embora exista certa relação, não é, em nossa opinião, da forma como frequentemente se apresenta. Seguindo livremente o trabalho magnífico do Pe. García-Villoslada, apresentamos algumas características principais dessa corrente, que tanto influenciou diversos grupos e movimentos leigos e religiosos em nossos tempos. **1. Cristocentrismo** É evidente que Cristo é o centro da vida cristã; isso é indiscutível. Porém, o que queremos destacar é que, assim como nos primeiros séculos do cristianismo se enfatizava principalmente a divindade de Nosso Senhor (algo claramente visível na iconografia), na modernidade – especialmente a partir da **Devotio Moderna** – passou-se a destacar sua humanidade. O Pe. García-Villoslada se refere a isso como um "**cristocentrismo prático**" mais do que um "cristocentrismo místico". Trata-se de buscar em Cristo uma "exemplaridade operativa" que mobiliza, enfatizando aspectos éticos e pragmáticos na imitação prática de Cristo. Ele é apresentado sobretudo como um modelo ético a ser imitado, tal como São Martinho poderia ser para militares ou Michelangelo para pintores e escultores. Embora essas características não possuam maldade intrínseca, uma ênfase exagerada no "cristocentrismo prático" pode levar ao descuido ou abandono da contemplação, especialmente da contemplação do mistério de Deus que se fez homem. Esse padrão – o problema de acentuação excessiva – será verificado em várias das características que analisaremos. Entre os aspectos da meditação sobre Cristo, o "cristocentrismo prático" foca especialmente nos sofrimentos e na Paixão. Embora essa abordagem tenha santificado muitos, como São Paulo da Cruz, Santo Afonso de Ligório e Santa Rosa de Lima, uma ênfase exagerada pode levar a uma forma de jansenismo católico. Isso implica rotular todo prazer como pecaminoso, sem distinguir entre prazer ordenado e desordenado, legítimo e ilegítimo. O seguidor da **Devotio Moderna** tenderá a viver em estado permanente de atrição e contrição, sem gozo interior ou exterior. Em tal cristianismo, figuras como São Simão "o Louco", São Filipe Néri ou Chesterton dificilmente teriam lugar. **2. O culto ao "método" e ao diretor espiritual** Essa é, segundo García-Villoslada, "a característica mais marcante da *Devotio moderna*"1. O princípio dessa escola de espiritualidade consiste em que a própria vida da alma deve ser submetida a um "esquema". Trata-se de um **ordenacionismo** e um **regulamentarismo** característicos de um espírito geométrico. É um "sistema" uniformizante da alma, cuja extrema rigidez controla horas, dias, semanas, meses e até anos, conduzindo a uma fiscalização e comprovação minuciosa de todos os movimentos e condutas da vida cristã. Não se afirma aqui que ter um método para a alma seja algo ruim em si mesmo, mas sim que a **degeneração** e a **hipertrofia** do método podem sufocar as almas: o método é para o homem, e não o homem para o método. O mesmo se aplica à imposição desse método para todas as pessoas. Como se diz, é tão injusto tratar de modo desigual os iguais quanto tratar de modo igual os desiguais. **A relação com o nominalismo e o voluntarismo** Essa deturpação do método, segundo Étienne Gilson, não é fruto do acaso, mas está diretamente ligada, na *Devotio moderna*, à **filosofia nominalista** da escolástica decadente. O nominalismo, ao acentuar o voluntarismo, conferia uma primazia absoluta ao **ethos** (a ação) em detrimento do **logos** (a razão); ao **subjetivo** em detrimento do **objetivo**; ao **experienciar** em detrimento do **contemplar**. Diferentemente da devoção tradicional, que enfatizava a ordem na oração pública (como na liturgia e no coro) e concedia total liberdade à devoção pessoal, a *Devotio moderna* colocava uma ênfase excessiva no cuidado extremo da devoção privada2. Essa ênfase resultava em regras detalhadas sobre a matéria da meditação, o tempo de meditação, o objeto, a duração… tudo isso com a finalidade, ou consequência, de manter o devoto ocupado o dia inteiro, praticamente sem espaço para o **ócio**. **Um método rígido para a meditação** Como exemplo desse rigorismo metódico, vemos uma prescrição sobre o modo de rezar: "Quanto às matérias, assim costumamos dividir e alternar: no sábado, meditar sobre os pecados; no domingo, sobre o Reino dos Céus; na segunda-feira, sobre a morte; na terça-feira, sobre os benefícios de Deus; na quarta-feira, sobre o Juízo; na quinta-feira, sobre as penas do inferno; na sexta-feira, sobre a Paixão do Senhor. E, não contentes em ordenar os preparativos da oração e determinar a matéria a ser meditada em cada dia da semana, ainda regulamentavam a hora, o lugar e a postura que deveriam ser observados na meditação."3 Tudo precisava ser controlado, e o ócio era visto como uma espécie de ameaça para essa abordagem. Entretanto, na **devoção tradicional**, o ócio desempenhava um papel fundamental4. **Santo Tomás e a liberdade na contemplação** O próprio **Santo Tomás de Aquino**, um século antes do surgimento dessa doutrina, citando Santo Agostinho, indagava: "Quem seria capaz de orar, seguindo todos esses graus da escala e exercitando ordenadamente todas essas operações da mente, do juízo e do afeto?" Por outro lado, **Santo Inácio de Loyola**, com maior liberdade, aconselhava na **Adição 4ª** dos Exercícios Espirituais (nº 76): "Para entrar na contemplação, pode-se estar 'de joelhos, prostrado no chão, deitado de costas, sentado, em pé, caminhando, sempre buscando o que desejo...'. E 'se encontro o que desejo estando de joelhos, não irei adiante; e, se prostrado, da mesma forma, etc.', explicando que 'no ponto onde encontrar o que desejo, ali descansarei, sem ansiedade de prosseguir, até que me satisfaça.'" **"O amor à verdade exige um ócio santo; a necessidade da caridade empreende uma ocupação justa, ou seja, a vida ativa. Se ninguém nos impõe esse peso, devemos nos entregar ao estudo e à contemplação da verdade. Caso nos seja imposto, devemos aceitá-lo pelas exigências da caridade. Contudo, nem mesmo nesse caso deve-se abandonar totalmente o deleite pela verdade, para que, privado desse alívio, o peso não se torne insuportável."1** Como parte dessa segunda característica, encontramos também um **ênfase excessivo, minucioso e até sufocante** no exame de consciência. Esse exame é baseado em uma infinidade de divisões e subdivisões que, por vezes, sufocam a vida da alma. Não se trata aqui de criticar a beleza intrínseca desse método, que pode ser um valioso recurso para o progresso espiritual. Contudo, o perigo reside na atitude esquemática que reduz a santidade a um papel e algumas linhas. Reconhecemos que esse método pode ser útil (e de fato foi para muitos santos!), sendo inclusive recomendado por Santo Inácio nos seus **Exercícios Espirituais** (NN. 27-31). Entretanto, até mesmo esse método deve ser usado **tanto... quanto...** sirva à alma para alcançar o seu propósito final: Deus. **A idolatria ao método e o diretor espiritual** A **metodolatria** pode levar a alma a sujeitar-se completamente a métodos e a um diretor espiritual que atua mais como um controlador ou capataz. Esse diretor regula trabalho, sono, refeições e relacionamentos, levando a alma a um estado de **infantilismo espiritual**. Embora seja errado condenar o papel de um acompanhante espiritual (quase todos os santos os tiveram!), a sujeição servil a um homem, sem lembrar que a salvação ou condenação depende de cada pessoa, e a sujeição a uma **metodolatria** constituem, sim, um mal. O Pe. Castellani comenta sobre isso: \*\*"Não podemos nos salvar segundo a consciência de outro! Não podemos nos eximir de discriminar com nossa própria razão o bem e o mal moral, um para seguir e outro para rejeitar! Não pode ser nossa guia interior a razão alheia: os atos morais são inmanentes, e sua 'forma' é a racionalidade! Se bastasse para se salvar fazer literal e automaticamente o que outro nos diz, qual seria, então, a função da fé, da oração, da meditação, da direção espiritual, do exame e do estudo?"\*\*2 **O perigo do voluntarismo** Exercitar a vontade não é algo intrinsecamente ruim, mas o **voluntarismo**, assim como o ênfase exagerado dado a certos métodos, em detrimento de práticas tradicionais como a oração litúrgica e a atitude apostólica, é perigoso. Se o diretor espiritual é uma pessoa dotada de virtudes, isso será um benefício para o dirigido. Porém, se ele está impregnado pelas características da *Devotio moderna*, consciente ou inconscientemente, pode surgir o risco de: - **Fabricar vocações**; - **Coagir a vida espiritual**; - **Manipular consciências**; - **Uniformizar almas**, pensando que Deus as criou todas iguais. Que Deus nos livre dessas direções espirituais que não respeitam a individualidade das almas! Melhor seria continuar cego do que confiar-se a outro cego e cair no abismo. **O ascetismo metódico e seus perigos** Frases como "**Há um método ascético pelo qual você pode se santificar**" ou "**Se seguir este método à risca, será santo**" são análogas às promessas das dietas milagrosas de programas de televisão. Essa abordagem é gravíssima e, infelizmente, ainda prevalece em alguns círculos supostamente tradicionais. Esse **ascetismo metódico**, entendido dessa forma, pode levar ao **voluntarismo**. Um ascetismo assim, que despreza a via mística, é um ascetismo **perigoso**. **3. Moralismo** Da tendência prática, operativa e anti-especulativa da *Devotio Moderna* surge essa característica, que transforma a espiritualidade em uma espécie de escola moral. Algo semelhante ao que ocorre com a doutrina de Confúcio para os chineses: há um **reducionismo grave**, no qual a religião é limitada à mera conduta. Essa conduta, por sua vez, é reduzida à casuística, sem critérios de discernimento crítico, sendo apenas uma lista de pecados, virtudes e boas práticas, desprovida de um verdadeiro sentido de discernimento. Não se quer aqui afirmar que a casuística seja má – de fato, os grandes confessores devem estudá-la. No entanto, **reduzir a vida espiritual** ao simples conhecimento e observância dos deveres de estado e das leis eclesiásticas implica perigos consideráveis. Por essa razão, a *Devotio Moderna* frequentemente utiliza sentenças, provérbios, aforismos e máximas, como as fábulas de Esopo. Embora isso pudesse ser inofensivo se usado *cum grano salis* (com discernimento), o uso descontextualizado desses recursos pode transformar as Sagradas Escrituras, os Santos Padres e a herança greco-romana em meros depósitos de exemplos sem captar o verdadeiro significado e causalidade desses textos para o cristão. Esse tipo de moralismo não cria **hábitos verdadeiros**, mas apenas aparências externas que não são incorporadas à essência da pessoa. Além disso, esse moralismo está muitas vezes associado a uma postura **estoica**: **"Isso pode ser feito, isso não pode; isso deve ser feito, isso não deve."** Tal abordagem, sem fornecer fundamentos ou razões últimas, é apropriada apenas para níveis iniciais de formação, como no trato com crianças, que ainda não estão preparadas para entender os motivos. Contudo, para o desenvolvimento espiritual do homem crente, essa abordagem casuística e regulamentarista será insuficiente. Eventualmente, a alma buscará algo mais, e, caso não encontre, essa espiritualidade moralista poderá levá-la ao desânimo ou ao abandono. **4. Tendência Anti-especulativa** Como aponta García-Villoslada, a *Devotio Moderna* surge em oposição a uma espiritualidade nebulosa e altamente especulativa que predominava na época. Ele descreve que: \*\*"A linguagem abstrusa e difícil dos escolásticos havia contaminado os místicos, que às vezes se perdiam em sutis especulações e raciocínios sobre questões sublimes e quase ininteligíveis"\*\*1. Essa oposição nasceu de um contexto no qual, logo após a morte de Santo Tomás de Aquino, a escolástica havia perdido sua orientação original. A reação contra as sutilezas e disputas escolásticas levou os proponentes da nova espiritualidade não apenas a reprimir a curiosidade intelectual, mas também a **desprezar a ciência**, o que resultou em uma religiosidade puramente afetiva e um praticismo desprovido de base teológica sólida. Como discutido anteriormente, o **nominalismo** foi uma das influências dessa corrente espiritual, rejeitando a metafísica tomista – considerada supérflua – e até mesmo a filosofia, vista como "a mãe dos hereges"2 e promotora da vaidade, segundo Gerardo Groote. **Desconfiança do estudo e da intelectualidade** Nessa linha de pensamento, o próprio estudo era visto com desconfiança. Radewijns declarou: **"Estudar para conhecer ou ensinar... não nutre a alma, mas a torna doente."** Seu sucessor, Juan Von de Husden, compartilhava dessa visão, proibindo que seus irmãos estudassem os livros de Santo Tomás ou outros escolásticos modernos que tratassem de obediência e temas semelhantes. Ele preferia que permanecessem em sua **simplicidade**3. Essa reação exagerada à escolástica decadente levou a um desprezo pela ciência e à prevalência de uma religiosidade puramente afetiva. Um exemplo extremo dessa tendência pode ser encontrado em Lutero, que, séculos depois, referiu-se à inteligência como uma "prostituta". **5. O afeto acima de tudo** Como consequência do que foi anteriormente mencionado, há na *Devotio Moderna* uma forte acentuação do **anti-especulativo** e do **afetivo**, utilizado como elemento preponderante na relação com Deus, com clara influência franciscana. Essa ênfase no sensível – que tanto foi criticada pelo Pe. Castellani – e no desordenado sentimentalismo e emotividade, acaba deixando a vida da alma num estado inacabado. Para essa corrente, "devoção" significa **fervor**, **oração inflamada**, puro remorso, mortificação e compunção. Mais uma vez, não se trata de afirmar que o fervor na devoção seja algo errado; o perigo reside na **exagerada acentuação** desses elementos, que podem atrofiar a vida superior da alma, reduzindo-a a um caráter meramente afetivo e emocional. García-Villoslada observa: \*\*"Até o vocábulo com que os discípulos de Groote se designam, *Devoti*, indica sua natureza mais afetiva do que especulativa. Para eles, devoção é essencialmente fervor, oração inflamada, desejo de Deus. Para Mombaer, por exemplo, 'compunção é sinônimo de devoção.'"\*\*1 Para a *Devotio Moderna*, "devoção" não é aquilo que a espiritualidade tradicional compreendia como a **"vontade pronta de se entregar às coisas de Deus"**, conforme Santo Tomás2. Em vez disso, é interpretada como uma **"afetuosa e piedosa afeição a Deus"**, manifestada principalmente na oração. Assim, um "devoto" seria aquele **afetado por seus afetos espirituais**. **6. O biblicismo** A *Devotio Moderna* também se caracteriza por uma marcante utilização das **Sagradas Escrituras**, algo que, à primeira vista, parece louvável e digno de imitação. De fato, toda a espiritualidade tradicional utilizou as Escrituras como um meio de oração, especialmente na prática da **lectio divina**. No entanto, na espiritualidade em questão, as Escrituras não são tomadas como a **norma da fé**, mas sim como um **repositório de exemplos morais** e um suporte para o adoctrinamento moral. Como observa García-Villoslada, trata-se de: \*\*"Uma teologia simples e moralista que fomente a devoção."\*\*3 Embora os livros inspirados sirvam para **"arguir, ensinar e corrigir"**, conforme São Paulo, seu propósito não se limita a isso. As Escrituras existem para que conheçamos e amemos a Deus conforme Ele quis revelar-se. O perigo do **biblicismo individualista** manifestou-se em sua consequência lógica: a **ruptura protestante** e a interpretação privada dos textos bíblicos. Ao serem lidos fora da **Igreja** e da **Tradição**, na "interioridade devota" subjetiva, as Escrituras acabaram por significar aquilo que cada pessoa desejava. **7. Interioridade e Subjetivismo** De acordo com o Pe. García-Villoslada, essa é a característica fundamental da *Devotio Moderna*. Nos próprios textos de seus representantes, "homem devoto" e "homem interior" aparecem como sinônimos, compreendidos como uma **"interioridade compungida"**. O devoto moderno é identificado como uma figura dolorida, alguém que não apenas busca a dor interior, mas também a dor exterior, promovendo práticas mortificadoras. É verdade – e ninguém nega – que, após o pecado original, estamos mais inclinados ao epicurismo do que ao estoicismo, rejeitando a mortificação. Esta, sem dúvida, é necessária para a santificação (seja da vontade, da sensibilidade, dos juízos temerários, etc.). O perigo, no entanto, está nos excessos, quando se acredita que a santidade reside apenas na mortificação. O desbordamento é o mal; e em certos ambientes influenciados por essa espiritualidade, os exageros são mais frequentes do que as privações. Nosso Senhor disse: **"Vigiai e orai para não cairdes em tentação; o espírito está pronto, mas a carne é fraca"** (Mt 26,41). Contudo, isso é um **meio**, não um fim. Frequentemente, extremistas das mortificações acabam tornando-se extremistas dos prazeres. A virtude nunca está nos extremos irracionais. Exemplos históricos abundam, mas basta mencionar Lutero, que, por desejar uma vida penitente sem prudência, caiu em paixões desregradas por oposição de contrários. **O subjetivismo na *Devotio Moderna*** O subjetivismo promovido pela *Devotio Moderna* exige uma breve digressão histórica para melhor compreensão do problema e para alertar os homens de hoje. Como explica García-Villoslada: \*\*"Esse anseio de interioridade, esse recolhimento nas zonas mais íntimas da alma, deve ser entendido no contexto histórico em que surge a *Devotio Moderna*. Era a época do Grande Cisma do Ocidente, quando a Igreja, dolorosamente dilacerada, não sabia qual era sua verdadeira Cabeça visível, quem era o Vigário de Cristo ou onde estava o Chefe espiritual ao qual todos deveriam obedecer. Em meio ao tumulto e confusão exterior, as almas escolhidas buscavam luz e paz no silêncio, no retiro e na oração. Sem saber quem era o verdadeiro representante de Cristo, buscavam o próprio Cristo diretamente em seus corações e na união individual com Deus."\*\*1 Gerardo Groote, por exemplo, obedecia ao Papa Urbano VI em Roma, mas tinha dúvidas e, em meio à escuridão de sua consciência, consolava-se ao minimizar a importância do cisma externo. Para ele, o mais importante era permanecer unido à Cabeça invisível, Cristo, raiz da unidade fundamental da Igreja. A unidade externa, derivada da união dos membros à Cabeça visível, era secundária; o essencial era evitar o **cisma interior**. **Reflexos modernos** Esse cenário encontra paralelos nos dias atuais, em que algumas pessoas dizem, como um personagem de Sábato: **"Se o comunismo vier, irei para o campo e pronto."** Curiosamente, aqueles que criticam a *Devotio Moderna* frequentemente recaem em suas características, ignorando a crise atual da Igreja e refugiando-se em uma "torre de marfim". Isso gera desprezo e exclusão em relação àqueles que não compartilham de sua visão. Ainda mais grave é o fato de que essa característica da *Devotio Moderna* contribuiu para um **desinteresse pela vida apostólica e missionária**. **"Eu não quero salvar ninguém; só desejo salvar-me a mim mesmo"** – dizem alguns. Esse isolamento rejeita o apostolado ativo e a extensão do Reinado Social de Cristo. Não há, na *Imitação de Cristo* ou nos livros de Tomás de Kempis, qualquer indicação do dever apostólico ou missionário dos cristãos2. Um exemplo disso é o caso do cônego Guilherme de Salvarvilla, seguidor de Groote, que pediu permissão para converter os cismáticos orientais. Groote opôs-se severamente, desencorajando a iniciativa. **Contradições e consequências** Essa mentalidade subjetivista culmina em uma atitude elitista e sectária, que afasta o devoto moderno do mundo e limita sua inclinação pelo apostolado. Enquanto os primeiros jesuítas, como São Francisco Xavier, rejeitavam essa estrutura rígida, a *Devotio Moderna* mantém-se introvertida e pouco hierárquica, onde a "hierarquia" se manifesta apenas em sistemas ou grupos. Tomás de Kempis, o ápice dessa espiritualidade, afirma: \*\*"Mais vale salvar-se sozinho vivendo inocente na solidão do que aventurar-se no convívio com lobos e dragões."\*\*3 Isso contradiz as palavras de Cristo: **"Eu vos envio como ovelhas no meio de lobos…"** Não se trata do isolamento de um monge ou eremita (vocação específica), mas de quem está no mundo com um espírito elitista de sacristia. Tal indivíduo preocupa-se apenas com sua própria salvação, sem levar outros consigo. Se assim fosse, o Verbo não teria se encarnado. Como conclui García-Villoslada: "A vida cotidiana desses devotos, com seu meticuloso cuidado nos detalhes, parece mais uma miniatura artística do que uma pintura de grandes pinceladas."4 **Conclusões Antitéticas** Finalizemos com um paralelo antitético às notas da *Devotio Moderna*: - **Contra o pragmatismo da meditação**: o primado da contemplação dos mistérios divinos, o Logos acima da praxis. - **Contra o "monotema" da dor**: a alegria transbordante fruto da caridade heroica. - **Contra a metodologização da vida espiritual**: a liberdade da contemplação na docilidade ao Espírito Santo. - **Contra a ditadura dos deveres de estado**: a ousadia de realizar grandes feitos para a glória de Deus. - **Contra o desprezo pelas especulações profundas**: a reverência ao Mistério Trinitário e Teândrico que ilumina e apaixona. - **Contra a fuga das batalhas apostólicas**: a epopéia missionária de conversões e martírios. Na *Devotio Moderna*, tudo começa no homem, partindo para Deus. A espiritualidade tradicional, ao contrário, começa em Deus, alcançando o homem. **- Pe. Javier Olivera Ravasi** **Notas de Rodapé** 1. **Carlos Disandro**, *Argentina bolchevique*; Fray Petit de Murat, *Carta a un trapense*, entre outros. 2. O presente trabalho é, na verdade, um comentário à conferência ministrada pelo Dr. Antonio Caponnetto no ano de 2013 (pode ser vista aqui) a partir do artigo do Pe. García-Villoslada, "Rasgos característicos de la *devotio moderna*", em *Manresa*, 28 (1956), 315-358. Utilizamos a transcrição dessa conferência para acrescentar alguns conceitos próprios e as citações pertinentes do trabalho de García-Villoslada. Agradecemos também as contribuições do Pe. Federico Highton, SE. 3. García-Villoslada, *op. cit.*, p. 320. 4. *"As antigas Regras monásticas não designavam um tempo específico para a oração individual em privado. Embora recomendassem a meditação a todos, apenas se exigia, por regra, a oração pública e comum no coro."* (Ibidem, p. 321). 5. *"Quas materias sic solemus dividire et alternare, ut meditemur sabbatis de peccatis; dominica die dé regno coelorum; feriis secundis de morte; feriis tertiis de beneficiis Dei; feriis quartis de iudicio; feriis quintis de poenis inferni; feriis sextis de passione Domini…"* (Ibidem, p. 324). Para compreender esse método complicado e mecanicista de oração, observe-se como Mombaer, um de seus expoentes, organizava a oração: 6. **A) MODUS RECOLLIGENDI** (*quid cogito, quid cogitandum*); 7. **B) GRADUS PRAEPARATORII** (*repulsio eorum quae minus cogitanda*); 8. **C) GRADUS PROCESSORII ET MENTIS** (*exercício da memória: commemoratio, consideratio, attentio, explanatio, tractatio*); 9. **D) GRADUS PROCESSORII ET IUDICII** (*exercício do entendimento: dijudicatio, causatio, ruminatio*); 10. **E) GRADUS PROCESSORII ET AFFECTUS** (*da vontade: gustatio, quaerela, optio, confessio, oratio, mensio, obsecratio, confidentia*); 11. **F) GRADUS TERMINATORII** (*gratiarum actio, commendatio, permissio*); 12. **G) MODUS COMMORANDI** (*complexio*). 13. Veja a respeito o belo livro de Josef Pieper, *El ocio y la vida intelectual*, Rialp, Madrid, 1962. 14. Santo Tomás de Aquino, *Suma Teológica*, II-II, q. 182, a. 1, ad. 3um. 15. Leonardo Castellani, *Sobre la obediencia*. Disponível em: Stat Veritas. 16. García-Villoslada, *op. cit.*, pp. 328-329. 17. Citado por García-Villoslada, *op. cit.*, p. 330. 18. Ibidem, p. 331. Tradução própria do latim. 19. Ibidem, pp. 334-335. 20. Santo Tomás de Aquino, *Suma Teológica*, II-II, q. 82, a. 1. 21. García-Villoslada, *op. cit.*, p. 335. 22. García-Villoslada, *op. cit.*, p. 339. 23. Ibidem, p. 340. 24. Tomás de Kempis, *Diologi novitiorum*, lib. I, cap. 4: *Opera VII*, 17, 18, 19, 21-22. 25. Ibidem, pp. 343-344. 26. Tomamos emprestadas estas palavras do Pe. Federico H., missionário na meseta tibetana. # A Devotio Moderna e a Obediência Cega 30/12/2024 Tradução: Prof. Gabriel Sapucaia Autor: Pe. Javier Ravasi ![](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000144-466d5466d7/obediencia-perfecta.jpeg?ph=4df81238fe) ##### **Devotio Moderna e a Obediência Cega** Já analisamos em outro lugar os traços característicos da **Devotio Moderna**, uma corrente de espiritualidade que, especialmente no século XV, começou a se infiltrar lentamente nos melhores círculos católicos e que ainda persiste nos dias atuais1. Entre suas principais características, mencionávamos um **excessivo regulamentarismo** que acabava por anular a pessoa, minando literalmente a consciência. Como atenuante, é importante reconhecer que Lutero nasceu em uma época que lhe permitiu absorver tanto o melhor quanto o pior de seu tempo: uma teologia escolástica decadente e, consequentemente, uma espiritualidade afastada da tradição católica. Não por acaso, **Taulero** era seu "místico favorito"2. Além disso: > *"O célebre Gerardo Groote gozava de grande autoridade até mesmo para Lutero. É sabido o quanto a influência de Groote foi poderosa sobre a vida monástica de sua época (...) Com o espírito de Rusbrokio (Ruysbroeck) foi escrito o livrinho Imitação de Cristo, que no tempo de Lutero já estava amplamente difundido, tanto manuscrito quanto impresso. Ele estava nas mãos de todos, inclusive dos protestantes"34.* **A obediência segundo Lutero** No início de sua vida religiosa, o frade alemão era um firme defensor da virtude (e do voto) da **obediência**, que ele entendia como **"a maior das virtudes"**. Antes de sua ruptura com a Igreja de Roma: > *"Ele enfatizava com toda a sua força que os súditos deveriam cultivar a obediência, sem a qual não há salvação, sacrificando seus exercícios privados aos gerais e claustrais, ou seja, aos prescritos pelas regras – em uma palavra, à obediência: 'ninguém é justo, exceto o obediente'"5.* **Os perigos da obediência cega** Em linhas gerais, é inegável que Lutero tinha razão ao valorizar a obediência. Contudo, em nome dessa virtude, não foram poucas as atrocidades cometidas nos claustros, transformando "inferiores" em "superiores" que agiam como tiranetes. Como observava **Castellani**, muitos que não quebravam a castidade frequentemente falhavam na caridade e na prudência. O Lutero agostiniano e extremamente observante acreditava que a salvação podia ser alcançada **pela consciência do prelado**, ou seja, do superior, colocando a própria alma em "modo obediência" – por assim dizer: > *"Por muitos anos, vemos Lutero no claustro exercitando exteriormente e nas observâncias exteriores uma obediência cega (...). Pelo que podemos rastrear em seus escritos, ele sempre defendia a necessidade da obediência cega no claustro (...). Interpretando o versículo 2 do Salmo 1: 'Na lei do Senhor está sua vontade', Lutero escreve: 'Hoje em dia, especialmente, muitos religiosos reservam para si o juízo sobre aquilo que seus superiores lhes mandam. Isso não é estar sob o superior, mas acima do superior. Ao religioso deve bastar um único motivo para obedecer: ter prometido obediência. Ele não deve, como a serpente no paraíso, perguntar 'por quê?'. Deus não quer sacrifícios, mas obediência; Ele não precisa de nossas grandes obras, pois pode fazer muito maiores. Ele nos pede apenas obediência. Até o menor e mais desprezível mandamento tem valor, enquanto a desobediência é infinitamente vil, mesmo nas obras mais grandiosas e importantes.' No ano seguinte, Lutero repete a mesma ideia: \*'Qualquer coisa que façamos sem relação à obediência é uma obra defeituosa'"6.* **A posição de Santo Tomás de Aquino** Santo Tomás de Aquino, referência constante e indispensável, já afirmava no século XIII que é a **consciência** – mesmo quando errônea – que obriga a alma mais do que o preceito de um superior1. Por isso, é impossível suspender o exercício da consciência em virtude de uma ordem superior. Mas poderíamos nos perguntar: de onde surge esse **regulamentarismo** ou **obediencialismo**, tão distante da concepção tradicional? Não seria mais lógico um "subjetivismo" em pleno Renascimento? A resposta é não. Quando o homem se afasta de Deus como princípio e fim e se coloca no ápice da realidade natural e sobrenatural, nada pode estar acima da lei positiva. É esse afastamento que levará Luís XIV a declarar: **"L'État c'est moi!"** O homem moderno posiciona o próprio homem como origem da lei. Por outro lado, a espiritualidade tradicional via a obediência de forma muito diferente, como proclamava São Bernardo ao professar: **"Prometo... obediência segundo a Regra de São Bento" – e, portanto, não segundo a vontade ou o capricho do superior**2. Santo Tomás era ainda mais claro: > *"Quem faz profissão não promete observar todas e cada uma das coisas prescritas pela regra, mas a observância da vida regular, cuja essência está compreendida nesses votos. Faz-se voto, não à regra, mas de viver segundo a regra, ou seja, ajustar os costumes à regra como a um modelo"3.* **Obediência na espiritualidade tradicional** A obediência, na espiritualidade tradicional, não era cega, idiota ou absoluta, mas visava seguir o essencial da regra sob a **guia prudente de um superior**, que governava com caridade e confiança mútua. Lutero, no entanto, entendia a obediência sob os moldes da **Devotio Moderna**: > *"Eis que eu fiz voto de toda a Regra de Santo Agostinho", jurando cumprir cada artigo e exortação da regra, de modo que seria impossível considerar a regra algo amável. Na Regra de Santo Agostinho, por exemplo, está escrito: 'Não tomem banho, a menos que seja necessário, e, ao menos, de dois ou três juntos.' Assim, se alguém, sendo eremita, não se banhasse em companhia de outros, estaria violando o voto"4.* **O declínio da obediência na Devotio Moderna** > Como observa o Pe. Denifle: > > "Em suas obras e sermões posteriores, a ideia que Lutero mais repete em todos os tons é que os religiosos colocam seus fundadores no lugar de Deus e de Cristo"5. Embora houvesse casos que justificassem essa crítica, Lutero acabou, com o tempo, abraçando o extremo oposto. Ele declarou: > *"Quando penso que nada justifica diante de Deus, senão o sangue de Cristo, surge-me a seguinte conclusão: nesse caso, os estatutos dos papas e as regras dos fundadores nos desviam do caminho verdadeiro, sendo motivo suficiente para que todos os conventos sejam destruídos"6.* Esse declínio reflete não apenas uma deterioração da vida religiosa, mas também um **juridicismo** e até mesmo uma interpretação farisaica das leis, promovidas pelo regulamentarismo indecente da nova espiritualidade. Lutero afirmava: > "Sob o papado, aterrorizavam-se as consciências, porque, por exemplo, se eu, enquanto monge, saísse da cela sem escapulário, acreditaria ter cometido pecado mortal, pois um monge não pode andar sem escapulário"7. De obediencialista, Lutero passou ao extremo oposto. Em 1531, ele ironizou: > *"A Igreja permite ensinar e acreditar que quem solta um prisioneiro na sacristia comete pecado mortal, e quem flatula no altar é condenado. Ouçamos ainda este insigne artigo de fé: aquele que, ao lavar a boca com água, engole uma gota, não pode celebrar missa. E se um mosquito entrar em sua boca enquanto está aberta, não poderá receber o Sacramento naquele dia. E assim, eles têm uma infinidade de artigos esplêndidos sobre os quais sua Igreja imunda está fundada"8.* **A diferença com a espiritualidade tradicional** > Para entender a diferença entre essa concepção rigorista da lei e a devoção tradicional, é necessário voltar a Santo Tomás, que, ao tratar do jejum eucarístico, afirmou: > > *"Se o sacerdote lembrar, após a consagração, que comeu ou bebeu algo, deve completar o sacrifício e assumir o sacramento. Da mesma forma, se lembrar de que cometeu um pecado, deve arrepender-se com o propósito de confessar e satisfazer, assumindo o sacramento não de forma indigna, mas frutífera. E se lembrar que está excomungado, deve propor-se a pedir absolvição. Assim, será absolvido pelo Pontífice invisível, Jesus Cristo, para completar os mistérios divinos"9.* Onde está o rigorismo? Apenas na concepção de Lutero. **Que não lhe contem uma história diferente...** **- Pe. Javier Olivera Ravasi** **Notas de Rodapé** 1. Seguimos aqui as fontes citadas e cotejadas a partir da monumental obra de Fray Heinrich Denifle (*já disponível em castelhano* *aqui* *e em francês* *aqui*). Os originais de Lutero consultados, tanto em alemão quanto em latim, encontram-se aqui. 2. Cf. Heinrich Denifle, *Lutero e o luteranismo: Estudados em suas fontes*, Tip. Col. Santo Tomás de Aquino, Manila, 1920, p. 175. 3. Em seu comentário sobre a Carta aos Romanos, c. 5, fol. 167, Lutero considera que ninguém explicou tão bem quanto Gerardo Groote a natureza do pecado original. 4. Heinrich Denifle, *op. cit.*, p. 185. 5. *Weim.*, IV, 405 (Heinrich Denifle, *op. cit.*, p. 35). 6. *Dictata in Psalterium*, *Weim.*, III, 18 e IX, 306, ano 1513 (Heinrich Denifle, *op. cit.*, pp. 455-456). 7. Cf. Santo Tomás de Aquino, *De veritate*, q. 17, a. 5. 8. *"Non ergo secundum voluntatem praepositi"*. *De praecepto et dispensatione*, c. 4, n. 10 (Heinrich Denifle, *op. cit.*, p. 59). 9. Santo Tomás de Aquino, *Suma Teológica*, II-II, q. 186, art. 9, ad 1um. 10. Heinrich Denifle, *op. cit.*, p. 60. 11. Heinrich Denifle, *op. cit.*, p. 80. 12. *Weim.*, XX, 622 (Heinrich Denifle, *op. cit.*, p. 404). 13. Cf. *Erl.*, 44, 347; 48, 203; *Tischr.* ed. Foerstemann, III, p. 239 (Heinrich Denifle, *op. cit.*, p. 62). 14. *Erl.*, 25, 75 (Heinrich Denifle, *op. cit.*, p. 64). 15. Santo Tomás de Aquino, *Suma Teológica*, III pars, q. 83, a. 6, ad 2um. # Devotio Moderna, Monasticismo e Missão na América Hispânica 30/12/2024 **Tradução: Prof. Gabriel Sapucaia** **Autor: Pe. Javier Ravasi** ![](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000147-7a7657a766/capa_coloniza%C3%A7%C3%A3o.jpeg?ph=4df81238fe) ##### **Devotio Moderna, Monasticismo e Missão na América Hispânica** **"A magnificência da catedral gótica busca honrar a Deus; a pompa do barroco jesuíta, atrair o público"** (Gómez Dávila). Há algum tempo, escrevemos um texto intitulado **"A Devotio Moderna: características e sintomas de um católico tradicional"**. Esse texto não pretendia ser mais do que um simples resumo de leituras e reflexões sobre a **crise de espiritualidade** que boa parte do mundo católico enfrenta nos dias de hoje. Para nossa surpresa, o opúsculo – ou partes dele – parece ter tido uma repercussão significativa1, o que nos levou a pensar que não éramos os únicos interessados nesse tema, ao mesmo tempo tão esquecido e importante para o mundo católico. O que apresentamos agora, como continuação, é fruto de leituras, reflexões e conversas com amigos que, de diferentes perspectivas, tentam compreender o atual processo pelo qual passa a **Igreja militante nas terras americanas**. O pensamento expresso na citação inicial reflete uma corrente da espiritualidade católica que nos conduz a inúmeras conclusões. **1) Teocentrismo Medieval e Antropocentrismo Renascentista** O homem do Ocidente medieval, herdeiro do homem tradicional greco-romano, era distinto de nós. Embora tão humano quanto eu ou você, ele possuía uma maneira **diferente de enxergar a realidade**, uma cosmovisão singular. Em uma de suas obras fundamentais, Carlos Disandro explica: \*\*"Na primeira parte do Credo \[niceno-constantinopolitano\] – que se refere à primeira Pessoa da Trindade – ouvimos a seguinte afirmação: *Credo in unum Deum, Patrem omnipotentem, factorem caeli et terrae, visibilium omnium et invisibilium* (...). Existe, portanto, um cosmos de realidades visíveis e outro de realidades invisíveis"\*\*2. Deus, sendo absolutamente simples, criou, por sua multiforme graça e vontade, uma **pluralidade de seres** que dependem d'Ele em seu ser e agir. **O Cosmos Medieval** A afirmação de um mundo composto por realidades **visíveis e invisíveis**, centrado em Deus, distingue o homem medieval do homem moderno3. Para ilustrar essa cosmovisão, uma figura geométrica pode ser útil: \*\*"O cosmos visível está imerso no cosmos invisível; é um universo de sinais que, de certa forma, o manifestam; é uma organicidade viva que o propõe e o torna evidente nos mais altos níveis da contemplação (...). O primeiro princípio, natural ao antigo, corresponderia a dois círculos concêntricos: o mais externo representaria a imagem dos *invisibilia Dei*; os internos, por sua vez, os *visibilia Dei*. O teandrismo de Cristo é o centro absoluto dessa representação"\*\*4. **O Declínio da Harmonia Medieval** No final da Idade Média, essa harmonia começa a se deteriorar, fragmentar-se e, finalmente, extinguir-se. Os círculos passam a ser **excêntricos** e tendem à **tangencialidade**. Essa mudança culmina na plenitude do **Renascimento**. \*\*"É característico do Renascimento conceder uma certa autonomia à natureza (ou seja, ao cosmos visível), conferindo-lhe uma espécie de categoria divina, mesmo sem considerar as implicações do panteísmo"\*\*4. **A Separação do Homem de Seu Criador no Renascimento** A partir do chamado **Renascimento**, o homem começou a **se separar e se independizar de seu Criador**. Mas como isso aconteceu? Por uma soma de fatores que apenas nomearemos de forma desordenada: o **nominalismo imperante**, a **Peste Negra**, os **novos descobrimentos**, o **abandono do pensamento de Santo Tomás de Aquino**, o **Cisma do Ocidente**, entre outros tantos elementos impossíveis de listar. O fato é que o homem dos séculos XIV e XV gradualmente perdeu sua **cosmovisão tradicional e medieval**, afastando-se dos **invisibilia Dei** para focar nos **visibilia** e, dentre eles, no **visibilium por excelência**: o próprio homem. **As Consequências da Ruptura** Essa ruptura não foi sem custo. Caindo do mundo invisível, o homem começou a perder o princípio e fundamento que aquele lhe proporcionava. Como aponta Disandro: \*\*"Essa consciência, tão nítida no barroco (ou em algumas de suas manifestações mais decisivas), gera um processo de acumulação expressiva (seja na arte, seja nas ciências, seja na religião). Porque agora é necessário cobrir o vazio existencial com contextos acumulativos e estratificados que afastem o abismo do infinito"\*\*1. Em outras palavras, o homem, abandonado a si mesmo, começou a experimentar o **vazio existencial**. Quem já leu a literatura do **Século de Ouro espanhol** perceberá esse espírito (com perdão do hegelianismo) em autores como **Quevedo**, **Lope de Vega** ou **Góngora**, cujas expressões, quase **nietzschianas avant la lettre**, refletem o **vacuum vitae** experimentado por muitos. **A Ação da Devotio Moderna** É nesse contexto que a corrente da **Devotio Moderna**, que começou a se insinuar no final do século XIV e floresceu com vigor na primeira metade do século XV, passou a expressar seu esplendor em parâmetros bem diferentes da espiritualidade medieval tradicional2. Como já discutido no artigo anterior, aqui mencionamos apenas algumas de suas **características principais**: - **Relegação do monasticismo tradicional**, com uma ênfase em uma piedade **individualista e subjetiva**, que rejeita qualquer **raiz no culto litúrgico**, preparando o terreno para a ideia central da Reforma Luterana: a **justificação pela fé**3. - **Equiparação entre vida contemplativa e vida ativa**, com a última se tornando a essência da vida religiosa. O homem, agora centrado em si mesmo, deve "agir", pois tudo depende dele. - **Relegação da vida intelectual, teológico-mística**, com desconfiança da inteligência. Essa característica influenciou tanto a corrente protestante quanto as teologias e filosofias "cristãs" subsequentes. - **Abandono do magistério espiritual tradicional**; os **Santos Padres da Igreja**, por exemplo, começaram a ser esquecidos ou ignorados no estudo e na pregação, provocando um corte qualitativo difícil de reparar. - **Tendência psicologista e moralizante**, que coloca o foco da vida religiosa em uma espécie de domínio e uso da vontade e das emoções, tanto por parte da alma devoto-moderna quanto de quem atua como seu diretor ou guia espiritual. - **Aparição e multiplicação de métodos e regulamentos** de vida para condução espiritual e moral. **Impacto na Evangelização do Novo Mundo** Com as características da **Devotio Moderna** resumidas, cabe agora analisar de forma breve como essa espiritualidade pode ter influenciado, se é que influenciou, a evangelização do **Novo Mundo**. **2. A Espiritualidade que Chegou à América** A urgência de combater o **protestantismo**, a decadência das **ordens monásticas** e o ambiente vivido na **Espanha do século XV** – ainda que esta fosse mais "medieval" em comparação às suas nações vizinhas – constituíam a realidade que conduziria a grandiosa tarefa de **transplantar um mundo inteiro em outro**. Tratava-se de conquistar e evangelizar, conforme o mandato papal. E a Espanha ofereceu o que era: ela mesma. Quanto à evangelização, como ocorreu? **Por meio das ordens apostólicas e missionárias** (franciscanos, dominicanos, mercedários, etc.) e, mais tarde, com a **Companhia de Jesus**, que, em seus primórdios, prometia ser a cavalaria leve da Igreja. E as ordens monásticas? Estas tiveram **pouca ou nenhuma influência direta** na evangelização. Felipe II, por exemplo, chegou a proibir o envio de ordens contemplativas. Por quê? Por dois motivos principais: - **A urgência da evangelização**: era necessário "apostolar" ativamente milhões de almas que não conheciam o nome de Jesus. - **A decadência das ordens contemplativas na Europa**: muitas viviam de rendas e gozavam de péssima reputação, como recorda o trabalho de reforma espiritual de Isabel, a Católica, São João da Cruz e Santa Teresa na Espanha1. **O Catolicismo que Chegou à América** Foi o **religioso de vida ativa** – ou, melhor, de **vida mista** – que partiu para a América, levando consigo o **catolicismo vivido na Europa de então**, particularmente o espanhol. Gostemos ou não, esse foi o **catolicismo que chegou até nós**. O crítico Carlos Disandro, um severo opositor da modernidade e da espiritualidade barroca, afirma que essa evangelização, apesar de seus méritos, restringiu: \*\*"Todo acesso à experiência do Mistério Cristão, abolindo as vias de participação no Culto e relegando o significado primordial da palavra laudante, elo operativo entre os *visibilia* e os *invisibilia Dei*. É precisamente essa mentalidade barroca que determina o vínculo religioso, espiritual e cultural da América. Desde o início do século XVI, o barroquismo religioso extinguiu o vigor contemplativo e converteu a antiguidade em modernidade"\*\*2. **Crítica Justa?** Essa crítica é válida? Todos os missionários que vieram para as terras americanas eram filhos de seu tempo. Contudo, é justo dizer que extinguiram o "vigor contemplativo" ou que impediram o "acesso ao Mistério Cristão"? Se assim fosse, como explicar os numerosos santos missionários de vida contemplativa exemplar, como **Santa Rosa de Lima** ou **Santa Teresa dos Andes**? Como explicar a gigantesca obra realizada pela Companhia de Jesus, mesmo com suas falhas? A crítica de Disandro parece **exagerada e simplista**. **Havia Outra Opção?** Naquela época, seria possível enviar apenas monges em vez de missionários? Não. As circunstâncias históricas já descritas demonstram que isso não seria viável nem conveniente. Afinal, **o apóstolo vem primeiro; o monge, depois**. Fray Petit de Murat, um intelectual dominicano, observou que, embora a obra da Espanha tenha sido titânica, ela era incompleta porque faltava o monasticismo. Ele argumenta que essa lacuna deixou marcas no DNA espiritual da América. Em suas palavras: \*\*"Nossas formas de apostolado sofrem de uma debilidade intrínseca. Há muita agitação. Multiplicam-se atividades e instituições até a exaustão. Sacerdotes e religiosos se dividem em várias tarefas que se sobrepõem, sufocando umas às outras. Os fiéis abnegados, verdadeiramente militantes, sofrem porque sua própria ação seca o espírito devido à organização complexa de reuniões e atos. Jovens sem maturidade espiritual querem servir a Cristo mais nos outros do que em si mesmas (...). Espanha não completou sua obra na América; há regiões extensas sem clero, onde a fé católica se baseia apenas nas lembranças profundas do que aqueles missionários plantaram. A poderosa corrente missionária espanhola foi frustrada em parte, porque não se consumou em seu fruto lógico: a fundação de mosteiros"\*\*3. Petit de Murat continua: "O ativismo atual alcançou um resultado inesperado: expôs sua impotência intrínseca para converter almas. A atividade apostólica, quando não emana de uma contemplação amadurecida de Cristo e seus Mistérios; quando busca nutrir-se de si mesma ou, no máximo, de substitutos insípidos da vida monástica (como ensinar aos fiéis que podem unir-se a Deus apenas com missas frequentes, comunhão entre ônibus e escritório, meia hora de meditação e um diretor espiritual), deriva em agitação vazia. Em vez de converter, aumenta a confusão e o desconcerto (...). Sem purificação adequada que permita à graça santificante fluir plenamente na alma, o Espírito Santo não age como deveria em meio a tantos resíduos individuais e mundanos"4. Apesar das verdades afirmadas por Fr. Petit de Murat, discordamos de sua visão. Nem a obra da **Espanha**, nem a própria Espanha, podem ser culpadas por nossos males espirituais. Pelo contrário, foi graças a ela, que **morrendo para si mesma**, ocorreu a *plantatio Ecclesiae* nas terras americanas. É verdade que teria sido ideal fundar **mosteiros tradicionais e observantes**, com monges de grande santidade, junto aos missionários ou após eles. Contudo, **a história é o que é**, e não o que gostaríamos que tivesse sido. O monasticismo na América ainda está por ser fundado. Mas isso não é culpa da Companhia de Jesus, nem da Espanha, nem de Felipe II. Se há alguma culpa, ela é nossa, hoje, ou dos monges relaxados de antigamente. Seria interessante investigar as causas do relaxamento monástico renascentista. Alguns, sem experiência nas missões *ad gentes* ou com um romantismo utópico, tentam comparar o método de evangelização da Europa com o que seria ideal para a América. É justa essa hipótese? Absolutamente, não. O **Velho Mundo** foi evangelizado sob **circunstâncias muito diversas**. Primeiro vieram os pregadores apostólicos, que plantaram a Igreja (*plantatio*), e só depois, os monges e eremitas a conservaram (*conservatio*) por meio do culto e da cultura. É verdade que, em certos momentos, o monasticismo ocidental foi um **foco de atração**, com seus campos, trabalhos e escolas. No entanto, seria possível aplicar esse método à **América idolátrica e incivilizada** recém-descoberta? Possivelmente sim, mas provavelmente não, como já apontado acima no contexto histórico. Pensar que a Igreja poderia ser plantada exclusivamente pelo monasticismo em um lugar como a América, ou qualquer outro, é um **angelismo utópico**. Se o monasticismo fosse suficiente para propagar a Boa Nova, então Nosso Senhor teria escolhido uma vida exclusivamente contemplativa para si e para seus apóstolos. Como explica Santo Tomás, a vida mista – que combina a contemplação e a ação – é ainda mais perfeita do que a meramente contemplativa1. Cristo escolheu enviar os apóstolos para evangelizar e converter, e não para fundar mosteiros. Petit de Murat aponta que: \*\*"O missionismo que não culmina na fundação de mosteiros, cedo ou tarde, acrescenta à Igreja não santos, mas apenas simpatizantes e afiliados"\*\*2. Embora entendamos o que ele quis dizer, considerar que \*\*"a vida monástica é a única capaz de dar o ambiente adequado para o desenvolvimento dos sacramentos"\*\*3 é uma hipérbole. Se isso fosse verdade, São Paulo jamais teria alcançado a santidade. Concordamos que sem a *conservatio Ecclesiae* proporcionada pela vida monástica ou mista, a *plantatio Ecclesiae* pode perecer. Isso é indiscutível, especialmente hoje, em meio ao **processo de desacralização** que afeta o culto e a cultura da Igreja. Contudo, acreditar que a solução seria apenas a fundação de alguns mosteiros beneditinos em áreas missionárias é uma **puerilidade**. Como escreveu Disandro: \*\*"A ruptura vivida pela América Latina no século XX é o término de um processo intrínseco à mentalidade que fundou ou contribuiu para fundar a Hispano-América. A ruptura com o sagrado se instalou em todos os estratos da vida hispano-americana (...). Há uma tentação frequente de reduzir a tarefa cristã à realização de 'espetáculos de massa': missas com enorme participação, campanhas de comunhão com números impressionantes, e afirmações propagandísticas que começam por reunir multidões e terminam em delírios de fervor público. Embora isso possa ser necessário em determinadas circunstâncias, é marginal para a tarefa cristã e deve ser friamente considerado no contexto religioso hispano-americano"\*\*4. **A Obra Espanhola: Um Espírito de Cruzada** Disandro provavelmente referia-se ao **Congresso Eucarístico Argentino** (Buenos Aires, 1934), no qual multidões aclamaram o **Jesus Sacramentado** pelas ruas. Concordamos que tais "espetáculos de massa" podem ser infecundos se não forem acompanhados de trabalho contínuo após o fervor inicial. No entanto, não é racional condená-los a priori. Devemos aplicar aqui o princípio do **"et...et"** (isto e aquilo), e não do **"aut...aut"** (isto ou aquilo). Desde que realizados com dignidade e esplendor litúrgico, esses eventos podem ser um **serviço latrêutico** e uma introdução a uma espiritualidade mais profunda. Por fim, é injusto afirmar que a **Hispano-América nasceu sem referência à Idade Média**5. Ainda que a Espanha dos séculos XV e XVI fosse influenciada por aspectos da *Devotio Moderna*, não podemos ignorar que foi ela, com um **puríssimo espírito de cruzada**, que empreendeu a conquista, oferecendo o melhor de si e implantando na América instituições de origem medieval. Resumindo: a espiritualidade que chegou à América, pelos fatores históricos mencionados, foi eminentemente **ativa, apostólica e missionária**. Mesmo que alguns de seus protagonistas estivessem imersos nos males de sua época, isso não impediu a realização da **obra épica e historicamente insuperável** que Deus, em Sua misericórdia, realizou por meio da Espanha. Diante das circunstâncias, podemos nos perguntar: **poderia ter sido feito de outra maneira?** Acreditamos que não. **3. Um Caminho para Completar a Evangelização** A *plantatio Ecclesiae* foi realizada; agora é necessária a *conservatio*. Mas como? Talvez nos arriscando a fazer o que já foi tentado em outras épocas. A Fé na América tem apenas quinhentos anos – menos do que o tempo que decorreu entre a paz de Constantino e o auge da Idade Média! Assim como na Europa houve momentos de crise e de grandeza, é necessário não só continuar a obra evangelizadora, livre de todo devoto-modernismo, mas também complementá-la com a **implantação do monasticismo tradicional**, que permita conservar o que foi plantado. Hoje, na Europa apóstata, são os **mosteiros tradicionais** que estão voltando a ser essas fortalezas perenes de louvor a Deus. É para lá que devem convergir nossos esforços, para recuperar esse imenso tesouro da cristandade. **Uma Anedota Inspiradora** Há cerca de um ano, com um grupo de jovens universitários, estávamos hospedados na **abadia beneditina de Fontgombault**, na França. Seus maitines, seus sinos e sua liturgia tradicional nos fizeram experimentar um vislumbre do que deve ter sido o monasticismo medieval. As paredes do mosteiro têm mais de mil anos, mas apenas no início do século XX, graças ao sonho de alguns apaixonados pelo monasticismo, a tradição monástica pôde ser restaurada. Durante nossa estadia, pedimos uma audiência em grupo com o abade. Para nossa surpresa, ele não estava presente, pois estava em visita a uma nova fundação. Fomos então recebidos por um jovem prior, de não mais de trinta e cinco anos. Depois das perguntas de praxe – "O que vocês fazem? Como é o vosso horário?" – tomei coragem e, com certa ousadia, pedi publicamente: **"Por favor, fundem uma abadia assim no meu país, a Argentina."** Sua resposta foi memorável: **"Padre, nenhum problema! É muito simples: que venham passar aqui uns cinco ou seis anos, um grupo de 12 ou 13 jovens argentinos; que aprendam o que é ser um monge beneditino e depois regressem ao seu país para fundar uma abadia que seja mãe de outros mosteiros…"** Fiquei pensando e logo me ocorreu: **"E quem sabe se esses 12 ou 13 já não nasceram?"** **O Chamado à Ação** Porque \*\*"não há nada a guardar, há que dar. Não há nada a restaurar, há que criar. Não há nada a custodiar, há que fundar"\*\*1. A América tem apenas quinhentos anos voltada para Deus; agora é o momento de continuar a obra que foi iniciada. **Pe. Javier Olivera Ravasi** Himalaia, 30 de dezembro de 2016 ##### Notas de Rodapé 1. Foi-nos solicitado permissão para traduzir o texto para outros idiomas. 2. Carlos A. Disandro, *"España y el hombre barroco. Epílogo para hispanistas"*, em *Tres poetas españoles*, La Hostería Volante, La Plata, 1967, p. 160. Embora Disandro fosse um intelectual privilegiado e de grande brilho, temos profundas diferenças com ele, tanto em sua perspectiva eclesiológica e filosófica quanto em sua atuação prática, especialmente no final de sua vida. 3. **"O homem é o centro do mundo, de tudo o que foi criado – tanto visível quanto invisível – porque nele se articulam de maneira única os dois níveis \[o espiritual e o corporal\]. Tudo o que o homem antigo-medieval acredita, pensa, imagina, cria ou produz, obedece a essa norma universalíssima e absoluta"** (Carlos A. Disandro, *"España y el hombre barroco. Epílogo para hispanistas"*, p. 162). 4. Ibidem, pp. 163-164. Os destaques em negrito são nossos. 5. Ibidem, p. 165. 6. Já resumimos, em nossa opinião, as características principais dessa corrente de espiritualidade. Aqui apresentamos as que o prof. Disandro propõe, com alguns acréscimos próprios (cf. Carlos A. Disandro, *El breve que abolió a la Compañía de Jesús*, La Hostería Volante, La Plata, 1966, p. 5). 7. Carlos A. Disandro, *El breve que abolió a la Compañía de Jesús*, p. 5. 8. **"Careciam de impulso fundacional e, por isso, cederam espaço aos mais novos frades"** (A. Linage Conde, *"El monacato en la América virreinal"*, em: *Quinto Centenario*, Madrid, Universidad Complutense, vol. 5, 1983, p. 75). Sobre o tema, pode-se consultar o trabalho da Dra. Andrea Greco de Álvarez, *La Vida Contemplativa y la Evangelización de América*. 9. Carlos A. Disandro, *"España y el hombre barroco. Epílogo para hispanistas"*, pp. 178-180. 10. Fr. Mario Petit de Murat, *Carta a un trapense*. 11. Ibidem. 12. Santo Tomás de Aquino, *Suma Teológica*, II-IIae, q. 188, a. 2. 13. Ibidem. 14. Fr. Mario Petit de Murat, *Carta a un trapense*. 15. Carlos A. Disandro, *Argentina bolchevique*, La Hostería Volante, La Plata, 1960, p. 24. 16. Ibidem, p. 28. 17. É especialmente curioso que alguém como Disandro, defensor da contemplação e da vida intelectual, tenha promovido em seus últimos anos o ativismo e até mesmo a luta armada em favor (nem mais, nem menos!) do peronismo. 18. Carlos A. Disandro, *"España y el hombre barroco. Epílogo para hispanistas"*, p. 183. # A Devotio Moderna e a Mortificação da Carne 30/12/2024 **Tradução: Prof. Gabriel Sapucaia** **Autor: Pe. Javier Ravasi** ![](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000150-9bc6e9bc70/Italia_SanGimignano_DuomoAffresco.jpeg?ph=4df81238fe) ##### **Devotio Moderna e a Mortificação da Carne** **"Os hereges não podem parecer algo bom, a menos que pintem a Igreja como perversa, falsa e enganadora. Desejam ser considerados os únicos bons, enquanto a Igreja deve ser vista como perversa por todos os lados"** (Lutero antes de sua apostasia)1. **Uma Espiritualidade Estoica** Com uma visão quase **estoica da vida espiritual**, a *Devotio Moderna* propunha – simplificando seus postulados – que quanto mais se sofre nesta vida, ou quanto mais alguém se determina a abraçar o caminho mais difícil, mais santo se tornará2. É verdade que, como dizia Nosso Senhor, **"o Reino dos Céus pertence aos que se esforçam violentamente"** (Mt 11,12). No entanto, isso não significa que todo consolo – espiritual ou sensível – deva ser completamente rejeitado como algo intrinsecamente mau. **Lutero e a Mortificação** Para Lutero, herdeiro dessa espiritualidade moderna, o tema era claro: \*\*"Um estado religioso, se ele conhece bem, deve estar cheio de padecimentos e dores. Assim, exercerá melhor o batismo do que no estado matrimonial e, por meio de tais sofrimentos, habituar-se-á a esperar a morte com alegria, obtendo, em breve, o fruto do seu batismo"\*\*3. Seu **voluntarismo pelagiano** ou **semi-pelagiano** o impedia de enxergar a obra de Deus nas almas: \*\*"Nunca pude me dar por satisfeito com meu batismo; sempre me perguntava: quando você vai se tornar santo e satisfazer suas dívidas, para que possa encontrar um Deus benigno? Com esses pensamentos, entrei no claustro, martirizando-me com jejuns, frio e uma vida rigorosa, mas tudo o que consegui foi perder o santo batismo e até renegá-lo"\*\*4. **A Prudência na Tradição** Longe dessa "santidade à força", a **Devotio Tradicional** sempre defendeu o contrário. Desde a primeira de suas famosas *Collationes*, Cassiano pregava contra o excesso e a falta de prudência em práticas como jejum, vigílias e oração. Na segunda *Colação*, ele desenvolve o tema da **discrição**: \*\*"Muitos foram iludidos por exercícios indiscretos de penitência, como vigílias e jejuns. Eles negligenciaram a virtude da discrição, chamada no Evangelho de 'o olho e a luz do corpo', que nos ensina o caminho do meio entre o excesso e a carência"\*\*5. Lutero, no entanto, **penitente imprudente**6, oscilou entre extremos, primeiro abraçando o rigor e, mais tarde, desprezando essas práticas: \*\*"Cristo não veio ao mundo para destruir corpo e alma, mas para proteger ambos. Não é razoável que um cartuxo se mate com jejuns e orações. Essa atividade deve ser moderada, de modo que o corpo mantenha sua saúde. Quem se martiriza assim é um verdadeiro suicida. Guarde-se disso como de um pecado mortal"\*\*7. **Do Rigor ao Descontrole** Das penitências rigorosas, Lutero passou ao descontrole, como ele mesmo confessava em 1521: \*\*"Fico aqui deitado o dia todo, preguiçoso e bêbado"\*\*8. No ano seguinte (1522), ele observava que, ao escrever, ainda estava sóbrio, pois fazia isso pela manhã: \*\*"No momento, não estou bêbado, nem confuso"\*\*9. Para Lutero, embriaguez ocasional era aceitável, mas não habitual: \*\*"Nosso Senhor deve computar como pecados diários a embriaguez quando inevitável. Pode-se tolerar a *ebrietudo* (embriaguez ocasional), mas não a *ebriositas* (embriaguez habitual)"\*\*10. De beber apenas água, Lutero passou ao extremo oposto, chegando a atribuir dores de cabeça ao vinho: \*\*"Minha dor de cabeça, contraída em Coburgo pelo vinho velho, ainda não foi curada pela cerveja de Wittenberg"\*\*11. **O Fim de Lutero** Não surpreende que o outrora penitente tenha terminado sua vida após uma de suas habituais bebedeiras. Como relatou o médico que atestou sua morte: \*\*"Em 15 de fevereiro de 1546, um boticário foi chamado às pressas para atender Lutero. Foi-lhe administrado um clister, e 'assim que o boticário inseriu a cânula, ouviu ventos ruidosos no recipiente devido ao excesso de comida e bebida, pois o corpo estava cheio de substâncias corruptas. Lutero era conhecido por ter uma cozinha bem abastecida e um gosto por vinhos doces e estrangeiros. Certamente, em cada refeição, consumia um grande volume desses vinhos'"\*\*12. **Que não lhe contem outra história...** **Pe. Javier Olivera Ravasi** --- **Notas de Rodapé** 1. *Dictata in Psalterium*. *Weim.*, III, 445. Cf. também IV, 363 (Heinrich Denifle, *Lutero e o luteranismo: Estudados em suas fontes*, Tip. Col. Santo Tomás de Aquino, Manila, 1920, p. 16). 2. Seguimos aqui as fontes citadas e cotejadas a partir da monumental obra de Fray Heinrich Denifle (*já disponível em castelhano aqui e em francês aqui*). Os originais de Lutero consultados, tanto em alemão quanto em latim, encontram-se aqui. 3. *Weim.*, II, 736 (Henrich Denifle, *op. cit.*, p. 44). 4. *Erl.*, 16, 90, ano 1535 (Henrich Denifle, *op. cit.*, p. 416). 5. Henrich Denifle, *op. cit.*, p. 427. 6. Até mesmo Kempis fala sobre discrição na penitência: **"Os exercícios corporais (isto é, as mortificações) devem ser feitos com discrição e não são igualmente apropriados para todos (...). Alguns indiscretos se destruíram por causa da graça da devoção, pois presumiram fazer mais do que podiam, não observando a medida de sua pequenez, seguindo mais o desejo de seus corações do que o julgamento da razão. Por terem se aventurado além do que Deus queria, logo perderam a graça"** (Henrich Denifle, *op. cit.*, p. 437). 1. *Erl.*, 2, 464; ano 1533 (Henrich Denifle, *op. cit.*, p. 370). 2. *Enders*, III, 154 (Henrich Denifle, *op. cit.*, p. 116). 3. *Erl.*, 30, 363 (Henrich Denifle, *op. cit.*, p. 117). 4. Mathesius em Loesche, *Anal. Lutherana*, p. 100, nº 100 (Henrich Denifle, *op. cit.*, p. 117). 5. *Enders*, VIII, 345 (Henrich Denifle, *op. cit.*, p. 118). 6. Ver o documento em Paulus, *Luthers Lebensende und der Eislebener Apotheker Johann Landau* (Mainz, 1896, p. 5) (Henrich Denifle, *op. cit.*, p. 119). # A Devotio Moderna Nominalista, Voluntarista e Sua Origem Gnóstica 30/12/2024 **Tradução: Prof. Gabriel Sapucaia** **Autor: Pe. Basílio Méramo** ![](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000153-c17cfc17d1/270post.png?ph=4df81238fe) ##### **A *Devotio Moderna* Nominalista, Voluntarista e Sua Origem Gnóstica** **Raízes e Influências da *Devotio Moderna*** É essencial compreender a relação entre a chamada *Devotio Moderna* – cujo principal expoente místico foi **Tomás de Kempis** (1380-1471) – e a mística alemã renana, representada pelo dominicano **Eckhart** (1260-1328), comumente conhecido como Mestre Eckhart. Embora seja considerado um grande místico, o pensamento de Eckhart possui traços gnósticos e cabalísticos, a ponto de ser visto como o grande metafísico da Gnose. A *Devotio Moderna* surgiu como uma corrente espiritual na baixa Idade Média, nos **Países Baixos**, no final do século XIV. Seus fundadores foram **Gerardo Groote** (1340-1384), criador da organização feminina **Irmãs da Vida Comum**, e seu seguidor **Florêncio Radewijns** (1350-1400), que fundou a congregação masculina **Irmãos da Vida Comum**. Em 1378, Radewijns inaugurou em Windesheim, Alemanha, um mosteiro que unia clérigos e leigos, dando origem à comunidade de canônicos regulares de Santo Agostinho. A espiritualidade da *Devotio Moderna* pode ser descrita como **voluntarista, antiespeculativa, nominalista e moralista**. **Influências Filosóficas e Teológicas** A *Devotio Moderna* foi influenciada pelo **voluntarismo teológico de Duns Escoto** (1265-1306) e pelo **nominalismo de Guilherme de Ockham** (1295-1350). Não se pode ignorar o impacto do nominalismo, nascido da antiga disputa escolástica sobre os universais, que reduziu as essências a meros nomes (*nomina*). Esse nominalismo influenciou profundamente a teologia e o pensamento filosófico, cujas consequências negativas ainda sentimos. O próprio conceito de *Devotio Moderna* reflete a marca de Ockham, que contrastava com a escolástica tradicional. Ockham, figura central do nominalismo, deu continuidade às ideias de Roscelino (1050-1121) e Abelardo (1079-1142). Seu **voluntarismo extremo** afirmava que: **"Se Deus mandasse adorar uma mula, esse ato seria bom"**, pois, segundo ele, todo o bem e o mal dependem unicamente da vontade de Deus e não de Sua sabedoria. Essa visão é bem ilustrada nas palavras de Ockham, segundo as quais: **"O que Deus quer é necessariamente justo e bom, precisamente porque Ele o quer. De Sua vontade procede a lei e todo valor ou qualificação moral. (...) Deus pode mudar o primeiro mandamento e ordenar, por exemplo, que um homem O odeie; nesse caso, tal ato seria bom. Igualmente, o ódio ao próximo, o roubo e o adultério seriam meritórios se Deus assim o ordenasse"** (*Les Sources de la morale chrétienne*, P. Servais-Théodore Pinckaers O.P., Ed. du Cerf, Paris, 1993, p. 256). **A Resposta de Santo Tomás de Aquino** Esse voluntarismo nominalista foi refutado por **Santo Tomás de Aquino**, que considerava **blasfemo** afirmar que Deus cria ou ordena algo sem considerar Sua inteligência e sabedoria. Tomás ensina: **"Deus age voluntariamente, mas por uma ordenação de Sua sabedoria"** (*Suma Teológica*, I-II, q. 79, a. 3). E vai além: **"Dizer que a justiça depende unicamente da vontade divina é afirmar que a vontade de Deus não procede segundo a ordem da sabedoria, o que é blasfemo"** (*De Veritate*, q. 23, a. 6). Com isso, Santo Tomás condena claramente o **voluntarismo teológico**. O **Pe. Cornelio Fabro**, de quem o Pe. Meinvielle afirmou: **"É possível que, após sete séculos de tomismo, apenas o Pe. Fabro tenha compreendido novamente o ato de ser? É possível...?"** (*Elvio Fontana, In Memoriam Cornelio Fabro*, Ed. Verbo Encarnado, San Rafael - Mendoza, Argentina, 1995, p. 31). Infelizmente, a escola tomista, desde Cayetano e Báñez, tornou-se mais cayetanista e bañeciana do que propriamente tomista. O Pe. Fabro, ao tratar do **nominalismo protestante de inspiração agostiniana**, classificou o nominalismo como a **maior tragédia espiritual** que já recaiu sobre a razão humana. Ele descreve essa corrente como um fideísmo absoluto, que desvirtua a verdadeira fé ao propor que quem crê não entende nem raciocina – visão que foi o berço do protestantismo. O Pe. Fabro também aponta o **nominalismo em Tomás de Kempis**, autor da *Imitação de Cristo*, com a seguinte advertência: **"O autor da Imitação de Cristo – sem dúvida, um autor profundo, mas nominalista – escreve: 'De que me serve compreender a Trindade? Para mim basta rezar à Trindade; de que me serve discutir sobre as Pessoas da Santíssima Trindade se não tenho a retidão para agradá-la?'"** (*La Crisi della Ragione nel Pensiero Moderno*, Cornelio Fabro, Ed. Forum, Udine, Itália, 2007, p. 43). Esse trecho evidencia como o Pe. Fabro identifica a influência do nominalismo na espiritualidade de Kempis. **O Nominalismo e a Teologia Moral** O Pe. **Servais Pinckaers, O.P.**, destaca o impacto do nominalismo na teologia moral: **"Com o nominalismo, abriu-se um abismo profundo entre os moralistas modernos e a tradição patrística"** (*Ibidem*, p. 262). Pinckaers também explica a visão de Guilherme de Ockham sobre Deus: **"Para Ockham, Deus é a realização absoluta da liberdade, graças à Sua onipotência. Deus não está submetido a nenhuma lei, nem mesmo moral; Sua vontade livre é a única causa e origem da moral"** (*Ibidem*, p. 261). Além disso, ele ressalta a ampla influência dessa corrente: **"As doutrinas de Ockham se difundiram amplamente, dando origem ao nominalismo, que influenciou profundamente o pensamento ocidental no final da Idade Média"** (*Ibidem*, p. 251). Quanto a Kempis, Pinckaers comenta: **"Autores espirituais como Tomás de Kempis, na Imitação de Cristo, frequentemente advertiam seus leitores contra a vaidade das especulações teológicas"** (*Ibidem*, p. 265). **A Influência Gnóstica e Cabalística** A filosofia moderna carrega uma forte marca **nominalista** e também **gnóstico-cabalística**. O **Mestre Eckhart** (1260-1328), um dos pilares da mística renana, foi condenado após sua morte por proposições heréticas. Mesmo assim, permanece renomado como autor espiritual e místico. Ele, junto com seus discípulos **Susão** e **Taulero**, forma um tríduo místico alemão-renano ao qual se associa também **Ruysbroeck** (1293-1381), mestre de Groote e Kempis. O Pe. **Julio Meinvielle**, em seu livro *De la Cábala al Progresismo*, relaciona a gnose cabalística com Eckhart: **"A gnose, antiga ou moderna, mistura os mistérios de várias religiões e tradições com elementos cristãos. Todas têm uma estrutura comum, inspirada no hinduísmo, parsismo, religiões caldeias e egípcias, hermetismo e, inevitavelmente, no molde fundamental da gnose cabalística"** (*De la Cábala al Progresismo*, Ed. Calchaquí, Salta, 1970, p. 294). **Críticas de Fabro a Eckhart** O Pe. Fabro, sem abordar diretamente a gnose ou a cabala, critica Eckhart por sua concepção filosófica e metafísica, que contamina sua teologia: **"Para Eckhart, como para Avicena, o *esse* é um fluxo divino, intrínseco ao homem, identificado como uma centelha divina – uma ideia compartilhada pela cabala e pela gnose"** (*Participação e Causalidade segundo Santo Tomás de Aquino*, Ed. Eunsa, Pamplona, 2009, p. 522). Fabro ressalta que: **"Em Eckhart, o *esse* (ser) é uma formalidade suprema, totalmente possuída por Deus, abrangendo tudo como um fluxo, uma luz, um éter. Assim, o *esse*, que é Deus, é completamente igual em todas as coisas"** (*Ibidem*, pp. 524-525). Essa visão contrasta radicalmente com a distinção tomista entre *esse* e essência, bem como com a doutrina da causalidade. **A Influência de Kempis e o Nominalismo** A associação de Kempis ao nominalismo é crucial para entender sua influência na espiritualidade da *Devotio Moderna*, da qual ele é o expoente máximo. Outro nome importante, **Nicolau de Cusa** (1401-1464), foi um discípulo da *Devotio Moderna* e profundamente influenciado pela cabala. Meinvielle afirma sobre ele: **"Para Nicolau de Cusa, na essência divina coincidem e se confundem todos os contrários: o todo e o nada, o ser e o não-ser, o criado e o por criar"** (*De la Cábala al Progresismo*, p. 231). Essa visão, que ecoa o panteísmo de Eckhart, reforça a ligação entre a *Devotio Moderna*, o nominalismo e a gnose. O Pe. **Cornelio Fabro** afirma: **"Eckhart nos conduz diretamente até Nicolau de Cusa"** (*Ibidem*, p. 507). Se Nicolau de Cusa é considerado o pai da filosofia alemã, culminando em Hegel como seu fruto, o Mestre Eckhart seria, metaforicamente, o avô. Outro personagem significativo da *Devotio Moderna*, o sacerdote **Gabriel Biel**, foi membro dos **Hermanos de la Vida Común**, chegando a ser um de seus superiores. Discípulo de Guilherme de Ockham e seguidor de Duns Escoto, Biel teve grande influência sobre Lutero, chegando a decorar trechos de seus textos. O renomado humanista **Erasmo de Roterdã**, precursor de Lutero, foi aluno em Deventer dos **Hermanos de la Vida Común** e, aos 18 anos, ingressou no mosteiro de Emaús de Steyn, dos cônegos regulares de Santo Agostinho, que compartilhavam da espiritualidade da *Devotio Moderna*. Os escritos de Erasmo, conforme Lutero frequentemente proclamava, ajudaram a moldar a Reforma Protestante. **A Influência Nominalista e Gnóstica na *Devotio Moderna*** Nesse ambiente **nominalista, voluntarista e gnóstico**, surge a figura de **Tomás de Kempis** e sua obra *Imitação de Cristo*, que, embora de fundo espiritual e piedoso, reflete esses lineamentos, dada a influência marcante da *Devotio Moderna*, do voluntarismo nominalista e da mística gnóstica de Mestre Eckhart. O **nominalismo de Guilherme de Ockham** penetrou na *Devotio Moderna* de forma inegável, como expõe Alfredo López Amat, S.J.: **"A *Devotio Moderna*, com mais sombras do que luzes, surge no final do século XIV nos Países Baixos e se espalha pela Europa durante o século XV, especialmente na Alemanha. Essa piedade enfatiza a experiência, ativa as forças afetivas e valoriza o domínio próprio, preferindo 'sentir a compunção a conhecer sua definição' (*Im. Chr.* I, 1, 9). Por esse traço empírico, a *Devotio Moderna* se alinha com o nominalismo da escolástica tardia"** (*El Seguimiento Radical de Cristo*, vol. I, Ed. Encuentro, Madrid, 1987, p. 261). O Pe. **Servais Pinckaers, O.P.**, destaca: **"O pensamento de Ockham difundido pelo nominalismo representa uma ruptura crucial na história da teologia moral. Ele inaugura a 'moral da obrigação', deslocando o foco da busca da felicidade para a obediência às leis"** (*Les Sources …*, pp. 260-264). **A Influência Gnóstica de Eckhart** A mística alemã do **Mestre Eckhart** deixou marcas profundas na *Devotio Moderna*, conforme expõe Peter Burke e R. Po-Chia Hsia: **"A *Devotio Moderna* e a mística renano-flamenca surgiram nas margens do Baixo Reno no final da Idade Média. A *Imitação de Cristo*, atribuída a Tomás de Kempis, reflete o legado dessas correntes espirituais, centrando-se no desapego ao mundo e na imersão completa em Cristo"** (*La Traducción Cultural en la Europa Moderna*, Ed. Akal, Madrid, 2010, pp. 101-102). A influência de Eckhart também é observada em seus discípulos, como **Tauler, Susão e Ruysbroeck**, que disseminaram suas ideias, promovendo a noção de uma **"centelha divina no interior de cada pessoa"**, acessível apenas pelo afastamento do mundo. **A Conexão com Lutero** A ligação entre a *Devotio Moderna* e Lutero é evidente. José Orlandis escreve: **"A mística alemã e a *Devotio Moderna* compartilham influências, especialmente de Ruysbroeck, que inspirou Gerardo Groote, fundador dos Hermanos de la Vida Común"** (*Historia de la Iglesia*, Ed. Palabra, Madrid, 2012, p. 312). Outro autor corrobora: **"A espiritualidade do Mestre Eckhart foi propagada pelos Países Baixos, influenciando a *Devotio Moderna* por meio de Ruysbroeck"** (*Estampas de Místicos*, Vol. III, Ed. OPE, Caleruega, 1986, p. 71). **Conclusão** Fica evidente a **profunda influência gnóstica-cabalística do Mestre Eckhart** sobre a *Devotio Moderna*. Sua espiritualidade, marcada por traços do nominalismo e do voluntarismo, foi um dos alicerces que prepararam o terreno para o protestantismo e para as transformações espirituais que moldaram a modernidade. **Pe. Basilio Méramo** Bogotá, 4 de janeiro de 2017. # Origens da Devotio Morderna: PARTE 1 - Quem foi Pseudo-Dionísio Areopagita? 01/01/2025 Autore: Tuomo Lankila Tradução: Prof. Gabriel Sapucaia ![](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000159-48d2948d2b/Denis_Areopagite.jpeg?ph=4df81238fe) ##### **O *Corpus Areopagiticum* como um Projeto Cripto-Pagão** **Tuomo Lankila, Universidades de Helsinque e Jyväskylä** **Resumo** Este artigo apresenta uma crítica detalhada à sugestão de Carlo Maria Mazzucchi de que Damáscio, o último chefe da escola neoplatônica pagã de Atenas, foi o autor do enigmático *Corpus Pseudo-Dionisíaco*. A abordagem de Mazzucchi compreende melhor o contexto provável do surgimento do *Corpus Dionisíaco* do que as interpretações tradicionais, que aceitam facilmente a reivindicação explícita de cristianismo pelo autor, recorrem a teorias distorcidas sobre escrita pseudonímica e superestimam a autonomia do *Corpus Areopagiticum* em relação a Proclo. Ao contrário das opiniões que rejeitam especulações sobre a identidade do autor na ausência de novos dados, este artigo considera tais tentativas necessárias e úteis. Concorda-se com a tese geral de Mazzucchi de que o *Corpus* foi uma criação de filósofos pagãos da academia neoplatônica de Atenas, após Proclo. No entanto, argumenta-se que Mazzucchi interpretou erroneamente a perspectiva de futuro predominante na escola ateniense, especialmente a disposição de Damáscio em aceitar um compromisso com o cristianismo ao custo do politeísmo, conforme articulado na teologia das classes dos deuses de Proclo. Como resultado, poderia ser desenvolvida uma versão mais plausível da hipótese cripto-pagã: considerar o *Corpus Dionisíaco* como um estratagema puramente instrumental destinado a proteger as obras de Proclo, facilitando a ressurreição da religião politeísta em tempos melhores, que, segundo a visão cíclica da história dos neoplatônicos, estavam destinados a retornar. **Introdução** O objetivo deste artigo é discutir até que ponto e de que maneiras a "hipótese cripto-pagã" sobre a origem do *Corpus Areopagiticum* pode ser defendida. Pelo termo "cripto-pagã", não se quer dizer que o conteúdo cristão do *Corpus* esteja comprometido devido ao pensamento dionisíaco estar saturado de neoplatonismo pagão (ninguém atualmente poderia negar, em debates acadêmicos, que o *Corpus* está profundamente permeado por ideias neoplatônicas). Ninguém possui critérios para definir o que seria um cristianismo "genuíno" e, assim, julgar o quanto o *Corpus* se afasta dessa definição. **Uma Narrativa Cripto-Pagã** Para ilustrar as questões envolvidas, começo com uma narrativa. No início do século VI, havia uma mulher extremamente inteligente, bem-educada e, como é inevitável em narrativas, excepcionalmente bela. Originalmente de origem não cristã, ela era uma defensora fervorosa da piedade tradicional. Talvez fosse Teodora, a quem Damáscio dedicou sua *História Filosófica*, sendo uma descendente do divino Jâmblico e do rei-sacerdote Sampsigeramos\[1\]. Ela era bem versada em matemática, filosofia e teurgia, e uma hierofante de todos os modos de divindade. Mas esses eram tempos difíceis. Ágapius, o mais jovem dos discípulos de Proclo, que lecionava em Bizâncio, estava alarmado. Ele enviou avisos desesperados à academia platônica de Atenas sobre a situação que se desenrolava na capital\[2\]. Havia um perigo iminente de que o velho imperador fosse forçado a ceder aos monofisitas militantes; ou, pior ainda, que, após ele, como reação à sua política religiosa, seguidores de língua latina do Concílio de Calcedônia assumissem o poder. Ambos os grupos compartilhavam apenas o ódio pelo culto aos deuses\[3\]. O sábio Damáscio tentou se preparar para todos os desdobramentos do destino. Ciente das habilidades de sua assistente, ele a convenceu da importância de realizar uma tarefa muito especial. Inspirando-se no exemplo do divino Jâmblico, que dois séculos antes havia defendido a teurgia em seu manifesto (*De Mysteriis Aegyptiorum*), ela deveria operar sob um pseudônimo. Dessa vez, porém, em vez de adotar a identidade de um venerável profeta egípcio, como Jâmblico havia feito, ela usaria a identidade de um antigo líder dos adversários. E assim o fez, produzindo em um curto espaço de tempo uma coleção de quatro livros e dez cartas. Esses escritos faziam alusão a outros textos mais sagrados. Com esses feitos, ela construiu uma fortificação em torno da doutrina oculta, garantindo que gerações futuras, mais afortunadas, não precisassem reinventar toda a verdade sobre as classes dos deuses, mas pudessem usufruir da visão platônica do grande Proclo. **Fraude – Aquela Palavra Terrível** Ao tratar da natureza pseudepigráfica de Pseudo-Dionísio, E.R. Dodds escreveu: **"Por algum motivo, é costume usar um termo mais gentil; mas é bastante claro que o engano foi deliberado."**\[4\]\*\*\*\* Isso foi dito em 1933. Estudos mais recentes tendem a preferir a "opção mais gentil". A *Stanford Encyclopedia of Philosophy*, em sua entrada sobre Dionísio, afirma que: **"'Falsificação' é uma noção moderna."**\[5\]\*\*\*\* De acordo com essa entrada, Dionísio não reivindicava ser um inovador e, ao adotar um pseudônimo, estava apenas aplicando um recurso retórico bastante comum. Entretanto, a Antiguidade Tardia conhecia tanto o fenômeno da falsificação literária quanto as ambições e métodos para detectá-la e expô-la\[6\]. **Inovação e Comparação com Dionísio** A ideia de inovação seria estranha para a maioria dos escritores sobre temas divinos no tempo de Pseudo-Dionísio. Colocar Dionísio no mesmo nível de Plotino e dos Padres Capadócios, como fizeram os autores da *Stanford Encyclopedia of Philosophy*, é tão surpreendente quanto considerar Orígenes, Atanásio, Cirilo e Agostinho como iguais a Dionísio na relação entre filosofia e religião, como propôs John Rist\[7\]. Em ambos os casos, Dionísio é o único que esconde sua verdadeira identidade. O procedimento de Jâmblico em *De Mysteriis* é mais próximo ao de Dionísio. Se Jâmblico foi além de um truque literário, isso é debatível. No caso de Dionísio, porém, a fraude parece clara. Charles M. Stang afirma que: **"O consenso acadêmico é que, na imaginação cristã da Antiguidade Tardia, a distância entre o passado histórico e o presente pode ser colapsada ou 'telescopada', de modo que a era apostólica (e subapostólica) e o mundo contemporâneo podem estar totalmente presentes um ao outro."** O homem santo transformava-se em uma "extensão" da personalidade de uma autoridade antiga, num ímpeto de escrita entendido como um "exercício devocional"\[8\]. À luz dessas afirmações mais recentes, a declaração de Dodds, **"Por algum motivo, é costume usar um termo mais gentil; mas é bastante claro que o engano foi deliberado"**\[9\]\*\*\*\*, adquire um novo significado. Alguém com uma mentalidade imbuída pelo espírito de *laïcité* pode começar a suspeitar que a explicação para Dodds ter incluído a expressão "por algum motivo" é simplesmente que falsificações não devem ser costumeiramente chamadas de falsificações na historiografia, se parecerem inspiradas por motivos cristãos. A teoria de Stang poderia, afinal, explicar muito bem como hagiografias e pseudepígrafes cristãs foram produzidas. Mas mesmo assim, o Areopagita nos confronta com um fenômeno de outro tipo, que não pode ser reduzido à construção de "mentiras sagradas" por homens santos. O caso dionisíaco não pode ser explicado dessa forma porque o autor do *Corpus* não se identificou como algum santo de eras passadas que carecesse de prosa inspirada. Dionísio estava cortando e colando, manipulando e modificando coleções contemporâneas específicas de textos cuja origem genuína era muito bem conhecida por ele, assim como por seus leitores-alvo. Ele alegava que as ideias contidas nesses textos, e grande parte da redação original, eram de centenas de anos antes e pertenciam ao tesouro ideal de um movimento religioso (o cristianismo), que os verdadeiros criadores dessas ideias (Proclo e a escola neoplatônica pagã de Atenas) consideravam uma catástrofe para seu mundo. **A Transmissão e as Escolas Dionisíacas** Desde os primeiros dias de transmissão, dois escolios foram geralmente anexados aos manuscritos entre o próprio texto dionisíaco e os comentários de João de Escitópolis. O primeiro desses escolios tenta aliviar o desconforto que alguém pode sentir ao ler Dionísio e Proclo lado a lado\[10\]. **É Importante Saber** Alguns filósofos pagãos, sobretudo Proclo, fazem uso frequente das doutrinas do bem-aventurado Dionísio, muitas vezes utilizando literalmente suas palavras. Isso justifica a crença de que os antigos filósofos de Atenas apropriaram-se das obras de Dionísio, como o autor relata neste livro, e as mantiveram ocultas para aparentarem ser os autores do discurso divino de Dionísio. Isso evidencia a providência divina ao trazer este livro ao público para expor sua vaidade e preguiça. O divino Basílio ensina que os pagãos têm o hábito de usurpar nossas doutrinas. Em sua homilia sobre "No princípio era o Verbo", ele afirma: **"Sei muito bem que a maioria daqueles que estavam alheios à verdade admiraram esta fórmula: 'No princípio era o Verbo', e não hesitaram em incluí-la em seus escritos, pois o diabo é um ladrão e revela aos seus seguidores nossos ensinamentos."** No que diz respeito às palavras de Numênio, o pitagórico, ele declara abertamente: **"O que é Platão senão um Moisés que fala grego?"** E ninguém pode negar isso, pois ele não é dos nossos, mas dos nossos adversários, como evidenciado por Eusébio, bispo de Cesareia na Palestina, que ensinou que não é apenas agora que os representantes da sabedoria alheia roubam de nós, mas que isso acontecia mesmo antes da vinda de Cristo\[11\]. **Segundo Escolion** O autor do *Corpus* deve ter sido um genuíno discípulo do apóstolo Paulo, pois, caso contrário, suas alegações—de ter presenciado um eclipse sobrenatural durante a paixão de Cristo enquanto estava em Heliópolis (com um amigo, Apolofanes, que permaneceu pagão), de estar presente na Dormição de Maria (onde seu professor Hieroteu foi o principal orador após os apóstolos), e de ter sido correspondente do apóstolo João—fariam dele um mentiroso e um lunático\[12\]. **O Ciclo de Rebeliões contra Proclo e a Reconquista Procliana no Território Dionisíaco** A crítica sistemática e decisiva dos estudiosos do século XIX culminou com as obras de Koch e Stiglmayr\[^16\], que demoliram irrevogavelmente a imagem de Dionísio como um escritor apostólico e inseriram o *Corpus Dionisíaco* no contexto científico de Proclo. Desde então, os estudos dionisíacos têm sido marcados por um movimento peculiar. De um lado, a dependência de Dionísio em relação a Proclo tem sido demonstrada repetidamente em uma gama crescente de tópicos. Por outro lado, após cada nova descoberta, a suposta diferença radical entre os escritos de Dionísio e o neoplatonismo é novamente afirmada, embora em uma base ligeiramente modificada. Na primeira fase dos estudos, Dionísio era amplamente considerado um cristão ortodoxo que incorporou alguns detalhes neoplatônicos. Atualmente, é opinião comum que Dionísio foi decisivamente inspirado pelo neoplatonismo, mas seu pensamento constitui um corpo autônomo de trabalho, uma espécie de transformação cristã do neoplatonismo antigo\[13\]. **Schäfer e o Triângulo Cíclico de Causalidade em Dionísio** Schäfer destaca que, para Dionísio, o triângulo cíclico de causalidade está sistematicamente presente em uma ordem não-Procliana (processão, permanência e retorno). Assim, o momento de "permanência" expressa uma "parada" existencial e ôntica, onde o processo criativo teofânico se manifesta em diferentes níveis. Esses pontos de "parada" devem ser entendidos como imagens de Deus na criação. Os Nomes Divinos no discurso dionisíaco são termos para essas diferentes fases. Já que Deus é incognoscível, esses nomes não podem nos dizer nada sobre Deus enquanto Deus em si mesmo (*καθ' αὑτό*), mas apenas *καθ' ἡμᾶς*, ou seja, do ponto de vista de uma criatura, apenas revelando o que Deus permite que saibamos sobre Ele. Schäfer acredita que essa "mudança de perspectiva, de uma interpretação *per se* para uma perspectiva relativa ao agente"1, marca uma inovação em Dionísio e é, de certa forma, derivada de posições paulinas. Dionísio abordar o problema do mal no meio de seu discurso sobre os Nomes Divinos pode parecer surpreendente à primeira vista, argumenta Schäfer, mas é uma consequência natural da perspectiva adotada: **"Afinal, 'mal' não é um teônimo; a questão filosófica do mal deve ser abordada para desenvolver uma explicação credível e consistente do mundo *καθ' ἡμᾶς*."**\[14\]\*\*\*\* **Problemas na Discussão de Schäfer** Embora a discussão de Schäfer tenha grande mérito, dois pontos são problemáticos: 1. **Suspensão de Princípios Críticos** - Ele sugere que, no caso deste autor enigmático, devemos suspender os princípios usuais de crítica histórica, uma vez que "Dionísio está tão completamente absorvido em seu eu fictício que basicamente força a aceitação desse eu fictício pelo intérprete"\[15\]. 2. **Dependência de Dionísio em Proclo** - A maioria dos aspectos que Schäfer reivindica como território exclusivamente dionisíaco deve ser atribuída a Proclo. Proclo também discute o mal no meio de um discurso sobre atributos divinos de maneira muito semelhante a Dionísio4. Ele também enfatiza a teoria *καθ' ἡμᾶς* dos nomes divinos, dizendo que não podemos nomear um princípio primordial incognoscível, mas temos dois nomes—o Bem e o Uno—atribuídos a ele, pois são adotados por realidades secundárias como imagens do primordial\[16\]. **Dívida de Dionísio para com Proclo** Dionísio baseia-se amplamente na *Teologia Platônica* de Proclo, especialmente em seus capítulos iniciais. De acordo com Istvan Perczel, a técnica de Dionísio em relação a Proclo pode ser resumida da seguinte forma\[17\]: - **Referências pagãs são transformadas em cristãs (deuses para a Trindade, etc.).** - Dionísio troca praticamente todas as palavras de Proclo por sinônimos, preservando a estrutura e, às vezes, até o ritmo da sentença. - Algumas palavras características são mantidas, mas seu lugar na estrutura da frase é alterado. - Trechos inteiros são ampliados e preenchidos com elementos adicionais. Embora Dionísio demonstre uma dívida teórica com princípios neoplatônicos gerais, sua dependência direta de Proclo em questões específicas tem sido frequentemente documentada. Perczel aponta, por exemplo, que a nona carta de Dionísio sobre como interpretar simbolicamente as Escrituras deriva diretamente da teoria de Proclo em seu *Comentário sobre a República de Platão* e na *Teologia Platônica*. **Werner Beierwaltes e Dionísio como "Proclo Cristão"** Werner Beierwaltes argumenta que a teologia de Dionísio é um exemplo extremo de "helenização do cristianismo"\[18\]. Ele critica a visão apologética que descreve Dionísio como um "Proclo em trajes cristãos", considerando que a linguagem de Proclo é vista apenas como um empréstimo externo. **A Hipótese Cripto-Pagã de Carlo Maria Mazzucchi** Mazzucchi propõe que o *Corpus Dionisíaco* seja uma ficção literária, composta por Dâmascio, representando uma contra-ofensiva extrema do paganismo contra o cristianismo dominante. Segundo ele, o objetivo desses escritos era transformar o cristianismo em neoplatonismo em todos os aspectos\[19\]. Ele lista personagens mencionados no *Corpus* e sugere que aqueles conhecidos apenas por essa fonte são provavelmente fictícios. Ele também destaca que as citações a obras perdidas no *Corpus* podem ser um artifício para desviar leitores de questões-chave como pecado e redenção\[20\]. Mazzucchi não vê Dionísio como um defensor do monofisismo, mas considera que o ponto de partida do autor é uma teologia afirmativa (calcedoniana) e culmina em uma visão apofática e mística (neoplatônica). Ele resume o sistema do *Corpus* em cinco princípios1: - O mundo foi criado por Deus e, ao mesmo tempo, permanece em Deus, uma visão comum entre os neoplatonistas. - O mal não é uma substância, mas a ausência do bem. - Toda criação segue um movimento cíclico de processão e retorno. - **O homem pode elevar-se a Deus através de três etapas: purificação, iluminação e união.** - **A união com Deus é alcançada de maneira apofática, transcendente e mística.** Para Mazzucchi, o *Corpus Dionisíaco* representa uma tentativa de redefinir o cristianismo a partir de uma visão neoplatônica, ocultando intencionalmente sua verdadeira natureza pagã. Essa hipótese, embora ousada, ainda requer uma análise mais detalhada das correspondências linguísticas e conceituais entre o *Corpus* e o *De Principiis* de Dâmascio\[21\]. **Reações à Hipótese de Mazzucchi** As reações à proposta de Mazzucchi são variadas. Embora alguns estudiosos considerem sua hipótese plausível, outros a descartam como especulativa. Por exemplo, Rosemary A. Arthur argumenta que, embora existam elementos neoplatônicos no *Corpus*, há passagens que só poderiam ter sido escritas por um cristão devoto\[22\]. **Métodos e Conclusões** Mazzucchi enfatiza que o autor do *Corpus* utilizou métodos literários sofisticados para mascarar suas intenções reais. Ele aponta para: - **Personagens Fictícios:** Muitos personagens mencionados no *Corpus* são desconhecidos fora dele, como Hieroteu, que teria sido mestre de Dionísio. - **Auto-Referências e Obras Perdidas:** O *Corpus* frequentemente se refere a outras obras que supostamente teriam sido escritas por Dionísio, mas que, segundo Mazzucchi, nunca existiram. Ele argumenta que essas referências são deliberadas para evitar discussões mais detalhadas sobre questões teológicas centrais, como pecado e redenção\[23\]. - **Números Simbólicos:** Mazzucchi observa que o número de obras mencionadas (cinco sobreviventes e sete perdidas) tem um valor simbólico, mas admite que a explicação para isso ainda não é clara. **Conclusão** A hipótese de Mazzucchi é uma das mais ousadas já apresentadas no campo dos estudos dionisíacos. Ela desafia interpretações tradicionais e sugere que o *Corpus Dionisíaco* foi criado como uma estratégia sofisticada para transformar o cristianismo em uma forma de neoplatonismo. Embora sua proposta tenha encontrado resistência, ela levanta questões importantes sobre as origens e intenções do *Corpus*. **Princípios do *Corpus Dionisíaco* Segundo Mazzucchi** 1. Tudo procede de Deus como emanação, sem o pensamento ou vontade (pessoal) de Deus. 2. Não existe mal. 3. Deus é absolutamente incognoscível. 4. O papel de Cristo, Deus-homem, é incitar a humanidade a ascender e se unir a Deus, com o processo de ascensão oposto à derivação da realidade a partir da causa primária. 5. A Igreja é constituída de acordo com uma hierarquia rigorosa, como uma imagem da hierarquia angélica. Isso é normativo, pois a hierarquia gradual é uma norma divina do Ser e da Verdade em si\[24\]. De acordo com Mazzucchi, não há espaço no pensamento dionisíaco para um Deus pessoal, ou seja, "para o terrível mistério da liberdade, para o Criador, ou para o mal e o pecado que requerem redenção através da Cruz... De fato, pode-se até perguntar onde está o espaço para Jesus Cristo"\[25\]. **Recepção do *Corpus* e a Hipótese do Plágio de Proclo** No tratamento da recepção do *Corpus* na cultura eclesiástica bizantina dos séculos VI e VII, Mazzucchi apresenta a tese inversa famosa de um escoliasta, que fez de Proclo um plagiador de Dionísio. Referindo-se à opinião de Suchla, Mazzucchi considera que o autor desse escolio poderia ser João de Escitópolis\[26\]. **Diferentes Usos do Platonismo** Mazzucchi acredita que houve uma diferença radical entre o uso do "platonismo" por Dionísio, pelos apologistas e pelos Padres da Igreja. Estes últimos viam o platonismo como uma antecipação incompleta de algumas verdades cristãs, que o cristianismo superou. Em contraste, o *Corpus* transformou o neoplatonismo na substância do cristianismo, enquanto o resto (dogmas, rituais, etc.) eram meros acidentes. As tentativas anteriores de introduzir o platonismo ao cristianismo não precisaram de uma ficção tão meticulosamente elaborada quanto a produzida por Dionísio. Por essa razão, Mazzucchi conclui que o *Corpus*: "...parece ser a arma definitiva na batalha contra o cristianismo, que estava destinado a terminar em derrota certa, a menos que um golpe de gênio, um esforço meticuloso e a confiança mais fria conseguissem, no último momento, transformar os vencedores em perdedores. Acredito que foi exatamente isso que aconteceu, e o grande homem que realizou essa empreitada foi o filósofo Dâmascio, nos anos em que viveu em Atenas como o último diretor da Academia"\[27\]. **Dâmascio e o *Corpus Dionisíaco*** Segundo Mazzucchi, Dâmascio perdeu toda esperança de restaurar o paganismo por meio de ações políticas, como se vê em sua famosa passagem sobre as "tentativas" após Juliano, na *História Filosófica* de Dâmascio. O círculo neoplatônico era capaz de criar uma ficção cristã porque tinha conhecimento suficiente das tradições cristãs. Dâmascio seria o homem ideal para executar uma ação tão ousada, confiando nas descrições de seu caráter psicológico registradas por Fócio, que destacam traços como "autoconfiança absoluta e inabalável" e "um senso de superioridade"\[28\]. **Personagens Fictícios e Correspondências** Mazzucchi volta à imagem de Hieroteu, considerando que os personagens fictícios e as histórias enigmáticas do *Corpus* revelam eventos reais na vida de Dâmascio. Por exemplo, a história de Apolofanes e Dionísio testemunhando um eclipse em Hierópolis corresponde ao relato de Ascépias sobre aparições celestes vistas por ele e, mais tarde, por Dâmascio e Isidoro na Heliópolis da Síria. Mazzucchi também observa simetria isotônica entre os nomes Apolofanes e Ascépias. O episódio da dormição da Virgem corresponderia, na vida de Dâmascio, aos funerais de Aidesia, esposa de Hermias, ocasião em que Dâmascio fez um discurso. Ele destaca semelhanças entre a descrição de Dâmascio sobre a homenagem a Aidesia e o relato dionisíaco sobre os momentos finais de Maria\[29\]. **Estilo e Difusão do *Corpus*** Mazzucchi identifica características estilísticas do *Corpus Dionisíaco* que se alinham com a escrita de Dâmascio: 1. Tom autoritário (e autoritário). 2. Uso de períodos extensos sem medida razoável. 3. Construção de frases densas e estranhas. 4. Crescente uso de ὑπέρ e outros ornamentos\[30\]. Ele acredita que Dâmascio não teria divulgado sua falsificação em Atenas, pois a manobra seria facilmente revelada naquela pequena cidade. Em vez disso, usou contatos em Alexandria e, indiretamente, em Emesa para disseminar o *Corpus*, o que explicaria a tradução siríaca de Sérgio de Reš'ayna e a exegese de João de Escitópolis\[31\]. **Problemas na Hipótese de Mazzucchi** O primeiro ponto de crítica à posição de Mazzucchi é que sua descrição dos princípios dionisíacos é pouco convincente. A questão é mais complexa tanto em relação a Dionísio quanto ao neoplatonismo pagão. Por exemplo, Dionísio aborda conceitos como "pensamento" e "vontade" em termos que podem lembrar as afirmações neoplatônicas sobre a divindade suprema. Outro problema está na negação do mal atribuída por Mazzucchi a Dionísio. Mesmo que Dionísio tivesse sustentado essa opinião, ela não seria propriamente neoplatônica. O conceito dionisíaco de mal é muito semelhante ao de Proclo, que via o mal como um efeito parasitário de causas reais\[32\]. **A Ausência de Cristo no *Corpus Dionisíaco*** A ênfase de Mazzucchi na ausência de Cristo no *Corpus Dionisíaco* parece estar alinhada com a crítica de Vanneste\[33\], mas essa interpretação foi fortemente desafiada por outros estudiosos. Tanto Mazzucchi quanto Vanneste, e muitos outros, parecem acreditar que possuem um conceito adequado de "cristianismo genuíno" com o qual possam comparar e julgar as obras de Dionísio. Na prática, essa medida é extremamente difícil de definir. Mazzucchi dá peso excessivo ao argumento sobre a *isosilabia* e *isotonia* dos nomes, o que parece particularmente fraco. Contudo, ao analisar o papel de Hieroteu no *Corpus*, ele se aproxima de uma solução plausível. Um livro forjado de Hieroteu era conhecido entre as comunidades monásticas siríacas no século VI. Sua conexão com uma pessoa fictícia inventada pelo autor do *Corpus Dionisíaco* não está clara. Perczel, em sua contribuição de 2008, sugere que o *Corpus* originalmente nasceu como uma obra esotérica entre os origenistas\[34\]. Sheldon-Williams propõe que Dionísio introduziu Hieroteu para encobrir suas fontes pagãs\[35\]. Essa explicação, no entanto, é insatisfatória. Por que ele precisaria de Hieroteu, sendo ele mesmo um homem de sabedoria? Mais difícil ainda é entender por que Hieroteu seria apresentado como mestre em questões cristãs. Não seria suficiente a figura do apóstolo Paulo? Dionísio menciona e até cita o livro de Hieroteu, *Os Elementos da Teologia*. O próprio título é significativo, pois alude ao tratado sistemático de Proclo\[36\]. **A Figura de Hieroteu no *Corpus*** Minha sugestão é que as passagens relacionadas a Hieroteu foram conscientemente elaboradas para se assemelharem às passagens em que Proclo elogia repetidamente seu mentor Siriano e reconhece sua dívida com ele. Assim, em Proclo temos uma cadeia que inclui os deuses, Platão, Siriano e o próprio Proclo; em Dionísio, temos Cristo, Paulo, Hieroteu e o próprio Areopagita. Proponho que a figura literária de Hieroteu foi intencionalmente criada para evocar a imagem de Siriano em Proclo\[37\]. A noção de Mazzucchi sobre a excepcionalidade de *Os Nomes Divinos* na tradição neoplatônica não é completamente verdadeira, pois encontramos em Proclo estudos similares, por exemplo, na *Teologia Platônica* e em seu comentário sobre o *Crátilo* de Platão. **A Origem do *Corpus Dionisíaco*** A primeira menção inequívoca ao *Corpus Dionisíaco*, como aponta Mazzucchi, foi feita quando Severus se referiu a *De Divinis Nominibus* em suas polêmicas contra o julianista afartodocetista Juliano de Halicarnasso. O texto de Severus tem data exata de 839 na era selêucida (= 528 d.C.). Quatro anos depois, o partido monofisita utilizou esses escritos nas discussões entre os severianos e os di fisitas calcedonianos sob os auspícios do imperador Justiniano\[38\]. Em tais debates, os calcedonianos levantaram dúvidas sobre a autenticidade do *Corpus*. Dionísio é mencionado em uma das cartas de Severus, datada de 532 ou talvez de 510. Segundo René Roques, "pode-se dizer sem temeridade que os *Areopagíticos* devem ter sido escritos antes de 525 ou 510"\[39\]. **Proclus e a *Teologia Platônica*** A transmissão da *Teologia Platônica* de Proclo, segundo as autoridades Saffrey e Westerink, sugere que: "A *Teologia Platônica* foi quase indubitavelmente a última obra de Proclo. Foi definitivamente editada muito depois da morte de Proclo, durante os últimos anos da Academia Ateniense (isto é, não muito antes de 529, possivelmente por Simplício), e o magnum opus de Proclo nunca foi explicitamente citado nem possivelmente conhecido pelos neoplatônicos de Alexandria e Gaza."\[40\] **Dionísio, Proclo e a *Teologia Platônica*** De fato, junto com Damáscio e Simplício, Dionísio é o único filósofo da Antiguidade tardia que utiliza extensivamente a *Teologia Platônica* de Proclo. "Nenhuma obra de Proclo foi tão importante para Dionísio quanto a *Teologia Platônica*", escreve Perczel\[41\]. Damáscio assumiu a direção da escola, no mais tardar, em 515\[42\]. Dionísio não poderia ter dispensado a *Teologia Platônica*, que, naquele período, estava disponível apenas para membros da Academia. O argumento de Mazzucchi sobre as relações entre a *História Filosófica* de Damáscio e Dionísio, aliado às minhas próprias leituras, convence-me de que o autor do *Corpus* estava ciente das obras de Damáscio. Ao conectar esses achados às descobertas de Perczel sobre a importância da *Teologia Platônica* para Dionísio, bem como às de Saffrey e Westerink sobre a história editorial dessa obra, a conclusão óbvia é que o autor do *Corpus* pertencia ao círculo interno da Academia durante o período de Damáscio. Há, para usar um termo dionisíaco, uma superabundância de terminologia técnica no *Corpus Dionisíaco*, típica do neoplatonismo ateniense. De fato, Dionísio é o escritor mais teúrgico após Proclo, como pode ser observado na frequência com que menciona explicitamente o termo "teurgia" e seus derivados (48 em Dionísio, 51 em Proclo)\[43\]. Isso é ainda mais significativo considerando o tamanho diferente dos dois corpora. Dionísio também usa frequentemente o termo *synthema* em um sentido místico peculiar, uma utilização originada nos *Oráculos Caldeus* e reintroduzida no núcleo da doutrina neoplatônica por Jâmblico, antes de cair em desuso\[44\]. O composto ἱερὰ συνθήματα ocorre apenas em Damáscio e Dionísio\[45\]. **O Neoplatonismo Ateniense e o Autor do *Corpus*** Que o neoplatonismo ateniense é o lar espiritual do autor do *Corpus* é inegável. No entanto, ao tentar localizar mais precisamente a posição do autor dentro dessa tradição, parece-me que Dionísio é um paralelo pós-Proclo a Damáscio, em vez de um seguidor direto das ideias damascianas. O *Corpus Dionisíaco* compartilha com Damáscio a busca de enfatizar a transcendência do primeiro princípio e usa alguns termos comuns. Como mostrado anteriormente, suas passagens biográficas parecem ter sido modeladas nas obras de Damáscio. Contudo, o conteúdo doutrinário claramente não compartilha reformulações ou retificações do sistema procliano que são peculiares a Damáscio. O estilo e os modos de apresentação de Dionísio não são, como argumenta Mazzucchi, similares aos de Damáscio. Este último possui capítulos elevados, mas em menor quantidade que Proclo, por exemplo, em seus prefácios refinados. A dificuldade de Damáscio não reside em sua linguagem ou estilo, mas no contexto específico de seu esforço, que é um diálogo aporético com o sistema procliano. Em minha visão, Damáscio é um escritor lúcido, mas inflexível, que se recusa a simplificar tópicos para analisá-los; em vez disso, examina-os com meticulosidade hipercrítica, exigindo do leitor um conhecimento profundo do sistema procliano. Por outro lado, Dionísio apresenta uma quantidade muito modesta de argumentação filosófica própria, afirmando dogmas e mantendo um tom constantemente inspirado. Essa linguagem pomposa e hiperbólica permeia toda a obra, causando em alguns leitores (incluindo eu mesmo) uma sensação de estranheza e artificialidade\[46\]. No entanto, essas são experiências subjetivas de leitura; outros podem, com bons argumentos, considerar o estilo de Dionísio como um exemplo da linguagem mística do *unsaying*, uma tentativa de alcançar os limites da linguagem para capturar o transcendente. *De gustibus non est disputandum*: não podemos usar o estilo desse autor como argumento para julgar a autenticidade de seu discurso. **Problemas com a Abordagem de Mazzucchi** A fraqueza básica da abordagem de Mazzucchi é compartilhada por outras tentativas de provar a parcialidade de Dionísio (seja calcedoniana, monofisita, origenista ou outra). As obras de Dionísio foram, após reservas iniciais, entusiasticamente aceitas por todas as partes da controvérsia cristológica, e ele foi consagrado como um mestre da teologia apofática cristã e do misticismo. O *Corpus Dionisíaco* é cristão em sua recepção e em sua reivindicação explícita. Mas só podemos especular sobre sua intenção com base em seu conteúdo e em nosso conhecimento do contexto histórico de seu surgimento. A hipótese de Vanneste, de que a intenção era um projeto pessoal sem um público definido, é tão defensável quanto a de Schäfer, de que foi uma tentativa direcionada ao público cristão para assegurar a base racional de suas doutrinas. Contudo, não se pode negar que a intenção poderia ter sido cripto-pagã. **Motivações do *Corpus*** Por que o *Corpus* foi criado? Saffrey argumenta que Dionísio queria oferecer aos cristãos o melhor da filosofia de sua época, expressando verdades cristãs nos conceitos filosóficos da época. Um motivo secundário seria converter intelectuais pagãos. Dillon e Klitenic Wear radicalizam essa visão, propondo que Dionísio queria superar a controvérsia calcedoniana-monofisita, criando uma solução aceitável para ambas as partes. Além disso, ele buscava recuperar para os cristãos a sabedoria filosófica que tinha suas raízes primitivas no Logos do Deus cristão. Eles chamam esse projeto de "despojar os helenos" e veem Dionísio como sucessor de Clemente de Alexandria\[47\]. **Conclusão** Embora as motivações exatas do autor do *Corpus Dionisíaco* sejam incertas, a hipótese de um projeto cripto-pagão destinado a preservar e transformar o neoplatonismo em um contexto cristão oferece uma perspectiva interessante. Contudo, interpretações menos complexas, como o desejo de oferecer uma ponte entre filosofia e fé, também são plausíveis. A chave para compreender o *Corpus* reside em sua recepção e no impacto que exerceu sobre a tradição cristã e neoplatônica. **Motivações Cripto-Pagãs e a Necessidade de Esconder-se** Felizmente, não precisamos buscar explicações mais complexas se os fenômenos puderem ser explicados por uma interpretação mais simples, utilizando as mesmas evidências. Removamos hipóteses desnecessárias. Os neoplatonistas tinham um motivo concreto e tangível para realizar essa fraude. Utilizando a expressão de Tácito, a época deles não era "uma era rara em que se pode escolher opiniões e falar sobre elas"\[48\]. O jovem Proclo despertou admiração em seus futuros mestres por sua coragem ao demonstrar abertamente sua fidelidade à antiga religião quando chegou pela primeira vez a Atenas\[49\]. Apenas uma década antes, o cristianismo havia demonstrado seu poder em Atenas pela primeira vez, quando restrições severas foram introduzidas aos cultos pagãos locais. Houve uma onda séria de perseguições em nível imperial nos anos 430, e os templos de Atenas foram fechados antes do ano 460\[50\]. A filosofia, então, precisou atuar não apenas como defensora teórica dos cultos tradicionais, mas também como um substituto para eles. A vida sob a religião cristã dominante e ativamente perseguidora explica por que modos mais esotéricos foram adotados no neoplatonismo tardio, refletindo as circunstâncias prevalentes na época. **A Herança do Neoplatonismo e o Contexto Histórico** A situação enfrentada pelos neoplatonistas da escola ateniense era de sobrevivência em um ambiente cada vez mais hostil. A prática filosófica estava se tornando mais velada, adotando linguagens e estratégias que poderiam proteger seu conteúdo mais profundo. Esse contexto favoreceu a criação de um texto como o *Corpus Dionisíaco*, que combinava elementos cristãos e neoplatônicos de maneira a garantir sua aceitação entre os cristãos, ao mesmo tempo em que preservava a essência do pensamento neoplatônico. Dionísio, ou quem quer que tenha sido o autor do *Corpus*, adotou uma estratégia de anonimato e pseudonímia para assegurar a transmissão de ideias neoplatônicas em um ambiente onde a hegemonia cristã tornava arriscado apresentar tais conceitos de forma explícita. Essa abordagem garantiu que o *Corpus* não apenas sobrevivesse, mas também fosse amplamente adotado, moldando a teologia cristã de forma duradoura. **Conclusão** O *Corpus Dionisíaco* permanece um texto fascinante e multifacetado, cuja autoria e intenção continuam a gerar debates intensos. Embora seja amplamente aceito como um marco da teologia cristã mística, sua dependência do neoplatonismo, especialmente da obra de Proclo, levanta questões sobre suas verdadeiras motivações e contextos de origem. Seja como um esforço genuíno para integrar o neoplatonismo à teologia cristã ou como um estratagema cripto-pagão para preservar a filosofia neoplatônica, o *Corpus* é uma obra que reflete as complexas dinâmicas intelectuais e espirituais de seu tempo. Em 448, um édito imperial decretou a queima do tratado de Porfírio, *Contra os Cristãos*.\[51\] Não é coincidência que as alusões mais explícitas ao cristianismo nos escritos de Proclo apareçam em suas obras anteriores, como nos comentários sobre o *Timeu* e a *República* de Platão. Contudo, Proclo permanecia confiante. Ele não se sentia vivendo em uma "era de ansiedade" ou à beira de um abismo, como algumas interpretações acadêmicas mais antigas sugeriram.\[52\] Para Proclo, a "grande confusão", uma expressão com a qual aludia ao cristianismo, era perigosa e poderosa, mas em sua visão estava destinada a desaparecer, embora não no futuro próximo.\[53\] Proclo pensava em ciclos longos. Em uma escala maior, ele acreditava em uma destruição cíclica inevitável e no ressurgimento da cultura e população humanas. Em uma escala menor, dentro da história memorável, a filosofia platônica também havia passado por períodos obscuros e aparentemente desaparecido entre os sucessores imediatos de Platão e o surgimento de Plotino.\[54\] **Um Futuro Incerto** A perspectiva do futuro imediato tornou-se mais sombria para os neoplatonistas após a repressão à revolta contra o imperador Zenão, nos anos 480, durante os últimos anos de vida de Proclo. Pamprépio, um gramático ativo na revolta e ex-aluno de Proclo, embora não de seu círculo interno, tentou adicionar à intriga política uma dimensão de resistência pagã. Para os sucessores de Proclo, como Damáscio, Pamprépio era considerado um aventureiro, se não um provocador, cujas ações serviram apenas aos adversários.\[55\] Após a revolta, uma nova onda de repressão surgiu em 488-489, afetando também os neoplatonistas em Alexandria. Surgiu um grupo de inimigos conhecido como *philoponoi*, que assediavam professores pagãos na educação superior. Seu objetivo não era destruir fisicamente os inimigos pagãos, mas forçá-los à rendição moral e conversão. Em Alexandria e Gaza, utilizavam provocações para escalar conflitos, violando santuários clandestinos e pressionando as autoridades para reforçar a autoridade clerical e intimidar intelectuais pagãos a aceitar o batismo. Horapolo de Alexandria e Leôncio de Gaza converteram-se para retornar à segurança de seus cargos de ensino.\[56\] É possível que Amônio, filho de Hermeias, companheiro de Proclo, também tenha adotado a religião estatal. Damáscio acusou-o de compromisso vergonhoso, referindo-se a ele como "aquele que cuida da religião prevalente" (ou seja, o patriarca de Alexandria).\[57\] Amônio, no entanto, afirmou: "Embora a alma possa ser forçada por tiranos a professar uma doutrina ímpia, ela nunca pode ser forçada a concordar internamente ou acreditar".\[58\] **A Ameaça Intelectual** Simplicio, escrevendo provavelmente não muito depois, expressou sentimentos semelhantes, como "sob as circunstâncias da atual tirania", enquanto buscava consolo estudando os estóicos.\[59\] Outro aspecto adicional da situação era os ataques teóricos contra Proclo por intelectuais cristãos, culminando na famosa obra de João Filopono.\[60\] Esses ataques eram ameaçadores, pois igualavam Proclo a Porfírio, um conhecido polemista anti-cristão. Um eco disso pode ser encontrado na *Suda*, que descreve Proclo como alguém que "usava uma língua insolente" contra o cristianismo.\[61\] A publicação de *Contra Proclo*, de Filopono, em 529, coincidiu com o fatídico decreto de Justiniano e o fechamento forçado da escola de Damáscio, que preferiu o exílio ao batismo, retornando provavelmente graças à ajuda do rei persa.\[62\] Este período de tempestade crescente, iniciado com os eventos em Alexandria, também foi o período do nascimento do *Corpus Dionisíaco*. Os escritos do Areopagita surgiram não apenas em referência constante a Proclo, mas com o objetivo preciso, compreensível nas condições históricas, de preservar e proteger a herança de Proclo, garantindo a sobrevivência de seus escritos, especialmente sua obra principal, *A Teologia Platônica*. **A Estratégia do Corpus Dionisíaco** Não há dúvidas de que os neoplatonistas conheciam bem o que estava acontecendo no campo cristão. Damáscio, especialmente interessado em algo que poderia ser chamado de "estudo comparativo de religião", estava familiarizado com os aspectos mais detalhados do cristianismo, inclusive em questões de ritos. Dionísio dosou bem seus elementos, apresentando conclusões proclianas sem longos argumentos proclianos e substituindo materiais órficos e os *Oráculos Caldeus* por citações das Escrituras. Nada foi servido para atrair pagãos versados em doutrina neoplatônica; os destinatários pretendidos eram obviamente cristãos, não pagãos. Ele incluiu apenas o suficiente de doutrina cristã para reivindicar credibilidade mínima e indicou apenas de forma sutil a direção que esperava que a Igreja tomasse: tolerância e adoção de dogmas não muito repulsivos ao pensamento pagão. Apresentada com cuidado, em espírito irênico, sua consideração doutrinária evitava ofensas às facções da luta intra-cristã, sem comprometer-se com qualquer ponto de vista específico. Suas credenciais cristãs, por outro lado, eram ostentadas com arrogância calculada, forçando sua aceitação ou rejeição total. Sua apresentação geral foi projetada para conter uma agressividade monástica, ao mesmo tempo que lisonjeava e seduzia a hierarquia episcopal. Se uma falsificação pudesse criar a impressão entre o clero e as autoridades cristãs de que havia mais verdades apostólicas ocultas em Proclo, os escritos do mestre teriam uma chance maior de evitar o mesmo destino que os de Porfírio. **Perseguição Irregular e Contexto Histórico** Claro, não havia uma perseguição constante e ativa. Havia ondas de violência e períodos de distensão. A perseguição era esporádica, como as perseguições anteriores contra a Igreja. Essa irregularidade estava relacionada à fraqueza do poder repressivo de qualquer estado pré-moderno. Justiniano não poderia sequer imaginar realizar um feito como Filipe IV, o Belo, que ordenou a prisão simultânea em massa dos Templários sob seu regime. No entanto, a destruição de livros sob o vigoroso governo bizantino inicial mostrou-se bastante eficaz. Em 537, Justiniano proibiu as obras do líder monofisita Severo, resultando na perda total de seus manuscritos gregos. O ponto importante é que, se subestimarmos a realidade da perseguição, podemos cair facilmente na visão apologética cristã, segundo a qual o declínio da religião tradicional se deveu à sua fraqueza inerente e não à perseguição. A função da perseguição era impor o silêncio, permitindo que o conformismo fizesse seu trabalho sem violência ativa. Este é um padrão recorrente em regimes repressivos desde então. **Conclusão** Assim, concluo que Mazzucchi está correto ao interpretar o *Corpus Areopagiticum* como um projeto cripto-pagão. No entanto, muitos de seus argumentos específicos são insustentáveis. Perczel está certo ao considerar o *Corpus* um texto esotérico, mas não o vejo como um trabalho origenista, mas sim como um guia que aponta para Proclo. A versão de Mazzucchi segue uma tese de infecção ou vírus. Segundo ele, Damáscio percebeu que a vitória do cristianismo era inevitável e, no último momento, conseguiu inocular uma noção neoplatônica de Deus no cristianismo. Essa, penso eu, é uma interpretação equivocada da visão dos neoplatonistas tardios sobre o futuro. Eles não concebiam sua verdadeira religião em termos de derrota. Para eles, poderia haver um longo período histórico dominado pela "confusão" – como Proclo descreveu –, mas, segundo sua visão de um processo histórico cíclico, a vitória estava do lado deles: as coisas eventualmente retornariam ao seu estado natural (pré-cristão). Além disso, para a tradição específica do neoplatonismo ateniense, impregnar o Deus supremo da religião monoteísta com apofatismo e uma via de ascensão mística não resultaria em um compromisso aceitável. A realidade das henades divinas como deuses genuínos em toda sua individualidade e a adoração de toda a série divina com um culto apropriado eram realmente preciosas e inalienáveis para o neoplatonismo ateniense. Poderia-se viver temporariamente sob opressão forçada sem a prática do culto, mas não abandonar sua visão essencial. **O Elemento Pagão no *Corpus Dionisíaco*** O ingrediente essencial pagão no *Corpus Dionisíaco* é sua completude Procleana-Damasciana. Ele contém elementos demais dessa tradição para ser um projeto cristão, especialmente considerando que foi produzido em uma época em que o projeto "Paulino" de integrar o cristianismo à filosofia já havia sido amplamente consumado. A duplicação de identidades pseudoautênticas (Hieroteu e Dionísio) pode ser facilmente explicada pela teoria de que serviriam como indicadores. Essa conclusão não pode ser provada, mas também nenhuma das alternativas é completamente demonstrável. Assim, permanecemos no campo das conjecturas, e cabe a cada leitor ponderar qual hipótese parece mais plausível. É necessário aprofundar investigações sobre temas como a imagem do guia e mestre sagrado – Siriano em Proclo e Hieroteu em Dionísio –, a relação entre o monoteísmo e a cristologia de Dionísio e a henadologia de Proclo, bem como estudos comparativos detalhados entre Dionísio e neoplatonistas pagãos. **Reflexões Finais** Também é necessário perguntar o que significaria uma hipótese cripto-pagã consciente para a avaliação filosófica do *Corpus* e sua influência. Mesmo que concedamos que o *Corpus* foi originalmente um projeto cripto-pagão, isso não o priva de sua relevância posterior, especificamente na tradição mística cristã. Na recepção, o *Corpus* foi aceito como uma fonte cristã e cumpriu sua função como tal, um fato histórico inegável, embora haja certa ironia nisso. Mesmo que a intenção do autor do *Corpus* fosse ulterior, as posições teóricas nele expressas ainda são formuladas filosoficamente e merecem análise como tal. Com isso em mente, pesquisas podem se beneficiar particularmente de comparações entre o *Corpus* e as tradições cristãs autênticas mais antigas, começando com João de Escitópolis e Máximo, o Confessor. --- ### **Notas de Rodapé** \[1\] Anthony Kaldellis, "Teoria republicana e dissidência política em Ioannes Lydos", *Byzantine and Modern Greek Studies*, vol. 29 (2005), pp. 1-16, especialmente p. 10. \[2\] Fócio, *Biblioteca* (cod. 181, p. 125b 32 Bekker = Henry II, p. 189). Tradução de Polymnia Athanassiadi. \[3\] Líderes monofisitas Severus e Philoxenus influenciaram Anastácio (491-518). S. Klitenic Wear e J. Dillon, *Dionysius the Areopagite and the Neoplatonist Tradition*, Aldershot, 2007. E.R. Dodds, *Proclus. The Elements of Theology*, Oxford, 1963, p. xxvii, nota 1. *Stanford Encyclopedia of Philosophy* (2004): *Pseudo-Dionysius the Areopagite*. \[4\] W. Speyer, *Die literarische Fälschung im heidnischen und christlichen Altertum*, Munique, 1971. \[5\] Lydus, *De Mag.* 3.26. Damáscio menciona Ágapius e sua escola em Constantinopla (*História Filosófica*, fr. 107). \[6\] J.M. Rist, "Pseudo-Dionysius, Neoplatonism and the Weakness of the Soul," em H. Westra (ed.), *From Athens to Chartres*, Leiden, 1992. \[7\] Charles M. Stang, *The Scholarly Consensus on Late Antique Christian Imagination*, (tradução minha). E.R. Dodds, *Proclus. The Elements of Theology*, 2ª edição, Oxford, 1963, p. xxvii, nota 1. K. Corrigan e L.M. Harrington (2004), "Pseudo-Dionysius the Areopagite," *The Stanford Encyclopedia of Philosophy*. W. Speyer, *Die literarische Fälschung im heidnischen und christlichen Altertum – ein Versuch ihrer Deutung*, Munique, 1971. \[8\] C.M. Stang, "Dionysius, Paul and the Signification of the Pseudonym," em S. Coakley e C.M. Stang (eds.), *Re-thinking Dionysius the Areopagite*, Chichester, Reino Unido, 2009, p. 19. B.R. Suchla, *Dionysius Areopagita. Leben - Werk - Wirkung*, Freiburg, 2008, p. 20. E.R. Dodds, *Proclus. The Elements of Theology*, Oxford, 1963, p. xxvii, nota 1. \[9\] H. Koch, "Proklus als Quelle des Dionysius Areopagita in der Lehre vom Bösen," *Philologus* 54 (1895), pp. 438-54. \[10\] J. Stiglmayr, "Der Neuplatoniker Proclus als Vorlage des sogen. Dionysius Areopagita in der Lehre vom Uebel," *Historisches Jahrbuch* 16 (1895), pp. 253-73 e 721-48. \[11\] E.D. Perl, *Theophany*, Albany, 2007, p. 67. \[12\] Schäfer, *The Philosophy of Dionysius the Areopagite*, Leiden, 2006, p. 90. \[13\] Schäfer, *The Philosophy of Dionysius the Areopagite*, p. 172. \[14\] Schäfer, *The Philosophy of Dionysius the Areopagite*, p. 170. \[15\] *Teologia Platônica* I 18, 82.8-88.10. \[16\] *Teologia Platônica* II 42, 16-24; veja também 64, 1-9. \[17\] Perczel, "Pseudo-Dionysius and the Platonic Theology," in A.P. Segonds and C. Steel (eds.), *Proclus et la théologie platonicienne*, Leuven, 2000, pp. 491-532. \[18\] W. Beierwaltes, "Dionigi Areopagita – un Proclo cristiano?", in *Platonismo nel Cristianesimo*, trans. Mauro Falcioni, Milão, 2000, pp. 49-97. \[19\] C.M. Mazzucchi, "Damascio, autore del Corpus Dionysiacum," *Aevum* 80 (2006), pp. 299-334. \[20\] Mazzucchi, "Damascio," pp. 717-19. \[21\] Mazzucchi, "Damascio," pp. 720-23. \[22\] G. Reale, "Introduction," in *Dionigi Areopagita. Tutte le opere*, Milão, 2009, p. 21. \[23\] R.A. Arthur, *Pseudo-Dionysius as Polemicist: the development and purpose of the angelic hierarchy in sixth-century Syria*, Aldershot, 2008, pp. x-xi. \[24\] Mazzucchi, "Damascio," pp. 721-23. \[25\] Mazzucchi, "Damascio," p. 724. \[26\] Mazzucchi, "Damascio," pp. 727-29. \[27\] Mazzucchi, "Damascio," p. 736. \[28\] Mazzucchi, "Damascio," pp. 738-47. \[29\] Mazzucchi, "Damascio," p. 748. \[30\] Mazzucchi, "Damascio," pp. 756-57. \[31\] Mazzucchi, "Damascio," p. 759. \[32\] Mazzucchi, "Damascio," p. 753. \[33\] J. Vanneste, *Le mystère de Dieu* (Bruges, 1959). \[34\] A.L. Frothingham JR, *Stephen Bar Sudhaili. The Syrian mystic (c. 500 A.D)* (Leiden, 1886, repr. Amsterdã, 1981); ver também I. Perczel, "The Earliest Syriac Reception of Dionysius," in Coakley e Stang (eds.), *Re-thinking*, pp. 27-41. \[35\] I.P. Sheldon-Williams, "Pseudo-Dionysius," in A.H. Armstrong (ed.), *The Cambridge History of Later Greek and Early Medieval Philosophy* (Cambridge, 1967), p. 457; e Sheldon-Williams, "The pseudo-Dionysius and the holy Hierotheus," *Studia Patristica* 8.2 (1966), pp. 108-117. \[36\] René Roques, introdução a Maurice de Gandillac, *Denys l'Aréopagite: La Hiérarchie céleste* (Paris, 1958), p. 103. \[37\] Ver CH 20A, EH 376D, EH 392A, EH 424C, DN 648C-652A, DN 680A-684, DN 713A-713, e DN 865B. \[38\] Zacharias Retórico, *HE*, IX 15; tradução inglesa em W.H.C. Frend, *The Rise of the Monophysite Movement* (Cambridge, 1972), pp. 362-66. \[39\] R. Roques, "Denys l'Aréopagite," *Dictionaire de spiritualité, ascétique et mystique* 3 (1957), cols 244-429 at 249. \[40\] Saffrey e Westerink, *Proclus. Théologie Platonicienne*, I, cl-clvi, VI, xliv-lix. \[41\] Perczel, "Pseudo-Dionysius and the Platonic Theology," p. 496. \[42\] Combés, *Traité des Premiers Principes*, p. xix. \[43\] Shaw, "Neoplatonic Theurgy"; Stock, *Theurgisches Denken*; Burns, "Proclus and the Theurgic Liturgy of Pseudo-Dionysius," pp. 111-32. \[44\] Uso encontrado em *Ep. 9*. \[45\] *Ep. 9*, 1.43; Damasc., *In Parm.* 94.18. \[46\] Exemplos: DN 820E, DN 869C-D, MT 997A-B. \[47\] Klitenic Wear e Dillon, *Dionysius*, pp. 130-33. \[48\] Tácito, *Annales*, I.1. \[49\] Marinus, *Vita Procli*, 10. \[50\] Trombley, *Hellenic Religion and Christianization*, pp. 22-23. \[51\] *Codex Iustinianus*, i. 1. 3. \[52\] E.R. Dodds, "Theurgy and its Relationships to Neoplatonism", p. 59. \[53\] H.D. Saffrey, "Allusions antichrétiennes chez Proclus", *Revue des Sciences philosophiques et théologiques* 59 (1975), pp. 553-65. \[54\] Proclo, *In Tim.* I, 100.29. \[55\] Damáscio, *História Filosófica*, ed. P. Athanassiadi (Atenas, 1999), fr. 112-113. \[56\] Zacarias, *Vita Severi* 20-26. \[57\] Damáscio, *História Filosófica*, fr. 118. \[58\] João Filopono, *De Caelo* 104.21-23. \[59\] Simplício, *In Enchiridion* 138.19 \[60\] H. Chadwick, "Philoponus the Christian Theologian," in R. Sorabji (ed.), *Philoponus and the Rejection of Aristotelian Science* (Ithaca, NY, 1987), p. 42. \[61\] *Suidae Lexicon*, IV, p. 210. \[62\] A. Cameron, "The Last Days of the Academy of Athens", *Proceedings of the Cambridge Philological Society* 15 (1969), pp. 7-29. # Origens da Devotio Morderna: PARTE 2 - Proclo Liceu ou Damáscio? 01/01/2025 **Autor: ERNESTO SERGIO MAINOLDI** **Tradução: Prof. Gabriel Sapucaia** ![](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000162-84df384df5/ba6d475b7157a936a037c276df90e5d5.jpeg?ph=4df81238fe) ##### **A Transfiguração do Legado de Proclo: Pseudo-Dionísio e a Escola Neoplatônica de Atenas** **I. Pseudo-Dionísio é Cristão ou Cripto-Pagão?** A historiografia moderna sobre Pseudo-Dionísio teve início com as descobertas de Hugo Koch e Joseph Stiglmayr¹, no final do século XIX, que identificaram uma evidente conexão textual entre as obras de Proclo Licêu Dídoco e o Corpus Dionysiacum Areopagiticum (CDA).² Essas descobertas filológicas fornecem informações cruciais sobre o contexto histórico que produziu essa obra pseudoepigráfica. Desde então, outras evidências têm demonstrado a relação próxima entre Pseudo-Dionísio e a escola neoplatônica de Atenas. Entre elas, destacam-se a monografia de Eugenio Corsini, que considera De Divinis Nominibus um texto representativo da tradição neoplatônica de comentários ao Parmênides³; os estudos "clássicos" de Henri-Dominique Saffrey, que apresentam novos vínculos objetivos entre Pseudo-Dionísio e Proclo⁴; e o trabalho fundamental de Salvatore Lilla, que identificou traços da influência de Porfírio e Damáscio sobre Pseudo-Dionísio.⁵ Em especial, a descoberta da dependência textual do CDA em relação às obras de Damáscio, o último didascálico da escola neoplatônica de Atenas, sugere que a atividade especulativa de Pseudo-Dionísio pode ser datada para os últimos anos da instituição ateniense (década de 520). **Influências Neoplatônicas e a Perspectiva Cristã** A influência de Proclo e Damáscio sobre a escrita do CDA não implica necessariamente que Pseudo-Dionísio tenha adotado as mesmas perspectivas filosóficas dos dois mestres neoplatônicos. O texto do CDA apresenta elementos que sugerem um desejo de superar o pensamento procliano e se distanciar das soluções aporéticas damascianas. No entanto, uma tendência historiográfica consolidada assume a proximidade de Pseudo-Dionísio com a escola neoplatônica de Atenas como prova de sua inserção no paradigma de pensamento neoplatônico, interpretando seu cristianismo como uma espécie de "casca artificial" criada para proteger, em um contexto religioso hostil, os vestígios do pensamento neoplatônico genuíno. Essa visão, já presente no julgamento de Martinho Lutero sobre Pseudo-Dionísio⁶, recentemente levou o filólogo bizantinista Carlo Maria Mazzucchi a propor que o autor do Areopagitica seria Damáscio, o último didascálico de Atenas.⁷ Essa hipótese, definida por Tuomo Lankila como a "hipótese cripto-pagã",⁸ sugere que o CDA seria um complô pagão e anticristão, configurando sua forma mais radical.⁹ **Hipóteses e Controvérsias** Outra forma da hipótese cripto-pagã, formulada por Lankila e Ronald Hathaway¹⁰, argumenta que a intenção de Pseudo-Dionísio seria garantir a sobrevivência da filosofia neoplatônica sob uma cobertura cristã.¹¹ Nessa visão, o paradigma cristão não seria o núcleo do pensamento dionisíaco, mas apenas uma estratégia externa. Por outro lado, outro grande corrente na historiografia dionisíaca relaciona o misterioso autor do CDA aos círculos monofisitas e origenistas da Palestina e da Síria. Essa hipótese baseia-se em evidências de pontos de contato entre o CDA e a cultura eclesiástica da Síria Ocidental cristã no final do século V. Tais evidências incluem: A recepção precoce do CDA na Síria, como a tradução feita por Sérgio de Reshaina e o livro pseudoepigráfico Hieroteu Santo. A recepção positiva do CDA em círculos monofisitas moderados, como o de Severo de Antioquia, o primeiro autor a citar o CDA. As semelhanças entre os ritos descritos na Hierarquia Eclesiástica (EH) e a liturgia e eucologia sírias, observadas inicialmente por Stiglmayr.¹² **O Enigma da Identidade de Pseudo-Dionísio** A questão dionisíaca no século XX e no início do XXI tem sido caracterizada como uma disputa silenciosa entre estudiosos de diferentes áreas disciplinares (historiadores da filosofia, siríacos, patrólogos e teólogos), cada qual reivindicando Pseudo-Dionísio para seu campo e destacando elementos do CDA que se conectam mais claramente com sua disciplina. Uma exceção notável é o trabalho de István Perczel, que explorou o amplo espectro de implicações disciplinares do CDA, oferecendo uma explicação mais geral: um monge cristão, proveniente do mundo monástico sírio, um origenista e expoente da cristologia diopsista, ex-aluno da escola neoplatônica de Atenas e convertido ao cristianismo.¹³ Essas conclusões são plausíveis, mas não explicam totalmente o projeto dionisíaco. Werner Beierwaltes argumenta que Pseudo-Dionísio é, ao mesmo tempo, neoplatônico e cristão. No entanto, essa explicação não elimina a possibilidade da hipótese cripto-pagã em sua forma moderada, que postula que a inspiração cristã é secundária à conformidade de Pseudo-Dionísio com o paradigma neoplatônico. Estudos recentes destacam a necessidade de examinar a composição do texto do CDA, em vez de apenas identificar suas fontes. Contribuições de Bernhard Brons¹⁷ e Mihai Nasta¹⁸ sugerem que o CDA pode ser um mosaico textual, escrito em diferentes etapas e possivelmente por mais de um autor. **Introdução** Neste artigo, busco aprofundar alguns dos aspectos filosóficos do *Corpus Dionysiacum Areopagiticum* (CDA), comparando-os com as contribuições de Proclo e Damáscio, a fim de verificar até que ponto o pensamento de Pseudo-Dionísio pode ser considerado em continuidade com as reflexões desses grandes pensadores neoplatônicos. Muitas vezes, as correspondências conceituais e terminológicas entre autores cristãos e pagãos da Antiguidade Tardia são interpretadas como prova de uma continuidade paradigmática. No entanto, tanto autores cristãos quanto pagãos frequentemente buscavam enfatizar descontinuidades doutrinárias. Pseudo-Dionísio transformou a filosofia neoplatônica para adaptá-la à visão paradigmática cristã do mundo, empregando argumentos e terminologia das obras de Proclo, seu possível mestre, e Damáscio, seu provável colega na escola de Atenas, removendo todos os elementos que vinculavam a filosofia desses pensadores à teologia pagã e sua visão de mundo. A transformação do neoplatonismo realizada por Pseudo-Dionísio, especialmente em relação à exegese do *Parmênides*, é descrita por Stephan Gersh como um "reapensar revolucionário".¹⁹ Meu objetivo é mostrar que a reinterpretação do neoplatonismo por Pseudo-Dionísio foi guiada por uma consciência paradigmática. Essa abordagem permitiu que o CDA aceitasse a forma externa da filosofia pagã para transformá-la, estabelecendo um hiato doutrinário por meio de uma continuidade formal. Essa estratégia pode ser descrita como uma apropriação com a intenção de redirecionar a filosofia para novos caminhos. Além disso, a análise de alguns dos mais marcantes argumentos filosóficos no CDA revela indícios de um debate teórico na tessitura dessa obra pseudoepigráfica, fornecendo informações valiosas sobre sua elaboração. **II. A Lei da Mediação** A primeira questão a ser examinada é como o neoplatonismo é compatível com o paradigma das hierarquias apresentado por Pseudo-Dionísio. A segunda é se o sistema hierárquico dionisíaco é uma aplicação estrita do princípio da mediação, como geralmente se presume. A lei da mediação é, de fato, um dos aspectos principais do universo dionisíaco, uma vez que a transmissão dos dons de cima, por meio de intermediários hierárquicos, desempenha um papel central na definição da ordem hierárquica. Contudo, essa não é a única forma de transmissão dos dons teárquicos prevista no CDA. Pseudo-Dionísio concebe dois modos de transmissão dos bens divinos: o imediato e o mediado. Em *Hierarquia Celestial* (*CH*), ele afirma: "Assim, a ordem intermediária das inteligências celestiais manifesta sua conformidade com Deus. Isso, como foi dito, é como ela alcança purificação, iluminação e perfeição, indiretamente (*δευτέρως*), a partir dos esclarecimentos divinos por meio da primeira ordem hierárquica, transmitidos de forma secundária por essa ordem intermediária (*καὶ διὰ μέσης ἐκείνης δευτεροφανῶς διαπορθμευομένων*)."²⁰ Aqui, fica claro que o primeiro modo de transmissão é por iluminação direta, enquanto o segundo é mediado hierarquicamente. Em geral, podemos observar que nos dois primeiros tratados do CDA (*CH* e *Hierarquia Eclesiástica*, *EH*), o princípio da mediação é mais enfatizado. Já em *Nomes Divinos* (*DN*), o princípio da imediatez ganha maior destaque: "O Bem é descrito como luz (*φῶς νοητὸν ὁ ἀγαθὸς λέγεται*) da mente porque ilumina a mente de todos os seres supracelestes com a luz da mente, e porque expulsa das almas a ignorância e o erro que ali habitam (*πᾶσαν δὲ ἄγνοιαν καὶ πλάνην ἐλαύνειν ἐκ πασῶν*). Ele dá a todas elas uma parcela de luz sagrada (*καὶ πάσαις αὐταῖς φωτὸς ἱεροῦ μεταδιδόναι*). Ele remove a névoa da ignorância dos olhos da mente."²¹ **A Interação Direta e o Conceito de Sinergia** O princípio da interação direta com as energias divinas parece estar implicado no conceito de sinergia: "Esse primeiro grupo \[i.e., ordem\] é particularmente digno de comungar com Deus e de compartilhar em sua obra (*συνεργίας*). Ele imita, na medida do possível, a beleza da condição e da atividade divina (*τῶν καλῶν ἕξεών τε καὶ ἐνεργειῶν*)."²² Além disso, de acordo com a teologia e terminologia neotestamentária, Pseudo-Dionísio fala de graça, um conceito que implica a transmissão direta dos bens divinos às criaturas: "E assim ocorre que toda ordem na hierarquia é elevada, na medida de sua capacidade, à cooperação com Deus. Pela graça e por um poder concedido por Deus (*ἐκεῖνα τελοῦσα χάριτι καὶ θεοσδότῳ δυνάμει*), ela realiza atos que pertencem naturalmente e sobrenaturalmente a Deus, atos realizados por ele de forma transcendente e revelados na hierarquia (*ἱεραρχικῶς ἐκφαινόμενα*) para a imitação permitida às mentes amantes de Deus."²³ Neste trecho, Pseudo-Dionísio distingue a graça do poder natural. A graça é concedida diretamente por Deus, mesmo que seja transmitida por meio da hierarquia. O papel das ordens hierárquicas é auxiliar as ordens inferiores a cumprirem as condições de conhecimento e purificação que lhes permitem participar dos dons teárquicos. Seguindo essa mesma lógica, Pseudo-Dionísio concebe a oração (*DN* III, 1) como uma faculdade para mover-se anagogicamente e diretamente para Deus, sem passar por qualquer mediação. **A Função da Hierarquia** No tratado *Hierarquia Eclesiástica* (*EH*), Pseudo-Dionísio afirma que a função da hierarquia é auxiliar o movimento anagógico de todas as ordens, mas também especifica que a iluminação não é concedida pelos membros superiores da hierarquia, pois ela provém diretamente de Deus: "As ordens que vêm em sucessão a esses seres superiores são elevadas de maneira sagrada por sua mediação à iluminação no trabalho sagrado da divindade (*πρὸς τὴν θεουργὸν τῆς θεαρχίας*). Elas formam as ordens dos iniciados e são assim nomeadas."²⁴ Esse modo de transmissão característico da hierarquia na distribuição dos dons divinos se alinha perfeitamente com o monoteísmo absoluto expresso em *Nomes Divinos* (*DN*) XI: "O ser absoluto que subjaz às manifestações individuais de ser como sua causa não é um ser divino ou angélico, pois apenas o ser transcendente em si pode ser o princípio, o ser e a causa do ser dos seres. Nem temos aqui um outro ser divino produtor de vida distinto daquela vida supra-divina que é a causa originária de todos os seres vivos e da própria vida. Em resumo, Deus não deve ser pensado como idêntico àqueles seres e substâncias criadoras originárias que homens estupidamente descrevem como certos deuses ou criadores do mundo."²⁵ **A Transcendência de Deus e Suas Energias** A afirmação de uma causalidade única atuando no universo é um aspecto distintivo do monoteísmo dionisíaco. Pseudo-Dionísio defende a compatibilidade entre a transcendência absoluta de Deus e suas extensões providenciais, recorrendo à teoria das energias/operações, o que implica uma interação imediata: "...em sua total unidade, ele está além de todas as limitações. Ele não é contido nem compreendido por nada. Ele alcança tudo e vai além de tudo com uma generosidade infalível e uma atividade incessante (*ἀλλὰ διατεῖνον ἐπὶ πάντα ἅμα καὶ ὑπὲρ πάντα ταῖς ἀνεκλείπτοις ἐπιδόσεσι καὶ ἀτελευτήτοις ἐνεργείαις*)."²⁷ A hierarquia não emana a Graça, mas transmite a iluminação como conhecimento de Deus. A hierarquia apoia a purificação de cada ordem como condição preliminar para a transmissão dos dons divinos, mas o que é transmitido procede apenas e diretamente de Deus. O conceito de "hierarquia", um neologismo dionisíaco, reflete a concepção religiosa do universo como produto de uma única causa intencional. **Ícones das Operações Divinas** Mesmo no *EH*, onde a mediação é fortemente enfatizada, lemos sobre as energias divinas que operam através das ordens hierárquicas. Isso é evidente na descrição das funções eclesiásticas como "ícones das operações divinas": "Dado que as diferenças de função clerical representam simbolicamente as atividades divinas (*τῶν θείων ἐνεργειῶν*) e concedem iluminação correspondente à ordem pura e não confusa dessas atividades, suas atividades sagradas e ordens santas foram organizadas hierarquicamente na tríplice divisão de primeiro, meio e último, de modo a apresentar uma imagem da ordem e da natureza harmoniosa das atividades divinas. A divindade primeiro purifica as mentes que alcança e as ilumina. Após essa iluminação, ela as aperfeiçoa em conformidade perfeita com Deus. Assim sendo, é claro que a hierarquia, como uma imagem do divino, é dividida em ordens e poderes distintos para revelar que as atividades da divindade (*ἐναργῶς ὑποδεικνῦσα τὰς θεαρχικὰς ἐνεργείας*) são preeminentes pela santidade absoluta, pureza, permanência e distinção de suas ordens."²⁸ **A Teoria das Energias e o Princípio Único** Se a hierarquia representa a ordem pela qual as energias divinas operam, essas energias são distintas porque pertencem à Tearquia, não à hierarquia. A compreensão dos princípios de imediatismo e sinergia é fundamental. Considerar o universo dionisíaco governado apenas pela transmissão mediada transformaria esse cosmos em um sistema emanatista, no qual a causalidade seria espalhada entre diferentes níveis subordinados. Em vez disso, a mediação deve ser vista como uma função sinérgica, na qual as ordens hierárquicas superiores auxiliam as inferiores na participação dos dons da Tearquia. **A Unificação de Henad e Monad** Pseudo-Dionísio rejeita a multiplicidade de princípios apresentada por Proclo, unificando os conceitos de henad e monad em Deus: "\[...\] todas essas expressões celebram a Deidade suprema ao descrevê-la como uma monad ou henad, por causa de sua simplicidade sobrenatural e unidade indivisível (*ὡς μονάδα μὲν καὶ ἑνάδα διὰ τὴν ἁπλότητα καὶ ἑνότητα τῆς ὑπερφυοῦς ἀμερείας*)."³⁶ Ao fazê-lo, ele evita a necessidade de postular distinções intermediárias entre o Princípio Primeiro e o Uno, o que era essencial para a henologia de Proclo e Damáscio. A causalidade única e a transcendência radical são preservadas em sua totalidade, eliminando o politeísmo filosófico do sistema neoplatônico. **A Crítica à Multiplicidade Proclina e a Unicidade Dionisíaca** A insistência de Pseudo-Dionísio na unicidade do princípio causal reflete sua rejeição à henologia proclina, onde múltiplos princípios (como henads e archai) eram introduzidos como intermediários entre o Uno e o Intelecto (*Nous*). No sistema proclino, as henads representavam divindades individuais associadas ao politeísmo grego, formando um nível intermediário crucial. Pseudo-Dionísio, no entanto, elimina essa camada intermediária ao unificar o conceito de henad e monad em um único Deus transcendente: "O ser absoluto, a vida absoluta e a divindade absoluta (*αὐτοθεότητά*), são nomes que significam princípio, divindade e causa, e são aplicados à única causa transcendente e ao princípio além de todo princípio (*τὴν μίαν πάντων ὑπεράρχιον καὶ ὑπερούσιον ἀρχὴν καὶ αἰτίαν*)."⁴² Essa simplificação do mundo suprassensível elimina a necessidade de múltiplos princípios e reafirma a supremacia do único Deus como causa de todas as coisas. A eliminação da multiplicidade de princípios também é evidente na distinção que ele faz entre "divindade absoluta" (*divinity itself*) e "deificação absoluta" (*deification itself*). Enquanto a primeira é não-participada, a última é participada, e os seres deificados são contados entre os entes criados. **Os Nomes Divinos como Princípios Nominais** Embora Pseudo-Dionísio utilize o termo *archai* (princípios) no plural, ele o faz principalmente para referir-se às hierarquias angelicais. No entanto, em *Nomes Divinos* (*DN*), ele aplica o termo "princípios" ao contexto da causalidade divina: "O Bem é a causa até mesmo dos princípios e dos limites dos céus (*καὶ τῶν οὐρανίων ἀρχῶν καὶ ἀποπερατώσεων αἰτία τἀγαθόν*)."⁴³ Nesse contexto, ele enfatiza que os princípios participam do ser (*Being*), mas não estão além do ser: "Todos os princípios de qualquer coisa que exista são, primeiro, existentes e, depois, princípios (*Καὶ γοῦν αἱ ἀρχαὶ τῶν ὄντων πᾶσαι τοῦ εἶναι μετέχουσαι καὶ εἰσὶ καὶ ἀρχαὶ εἰσὶ καὶ πρῶτον εἰσίν, ἔπειτα ἀρχαὶ εἰσίν*)."⁴⁵ A insistência de Pseudo-Dionísio nesses tópicos pode ser explicada por seu desejo de evitar qualquer possível conexão com os princípios proclinos que estão além do Ser (*Being*). Mas o que são os "princípios", segundo Pseudo-Dionísio? Para ele, os "princípios" são os nomes divinos, que não possuem nenhuma independência causal em relação à vontade de Deus, enquanto único princípio causal. Consequentemente, os nomes divinos podem ser referidos como "princípios", mas apenas de forma nominal, já que são nomes do Princípio, e não princípios por si mesmos. Dele e nele estão o próprio Ser, o princípio dos seres (**αἱ τῶν ὄντων ἀρχαὶ**), todo o ser e tudo mais que possui uma porção de existência. Essa característica está nele como um traço irreprimível, abrangente e singular.⁴⁶ Na mesma direção, Pseudo-Dionísio reformula o conceito de henade para distanciar seu sistema do de Proclo. Nos textos areopagíticos, o plural de **ἑνάς** ocorre apenas uma vez como genitivo plural (**ἑνάδων**; a forma nominativa **ἑνάδες** nunca aparece), e somente em *DN*, uma clara diferença em relação ao uso abundante desta palavra por Proclo e Damáscio. Podemos argumentar que essa característica principal da terminologia procliniana-damasciana, ligada não apenas ao conceito de intermediação, mas também à justificação do politeísmo grego tradicional, foi completamente removida por Pseudo-Dionísio: o termo **ἑνάς** é, na maior parte das vezes, entendido por Pseudo-Dionísio como sinônimo de **μονάς**, um dos nomes de Deus.⁴⁷ Em apenas uma ocorrência no plural, em todo o CDA, o uso da palavra **ἑνάς** pode ser assimilado à teologia procliniana, e isso ocorre quando Pseudo-Dionísio fala de "henades angélicas".⁴⁸ Ao definir os anjos como 'henades', Pseudo-Dionísio manifesta sua intenção de remeter à terminologia aplicada aos deuses pelos neoplatonistas. No entanto, enquanto em Proclo as henades-deuses estão além do Ser, isto é, são supra-essenciais, segundo Pseudo-Dionísio, os anjos são entidades ontológicas, criadas em **ousia**, **dynamis** e **energeia**.⁴⁹ O uso das mesmas palavras empregadas por Proclo pode indicar que a intenção de Pseudo-Dionísio era sublinhar sua diferença conceitual em relação à compreensão procliniana. Ao mesmo tempo, podemos observar que Pseudo-Dionísio nunca utiliza **μονάς** no plural, enquanto Proclo e Damáscio empregam este termo no plural várias vezes para definir os deuses particulares.⁵⁰ Em *DN XI.6* — uma das mais marcantes instâncias de apologia monoteísta em todo o CDA —, Pseudo-Dionísio apresenta afirmações que nos garantem que seu ponto de partida são as henades de Proclo, das quais ele deseja se distanciar: O ser absoluto subjacente às manifestações individuais do ser como sua causa não é um ser divino ou angélico, pois apenas o ser transcendente em si pode ser o princípio, o ser e a causa do ser dos seres (**τὸ ὑπερούσιον ἀρχὴ καὶ οὐσία καὶ αἴτιον**).⁵¹ Concluindo, Pseudo-Dionísio não pretende seguir o esquema teórico delineado pelo sistema procliniano. Ele direciona sua reflexão em uma direção assintótica em relação ao esquema filosófico do Diádoco. No entanto, o objetivo do autor do *CDA* não foi apenas uma adaptação do sistema neoplatônico tardio ao quadro paradigmático cristão. Antes, trata-se principalmente de uma postura clara e firme diante das críticas dirigidas a Proclo por Damáscio a respeito do Primeiro Princípio e da possibilidade de conceber um Princípio além do Uno.⁵² **IV. Conflito de Triadologias** Outro ponto importante de comparação entre a especulação de Pseudo-Dionísio e os desenvolvimentos do pensamento neoplatônico tardio é o da triadologia damasciana. Damáscio lida com o problema da triadicidade como um possível desdobramento do problema da multiplicidade e da alteridade no inteligível, assumindo que não pode haver multiplicidade, alteridade ou número no inteligível. Dessa forma, por meio de um argumento especulativo, Damáscio chega a uma solução que soa como uma demonstração da impossibilidade da Trindade cristã. Este argumento se encaixa perfeitamente no programa de apologética antirristã defendido por Damáscio.⁵³ O argumento fornecido pelo último diádoco procede como segue: em *De primis principiis* I.6, ele recorda o princípio pelo qual o Uno (**τὸ ἓν**) em si mesmo não pode ser equiparado a um conceito numérico, pois expressa simplicidade; a "díade indefinida" (**ἡ δυὰς μετὰ τὸ ἓν ἡ <ἀόριστος>**), que vem após o Uno, não é a soma de duas mônadas, mas é a causa geradora de tudo. O Uno é assimilado ao princípio chamado de "Pai" pelos *Oracula Caldaica*, que possui o poder de "gerar tudo" (**πατὴρ πάντα γεννᾶν δυνάμενος**).⁵⁴ A partir dessa Mônada e dessa Díade, Damáscio deriva a Tríade, que "por natureza possui o caráter do unificado" (**τριὰς κατὰ φύσιν ἔχουσα τὸ ἡνωμένον**) e, como Díade que se converte ao Uno, é o "intelecto paternal" (**νοῦς πατρικός**).⁵⁵ Segue-se, em primeiro lugar, que o Pai, em seu poder gerador, é toda a Tríade (**ὅλη τριάς**), e, em segundo lugar, que a Tríade é a Mônada, não como a primeira expressão da multiplicidade, mas como causa da multiplicidade; em terceiro lugar, que a Tríade é a simplicidade da forma unitária de tudo (**μονοειδὴς τῶν πάντων ἁπλότης**).⁵⁶ O princípio do monismo noético sobre o qual esse argumento se baseia leva à afirmação de que "o Pai é o Uno, o poder ilimitado do Uno é a multiplicidade, e o intelecto do Pai é o Todo".⁵⁷ Concluindo, Pseudo-Dionísio não pretende seguir o esquema teórico delineado pelo sistema procliniano. Ele direciona sua reflexão em uma direção assintótica em relação ao esquema filosófico do Diádoco. No entanto, o objetivo do autor do *CDA* não foi apenas uma adaptação do sistema neoplatônico tardio ao quadro paradigmático cristão. Antes, trata-se principalmente de uma postura clara e firme diante das críticas dirigidas a Proclo por Damáscio a respeito do Primeiro Princípio e da possibilidade de conceber um Princípio além do Uno.⁵² **IV. Conflito de Triadologias** Outro ponto importante de comparação entre a especulação de Pseudo-Dionísio e os desenvolvimentos do pensamento neoplatônico tardio é o da triadologia damasciana. Damáscio lida com o problema da triadicidade como um possível desdobramento do problema da multiplicidade e da alteridade no inteligível, assumindo que não pode haver multiplicidade, alteridade ou número no inteligível. Dessa forma, por meio de um argumento especulativo, Damáscio chega a uma solução que soa como uma demonstração da impossibilidade da Trindade cristã. Este argumento se encaixa perfeitamente no programa de apologética antirristã defendido por Damáscio.⁵³ O argumento fornecido pelo último diádoco procede como segue: em *De primis principiis* I.6, ele recorda o princípio pelo qual o Uno (**τὸ ἓν**) em si mesmo não pode ser equiparado a um conceito numérico, pois expressa simplicidade; a "díade indefinida" (**ἡ δυὰς μετὰ τὸ ἓν ἡ <ἀόριστος>**), que vem após o Uno, não é a soma de duas mônadas, mas é a causa geradora de tudo. O Uno é assimilado ao princípio chamado de "Pai" pelos *Oracula Caldaica*, que possui o poder de "gerar tudo" (**πατὴρ πάντα γεννᾶν δυνάμενος**).⁵⁴ A partir dessa Mônada e dessa Díade, Damáscio deriva a Tríade, que "por natureza possui o caráter do unificado" (**τριὰς κατὰ φύσιν ἔχουσα τὸ ἡνωμένον**) e, como Díade que se converte ao Uno, é o "intelecto paternal" (**νοῦς πατρικός**).⁵⁵ Segue-se, em primeiro lugar, que o Pai, em seu poder gerador, é toda a Tríade (**ὅλη τριάς**), e, em segundo lugar, que a Tríade é a Mônada, não como a primeira expressão da multiplicidade, mas como causa da multiplicidade; em terceiro lugar, que a Tríade é a simplicidade da forma unitária de tudo (**μονοειδὴς τῶν πάντων ἁπλότης**).⁵⁶ O princípio do monismo noético sobre o qual esse argumento se baseia leva à afirmação de que "o Pai é o Uno, o poder ilimitado do Uno é a multiplicidade, e o intelecto do Pai é o Todo".⁵⁷ Conseqüentemente, a tentativa em si de falar de uma Tríade é apenas uma consequência da incapacidade do pensamento humano de conceber a natureza da Mônada como pura simplicidade e de apreender a multiplicidade e a totalidade com um ato simples da mente.⁵⁸ Damáscio evita, dessa forma, uma reconciliação aporética entre o Uno como gerador da multiplicidade e a estrutura triádica que emerge nesse processo de geração. Ao restaurar a primazia do Uno como simplicidade monádica, além de sua propriedade triádica, Damáscio abre caminho para sua concepção do princípio inefável que está além do Uno.⁵⁹ As três "principais" definidas pelo Pai, pelo poder paternal e pelo intelecto paternal, na realidade, não são nem uma nem três, nem uma e três ao mesmo tempo (**οὔτε μία, οὔτε τρεῖς, οὔτε μία ἅμα καὶ τρεῖς**), mas é apenas por necessidade que o pensamento é expresso com tais nomes e conceitos (**διὰ τῶν τοιούτων ὀνομάτων καὶ νοημάτων**).⁶⁰ Através desse argumento, Damáscio opõe uma séria alternativa aos fundamentos especulativos do dogma cristão da Trindade. O argumento trinitário dionisíaco lida com o problema das "uniões e distinções" em Deus em dois passos distintos. Em relação à **ἕνωσις**, Pseudo-Dionísio afirma a absoluta transcendência da Trindade, que ele define como "enarquica", um neologismo que aparece em *DN* II. Com a expressão **τῇ ἑναρχικῇ τριάδι**, Pseudo-Dionísio afirma que a Tríade Divina (a Trindade) é o princípio de unidade, afirmando, consequentemente, que o Uno deriva da Tríade. Ele oferece, então, um exemplo de antinomia, dizendo que Deus é "unidade além do princípio de unidade" (**ἡ ὑπὲρ ἑναρχίαν ἑνότης**), mas ao mesmo tempo afirma as antinomias constituídas por sua "polinomicidade" (**τὸ πολύφωνον**), sua "inefabilidade" (**τὸ ἄφθεγκτον**), sua "incognoscibilidade" (**ἡ ἀγνωσία**) e sua "inteligibilidade completa" (**τὸ παννόητον**).⁶¹ Ao contrário de Damáscio, que exclui a antinomia entre a simplicidade da Mônada e sua triadicidade, alegando o argumento da "pobreza" (**πενία**) do pensamento humano, Pseudo-Dionísio assume a antinomia como um traço distintivo da tradição exegética das Sagradas Escrituras. Essa suposição permite-lhe reconciliar o princípio inefável com a unidade e a hipostaticidade triádica da Santíssima Trindade.⁶² O argumento hiperousiológico e apofático, ao qual Pseudo-Dionísio se refere em *DN* XIII, explica a possibilidade da concepção de distinções e uniões superessenciais e hipostáticas em Deus ao mesmo tempo. Aqui novamente é muito provável que a triadologia damasciana seja alvo da elaboração dionisíaca. A resposta à questão de se os Três do Uno "são o mesmo ou diferentes, e se a Mônada é a Tríade", em *De primis principiis* de Damáscio, soa como segue: **São os três a mesma coisa ou são diferentes, e a mônada é uma tríade?** (*καὶ τριὰς ἡ μονάς;*) Nenhuma dessas coisas é verdadeira. Não há nada disso naquela realidade: nem identidade, nem diferença, nem tríade, nem mônada como distinta da tríade (*οὐ τριάς, οὐ μονὰς ἡ πρὸς τριάδα ἀντικειμένη*). Não há antítese no inteligível (*οὐδεμία γὰρ ἀντίθεσις ἐν τῷ νοητῷ*).⁶³ Esse resultado negativo, ao afirmar que a divindade não pode ser dita nem monádica nem triádica, teria soado, para um observador cristão, como uma crítica radical indiretamente dirigida ao dogma da Trindade. Pelo que posso perceber, Pseudo-Dionísio responde a esse argumento específico em *DN* XIII.3–4, aceitando o desafio baseado no extremo apofatismo apresentado por Damáscio. Movendo-se no mesmo terreno especulativo e terminológico, o autor de *DN* segue o mesmo caminho da negação apofática extrema: "Há a unidade transcendente de Deus e a fecundidade de Deus, e, enquanto nos preparamos para cantar essa verdade, usamos os nomes Trindade e Unidade (*τῇ τριαδικῇ καὶ ἑνιαίᾳ θεωνυμίᾳ τὴν ὑπερώνυμον ὀνομάζομεν*) para aquilo que, na verdade, está além de todo nome, chamando-o de ser transcendente acima de todo ser. Mas nenhuma unidade ou trindade (*οὐδεμία δὲ μονὰς ἢ τριάς*), nenhum número ou unicidade, nenhuma fecundidade, de fato, nada do que é ou é conhecido pode proclamar esse mistério além de toda mente e razão da Divindade transcendente que transcende todo ser. Não há nome para ela ou expressão. Não podemos segui-la em sua morada inacessível tão acima de nós, e nem mesmo podemos chamá-la pelo nome de bondade."⁶⁴ Com relação aos tópicos das "uniões" (*ἑνώσεις*), Pseudo-Dionísio parece ter levado em conta os resultados da triadologia negativa de Damáscio com a intenção de superá-los. Baseando-se na perspectiva ortodoxa fixada pelos Padres Capadócios e voltando-se para o lado das "distinções" (*διακρίσεις*), o autor do *CDA* argumenta em *DN* II.2: "Qualquer um que afirme que esse procedimento envolve uma confusão (*σύγχυσιν*) das distinções (*διαιρέσεως*) dentro de Deus não será capaz, acredito, de provar a verdade de sua alegação, nem mesmo para si mesmo. E se, nisso, ele estiver completamente em desacordo com as Escrituras, estará também muito distante do que é a minha filosofia, e se ele não dá valor à sabedoria divina das Escrituras, como posso eu introduzi-lo a uma compreensão real da Palavra de Deus?"⁶⁵ Nesse trecho, Pseudo-Dionísio dirige-se a "alguém" que rejeita as Sagradas Escrituras, muito provavelmente aludindo a um pensador pagão, com quem ele teria, podemos supor, uma disputa sobre as "distinções" apropriadas à magnificência de Deus (*τῆς θεοπρεποῦς διαιρέσεως*). Essa pessoa misteriosa, a quem Pseudo-Dionísio se dirige, pode ser simplesmente uma ficção literária que delineia o caráter geral de um filósofo pagão que rejeita o dogma cristão da Trindade, ou talvez possa se referir a uma pessoa real, alguém que realmente se opôs a Pseudo-Dionísio no tópico das distinções em Deus. O fato de que Damáscio concebe as distinções relativas à tríade como uma representação nominal do pensamento humano, enquanto, segundo ele, a tríade inteligível é unidade absoluta e simplicidade, pode ser uma indicação de que o verdadeiro referencial da polêmica de Pseudo-Dionísio era precisamente Damáscio. Essa suposição pode ser confirmada por outra definição trinitária dionisíaca em *DN* II, que merece nossa atenção: "A teologia, ao lidar com o que está além do ser, recorre também à diferenciação. Não me refiro apenas ao fato de que, dentro de uma unidade, cada uma das pessoas indivisíveis está fundamentada de uma maneira não confusa e não misturada. Refiro-me também ao fato de que os atributos da geração transcendentemente divina não são intercambiáveis (*τῆς ὑπερουσίου θεογονίας οὐκ ἀντιστρέφει πρὸς ἄλληλα*). O Pai é a única fonte dessa Divindade que, de fato, está além do ser, e o Pai não é um Filho, nem o Filho é um Pai. Cada uma das pessoas divinas continua a possuir suas próprias características louváveis, de modo que aqui se encontram exemplos de uniões e de diferenciações (*ἑνώσεις τε καὶ διακρίσεις*) na unidade e subsistência inefável de Deus."⁶⁶ Essa declaração é surpreendente porque, entre as numerosas heresias trinitárias que emergiram até o século VI, nenhuma jamais argumentou pela intercambiabilidade do Pai e do Filho; mesmo a antiga heresia de Sabélio (ca. 215 d.C.), que sustentava que as três Pessoas da Trindade eram meros nomes do único Deus, não pode ser o objeto da discordância de Pseudo-Dionísio aqui. Qual doutrina, então, Pseudo-Dionísio tinha em mente com essa declaração incomum? A resposta, penso eu, pode ser encontrada novamente na triadologia de Damáscio, onde a conversão que iguala o gerador e o gerado é afirmada. O processo de geração é descrito como uma "divisão do que é antecipado no gerador", mas, ao dizer que "no ápice do inteligível, até mesmo o leve indício de pluralidade é absorvido na unidade",⁶⁷ segue-se que a geração dá vida a uma pluralidade externa (*τὸ ἔξω πλῆθος*), que se desenvolve a partir da pluralidade interna unificada nos geradores (*ὡς εἰ πολλὰ εἶναι ἐν τῷ γεννῶντι*): "Isso, também, deve fazer parte de nossa doutrina, a partir do que foi dito, que em cada nível, a pluralidade externa que se torna diferenciada nas coisas geradas a partir dela (*τὸ ἔξω πλῆθος διακρινόμενον ἐν τοῖς ἀπογεννωμένοις*), cresce a partir do que está concentrado internamente nas coisas que geram \[essa pluralidade externa\]. Como resultado, o correlato (*ἀντιστρέφοντα*) também é verdadeiro, que, se muitos estão dentro do gerador (*εἰ πολλὰ εἶναι ἐν τῷ γεννῶντι*), eles certamente são transferidos para a próxima coisa gerada, e, se os muitos são diferenciados externamente no gerado, os muitos certamente são manifestados anteriormente, no gerador mais próximo."⁶⁸ O verbo *ἀντιστρέφω*, aqui usado por Damáscio, é o mesmo que Pseudo-Dionísio usa negativamente para excluir a convertibilidade do Pai no Filho, em relação à geração divina (*οὐκ ἀντιστρέφει πρὸς ἄλληλα*).⁶⁹ Além disso, Damáscio reafirma esse princípio no quarto capítulo de *De principiis* I (dedicado ao Um e à processão), dizendo que "coisas do mesmo nível são adequadas para a conversão à igualdade".⁷⁰ Consequentemente, em relação ao que "está além de todas as distinções", ele pode estabelecer que "coisas que são distintas na realidade não são absolutamente distintas".⁷¹ De acordo com esse conjunto de textos e problemas que encontram correspondências e cruzamentos entre Pseudo-Dionísio e a escola neoplatônica tardia, podemos supor que a composição de *DN* desempenhou um papel na apologética contra a especulação neoplatônica pagã, em particular a de Damáscio, que levantou, de maneira mais ou menos velada, uma forte refutação aos dogmas cristãos. Desde 515 d.C., de fato, Damáscio ocupava o cargo de *diadochus* da escola de Atenas e, com seus trabalhos posteriores, não apenas elevou o nível da instituição aos seus antigos esplendores, mas também conduziu a resposta pagã mais vigorosa à hegemonia cultural do cristianismo. Podemos confirmar essa hipótese ao observar que a reelaboração dionisiana dos princípios neoplatônicos não é apenas implícita nos textos, mas também explicitamente contextualizada em polêmicas abertas. Podemos testemunhar essas polêmicas em pelo menos três passagens marcantes no *Corpus Dionysiacum Areopagiticum* (CDA). Primeiro, em *De Divinis Nominibus* (*DN*) II.2, como vimos acima. Segundo, em *DN* V.9, onde Pseudo-Dionísio, ao se referir a παραδείγματα (*paradeígmata*), argumenta contra a possibilidade de um princípio de causalidade que não seja o próprio Uno, isto é, o único Deus. Ao contestar que qualquer causalidade e produtividade ontológica possam ser encontradas fora de Deus, Pseudo-Dionísio direciona sua crítica a um filósofo chamado "Clemente" (*DN* V.9, 824D). Sobre a identificação da pessoa real por trás desse nome, Eugenio Corsini conclui de forma definitiva: "O adversário visado aqui é Proclo e não pode ser outro senão Proclo".⁷² O terceiro lugar de polêmicas anti-pagãs é a bem conhecida contenda com Apolofanes, na 7ª Epístola: \*Mas você diz que o sofista Apolofanes me difama, que ele me chama de parricida, que me acusa de fazer uso profano das coisas gregas para atacar os gregos (ὡς τοῖς Ἑλλήνων ἐπὶ τοὺς Ἕλληνας οὐχ ὁσίως χρωμένῳ). Seria mais correto responder a ele dizendo que são os gregos que fazem uso profano das coisas divinas para atacar Deus (ὡς Ἕλληνες τοῖς θείοις οὐχ ὁσίως ἐπὶ τὰ θεῖα χρῶνται). Eles tentam banir a reverência divina por meio da própria sabedoria (τῆς σοφίας τοῦ θεοῦ) que Deus lhes deu.\*⁷³ Nesse caso, a polêmica é apresentada por Pseudo-Dionísio como uma resposta à crítica de Apolofanes sobre seu suposto "saque" de fontes filosóficas gregas. Não sabemos se essa troca é fictícia ou se ecoa uma disputa pessoal real; em qualquer caso, demonstra que Pseudo-Dionísio estava bem ciente de que sua especulação se opunha à tradição grega (isto é, neoplatônica pagã). Por meio do episódio de Apolofanes, ele busca destacar a lacuna paradigmática de seu pensamento em relação à filosofia pagã. Pseudo-Dionísio reconhece que Deus deu sabedoria aos gregos, mas rejeita o uso que eles fizeram dessa sabedoria. Isso justifica, para ele, sua exploração da filosofia grega sem compartilhar o paradigma pagão grego. Por fim, podemos concluir que a reelaboração filosófica de Pseudo-Dionísio não tem a intenção de ajustar a tradição genuína da especulação neoplatônica ao quadro cristão, mas sim de argumentar pela correção do paradigma monoteísta com a ajuda de argumentos neoplatônicos, respondendo também à necessidade especulativa de simplificar ou modificar radicalmente o sistema de *archai* de Proclo. Além disso, contrasta com a negação radical de toda possibilidade de conhecimento do Primeiro Princípio, defendida por Damáscio. Para Pseudo-Dionísio, a simplificação e a conciliação entre o apofatismo e o conhecimento positivo de Deus encontram sua possibilidade no monoteísmo cristão, como ele claramente afirma em *DN* XIII.4, nos últimos parágrafos deste tratado. O resultado da reflexão filosófica dionisiana converge com a monocausalidade da teologia cristã, que evita henades e ideias, afirmando a identificação do Uno apofático com o Uno criador — ou seja, o único Deus revelado nas Sagradas Escrituras. Em Pseudo-Dionísio, o peso da revelação, sustentado por referências contínuas às Escrituras e à tradição sagrada, equilibra o peso que a dialética possui em Proclo e Damáscio. Em *De Divinis Nominibus* (*DN*) XIII.4, não é outra coisa senão a revelação, definida como o dom de dizer e dizer bem (τὸν δωρούμενον πρῶτον αὐτὸ τὸ εἰπεῖν, ἔπειτα τὸ εὖ εἰπεῖν), que permite a Pseudo-Dionísio afirmar a possibilidade do conhecimento de Deus, por meio de sua autorrevelação. Seguindo o caminho da negação, ele chega à mesma conclusão aporética alcançada pela dialética damasciana, segundo a qual Deus não é nem mônada nem tríade. No entanto, Dionísio encerra seus tratados sobre os nomes divinos com uma forte invocação ao dom divino do conhecimento, que remonta ao princípio bíblico fundamental, o da revelação pessoal de Deus: \*Então, se o que eu disse está correto e se, de alguma forma, compreendi e expliquei corretamente algo sobre os nomes de Deus, a obra deve ser atribuída à causa de todas as coisas boas, por ter me dado as palavras para falar e o poder de usá-las bem (τὸν δωρούμενον πρῶτον αὐτὸ τὸ εἰπεῖν, ἔπειτα τὸ εὖ εἰπεῖν).\*⁷⁴ Devido à rivalidade cultural contra a ascensão da hegemonia cristã, uma das direções tomadas pelo neoplatonismo após Jâmblico foi a tentativa de justificar o sistema religioso helênico por meio de argumentos filosóficos, concebidos para garantir uma base epistemológica sólida.⁷⁵ Isso determinou a multiplicação de princípios intermediários e, consequentemente, a necessidade de reconciliá-los com a primazia do Uno.⁷⁶ Por outro lado, o principal alvo da reflexão dionisiana não é o Uno, mas a eliminação dos intermediários, concebidos tanto como divindades quanto como princípios causais. Parece que esse tópico teórico é central para entender o confronto entre o monoteísmo e o politeísmo por trás das obras dos neoplatonistas tardios e de Pseudo-Dionísio. A força da henologia neoplatônica não pode evitar o fato de que a filosofia neoplatônica mantém uma justificativa duradoura do dualismo, que é o elemento característico da visão pagã do mundo, como codificação do antagonismo entre os princípios causais. A possibilidade de que uma figura-chave da escola neoplatônica tardia de Atenas tenha colaborado na composição do *CDA* confirma a hipótese de que o uso massivo de Pseudo-Dionísio da terminologia e dos conceitos neoplatônicos — radicalmente transformados — fundamenta sua posição polêmica em relação a seus antigos colegas da escola de Atenas. Essa crítica não diz respeito apenas à fé religiosa, mas também a princípios filosóficos, como a causalidade e a possibilidade de conhecimento das realidades divinas. O *CDA* está vinculado aos debates filosóficos sobre o Uno, o Bem e a causalidade na escola neoplatônica tardia, mas, apesar do papel causal atribuído aos intermediários metafísicos pelos neoplatonistas, segundo Pseudo-Dionísio o princípio de mediação não prevalece sobre o de imediaticidade, uma vez que sua relação e ação mútuas podem ser entendidas como sinergia entre as energias hierárquicas e as energias teárquicas. A sinergia é de acordo com a vontade, o que nos assegura que a *epistrophé* ao Uno, conforme concebida por Pseudo-Dionísio, é uma conversão voluntária, um conceito bastante distante da dialética neoplatônica entre o Uno e a multiplicidade, descrita por meio da metáfora da emanação e do retorno.⁷⁷ Pseudo-Dionísio nega a ideia de que a causalidade universal possa ser compartilhada entre diferentes *archai*: somente Deus é o princípio causal-criativo de tudo; seus nomes não são princípios ontológicos nem ideias, mas suas "potências providenciais". Em *DN*, Dionísio argumenta contra estruturas triádicas filosóficas que implicam uma crítica ao dogma da Trindade cristã. Sugiro que a doutrina triádica de Damáscio é alvo dessa polêmica. O *CDA* pressupõe, de fato, não apenas o conhecimento de Proclo, mas também o de Damáscio, com quem Pseudo-Dionísio empreendeu um diálogo crítico. Além disso, muitas passagens do *CDA* contêm alusões a uma polêmica filosófica e religiosa mais ou menos aberta contra certos pensadores de sua época, em dois casos referidos com os nomes fictícios de "Clemente" e "Apolofanes". Argumentamos a possibilidade de identificar essas figuras, respectivamente, com Proclo e Damáscio. Se o segundo é apresentado — com acentos negativos — como um "sofista", em relação ao primeiro, que é chamado de "filósofo", Pseudo-Dionísio demonstra uma espécie de deferência, embora discorde fortemente dele sobre a concepção de causalidade. Em conclusão, podemos notar que esse cenário revela implicitamente muito das relações entre os últimos membros da escola de Atenas. A dívida de Pseudo-Dionísio para com o neoplatonismo pode ser finalmente entendida como uma reelaboração dos ensinamentos de Proclo sobre intermediários e mediação, na direção de uma plena afirmação teórica do paradigma cristão sobre o neoplatonismo pagão. Em segundo lugar, ele pretendia opor-se ao apofatismo radical de Damáscio, particularmente no campo das teorias triádicas, que eram uma ferramenta da apologética do último diadochus contra os fundamentos da teologia cristã. --- **Notas** ¹ Koch (1895a), 438–454; Stiglmayr (1895a); Stiglmayr (1895b). ² Edições críticas de Suchla (1990), Heil/Ritter (1991). ³ Corsini (1962). ⁴ Saffrey (1966, 1979b, 1998/2000). ⁵ Lilla (1997). ⁶ Luther (1888), 562. ⁷ Mazzucchi (2006). ⁸ Lankila (2011). ⁹ Fiori (2008). ¹⁰ Hathaway (1969). ¹¹ Caseau (2011). ¹² Stiglmayr (1909); Perzcel (2008), Fiori (2011). ¹³ Perczel (2001). ¹⁷ Brons (1975). ¹⁸ Nasta (1997). ¹⁹ Gersh (1984), p. 299. ²⁰ CH VII.2.240B, 33–34: tradução de Luibhéid/Rorem (1987), p. 167. ²¹ DN IV.6.700D, 149; tradução de Luibhéid/Rorem (1987), p. 75. ²² CH VII.4.212A, 31; tradução de Luibhéid/Rorem (1987), p. 165. ²³ CH III.3.168A, 19; tradução de Luibhéid/Rorem (1987), p. 55. ²⁴ EH V.2.501B, 105, Luibhéid/Rorem transl. (1987), 233–234. ²⁵ DN XI.6.953C-D, 222; Luibhéid/Rorem transl. (1987), 124–125. ²⁶ Larchet (2010), 154. ²⁷ DN XIII.1.977B, 227; Luibhéid/Rorem transl. (1987), 128. ²⁸ EH V.7.508C-509A, 109–110; Luibhéid/Rorem transl. (1987), 238–239. ³⁶ DN I.4.589D, 112; Luibhéid/Rorem transl. (1987), 51. ⁴⁶ **DN V.6.820C-D, 184; Tradução de Luibhéid/Rorem (1987), p. 99.** ⁴⁷ **Veja DN I.4.589D, 112; DN I.5.593B, 116; DN I.1.588B, 109.** ⁴⁸ **DN VIII.5.892C, 202; Tradução de Luibhéid/Rorem (1987), p. 111:** "Esse poder garante que as ordens e direções do universo atinjam seu bem apropriado e preserva na imortalidade as vidas intocadas das henades angélicas (**τῶν ἀγγελικῶν ἑνάδων ζωὰς**)." ⁴⁹ **Veja CH XI.2.284D-285A, 41–42.** ⁵⁰ **Plat. Theol. III.20.2–3:** "Depois da única fonte dos princípios, henades autossuficientes nos foram reveladas, os deuses." ⁵¹ **DN XI.6.953C, 222; Tradução de Luibhéid/Rorem (1987), p. 124.** ⁵² **Veja Napoli (2008), 201–259.** ⁵³ **Veja Napoli (2008), 79–89.** ⁵⁴ **Damáscio, *De principiis*, ed. Ruelle (1889/1964), I.300,7–12.** ⁵⁵ **Damáscio, *De principiis*, ed. Ruelle (1889), I.300.** ⁵⁶ **Damáscio, *De principiis*, ed. Ruelle (1889), I.300.** ⁵⁷ **Damáscio, *De principiis*, ed. Ruelle (1889), I.300: "Οὐκοῦν ἓν μὲν ὁ πατήρ, πολλὰ δὲ ἡ τοῦ ἑνὸς ἀόριστος δύναμις, πάντα δὲ ὁ νοῦς τοῦ πατρός".** ⁵⁸ **Damáscio, *De principiis*, ed. Ruelle, I.301.** ⁵⁹ **Veja Napoli (2008), 421–469.** ⁶⁰ **Damáscio, *De principiis*, ed. Ruelle, I.302.** ⁶¹ **Veja *DN* II.4.641 A, 126–127.** ⁶² **Sobre as diferenças entre as concepções recíprocas de Proclo e Pseudo-Dionísio em relação aos opostos no Uno, veja Steel (2003).** ⁶³ **Damáscio, *De principiis* XVII, q. 117, ed. Ruelle (1889), I.300; Ahbel-Rappe, trad. (2010), 400.** ⁶⁴ ***DN* XIII.3.980D-981A, 229; Luibhéid/Rorem, trad. (1987), 129–130.** ⁶⁵ ***DN* II.2.637D, 124; Luibhéid/Rorem, trad. (1987), 60.** ⁶⁶ ***DN* II.5.641D, 128; Luibhéid/Rorem, trad. (1987), 62.** **69** Ver acima, nota 70. **70** Damáscio, *De principiis*, edição de Ruelle (1889), I.116: *"Ἡ μὲν δὴ τῶν ὁμοταγῶν ἐπίσης ἔχει πρὸς τὴν ἀντιστροφήν, ἡ δὲ τοῦ κρείττονος καὶ χείρονος ἀντιστρέφει μέν, ἀλλὰ μετὰ τῆς ὑπεροχῆς καὶ τῆς ἐλλείψεως."* Tradução: *"A relação dos iguais mantém-se equivalente em relação à conversão, enquanto a do superior e do inferior também se converte, mas com uma superioridade e uma deficiência."* **71** Damáscio, *De principiis*, edição de Ruelle (1889), I.78; tradução de Ahbel-Rappe (2010), p. 152: *"τὸ δὲ ἐπέκεινα διορισμοῦ παντὸς οὐκ ἄν τις ἔχοι λέγειν οὐδαμῆ οὐδαμῶς διωρισμένον."* Tradução: *"Quanto ao que está além de toda diferenciação, ninguém poderia dizer que isso está sujeito a qualquer diferenciação, de forma alguma, em nenhum momento."* Esses trechos apresentam as bases filosóficas de Damáscio, que examina a relação entre igualdade, superioridade e inferioridade, bem como a transcendência do que está "além de toda diferenciação". Essas reflexões servem de pano de fundo para o confronto entre o neoplatonismo de Damáscio e a teologia de Pseudo-Dionísio. ⁷² Corsini (1962), p. 163 (nossa tradução). ⁷³ Ep. VII.2.1080 A-B, 166; tradução de Luibhéid/Rorem (1987), p. 267. ⁷⁴ *DN* XIII.4.981C-984 A, 230–231; tradução de Luibhéid/Rorem (1987), p. 124. ⁷⁵ Ver West (1999), pp. 21–40; 41–68. ⁷⁶ Ver Abbate (2008), p. 27; d'Hoine/Michalewski (2012), p. 179. ⁷⁷ Sobre a rejeição dessa metáfora pelos cristãos, ver Gersh (1978), pp. 205 e seguintes. # Origens da Devotio Moderna: PARTE 3 - A Mística Oculta de Pseudo-Dionísio Areopagita 01/01/2025 **Autor: Magdalena Wdowiak** (**Universidade Jaguelônica, Cracóvia**) Tradução: Prof. Gabriel Sapucaia ![](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000165-2af2c2af2e/Figura-3-Pseudo-Dionisio-Areopagita-Izquierda-Universorum-Pyramis-Tomado-de_Q320.jpeg?ph=4df81238fe) ##### **O AUTOR OCULTO DO *CORPUS DIONYSIACUM* – AUTENTICIDADE, REJEIÇÃO E APOFATISMO EM CONTEXTO HISTÓRICO** **Resumo** O presente artigo tem como objetivo demonstrar que a explicação da identidade de Pseudo-Dionísio é importante para a interpretação da filosofia do *Corpus Dionysiacum*. Investigo a virada na questão dionisiana ocorrida na história das pesquisas sobre a verdadeira identidade do autor: desde o reconhecimento inicial de Dionísio como autor do primeiro século, passando por sua negação, até o retorno ao reconhecimento de sua relação com os tempos apostólicos como algo significativo. A primeira parte do artigo apresenta uma introdução a aspectos escolhidos da história da pesquisa sobre a identidade do autor do *Corpus Dionysiacum*. A parte final aborda as concepções de estudiosos contemporâneos, como Ch. M. Stang e W. Riordan, que tentaram compreender o significado do pseudônimo do autor como importante para a interpretação de todos os seus escritos. A suposição dos estudiosos é a de revelar que o autor e sua obra são elementos complementares e que sua separação acarreta certa perda. **Palavras-chave**: Pseudo-Dionísio, *Corpus Dionysiacum*, pseudonímia Dionísio, o Areopagita, é mencionado nos Atos dos Apóstolos (17, 34). Como autor do *Corpus Dionysiacum*, ele fez sua primeira aparição pública no final do século V d.C., sendo citado à época por Severo de Antioquia.¹ Até o final do século XIX, acreditava-se geralmente que o discípulo de São Paulo, convertido ao cristianismo após ouvir a pregação do apóstolo no Areópago ateniense, era de fato o autor do *Corpus Dionysiacum*. No entanto, dois estudiosos alemães, Koch e Stilgmayr, que realizaram pesquisas de forma independente, demonstraram finalmente a dependência do autor em relação ao neoplatonista Proclo e estabeleceram de maneira convincente uma datação muito posterior para os escritos dionisianos. Concluiu-se que ele obviamente não poderia ter vivido no século I. Desde então, Dionísio tem sido referido com o prefixo "Pseudo" para distingui-lo do Dionísio dos Atos dos Apóstolos.² Desde o final do século XIX, muitos têm investigado em que medida o neoplatonismo e o cristianismo influenciaram os escritos de Pseudo-Dionísio. Outros procuraram descobrir quem seria o autor. Além disso, seu pensamento foi reinterpretado, e os estudiosos começaram a discutir a autoria pseudônima de várias maneiras. Por essas razões, muitas obras literárias sobre a verdadeira identidade oculta do autor foram produzidas ao longo de cerca de um século. De acordo com as pesquisas mais recentes, este autor desconhecido foi, presumivelmente, um monge sírio escrevendo em grego no final do século V ou início do século VI. Sabe-se também que ele foi provavelmente educado nos estudos da Academia Ateniense nos tempos de Proclo, estando, portanto, profundamente familiarizado com o sistema platônico. Por algum motivo, ele se apresentou como Dionísio, o Areopagita, dos Atos dos Apóstolos, ganhando a autoridade de discípulo de São Paulo, fato que, supostamente, teve um impacto real na popularidade de suas obras e na influência de sua filosofia e teologia cristãs. A leitura do *Corpus Dionysiacum* parece ser um grande desafio. Em primeiro lugar, a leitura em si gera muitos problemas. A linguagem é incompreensível para leigos que não estão familiarizados com a filosofia neoplatônica, cujos conceitos são envolvidos. Além disso, há muitas complexidades de sintaxe, estruturas gramaticais e vocabulário. As obras também não são uma exposição sistemática de alguma doutrina, nem um tratado organizado. Isso já havia sido notado na Idade Média. Por exemplo, João Escoto Erígena, comentador e tradutor do *Corpus Dionysiacum*, observou que, devido ao estilo intrincado e excessivo, os escritos eram, na maioria, ocultos e difíceis de entender.³ De modo semelhante, São Tomás de Aquino, ao escrever o comentário sobre os *Nomes Divinos*, notou que o abençoado Dionísio usava um estilo obscuro em todos os seus livros, e que fazia isso de forma diligente para que os ensinamentos sagrados e divinos permanecessem ocultos do ridículo dos incrédulos.⁴ Outra dificuldade é que a leitura requer paciência, consideração atenta e repetida contemplação do mesmo material.⁵ Segundo o estudioso contemporâneo Padre T. Stępień, a teologia de Dionísio é, em si, um exercício no caminho espiritual para Deus. Em outras palavras, ele nos convida para dentro de sua vida interior, e não podemos separar a prática da teoria.⁶ Para Hans Urs von Balthasar, por sua vez, toda a teologia dionisiana é um ato litúrgico simples e sagrado.⁷ De forma geral, ao abordar a questão da identidade pseudônima do autor do *Corpus Dionysiacum*, os estudiosos frequentemente partiram de suas próprias convicções internas, o que impacta profundamente a compreensão da filosofia dionisiana. Este artigo busca demonstrar a importância da autenticidade autoral de Pseudo-Dionísio, não apenas para a popularização de seus escritos ao longo dos séculos, mas também para a percepção e interpretação de sua filosofia. Este artigo tenta investigar a mudança na questão dionisiana que ocorreu na história da pesquisa sobre a verdadeira identidade do autor: desde o reconhecimento inicial da autoria de Dionísio como pertencente ao primeiro século, passando por sua negação, até o retorno ao reconhecimento de sua relação com os tempos apostólicos como algo significativo. Ch. M. Stang definiu isso como uma "antropologia apofática". Enquanto outros estudiosos referiram-se a essa questão como uma "relação mística" ou a chamaram de "trans-temporalidade" (Riordan 2008: 31-32; Balthasar 1995: 151). **Os Primeiros Questionamentos Dionisianos** Como já foi observado, Pseudo-Dionísio, o Areopagita, não era a figura mencionada nos *Atos dos Apóstolos* (17, 34), embora, ao longo dos séculos, tenha-se geralmente acreditado que ele fosse o autor do primeiro século. Sua intenção aparente era que seus escritos fossem tratados como provenientes do primeiro século. Além da autoria pseudônima do corpus, frequentemente chamado de *Corpus Dionysiacum* ou *Corpus Areopagiticum*, o autor cita São Paulo várias vezes como mentor de sua doutrina (*DN IV.13 712A; Ep IX.4 1112A; DN III.2 681A*). Além disso, ele endereça suas cartas e tratados aos destinatários das cartas de São Paulo, bem conhecidos do Novo Testamento.⁵ Ele também menciona, na carta a Policarpo, o Hierarca, que, enquanto estava em Heliópolis, foi testemunha do eclipse que ocorreu no momento da Cruz salvadora (*Ep VII.2 1081A-B*). Ele trouxe consolo a João, preso na ilha de Patmos (*Ep X 1120A*). Alguns acreditam, com base no terceiro capítulo do tratado *Sobre os Nomes Divinos*, que ele esteve presente na morte de Maria, Mãe de Jesus (*DN III.2 681D*). Existem algumas lendas conectadas ao autor. Segundo Eusébio de Cesareia, Dionísio foi posteriormente bispo de Atenas. Por tradição, ele também foi identificado com Denis, o Apóstolo dos Gauleses, o primeiro bispo e padroeiro de Paris, que morreu no terceiro século como mártir, decapitado no local que hoje é Montmartre (*Riordan 2008: 25; Rorem 2005: 1-15*). Seu corpo está enterrado na Basílica de Saint-Denis, localizada no subúrbio de Paris, e seu túmulo encontra-se na Abadia de Saint-Denis, conforme transmitido pelo abade Hilduin (autor do século IX e abade de Saint-Denis, que traduziu os escritos dionisianos para o latim) em *Passio Sanctissimi Dionysii* (*Hilduin, PL: 106, 23-50*). Embora a questão da autenticidade do autor tenha sido levantada no momento da recepção inicial do *Corpus Dionysiacum*, posteriormente ele foi amplamente aceito sem questionamentos. Sua primeira aparição pública ocorreu durante a controvérsia entre os bispos ortodoxos e o grupo opositor conhecido como monofisitas, que se reuniram em torno de Severo, patriarca de Antioquia (*Riordan 2008: 23*). Ambas as partes debateram os decretos do Concílio de Calcedônia (451) em Constantinopla no ano 532 d.C.⁶ A natureza da Pessoa de Cristo na Trindade estava em discussão.⁷ O grupo monofisita foi representado, entre outros, por Severo de Antioquia, que apresentou uma passagem da quarta epístola e invocou a autoridade de um certo Dionísio, o Areopagita, para apoiar seu ponto de vista (*Ep IV 1072A-B*). Durante esse debate, um dos ortodoxos, Hipácio de Éfeso, questionou a autenticidade dos escritos porque eles não eram previamente conhecidos pelos Padres da Igreja e rejeitou os meios de defesa dos monofisitas. No entanto, essas hesitações iniciais tiveram impacto mínimo na popularidade e aceitação calorosa dos escritos. Severo citou os materiais dionisianos em vários de seus trabalhos anteriores: a terceira carta a João Gramático (510), adepto de Calcedônia, e nos tratados *Adversus Apologiam Juliani* e *Contra Addictiones Juliani*, criados por volta dos anos 518 e 528.⁸ Com base nisso, é provável que o *Corpus Dionysiacum* tenha sido criado antes de 525 d.C. Além disso, essa primeira menção aos escritos, mal utilizada para apoiar a posição monofisita, influenciou sua interpretação monofisita. Esse uso inicial, mal interpretado para apoiar a posição monofisita, deu início ao trabalho de comentaristas que buscaram redimir o autor como um teólogo ortodoxo. João de Escitópolis (c. 500–550) foi o primeiro escoliasta e redator dos materiais dionisianos. Suas "escolias" (comentários) foram utilizadas por Máximo, o Confessor (d. 662), o grande defensor da ortodoxia dos escritos, que foi, de longe, a figura mais importante na disseminação dos textos no Ocidente e no Oriente. Durante o Concílio de Latrão de 649, Máximo contribuiu para conformar o *Corpus* aos ensinamentos ortodoxos da Igreja, explicando a atividade do Deus-Homem (*theandrikh' energeia*). A partir de então, nosso autor ganhou aceitação geral tanto nas tradições teológicas ocidentais quanto orientais.⁹ As primeiras traduções siríacas dos escritos dionisianos foram feitas por Sérgio de Reshaina (d. 538) e Phocas (c. século VII/VIII). Traduções e comentários posteriores se seguiram.¹⁰ A primeira tradução completa para o latim foi realizada no século IX pelo abade Hilduin.¹¹ Outra tradução, muito mais legível, foi feita por João Escoto Erígena (852), com comentários do próprio autor e também de Máximo. A doutrina dionisiana exerceu enorme influência nas especulações teológicas e filosóficas dos escritores da Igreja ao longo dos séculos desde o aparecimento dos escritos (*Riordan 2008: 55*). Seu impacto na tradição mística do Ocidente medieval foi profundo. Esse efeito considerável durou aproximadamente até os tempos do Renascimento, quando as questões sobre a autenticidade dos textos foram revividas. **Desmantelando a Tradição** A tradição mencionada foi aberta a dúvidas já na Idade Média por Pedro Abelardo (1079–1142), que questionou a teoria de que o mártir de Paris era o autor do *Corpus Dionysiacum*. De modo geral, a partir do Renascimento, estudiosos começaram a levantar sérias dúvidas sobre a datação dos escritos ao primeiro século. O primeiro foi Lorenzo Valla (1406–1457), em sua obra intitulada *Collatio Novi Testamenti*. Posteriormente, no início do século XVI, Erasmo de Roterdã (1466–1536) começou a questionar se o autor do *Corpus Dionysiacum* seria, de fato, o Dionísio mencionado nos *Atos dos Apóstolos*. No entanto, desde que Jean Daillé (1594–1670) observou que não havia menção ao *Corpus Dionysiacum* antes do início do século VI, a questão sobre sua autenticidade tornou-se realmente problemática (*Daillé 1666*). Como resultado, o interesse pelos escritos diminuiu, mas não por muito tempo. Johann Georg Veit Engelhardt foi o primeiro a provar a dependência do *Corpus* em relação ao neoplatonismo do século V (*Engelhardt 1820*). F. Creuzer apontou a grande importância do platonista Alcibíades para os escritos (*Creuzer 1822*). Análises posteriores (L. Montet, 1848; E. Vacherot, 1851) fortaleceram a crença de que a teologia cristã do *Corpus* havia sido absorvida pelo neoplatonismo. No entanto, o grande ponto de virada na questão da autenticidade foram as descobertas de dois estudiosos alemães, Hugo Koch e Joseph Stiglmayr. Suas pesquisas, conduzidas de forma independente, demonstraram além de qualquer dúvida razoável as conexões do *Corpus* com os escritos de Proclo. No entanto, ambos ignoraram a originalidade do *Corpus*.¹² A consequência de suas descobertas foi que alguns estudiosos retomaram as tentativas de resolver o problema de quem seria exatamente o autor. A investigação apontou cerca de 22 possíveis personalidades espalhadas ao longo de aproximadamente 220 anos.¹³ Contudo, o interesse pelos escritos pseudo-dionisianos, com o passar do tempo, não diminuiu por muito tempo e até aumentou (*Louth 2001: 2*). A. Louth, que escreveu sobre Pseudo-Dionísio, descreveu a questão de forma concisa: *Denys veiled himself in the folds of lightly-worn pseudonymity. The curiosity of modern scholarship has stripped off from him the veil he chose to wear, but has hardly come much closer to discovering his own true identity* (*Louth 2001: 2*). Mesmo o consenso geral de que o autor do *Corpus Dionysiacum* viveu no final do século V d.C. oferece poucas respostas. Em primeiro lugar, porque o autor está situado em um período obscuro da história da Igreja, e como Louth escreve, *is little known and much misunderstood – the ideal hiding-place for one such as our author* (*Louth 2001: 2*). Há alguns detalhes específicos que parecem situá-lo firmemente nesse período e nesse mundo.¹⁴ Na *Hierarquia Eclesiástica*, ele menciona algo como o canto do Credo no meio da liturgia. Se o termo que aparece nesse ponto, precisamente *hymnologia* (u\[mnologi;a), realmente se refere ao Credo introduzido na liturgia por Pedro, o Pleno, em Antioquia, provavelmente em 476, isso confirma nossas conjecturas (*EH III7 436C-D*). Outro detalhe diz respeito à noção de *theurgia* (yeurgi;a), frequentemente usada nos escritos e fortemente conectada à filosofia neoplatônica. A partir desse momento, o foco da atenção dos estudiosos tornou-se a questão das influências neoplatônicas sobre o *Corpus Dionysiacum*, o papel do discurso de Paulo e a identidade pseudônima do autor. A pesquisa moderna tem procurado compreender até que ponto o autor se apropriou do neoplatonismo e o reinterpretou no contexto de uma teologia cristã. Embora o autor se apresentasse como Dionísio, o Areopagita, discípulo de São Paulo, ficou evidente que ele utilizou esse pseudônimo para reforçar a autoridade de suas obras e facilitar sua aceitação tanto em contextos teológicos quanto filosóficos. **A Tradição Revisitada** Primeiramente, a questão foi apresentada aos estudiosos modernos sobre a extensão das inegáveis influências neoplatônicas nos materiais dionisianos em relação ao cristianismo oriental da Antiguidade tardia. Quando ficou evidente que a visão filosófica de Pseudo-Dionísio estava profundamente alinhada ao neoplatonismo de Proclo, muitos tentaram investigar essas relações. O dilema enfrentado ao longo dos séculos era se o autor poderia ser considerado um teólogo cristão ou apenas um neoplatonista. No entanto, a maioria dos estudiosos contemporâneos concorda com as raízes cristãs de sua doutrina, embora influenciada pelo platonismo. Um desses estudiosos, W. Beierwaltes, em seu livro *Platonismus im Christentum*, citou a expressão de Marsilio Ficino – *Platonicus primo ac deinde Christianus* –, mas alterou a ênfase para *Dionysius: Christianus simulatque vere Platonicus* (Beierwaltes, 2003: 76). Ele argumenta que a síntese foi realizada em total acordo com a fé cristã do autor, pois as intenções de Proclo e de Pseudo-Dionísio eram diferentes. Para o mencionado estudioso A. Louth, Pseudo-Dionísio tornou-se o convertido ateniense que está no ponto onde Cristo e Platão se encontram (Louth, 2001: 11). O pseudônimo do autor sugere a convicção de que as verdades que Platão apreendeu pertencem a Cristo e não são abandonadas ao se abraçar a fé em Cristo (Louth, 2001: 11). Dionísio, como o primeiro dos convertidos de Paulo em Atenas, remete a Platão em Atenas, à sua filosofia e à Academia fundada. Quando Sila capturou Atenas em 86 a.C., esse lugar tornou-se um símbolo da antiga glória da filosofia platônica (Cícero, *De finibus*, V 1, 1-2; Reale, 1999: 326-328). No entanto, na virada dos séculos V e VI, a escola foi reorganizada por Plutarco de Atenas e permaneceu ativa até o imperador Justiniano fechá-la em 529. Durante grande parte do século V, os líderes da Academia foram grandes filósofos, sendo Proclo o sucessor (diadochus) de Platão a partir de cerca de 476. Sem dúvida, Pseudo-Dionísio teria frequentado suas palestras. Naquele tempo, os estudantes da Academia vinham de origens diversas. A introdução às palestras de Proclo sobre Platão incluía dois anos de estudos sobre Aristóteles. No entanto, os estudiosos também podem identificar influências dos Padres Alexandrinos e Capadócios no *Corpus Dionysiacum* (Riordan, 2008: 27). **O Significado do Pseudônimo** Outra questão levantada foi sobre o significado do pseudônimo. Em geral, muitos estudiosos interpretaram seu sentido como uma estratégia para atrair um público mais amplo para o *Corpus Dionysiacum* ou para proteger o autor da censura e perseguição em uma era de ortodoxias ansiosas (Stang, 2009: 11). Poucos estudiosos, contudo, consideram o pseudônimo e a correspondente influência do discurso de Paulo no Areópago ateniense em 50 d.C. como relevantes, muito menos cruciais, para uma compreensão adequada desse autor e de seu corpus complexo (Stang, 2009: 11). O Areópago ateniense pode ser visto como o símbolo do primeiro confronto entre o cristianismo e a filosofia pagã e como um modelo para suas relações. Livros de dois estudiosos contemporâneos foram publicados recentemente para preencher essa lacuna: na Polônia, pelo Pe. T. Stępień, *Pseudo‑Dionysius the Areopagite – Christian and Platonist. Polemical Aspects of the Corpus Dionysiacum Within the Context of St. Paul's Discourse at the Areopagus (17, 22-31)*, e nos Estados Unidos, por Ch. M. Stang, *Apophasis and Pseudonymity in Dionysius the Areopagite: "No longer I"* (Stang, 2012). **Pseudonímia e Teologia Mística** A questão mais interessante nas discussões dos estudiosos modernos é a recente tentativa de ver o pseudônimo dionisiano como parte de sua teologia mística. H. U. von Balthasar observou que, por trás das palavras de São Tomás em seu comentário – *hanc autem positionem (Proculi) corrigit Dionysius* (*Super librum De causis expositio*, I 3) –, está oculta uma plena consciência da maneira de referência de Dionísio, sua "relação mística" com os tempos dos Apóstolos (Balthasar, 1995: 151). Segundo ele, isso significa um "novo ponto de vista" (Riordan, 2008: 30), uma tarefa específica "como o contexto para sua veracidade" (Balthasar, 1995: 149). Essa abordagem levou à conclusão de que chamar o autor de "pseudo‑" o coloca de forma imprópria em conotações pejorativas associadas à pseudonímia (Stang, 2012: 37). Portanto, Balthasar recusou o prefixo acadêmico padrão. O conceito de pseudonímia em Dionísio está profundamente integrado à sua teologia mística, como aponta Ch. M. Stang. Ele observa que H. U. von Balthasar foi o primeiro a sugerir que a pseudonímia é, de certo modo, parte integrante do empreendimento místico do *Corpus Dionysiacum* (Stang, 2012: 39). Seguindo essa linha de pensamento, Stang tenta explicar a filosofia dionisiana em termos de uma "antropologia apofática", uma peculiar interpretação da teologia mística. Por um lado, Stang se inspira na passagem de *Atos* (17, 23), que menciona o "Deus desconhecido". Por outro lado, ele utiliza a noção de filosofia como um "exercício espiritual", desenvolvida por Pierre Hadot (Stang, 2012: 155). Essa abordagem enfatiza o programa primário de "exercícios espirituais", cujo objetivo é reconstituir o eu (Stang, 2012: 155). Assim, Stang apresenta a filosofia dionisiana em termos de um processo de "não saber" o próprio eu — aquele que está unido ao "Deus desconhecido". **O Processo Teológico Dionisiano** Pseudo-Dionísio propõe quatro métodos teológicos principais para conhecer Deus. Estes métodos formam uma "escada da ascensão da alma": - **Simbólico**: Deus é conhecido em todas as experiências sensoriais e na criação. As criaturas são "analógicas" de Deus, e, portanto, Ele é conhecido de forma analógica. - **Afirmativo (Cataphático)**: Deus é afirmado nos nomes divinos e nos atributos que se associam a Ele. - **Negativo (Apofático)**: Esse método nega as atribuições feitas anteriormente, movendo-se para além das definições. - **Superlativo (Místico)**: Vai além das categorias afirmativas e negativas, buscando uma experiência direta e transcendental de Deus. No contexto da apofasia, Pseudo-Dionísio insiste que existe um estado raro de "não saber" (*agnōsia*), que não é ignorância, mas uma espécie de hiperconhecimento (Stang, 2009: 15). Ele enfatiza a qualidade "desconhecida" ou "incognoscível" de Deus, que só pode ser alcançada por meio de práticas contemplativas profundas. Essa experiência ocorre quando o "eu" é progressivamente negado, tornando-se desconhecido e sofrendo um abandono absoluto de si mesmo e de tudo o mais (*MT I1 1000A*). **O Caminho da Negação** Esse caminho de negação é, de certa forma, uma forma de ascetismo — um processo de libertação do eu, transformando-o para que possa buscar a união com o "Deus desconhecido". No *Teologia Mística* (*MT I1 997B–1000A*), essa prática é apresentada como um evento litúrgico, onde o poder transformador da união com Deus ajuda o sujeito humano a conformar-se a Ele, que está além do ser. Dionísio destaca que as dificuldades inerentes à linguagem desempenham um papel importante nesse processo. O uso apropriado dos nomes divinos não apenas revela algo sobre Deus, mas também transforma o usuário (Stang, 2012: 156). Nesse sentido, a transformação do sujeito contemplativo e ascético é em si um "exercício espiritual", como Hadot descreveu, sendo também a base da "antropologia apofática" de Stang (Stang, 2009: 16). **Conclusão** A explicação apresentada sobre a pseudonímia dionisiana destaca a existência de caminhos místicos inseparáveis e complementares: o desconhecimento de Deus e do eu. De fato, poucos estudiosos perceberam que escrever sob pseudônimo poderia ser algo mais do que uma tentativa de obter uma autoridade subapostólica ou alcançar um público mais amplo. Como vimos, Stang argumenta que as práticas gêmeas da apofasia – de Deus e do eu (Stang, 2012: 194) – unem todo o *Corpus Dionysiacum*. O que, na verdade, é uma prática devocional extática no serviço de uma antropologia apofática, e, consequentemente, da busca por uma união deificadora com o Deus desconhecido (Stang, 2009: 11), não deveria ser separado. Entretanto, após a descoberta crucial da identidade pseudônima do autor, os estudiosos tentaram interpretar os escritos isolando o que o autor disse do que ele não disse sobre si mesmo. O que restou foi a clara influência de Dionísio pelo neoplatonismo tardio. Como vimos, a pesquisa sobre o autor dionisiano levou os estudiosos, ao longo dos séculos, da negação à afirmação da autoria pseudônima como uma tarefa integral para a compreensão do conteúdo dos tratados. Quem sabe se a ampla recepção inicial, dada pelos filósofos medievais, não compreendia muito mais sabedoria do que imaginávamos? Afinal, o que podemos concluir das descobertas dos estudiosos é uma compreensão mais profunda das associações místicas integrais entre o autor e seus escritos – algo que talvez fosse inatingível sem essas vicissitudes históricas do *Corpus Dionysiacum*. **Referências** - Sobre Pseudo-Dionísio, veja, por exemplo: Copleston (2000), pp. 86-94; Perl (2005), pp. 540-549. - Há várias formas de se referir ao autor em inglês: 1) com o prefixo "Pseudo-": Pseudo-Dionysius, Pseudo-Denys (ou Pseudo-Denis); 2) sem o prefixo: Dionysius, Denys (ou Denis). - João Escoto Erígena, *De divisione naturae*, 1, 64, PL, 122, 509C. - Tomás de Aquino (1950), *Super Nomes Divinos*, 1-2. - Rorem (1993), p. 6. - Stępień (2012). - Balthasar (1995), p. 153. - Por exemplo, ele endereça os tratados a Timóteo, a carta IX a Tito e a carta X a João, apóstolo e evangelista preso na ilha de Patmos. - *Louth* observou: "O Concílio de Calcedônia (451) é visto como a resolução da grande controvérsia cristológica do período patrístico, que começou quase dois séculos antes com a condenação de Paulo de Samósata em Antioquia (268) e depois a condenação de Ário em Niceia (325) – ambos por terem questionado, de diferentes maneiras, a plena divindade de Cristo – e continuou com a heresia de Apolinário (c. 310–390), que comprometeu a plena humanidade de Cristo ao negar-lhe uma alma humana e foi condenado em Constantinopla (381), culminando na grande controvérsia cristológica entre Alexandria e Antioquia" (*Louth 2001: 2-3*). - Para mais informações sobre o assunto, veja, por exemplo: *Louth 2001: 2-10; Manikowski 2006: 32-41*. - O ano 528 é a data final em que os escritos foram traduzidos para o siríaco. Sobre a tradução siríaca, veja, por exemplo, *Perczel 2009: 27-42*. - Para mais detalhes sobre a conformidade dos textos com a ortodoxia, veja: *Louth 2001: 2-3* e *Manikowski 2006: 32-41*. - Sobre as traduções siríacas e seus contextos, veja *Perczel 2009: 27-42*. - A tradução de Hilduin no século IX buscava popularizar os textos no Ocidente e fortalecer a relação entre o cristianismo latino e as tradições teológicas orientais. - Stiglmayr analisou as conexões entre o *Corpus Dionysiacum* e os escritos de Proclo no tema do mal, enquanto Koch provou a dependência do quarto capítulo de *Os Nomes Divinos* em relação ao *De malorum subsistentia* de Proclo. Principais trabalhos: Koch (1895: 438–454); Stiglmayr (1895: 253–273, 721–748; 1894: 3–96). - A lista completa das personalidades propostas pode ser encontrada em *Hathaway 1969*. Veja também *Manikowski 2006: 42–43*. - Detalhes adicionais são discutidos em *Perczel 2009: 27–42*. # Origens da Devotio Moderna: PARTE 4 - Influência de Pseudo-Dionísio na Mística do Carmelo Descalço (reformado) 01/01/2025 Autor: Washington Barbosa da Silva
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##### **O Pseudo-Dionísio Areopagita e sua influência doutrinal sobre a mística do Carmelo Descalço** *WASHINGTON BARBOSA DA SILVA* **Introdução** O autor do Corpus Dionysiacum foi associado, por muito tem- po, àquele grego convertido por São Paulo em sua falida pregação no areópago ateniense relatada no livro bíblico dos Atos dos Apóstolos 17,34. O Pseudo-Dionísio, mesmo tendo seu nome incógnito, não desmereceu a literatura que deixou de grande valor patrístico, filosó- fico e místico. A propósito de esclarecimento, foram utilizados no corpo do presente texto vários vocativos pelos quais se evoca o mesmo autor do Corpus Dionysiacum: Dionísio, Pseudo-Dionísio, Pseudo-Areopa- gita, Areopagita, Pai da mística. Ação propositada para que o discurso tivesse maior fluidez. Todavia, permanece a clareza do pseudônimo desse autor. Na primeira seção, se exporá o contexto histórico-cultural e a Doutrina do Pseudo-Dionísio. A seguir, será apresentado seu Corpus e, descerrando sua grande riqueza patrística, se fará perceber por que recebeu a fama de Pai da mística cristã. Encerrando o artigo, como segunda proposta da pesquisa, será exposta a influência dionisiana sobre os principais expoentes do Car- melo Descalço: Santa Teresa de Jesus de Ávila e São João da Cruz – autores espanhóis que deixaram rica herança literária oriundas de suas experiências místicas. A proposta do Pseudo-Areopagita não influenciou apenas os místicos do Carmelo da época áurea espa- nhola, se fazendo presente também na contemporaneidade; é o caso da intelectual, e também carmelita, Edith Stein, que aprofundou o pensamento dionisiano em sua vida e obras. Essa autora aduz que o Areopagita é um dos mais influentes, se não o mais influente dos Padres gregos. **O pseudo-dionísio areopagita: contexto histórico e doutrina** Autor do final do século V do cristianismo, Dionísio, intitulado o Areopagita, foi declarado como sendo o ateniense convertido por São Paulo em sua falida pregação no areópago: "Ao ouvirem falar da ressurreição dos mortos, alguns começaram a zombar \[dele\]. Foi assim que Paulo retirou-se do meio deles. Alguns homens, porém, aderiram a ele e abraçaram a fé. Entre esses achava-se Dionísio, o Areopagita"2. Dionísio, em seu escrito DN 3.681 A, se autoriza como discípulo de Paulo e Hieroteu (pseudônimo de Proclo): "Foi ele meu principal mestre depois de São Paulo". O epíteto Dionísio Areopagita, que recebeu o autor do Corpus Dionysiacum, foi aceito até a Renascença, afirma Spanneut3. O "discí- pulo" de Paulo foi mencionado, pela primeira vez, pelos monofisistas severianos e por Hipásio, bispo de Éfeso, em Constantinopla (532). Seus escritos foram tidos como apostólicos, já que seu mestre havia sido São Paulo – como criam os fiéis –, sendo logo utilizados na li- turgia oriental, porque autoridade reconhecida pela Igreja desde o século VI4. No Ocidente, a partir do século IX ao século XVI, foi consi- derado como grande vulto, e seus escritos eram solicitados quando ocorriam controvérsias espirituais e de fé5. No entanto, segundo Mo- reschini, nomes como Lourenço de Valla e Erasmo de Roterdã colo- caram em xeque a veracidade do autor do Corpus Dionysiacum. Não obstante, igual incerteza trouxe à tona verdades sobre o autor e as obras dionisianas: "O Pseudo-Dionísio era um cristão de origem siría- ca que nos últimos decênios do século V e início do século VI seguiu em Atenas as lições de Proclo e de Damáscio. Como foi observado, no final do século V a escola neoplatônica de Atenas era frequentada por numerosos sírios"6. O pensamento dionisiano é marcado pela presença do neopla- tonismo, mais pontualmente o pós-plotiniano de Porfírio, de Proclo e de Damáscio. Sobretudo, são os pensamentos dos Padres capadócios, de São Clemente, de Orígenes e de Teodoreto, nos quais o Areopagita se baseia. A teologia pseudo-dionisiana se qualifica sobre nove pon- tos, e está pulverizada em seus tratados e epistolário: Os momentos da Permanência, da Processão e do Retorno divinos; os aspectos da Processão; a exegese do Parmênedes; o método positivo e negativo; as propriedades negativas da moné; a lei de Proclo sobre as negações; a doutrina do Um-Tudo; a doutrina trinitária; e a cristologia7. Seguem explicitação de algumas. Os momentos da Permanência, da Processão e do Retorno di- vinos. A Permanência (moné) é o momento absoluto e transcendente de Deus, Primeiro princípio ou Causa universal, que permanece em si mesmo. A Processão (próodos) é a emanação da potência infinita do mesmo Princípio como transbordamento que, ao se multiplicar, dá origem aos seres. O Retorno (epistrophé) é a tendência da Processão, e de todos os seres que dela fazem parte, de voltar à sua fonte origi- nária. Método positivo e negativo. A teologia admite um e outro mé- todo e, ambos, não se contradizem entre si. O método positivo (cata- fático) atribui a Deus toda propriedade e identifica a divindade com os outros seres dando-lhe adjetivos, o conceituando e o considerando como sua Causa universal. O método negativo (apofático) priva a Divindade dos atributos mais altos pela abstração lógica. **O Corpus Dionysiacum** Pertencem ao Corpus Dionysiacum quatro escritos maiores – De coelesti Hierarchia, De Ecclesiastica Hierarchia, De Divinis Nomi- nibus e De Mystica Theologia –, e um epistolário composto por dez cartas; sendo essa a ordem tradicional que a Patrística de Migne, P.G. apresenta nos tomos III e IV8. No entanto, são mencionados outros tratados os quais o autor refere-se em suas obras, porém não chega- ram até nós ou por serem fictícios ou por se terem perdido: Repre- sentações teológicas, Sobre a alma, Sobre o justo juízo de Deus e Sobre os objetos inteligíveis e os objetos do sentido. Enfim, O Corpus trata de uma teologia ascensional: a Teologia simbólica ou Representações teológicas, como primeiro degrau da teologia afirmativa; a teologia ca- tafática, que afirma Deus na ordem descendente; a teologia apofática, que nega os princípios afirmados pela teologia catafática, sendo de ordem ascendente; e, por fim, a Teologia Mística9. A Hierarquia celeste: O Tratado é composto por quinze capítulos e apresenta um rígido sistema hierárquico, com leis bastante precisas, às várias classes angélicas nomeadas pelo Antigo Tes- tamento bíblico e por São Paulo. A hierarquia, definida por Dionísio como a ordem completa das coisas santas existentes, não serve para separar Deus de suas criaturas, mas os une. Deus é a fonte onde nasce todo ente e participam Dele todos os seres, a Luz da Sabedoria divina desce do Pai das luzes através da hierarquia celeste até ao homem por analogia. A meta do Areopagita, nessa obra, é apontar quais as diferenças entre os nove coros angélicos, assim como sua relação re- cíproca10. Ele apresenta as três subdivisões ou ordens da hierarquia ce- leste: a) os querubins têm compreensão profunda da luz divina e a refletem às outras classes; os serafins abrasam, queimam, com o ardor do amor divino e têm poder de inflamar seus subordinados; os tronos elevam-se sobre tudo, sendo espíritos mais elevados, pois "recebem em toda plenitude o saber imaterial de uma luz superior" (CH 7.208 B). b) as dominações são as do domínio celeste, pois estão isentos de toda contingência terrestre; as virtudes têm virilidade, força inquebrantá- vel, e não permitem que nada diminua as iluminações que Deus lhes concede; as potências são alusão às potências supraterrestres, trans- mitida pela Potência Original, elevando as outras classes angélicas ao Arquétipo de toda potência. c) os principados têm o poder de dirigir, pois guiam de maneira semelhante a Deus; os arcanjos são classe que intercambia os principados e os anjos. E, assim como os arcanjos efe- tuam tal elo, da mesma maneira, os anjos atuam sobre essas classes angélicas e os homens11. A Hierarquia Eclesiástica: O Tratado é composto por sete ca- pítulos, e estabelece um paralelo entre hierarquia celeste e terrestre. O Areopagita qualifica a liturgia, a hierarquia Eclesiástica, com di- mensão muito mais ampla do que um mero ritual do qual advém os sacramentos para "consumo" pessoal: é Jesus Cristo – Deus e Homem verdadeiro –, que se acerca de seu povo, através dos ritos, da leitura da Sagrada Escritura e dos gestos simbólicos. A hierarquia terrestre imita a hierarquia celeste, formando uma unidade a partir da ordem e da ação com o fim de assimilar a Deus. A hierarquia terrestre é mista e corpórea, e é instruída pela hierarquia dos anjos que – sendo incor- pória e inteligente-inteligível –, a auxilia por meio da contemplação, elevando-a às realidades inteligíveis12. **Edith Stein resume, com clareza, a compreensão das duas hierarquias areopagitas:** Deus se manifesta em primeiro lugar aos espíritos puros, cuja capaci- dade intelectual natural é superior a nossa, e neles a luz divina não en- contra nenhuma oposição interior. Eles mantêm o ofício de transmitir a luz recebida, perpetuando seu ofício na 'Hierarquia Eclesiástica', nos grupos humanos cujos membros estão chamados à vida e ao serviço 'angélico'. Com espírito purificado devem receber e administrar os mistérios divinos; a eles pertence inclusive o anúncio e explicação da Palavra divina13. Os Nomes Divinos: O Tratado tem treze capítulos, sendo o mais longo dos escritos, e examina os nomes mais significativos atri- buídos a Deus na Sagrada Escritura. Nele, a Palavra de Deus, evocada por Dionísio como teologia, deve ser o centro na vida de seus mensa- geiros, os teólogos – os anjos e os da hierarquia terrestre. O Areopa- gita apresenta três formas de se nomear a Deus: por negação, através da causalidade e seus efeitos, e referindo-se aos nomes distintos e "supraessenciais" do Pai, do Filho e do Espírito Santo14. No sétimo capítulo, Dionísio nos surpreende afirmando que "Atribuímos a carência da razão àquele que está sobre a razão e a imper- feição \[Deus\]" (DN 7.869 A). Porém responde que o homem conhece a Deus "\[...\] pela ordem de todas as coisas, enquanto está disposto por ele \[Deus\] mesmo" (DN 7.869 C). Contudo, Dionísio exorta a melhor maneira de conhecer a Deus: "\[...\] a Deus se alcança não sabendo, pela união que sobrepõe todo entender." (DN 7.872 A), isto é, a Teologia Mística. A Teologia mística: O último Tratado tem apenas cinco ca- pítulos, sendo o mais breve e se dedicando inteiramente a expor a doutrina mística do Areopagita. De Mystica Theologia não admite métodos em si, pois é a experiência que está além de toda ciência. O Areopagita, após tratar da teologia afirmativa, nas obras citadas ante- riormente, pretende com seu útltimo tratado apenas silenciar e fazer calar a quem o lesse. Não desejava dar explicações, pois não fazia um estudo reflexivo sobre o Mistério; porque, ao invés de ser teologia mística, seria teologia da mística15. A mística, na doutrina cristã, é viver profundamente o mistério cristão: a união com Deus. A mística da qual trata o Areopagita leva o homem a tomar consciência e a adentrar vivencialmente no Mistério, que é o próprio Deus. Unir-se a Deus é tornar-se semelhante a Ele, e ocorre na total ignorância do não saber, porque aquieta toda ativida- de intelectiva. A teologia negativa é meio e, como não é o fim em si mesma, sua finalidade é elevar o homem à união com Deus, livrando-o de erros ocorridos durante essa busca – as projeções sobre Deus16. O Epistolário: É composto por dez Cartas endereçadas a Gaio, a Demófilo, ao diácono Doroteu, ao sacerdote Sosípatro, a São Po- licarpo de Esmirna, a Tito, ao Evangelista São João, exilado na ilha de Patmos (sobre a qual a crítica afirma não fazer parte do Corpus, tendo como a principal intenção a de comprovar a origem apostólica do Pseudo-Dionísio)17. **Influências sobre a mística do carmelo descalço** A Doutrina do Areopagita aparece na Espanha a partir do sé- culo X e chega até aos espirituais da época. Os estudiosos têm dú- vidas de como o pensamento dionisiano chegou realmente às terras hispânicas; alguns afirmam ter adentrado indiretamente através de São Boaventura e Hugo de Balma, devido às questões da grande dificuldade de tradução do Corpus Dionysiacum para o castelhano. No entanto, outros expertos não concordam com igual parecer, pois afir- mam que a obra dionisiana De Mystica Theologia foi chave hemenêu- tica do Terceiro Abecedário de Osuna18. Tratar de oração na Espanha, no século XVI, era seguir a Dio- nísio Areopagita diretamente ou por meio de seus intérpretes: os franciscanos Francisco Jiménez, Francisco de Osuna e Bernardino de Laredo; Alonso de Cartagena (bispo de Burgos), o Cardeal Francisco de Cisneiros e São João de Ávila; os dominicanos Luís de Granada e Bartolomeu dos mártires – espirituais que difundiram a doutrina areopagita na Espanha19. Junto a esses seguidores do Areopagita, na época de ouro da espiritualidade espanhola, também aparecem os carmelitas que passavam por período importante na história de sua Ordem, em sua reforma: Santa Teresa de Jesus e São João da Cruz, importantes místicos e escritores de grande significado para a Espanha. Santa Teresa D'ávila (1515-1582): Santa Teresa leu mui- tos bons livros, em sua fase de conversão, como as Cartas de São Jerônimo, Moralias de Jó de São Gregório Magno, as Confissões de San- to Agostinho. Em sua fase de iniciação espiritual, se assim se poderia dizer, leu os escritores da corrente literária dos espirituais espanhóis que foram citados anteriormente20. A seguir, aponta-se tais autores e em quais obras a Santa Teresa os cita. Francisco de Osuna em o Terceiro abecedário (Livro da Vida 4,7; 11,6; 4 Moradas 3,2): nessa obra, o autor tem como foco principal o "recolhimento", como aplicação da Teologia mística e negativa do Areopagita. Bernardino de Laredo em A Subida do monte Sião (Livro da Vida 23,12): afirmava chegar à união mística com Deus de modo "supraintelectual", pensamento que herdou de Dionísio, como afirma o próprio autor. São João da Cruz: seus escritos apresentam forte influência dionisiana como se verá mais adiante21. Santa Teresa faz referência em Livro da Vida sobre a nomen- clatura do Areopagita teologia mística: "\[...\] quanto ao que comecei a falar sobre a teologia mística – acho que é esse seu nome \[...\]" (11,5); "na teologia mística, de que comecei a falar, o intelecto deixa de agir porque Deus o suspende \[...\]" (12,5); "na teologia mística, ela é explicada, en- quanto eu não tenho palavras para dizê-lo \[...\]" (18,2). Ela remete tal nomenclatura daquilo que aprendeu nos livros espirituais dos quais leu: Osuna, Granada, Laredo. Teresa deu, entretanto, salto consistente em sua própria mística, empregando-lhe marca doutrinal original, fugindo daquela maneira e itinerário espiritual da época, contribuindo positivamente com uma mística experiencial. Segundo Tomás Álvarez, a maioria dos livros lidos pela santa são ascéticos, marcando o místico da literatura do Car- melo Descalço. Contudo, com a contribuição dos escritos posterio- res de Santa Teresa, ocorre o equilíbrio ascético-místico, sendo essa a marca original da Madre Fundadora. Em Castelo interior ou Moradas, por exemplo, Teresa tem consciência de escrever um tratado de teologia espiritual; e conhece muito sobre a teologia espiritual apreendida nos livros lidos, mesmo afirmando o contrário (Livro da Vida 10; 11; 12). Ela conhece a estruturação tradicional das três vias areopagitas (purgativa, iluminativa e unitiva), mas as deixa de lado (Livro da Vida 22,1) optando, em Castelo interior, pela estrutura septenária como conceito de perfeição: as moradas têm uma gradualidade, ao mesmo tempo antropológica e teologal, e o amor expande o castelo interior do ser humano como recíproca relação de amizade com Deus, levan- do-o também ao amor ao próximo (5Moradas 3,9)22. São João da Cruz (1542-1591): O Padre Quiroga ou José de Jesus Maria, primeiro historiador do Carmelo Descalço, afirmava que entre as matérias escolásticas que São João da Cruz estudou em Salamanca estavam os escritos de autores místicos, em particular, os de São Gregório e São Dionísio (como era aceito na época). Por causa da Santa Inquisição, era muito complicado escrever sobre mística na Espanha do século XVI; porquanto, ao se querer publicar os escritos de João da Cruz em 1618, os teólogos de Alcalá e Bórgia fizeram inúmeras advertências e correções ao texto. Como era costume na época, tiveram de confrontar a doutrina de São João da Cruz com a do "Pai da Teologia mística" e encontraram satisfatórias semelhanças de doutrinas, permitindo assim sua difusão23. São João da Cruz cita explicitamente, em cada uma de suas obras, a afirmação: "São Dionísio e outros místicos teólogos denominam a esta contemplação infusa de Raio de treva." (2Subida 8,6; 2Noite escura 5,3; Cântico espiritual 14,16; Chama viva 3,49). A in- fluência da doutrina dionisiana aparece no autor como: o apofatismo, a purificação como próprio fruto da contemplação que ilumina, e as alegorias utilizadas pelos dois autores24. Nas obras Subida e Noite escura, de João da Cruz, encontram-se as vias purgativas e a negação das coisas sensíveis e do entendimento (1S 1,1-3; 1S 2,1; 1S 5,7; 2S 1,1-3; 2S 4,2; 2S 6,8; 2S 11,2.9; 2S 15;prólogo da 1N; 1N 1,1; 1N 8,3; 1N 9,8; 1N 15,1), e a da privação do saber (1S 4,5; 2S 4,4). João da Cruz resume, utilizando a teologia apofática dionisiana, no famoso gráfico para se subir ao monte, sua doutrina da negação total para viver a união com Deus (1S 13,11- 12). Os pontos sobre "incompreensibilidade" e "inacessibilidade divi- nas", a negação de imagens e conceitos para representar a Deus que é inefável, e o caráter obscuro da contemplação/teologia mística está em consonância entre os dois autores25. Quanto ao conceito "Teologia mística", o Pseudo-Dionísio fala que é o "raio de treva" (MT1.100 A). João da Cruz, em Noite es- cura e Subida, o superabunda em sinônimos ao se referir à mesma: "sabedoria secreta de Deus" (2S 8,6), "contemplação obscura" (epí- logo de 1N; 2N 6, 4-5), "contemplação mística" (1N 8,1), "secreta contemplação" (1N 11,2), "contemplação infusa" (1N 12,1; 2N 5,1), "divina sabedoria" (1N 12,4; 2N 4), "contemplação obscura, noite de contemplação, horrenda noite do espírito" (2N 1), "pura e tenebrosa contemplação" (2N 3,3), para se empregar alguns exemplos. Apesar de toda a afinidade das doutrinas entre os autores, muita coisa as faz divergir. A antropologia, a filosofia e a teologia, por exem- plo, são muito diferentes entre os dois: João da Cruz assume, em sua antropologia, a doutrina agostiniana das três potências da alma e o do suposto unitário escolástico; em sua teologia, João da Cruz apresenta Cristo e o Espírito Santo com papéis decisivos; diferente é a doutrina dionisiana, que não o faz. O autor espanhol trouxe o tema das três virtudes teologais, que colocam a alma nas trevas e no vazio absoluto (2S 6,1; 6,4; 7,5), coisa que não fez o Areopagita. Não há paralelismo entre o "êxtase" de Dionísio (MT 1.1000 A) e o de João da Cruz (13ª estrofe do Cântico espiritual): o dionisiano é o sair de si e de todas as coisas; o sanjuanista é a saída (e, consequentemente, a entrada) com matiz afetivo, ascético e catártico. Além disso, tal saída leva a uma entrada totalmente diferente entre os dois autores: em Dionísio, à "treva"; em João da Cruz, ao encontro com Cristo26. Santa Teresa Benedita da Cruz (1891-1942): Teresa Benedita, Edith Stein, não pertenceu à Espanha da época de Santa Teresa e São João da Cruz. Ela foi uma pensadora do movimento fenomenológi- co alemão; e, do judaísmo, se converteu ao cristianismo, tornando-se monja carmelita; que, ceifada nos campos de concentração de Aus- chwitz, tornou-se mártir da Igreja. A autora era uma profunda conhecedora da doutrina dioni- siana, e seu interesse pela personagem e o pensamento de Dionísio aparece primeiramente em sua obra magna Ser finito e ser eterno, na seção VII, que retoma o tratado a Hierarquia celeste do autor, fazen- do-lhe um resumo de cunho fenomenológico. No entanto, é em 1940 que se dedica com afinco nos escritos do Areopagita. Primeiramen- te, lhe pedem colaboração na Revista americana de fenomenologia Journal of Philosophy and Phenomenological Research para qual Edith propõe um trabalho sobre o Areopagita. Contudo, conforme perce- beu, o trabalho não ficou apropriado para a revista de fenomenologia. Porém ele foi publicado somente em 1946, post mortem, na revista holandesa Tijd schrift voor Philosophie e na revista americana The Thomist. Com este trabalho, Edith Stein teve de traduzir a obra original do Areopagita – assim como fez com a tradução da Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino – para o alemão, levando-a a mergulhar no pensamento do autor. Wege der Gotteserkenntnis. Die "Symboliche Theologie" dês Areopagite nun dihresachliche Voraussetzunger (Cami- nhos do conhecimento de Deus sobre o Areopagita) foi concluída por ela ao final de maio de 1941; e recupera, a partir dos escritos dionisianos, a Teologia simbólica do autor27. A teologia negativa, na reflexão de Edith Stein, segundo Ales Bello (2014), apresenta a razão incapaz de penetrar no Mistério. Ela necessita, no primeiro momento, da fé que é conhecimento obscuro para o intelecto completar-se e se superar. E, no momento seguinte, a mística que – ao contrário da fé –, tem extraordinário poder de re- velação e prefigura a visão beatífica, conduz o ser humano a tal expe- riência. Portanto, neste contexto, a teologia negativa tem dupla fun- ção: apresenta a grande dessemelhança entre Deus e o ser humano; e, ao mesmo tempo, apresenta a similitude entre as partes; devendo ser perseguida. Ela é um meio de elevação para Deus, que, começando de baixo, ocorre por via da teologia mística. Por fim, Teresa Benedita testemunha vivamente a respeito do autor e dos escritos areopagitas: Mas gostaria de dizer isto: os pretendidos escritos do Areopagita são um louvor admirável à grandeza e ao amor de Deus, impregnados e penetrados de um sentimento de temor sagrado até em sua expressão verbal. Parece-me impossível atribuir um falso autor. Se existe um falso, é muito provável que outros autores tenham-se servido de suas obras. \[...\] Neste caso veneramos quem está sob o nome de Dionísio, a um santo desconhecido e a um dos mais influentes, se não o mais influente dos padres gregos \[grifo nosso\]28. **Considerações finais** Apesar de o nome do autor do Corpus Dionysiacum ser uma incógnita, e de que não é veraz sua originalidade quanto a ser o dis- cípulo ateniense do Apóstolo Paulo relatado em At 17,34, a doutrina provinda do autor é espiritualmente substanciosa e profunda, sendo capaz de prover muitos místicos ao cristianismo. A doutrina mística de Dionísio encontrou momento adequado para espalhar-se, na Es- panha medieval, como o que ocorreu nas Ordens religiosas – dentre elas, a da Ordem Carmelitana –, que careciam de adequado alimento espiritual. Santa Teresa de Jesus, procurando vida de oração mística, como encontro com Deus, buscou-a em muitos livros espirituais; e, por meio desses escritores, teve contato com o Areopagita. No entanto, a Madre Fundadora deu novo matiz ao que apreendeu e, estruturando sua própria doutrina, equilibrou ascese e experiência pessoal, repassando-a ao que viria a se constituir o Carmelo Descalço. O Doutor Místico e coadjutor de Santa Teresa foi o mais influenciado pela Doutrina areopagita. São João da Cruz teve, no entanto, marca original em seus escritos: afirmou que as virtudes teologais – a fé, a esperança e a caridade – purificam àqueles que se decidem caminhar na contemplação; e nessa saída, no êxtase, são levados a um encontro pessoal com Jesus Cristo, não permanecendo apenas na obscuridade. Entretanto, para a união com Deus, se faz necessário desapego, abnegação e renúncia a tudo quanto seja obstáculo para subir ao cume do Monte – o sensível, o intelectível e, até, o espiritualismo. A noite escura purifica a todos àqueles que se aventuram a subir o monte pela fé; o "nada saber" silencia as palavras e pensamentos que apenas estorvam o espírito límpido, capaz de receber a luz do alto. Santa Edith Stein obteve contato direto com a doutrina do Areopagita, tornando-se exímia conhecedora do "Pai da mística". Isto é percebido pelas obras de altíssimo nível intelectual filosófico-teoló- gico que deixou com comentários a respeito de Dionísio Areopagita. A razão humana, afirma a autora, à luz de sua experiência pessoal, torna-se insuficiente diante do dado da fé que compromete a pessoa por inteiro, pois deve deixar-se iluminar pela Sabedoria obscura de Deus. A influência místico-doutrinal dionisiana sobre a mística do Carmelo Descalço é inegável, afinal aparece nos escritos de seus fun- dadores e de seus discípulos. No entanto, é perceptível o desfecho original que cada um deles deu a tal influência: ascese e mística ca- minham juntas no Carmelo de Teresa de Jesus, não havendo contraposição entre elas na mística carmelitano-teresiana. **Referências** ÁLVAREZ, Frei Tomás. 100 fichas sobre Teresa de Jesus: para aprender e ensinar. São Paulo: Edições Carmelitanas, 2011. DIONISIO, Pseudo-Areopagita. Obras completas del Pseudo Dioni- sio Areopagita. 2. ed. Madrid: Biblioteca de autores cristianos, 1995. FERMÍN, Francisco Javier Sancho. 100 fichas sobre Edith Stein. Bur- gos: Monte Carmelo, 2005. LUNAS, Teodoro H. Martin."Introducción". In PSEUDO-AREOPA- GITA DIONISIO. Obras completas del Pseudo Dionisio Areopa- gita. 2ª ed. Madrid: Biblioteca de autores cristianos, 1995. MORESCHINI, Claudio. História da filosofia patrística. São Paulo: Loyola, 2008 (Título original: Storia della filosofia patrística). PACHO, Eulogio. Diccionario de San Juan de la Cruz. Burgos: Edito- rial Monte Carmelo, 2009. PEDROSA-PÁDUA, Lúcia. Santa Teresa de Jesus: mística e humani- zação. São Paulo: Paulinas, 2015. SALVADOR, Federico Ruiz. Introdução a São João da Cruz: o escritor, os escritos, o sistema. São Paulo, 2007. SPANNEUT, Michel. Os Padres da Igreja: séculos IV – VIII. São Paulo: Loyola, 2002. STEIN, Edith. "Caminos del conocimiento de Dios: la 'teología sim- bólica' del Areopagita y sus presupuestos objetivos". In . Obras completas V: Escritos espirituales. Burgos: Monte Carme- lo, 2004. . Ser finito y ser eterno: ensayo de una ascensión al sentido del ser. 2ª ed. México: Fondo de cultura económica, 1996. TRÓPIA, Ulysses Roberto Lio. Função do hierarca na obra "De Ec- clesiastica Hierarquia" de Pseudo Dionísio Areopagita. Roma: Pontifícia Universidade Agostiniana,1997. (Mestrado em Teo- logia). # O CARMELO DESCALÇO E O ESOTERISMO: PARTE 1 - Teologia Mística e Espiritualidade na Tradição Carmelita 04/01/2025 *Autor: Dr. Hilary Pearson, Oxford* *Tradução: Prof. Gabriel Sapucaia* ![](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000175-5d0305d033/Coat_of_arms_of_the_Carmelite_order_%28simple%29.svg.png?ph=4df81238fe) ##### **Santa Teresa a conversa: há influências judaicas nos escritos de Teresa de Ávila?** A redescoberta das origens conversas de Teresa de Ávila após a Segunda Guerra Mundial coincidiu com um crescente interesse na história europeia dos judeus e uma reconsideração, no período pós-Holocausto, do tratamento dado aos judeus pela Igreja e pelo Estado. Um dos principais historiadores que analisaram o efeito da presença de uma grande população judaica na Espanha e as consequências de sua conversão em massa no século XV foi Américo Castro. Ele foi um dos primeiros a perceber a conexão entre a herança conversa e a literatura espanhola. A ideia central de Castro sobre a característica definidora dos espanhóis como *"vivir desviviéndose"* — viver em desacordo consigo mesmo — ele atribuía à influência muçulmana e judaica. Ele também detectou outras influências que creditou a autores conversos, embora sua teoria de uma "voz conversa" seja contestada por muitos acadêmicos contemporâneos. Em 1928, Castro escreveu sobre Teresa de Ávila e, em 1972, revisou esse ensaio para levar em consideração seu status de conversa à luz de sua teoria sobre a voz conversa. Este artigo examina se tal influência pode ser identificada em seus escritos e, em seguida, analisa brevemente outras possíveis influências judaicas, incluindo a visão de que ela foi influenciada pela mística cabalística judaica. **Américo Castro e a "voz conversa"** Américo Castro (1885–1972) foi um historiador influente, embora controverso, da Espanha. Sua obra abrangeu os anos turbulentos para a Espanha no meio do século XX, a maior parte dos quais ele passou fora do país. Uma de suas obras mais importantes é *España en su historia: Cristianos, moros y judíos*, publicada no Brasil em 1948 e traduzida e ampliada para o inglês em 1954 como *The Structure of Spanish History\*\*\[1\]\*\**. Nesse e em outros trabalhos, Castro buscou refutar a visão predominante entre os historiadores espanhóis da época, apoiada pelo regime franquista, de que a civilização espanhola era uma continuidade pura da cultura visigótica no momento da conquista árabe em 711 d.C. Sua perspectiva — de que a cultura e a civilização cristã espanhola foram marcadas de maneira indelével pelas outras duas religiões da península, o islamismo e o judaísmo —, embora fortemente contestada inicialmente, tornou-se o consenso predominante. **Agora é amplamente aceito que os autores conversos contribuíram significativamente para a literatura espanhola do final da Idade Média e do início do período moderno.** Eles escreveram crônicas (e.g., Álvar García de Santa María), tratados históricos (e.g., Pablo de Santa María), obras religiosas e teológicas (e.g., Juan de Torquemada, Teresa de Ávila), poesia religiosa e secular (e.g., Frei Íñigo de Mendoza, Antón de Montoro), romances e peças teatrais (e.g., Fernando de Rojas), obras humanistas (e.g., Alonso de Cartagena, Luis Vives) e textos de aconselhamento político e polêmicos (e.g., Diego de Valera). O desenvolvimento do humanismo espanhol no século XV pode ser amplamente atribuído aos autores conversos, em particular Alonso de Cartagena\[2\]. Américo Castro foi um dos primeiros a perceber essa conexão entre a herança conversa e a literatura espanhola\[3\]. Sua ideia sobre a característica definidora dos espanhóis como *"vivir desviviéndose"* — viver em desacordo consigo mesmo — ele associava às influências muçulmanas e judaicas\[4\]. Castro destacou como muitos dos criadores de importantes gêneros literários espanhóis nos séculos XV e XVI eram conversos e afirmou ter detectado uma visão sombria nesses escritores, que ele atribuía a uma combinação da cultura "hispano-hebraica" e suas influências árabes com a exclusão social e perseguição que sofreram pela Inquisição\[5\]. Ele também acreditava que os conversos possuíam uma forte autoconsciência e uma tendência a olhar para dentro\[6\]. No livro *Structure*, Castro comentou sobre Teresa de Ávila, afirmando que sua "forte propensão para a autobiografia", bem como seu misticismo, o levaram a suspeitar de uma conexão islâmica ou judaica, mesmo antes de sua condição de conversa ser descoberta\[7\]. Ele afirma que, até Teresa, não havia uma tradição literária na Espanha cristã que examinasse a vida interior do eu, algo comum na literatura islâmica. No entanto, essa conclusão é enfraquecida pela comparação que ele faz, no início do livro, entre o *Libro de la vida* (Vida) de Teresa e as *Confissões* de Agostinho, uma obra bem conhecida na Espanha cristã. Teresa menciona na *Vida* que havia lido as *Confissões*, dizendo: **"Enquanto lia as *Confissões*, parecia-me que via a mim mesma nelas."**\[8\]\*\*\*\* Castro também acreditava que o misticismo de João da Cruz e Teresa não poderia ser explicado apenas pelas tradições cristãs e que João da Cruz, em particular, foi influenciado pelas tradições místicas muçulmanas\[9\]. Castro escreveu um ensaio sobre Teresa em 1928, revisado em 1972\[10\]. Esse trabalho discutia principalmente seu misticismo. Ele atribuiu o surto de misticismo na Espanha do século XVI ao individualismo renascentista, acentuado e exacerbado pela condição de conversa, observando que os santos e místicos espanhóis mais eminentes — Teresa de Ávila, João da Cruz e João de Ávila — eram todos conversos\[11\]. Essa visão pode ser criticada por reduzir a espiritualidade a fenômenos emocionais. Também trata o misticismo espanhol como completamente desvinculado de desenvolvimentos em outras partes da Europa, em particular o florescimento do misticismo nos Países Baixos e na Alemanha nos séculos anteriores. Alguns escritos dessa escola eram conhecidos na Espanha, e seu estudo foi incentivado na primeira parte do século XVI, sob o arcebispo Cisneros, com a publicação de tais obras traduzidas\[12\]. Gilman, seguidor de Castro, interpretou o papel de destaque dos conversos na criação da literatura espanhola não como baseado em características raciais ou culturais judaicas, mas como um produto da situação desses indivíduos, que estavam tanto dentro quanto fora de suas circunstâncias sociais\[13\]. Essa posição liminar proporcionava uma distância irônica de, mas também identificação com, sua sociedade, o que lhes permitia espelhar com sucesso seu mundo na ficção\[14\]. Gilson viu essa posição como levando a uma forma de autoconsciência "adolescente", preocupada principalmente com a impressão causada nos outros\[15\]. Uma visão mais extrema da literatura conversa é dada por Nepaulsingh, que a vê como uma produção deliberada de textos que poderiam ser lidos de forma inofensiva por aqueles que compartilhavam a "monocultura" dominante (neste caso, o cristianismo espanhol), mas contendo uma mensagem codificada potencialmente perigosa, compreensível por aqueles dentro da cultura minoritária\[16\]. Mais recentemente, estudiosos criticaram essa teoria da "voz conversa" por impor um conjunto de características excessivamente simples às produções literárias de indivíduos muito diferentes entre si, que, sendo da classe alta, educados e quase exclusivamente homens, não eram representativos dos conversos como um todo. Em 1996-1997, a primeira parte do volume 25 de *La Corónica* foi dedicada a artigos de estudiosos sobre conversos do final da Idade Média e início do período moderno, abordando a questão da "voz conversa". A segunda parte desse volume continha cartas de outros acadêmicos comentando esses artigos. Houve um consenso geral de que existiam diversas identidades, perspectivas e experiências de conversos que não podiam ser encaixadas em uma teoria única e simples, como a proposta por Castro\[17\]. Outros aspectos do trabalho de Castro não resistem a um exame mais rigoroso, em particular suas surpreendentes conclusões de que a *limpieza de sangre* teve origem em conceitos judaicos de pureza racial\[18\] e de que a Inquisição foi inspirada por tribunais judaicos que governavam as aljamas\[19\]. **À luz disso, podemos afirmar com certeza que existem influências judaicas nos escritos de Teresa no contexto da "voz conversa" de Castro?** Existem vários motivos pelos quais Teresa estava em uma posição liminar além de seu sangue judaico: ela era uma mulher afirmando autoridade espiritual, apesar do ensino de sua igreja negar toda autoridade feminina; era uma reformadora, enfrentando oposição de grande parte da hierarquia carmelita, bem como do governo eclesiástico e cívico; e defendia um método de oração visto com profunda suspeita pela igreja estabelecida e pela Inquisição. Seria simplista demais atribuir tudo ao seu status de conversa. No entanto, há outras possíveis influências judaicas em seus escritos que foram discutidas por estudiosos. Um dos aspectos mais fortes que demonstram a influência de seu status de conversa é sua abordagem em relação à honra e ao status familiar. **Honra** Um leitor moderno de Santa Teresa pode se surpreender com a veemência com que ela rejeita o conceito de "honra", ou talvez nem perceba isso. Na sociedade atual, a honra é um conceito um tanto vago, algo sem dúvida admirável e associado à honestidade e à vida correta. Também falamos de "honras" em relação à concessão de títulos, condecorações e similares, sendo conhecida como "lista de honras" a relação dos agraciados com essas distinções. Os destinatários dessas honras vêm de uma ampla variedade de ocupações e status sociais; alguns deles se mostram, de fato, muito menos do que "honrados". Na Espanha de Teresa, a honra era um conceito muito diferente. Estava diretamente ligada à linhagem e ao alto status social, sendo usufruída pela realeza e por aristocratas poderosos até os níveis mais baixos dos *hidalgos*. Essa honra, dependente em grande parte da reputação pública, precisava ser mantida evitando-se qualquer atividade, ocupação, casamento ou contato social que fosse inconsistente com esse status\[20\]. O pai de Teresa utilizou a riqueza acumulada por seu avô, um comerciante de tecidos finos (uma ocupação inaceitável para um *hidalgo*), para comprar propriedades e viver da renda delas, a fonte usual de renda para um *hidalgo\*\*\[21\]\*\**. O resultado era que aqueles com status, mas sem os recursos necessários para mantê-lo, viviam em pobreza respeitável, em vez de comprometer sua honra trabalhando, uma realidade satirizada por Cervantes em *Dom Quixote*. De fato, o pai de Teresa morreu com sérias dívidas\[22\], o que pode ter levado a maioria dos irmãos de Teresa a buscar fortuna no Novo Mundo — ser conquistador era uma ocupação perfeitamente aceitável para um *hidalgo*. Infelizmente, apenas um deles, Lorenzo, teve sucesso nesse empreendimento\[23\]. Essa ênfase na linhagem fazia com que famílias conversas em ascensão social, como a de Teresa, buscassem alcançar o status de *hidalgo* de qualquer maneira, frequentemente casando-se com famílias nobres que precisavam de um dote rico para seus descendentes. Até que a Inquisição tornasse essa afirmação perigosa, muitos conversos também reivindicavam nobreza hebraica\[24\]. Os proeminentes conversos do século XV, Pablo de Santa María e seu filho Alonso de Cartagena, faziam tais reivindicações em relação à sua ascendência. O importante cortesão converso do século XV, Mosén Diego de Valera, em *Espejo de verdadera nobleza*, também elaborou uma teoria de nobreza — sociopolítica, em oposição à abordagem teológica de Cartagena — mas igualmente destinada a abrir caminho para que conversos de origem judaica nobre fossem reconhecidos como nobres civis\[25\]. Para ambos, Cartagena e Valera, a nobreza estava mais relacionada às qualidades nobres do indivíduo do que à posse de uma genealogia nobre\[26\]. **Honra frequentemente precisava ser defendida, seja literalmente em duelos ou, cada vez mais no século XVI, por meio de processos judiciais.** Crawford\[27\] detalha os caminhos pelos quais a lei foi usada em inúmeros casos para obter ou proteger o status de *hidalgo* e os argumentos utilizados pelos que reivindicavam tal condição. Como sabemos, a própria família de Teresa travou e venceu um desses processos em 1520\[28\], justificando o uso do título de "Don" por seu pai. Em seus primeiros dias no mosteiro da Encarnação, Teresa era conhecida como "Doña Teresa de Ahumada". Naturalmente, a isenção de impostos municipais concedida a todas as classes da nobreza era um benefício — e a causa de tantos litígios sobre o status de *hidalgo*. **Limpeza de sangre** Um aspecto intimamente relacionado à sociedade espanhola do século XVI era o conceito de *limpieza de sangre* (pureza de sangue). Este surgiu no início do século XV em alguns colégios e começou a se espalhar pelas cidades. Um dos principais impulsos para a disseminação dessa ideia foi o levante anticonverso em Toledo, em 1449, resultante do crescente ressentimento entre os cristãos velhos em relação ao sucesso econômico das famílias cristãs-novas. A causa imediata aparente desse levante foi um empréstimo para custear as despesas de guerra exigido pelo impopular ministro-chefe, Álvaro de Luna, e coletado por um cobrador de impostos converso. Um grupo de moradores liderados por um oficial descontente, Pedro Sarmiento, saqueou a propriedade do cobrador e, em seguida, atacou grande parte da comunidade conversa de Toledo. Controlando a cidade, Sarmiento e seu grupo aprovaram a *Sentencia-Estatuto* (*Sentencia*), uma lei que proibia conversos de ocupar cargos oficiais seculares ou religiosos em Toledo. Esse foi o primeiro estatuto de *limpieza de sangre\*\*\[29\]\*\**. A crença de que os cristãos-novos eram todos judeus cripto e, portanto, não confiáveis, cresceu entre a população de cristãos-velhos em toda Castela\[30\], levando a estatutos semelhantes sendo aprovados por outras cidades e corpos civis\[31\]. Além disso, apesar dos argumentos bíblicos e teológicos contra a discriminação contra cristãos judeus\[32\], ordens religiosas começaram a promulgar suas próprias disposições de *limpieza de sangre*, começando com os Jerônimos em 1486. Capítulos catedráticos, universidades e as influentes ordens militares também passaram a excluir cristãos-novos de sua membresia\[33\]. A ordem carmelita de Teresa introduziu restrições em 1566, embora ela nunca tenha excluído cristãos-novos de sua ordem reformada\[34\]. Embora a *limpieza de sangre* tenha se tornado norma, raramente era aplicada contra famílias nobres, muitas das quais tinham sangue judeu devido a casamentos com famílias judias ricas. Concessões de *limpieza de sangre* eram feitas a famílias ricas e de alto status social que demonstrassem ter sangue judeu. **A visão de Teresa sobre a honra** A atitude de Teresa em relação à honra deve ser examinada nesse contexto. Uma seção da versão de 1928 do ensaio de Castro comentou sobre suas opiniões sobre honra e fórmulas sociais. Uma nota adicionada a essa seção na edição de 1971 afirmou que esse parecia ser um problema insolúvel em 1928, porque não havia suspeita de sua verdadeira origem, e a descoberta de suas raízes tornou necessária uma nova edição do trabalho\[35\]. Um dos primeiros estudos detalhados sobre o contexto converso em que a vida e as obras de Teresa devem ser vistas foi feito por Teófanes Egido OCD\[36\]. Egido atribui o que ele chama de "a preocupação teresiana com 'la negra honora' \[honra negra\]" aos perigos sociais associados às raízes conversas de sua família e ao status de *hidalgo* em uma era em que a *limpieza de sangre* havia se tornado o principal teste de status, exceto para a alta nobreza\[37\]. **Isso deve ter causado desconforto para ela e seus colegas conversos em relação ao conceito de honra, portanto, não é surpreendente que ela tenha feito tudo o que pôde para excluí-lo de sua reforma carmelita.** Ela sabia que era uma conversa? Egido apresenta uma série de razões que indicam que ela devia saber disso e, muito provavelmente, sabia que seu avô havia tido problemas com a Inquisição\[38\]. Rowan Williams demonstra que Teresa tem um conceito de honra, embora muito diferente do predominante em sua sociedade\[39\]. Devemos mostrar honra a Deus, em um mundo onde ele geralmente não é honrado, e a honra deve ser concedida àqueles que honram a Deus. Ela afirma em *Libro de las fundaciones* 15:15, em relação às suas lutas para fundar o convento de Toledo — que era apoiado por uma família conversa e, por isso, enfrentou oposição —, que ignorou essa oposição porque "graças a Deus, sempre estimei mais a virtude do que a linhagem." Nesse ponto, ela talvez esteja mais próxima das teorias de honra defendidas por Alonso de Cartagena e Diego de Valera no século XV. As descrições de Teresa sobre seus pais sempre os apresentam como virtuosos e tementes a Deus, sem referência ao status de *hidalgos\*\*\[40\]\*\**. Note-se que a também conversa Teresa de Cartagena via a linhagem como um problema: em sua longa discussão sobre o pecado do orgulho no *Arboleda de los enfermos*, o primeiro de seus seis fundamentos do orgulho é a glorificação de uma linhagem ilustre e uma grande família\[41\]. **A oposição de Teresa de Ávila à honra** Outro aspecto da oposição de Teresa ao conceito de "honra" é revelado em suas opiniões sobre a relação entre a vida contemplativa e a ativa. Baseando-se na declaração de Cristo de que "Maria escolheu a melhor parte", a Igreja medieval considerava a contemplação superior à ação\[42\] (embora reconhecesse que alguém precisava cuidar das tarefas práticas — nas regras de Francisco de Assis para os eremitérios, os irmãos deviam se revezar sendo Marta para os outros que eram Maria\[43\]). Em *Camino de perfección* 17:5-7, Teresa parece adotar uma versão dessa visão, afirmando que Marta é necessária, que as Martas são chamadas a essa vocação e não devem reclamar, mas que todos deveriam aspirar à contemplação. No entanto, mais adiante nessa obra e em outros textos, ela afirma que Marta e Maria podem coexistir na mesma pessoa e na mesma forma de oração. Por exemplo, em *Vida* 17:4, ela diz que, na oração de quietude, a alma pode se alegrar "na santa ociosidade de Maria" enquanto também é Marta, "de forma que é como se estivesse envolvida na vida ativa e contemplativa ao mesmo tempo", um estado que ela descreve mais detalhadamente na sétima morada (*Las Moradas* VII 4:6-12). Ou, como ela expressa de forma concisa, "Maria e Marta caminham juntas" (*Camino* 31:5). Essa recusa em privilegiar a contemplação em detrimento da ação é consistente com sua rejeição da honra *hidalga*, que era vista como incompatível com qualquer trabalho ativo ou ofício. **Nomes de Deus** Outra área em que podem haver influências judaicas é nos nomes que Teresa usa para Deus. Aqui, sou grato à análise detalhada de Péllison sobre o uso de nomes divinos por Teresa\[44\]. **Messias régio ou sofredor** Uma das razões pelas quais os judeus medievais rejeitaram os argumentos de que Jesus Cristo era o Messias esperado foi porque esperavam um rei conquistador, não um salvador crucificado e sofredor. Há evidências de que, no século XV, as tentativas de converter judeus espanhóis ao cristianismo por meio da pregação envolviam minimizar o sofrimento de Cristo e, em vez disso, retratar um Cristo que permanecia calmo e no controle da situação; um exemplo importante disso está na obra de Eiximenes, *Vida de Cristo\*\*\[45\]\*\**. Há evidências de que a conversa Teresa de Cartagena compartilhava essa imagem régia de Cristo. Embora ela quase sempre usasse a palavra Deus (*Dios*) para se referir à divindade, também utilizava um número significativo de nomes que incluíam o termo "Soberano", como "Soberano Senhor" (*soberano Señor*), "Soberana Virtude" (*Virtud soberana*) e "Soberana Verdade" (*soberana Verdad*). Uma de suas poucas referências expressas a Cristo foi como "o grande Prelado e soberano Pontífice, Jesus Cristo nosso Senhor" (*grand Perlado e soberano Pontífice, Jhesuchristo nuestro Señor*), sendo esta sua única menção explícita ao nome de Jesus\[46\]. Seu tio, Alonso de Cartagena, demonstra um padrão semelhante de referências a Deus em seu *Oraçional\*\*\[47\]\*\**. É muito notável que alguns dos nomes favoritos de Santa Teresa para Deus sejam *rey*, *señor* e, em particular, *Majestad*, um nome que Péllison aponta como raramente usado por seus contemporâneos\[48\]. Esses nomes seriam consistentes com uma preferência conversa por um Messias régio, embora ela claramente também se identificasse com um Cristo sofredor. Sua "conversão", ela atribui à visão de uma estátua de Cristo ferido (*Vida* 9:1), e gostava de se imaginar confortando-o enquanto ele orava no jardim do Getsêmani. Ela também afirma, nesse capítulo, que tinha dificuldades em refletir discursivamente com o intelecto, mas, em vez disso, tentava representar Cristo dentro de si mesma e que: "...foi-me de maior proveito — em minha opinião — representá-lo nas cenas onde o via mais sozinho." Pode-se argumentar que isso é consistente com um aspecto da "voz conversa", a identificação com a exclusão da sociedade. **O nome de Jesus** A devoção especial ao nome de Jesus, em particular sua inclusão no calendário litúrgico da Igreja Ocidental, começou no século XV e pode ser atribuída à pregação extremamente popular do reformador franciscano Bernardino de Siena. Ele originou o agora familiar símbolo das letras "IHS" encimadas por uma cruz e circundadas por raios\[49\]. A reforma franciscana dos Observantes, liderada por Bernardino, espalhou-se para a Espanha entre o final do século XV, assim como a devoção ao nome de Jesus\[50\]. Um membro dos frades Observantes espanhóis foi Alonso de Espina, que pregou sobre a necessidade de uma inquisição para investigar os conversos e desempenhou um papel importante na introdução da Inquisição Espanhola. **Ele também defendeu a aplicação da lei que exigia que os judeus usassem distintivos identificadores e, juntamente com outros franciscanos, incentivou os cristãos-velhos a usarem um distintivo próprio, nomeadamente o nome de Jesus costurado em seus chapéus**\[51\]**.** É evidente que havia razões para que até mesmo conversos verdadeiramente cristãos se sentissem desconfortáveis com o nome de Jesus e com essa devoção. Uma das transgressões dos conversos listadas por Alonso de Espina em seu *Fortalium Fidei* é que eles evitavam mencionar os nomes de Jesus ou Maria\[52\], uma acusação que se repete nos registros da Inquisição\[53\]. Uma acusação relacionada era a de que os conversos recitavam os salmos sem finalizar com o "Gloria"\[54\], o que também poderia indicar uma rejeição herética da Trindade e da divindade de Cristo. A conversa Teresa de Cartagena utilizou o nome Jesus apenas uma vez em suas obras. Gilman observa que o autor conversa de *La Celestina* usa a palavra apenas como uma exclamação proferida por seus personagens e também não se refere a Cristo pelo nome, sugerindo que essa relutância era compartilhada por outros conversos\[55\]. Essa ideia parece ser corroborada pela análise dos poemas de Frei Íñigo de Mendoza: no total de 433 versos conhecidos de sua *Vita Christi* — um tema em que seria esperado o uso dos nomes "Jesus" e "Cristo" — há apenas duas referências a "Jesus", uma a "Cristo" e três ao composto "Ihsuschristos". No restante de seus poemas, há apenas uma menção a "Jesus", em um poema político expresso como sermão ao rei Fernando, e nenhuma a "Cristo". Isso é particularmente surpreendente, considerando que Frei Íñigo era um franciscano observante\[56\]. De maneira semelhante, como mencionado acima, Alonso de Cartagena utiliza o termo apenas uma vez em seu *Oracional*. Geralmente, ao referir-se à segunda pessoa da Trindade, ele usa os termos *Nuestro Salvator* e *Nuestro Redemptor*. Em comparação, Pedro de Luna (o antipapa Bento XIII), que não era conversa, faz uso frequente do nome *Jesucristo* em seu *Libro de las consolaciones de la vida humana*. É possível que essa relutância dos conversos em usar o nome "Jesus" tenha diminuído à medida que as pregações hostis de Alonso de Espina no século XV recuaram no passado. **Teresa e o uso do nome de Jesus** Teresa utiliza o nome, tanto como *Jesús* quanto na combinação *Jesuchristo*, embora muito menos frequentemente do que utiliza *Christo* sozinho\[57\]. Certamente, na obra do também conversa Luís de León, *Los nombres de Christo*, o nome "Jesus" é tratado por último, como o "verdadeiro e próprio nome de Cristo". O tratamento dado por Luís de León ao nome "Jesus" parece ter sido influenciado pela tradição mística judaica chamada cabala, embora Thompson argumente que sua análise segue Jerônimo, e que Frei Luís não está revelando um poder oculto por meio da manipulação de letras no estilo cabalístico, mas expressando uma teologia cristocêntrica\[58\]. No entanto, há evidências de que ele estava familiarizado com fontes cabalísticas cristãs\[59\]. Isso nos leva ao tópico final: a questão de saber se há influências da cabala nos escritos de Teresa de Ávila, como proposto por alguns, especialmente Swietlicki\[60\] e Green\[61\]. **Cabala** O problema enfrentado por aqueles que propõem que Teresa foi influenciada pela cabala é que não há evidências de que ela tenha tido qualquer exposição aos seus ensinamentos. Ela não poderia ter lido obras sobre o assunto, sejam judaicas ou cristãs, porque não sabia hebraico nem latim, e não há evidências de que essas obras tenham sido traduzidas para o espanhol, muito menos de que ela tenha tido acesso a uma tradução em espanhol. Assim, tanto Swietlicki quanto Green precisam supor que ela recebeu influências cabalísticas por meio de outras pessoas. **Swietlicki afirma que os confessores de Teresa poderiam ter lido fontes cabalísticas e transmitido tais ideias a ela**\[62\]\*\* — uma dupla suposição sem suporte em evidências.\*\* Ela também sugere que Teresa poderia ter derivado imagens cabalísticas de São João da Cruz\[63\] — mas isso depende de evidências contestadas de que ele conhecia e foi influenciado por escritos cabalísticos, questão que não será abordada neste artigo. Tanto Swietlicki\[64\] quanto Green\[65\] acreditam que Teresa poderia ter absorvido ideias cabalísticas de sua casa e criação. Essa hipótese se baseia na afirmação de que judeus convertidos continuaram a incorporar aspectos de sua religião e costumes judaicos em suas novas vidas como cristãos. Isso provavelmente era verdade para novos convertidos, especialmente aqueles resultantes das conversões em massa sob ameaça após 1391. No entanto, há muito menos evidências de que isso tenha continuado várias gerações depois, especialmente após um século de Inquisição. É verdade que o avô de Teresa, Juan Sánchez, teve problemas com a Inquisição de Toledo em 1485, mas parece que ele confessou voluntariamente durante o período de graça após o anúncio de uma inquisição\[66\] — muitas vezes a coisa mais segura para conversos fazerem se acreditassem que poderiam ter inimigos dispostos a denunciá-los por malícia. Os registros não especificam quais foram os crimes que ele confessou — poderiam ser tão triviais quanto vestir roupas limpas em uma sexta-feira ou não recitar o *Gloria* no final de um salmo. De fato, as acusações feitas à Inquisição geralmente se referiam a práticas, em vez de crenças religiosas, e os costumes familiares poderiam ser transmitidos sem qualquer intenção de comprometer a fé cristã. Os registros mostram que Juan Sánchez participou de um *auto da fé* e teve seu *sanbenito* pendurado na igreja paroquial. Seus filhos estavam com ele durante essa humilhação; **O pai de Teresa teria cerca de cinco anos na época**\[67\]**.** A memória desse evento deve ter tido um impacto profundo nele, o que torna improvável que ele permitisse conscientemente que aprendizados e costumes judaicos continuassem em sua própria casa. Embora seja necessário um certo ceticismo em relação à ênfase que Teresa coloca na piedade de seu pai e no amor dele por bons livros, não há razão para acreditar que os fatos subjacentes sejam inverídicos. Além disso, a principal influência sobre Teresa na infância parece ter sido sua mãe — ela menciona explicitamente o amor de sua mãe por romances, algo que Teresa imitava\[68\]. A visão geral é de que sua mãe não era conversa, mas proveniente da pequena nobreza, uma família cristã-velha que conquistou renome durante a Reconquista\[69\]. No entanto, Green afirma que sua mãe veio de um "rico ambiente rural judaico". A única autoridade que ela cita para essa afirmação é um artigo apresentado em uma conferência de 1981 por Gareth Davies\[70\]. Esse artigo, que parece ser direcionado a desafiar as visões hagiográficas de Teresa ao sugerir que ela ocultou sua ascendência judaica, argumenta que a família de sua mãe deve ter adotado o nome Ahumada porque o brasão deles era diferente de outras representações heráldicas da família\[71\]. Para sustentar essa afirmação, Davies cita o ensaio biográfico de Efrén de la Madre de Dios e Otilio del Niño Jesús\[72\]. Esse ensaio discute o brasão na fachada da casa do pai de Teresa, em Ávila, que não apresenta os elementos heráldicos associados à família Ahumada\[73\]. No entanto, a mesma introdução fornece evidências de que a casa foi comprada logo após o primeiro casamento de seu pai, sendo possível que o brasão se relacione à primeira esposa dele\[74\]. Davies também sugere que o pai de Teresa se sentiria mais confortável casando-se com uma esposa conversa\[75\]. Essa ideia parece ignorar tanto a base dinástica e financeira do casamento na Espanha do século XVI quanto a evidência de que conversos ricos frequentemente buscavam, com sucesso, casar seus filhos em famílias hidalgas estabelecidas. Na ausência de evidências claras de que Teresa teve acesso a ideias cabalísticas, seria necessário encontrar em seus escritos elementos que não poderiam ter vindo de outra fonte além da cabala. Este breve artigo não pode abordar completamente os argumentos apresentados por Swietlicki e Green, então se concentrará naquele que parece ser o mais forte, a imagem do castelo em *Las Moradas*. **A imagem do castelo em *Las Moradas*** Primeiramente, o uso da imagem de um castelo. Não é preciso viajar muito por Castela para entender o motivo do nome: parece haver um castelo no topo de quase todas as colinas. Quando escreveu esse livro, Teresa já havia fundado 12 casas reformadas por toda a Espanha e viajado amplamente, de modo que sua experiência poderia facilmente ser a fonte da ideia de usar um castelo como imagem da alma. **Swietlicki descartou a possibilidade de um protótipo arquitetônico real porque nenhum deles possui sete cômodos**\[76\]**.** No entanto, Swietlicki parece acreditar que o castelo interior de Teresa tem apenas sete cômodos, enquanto o início da obra refere-se claramente a ele como possuindo "muitos aposentos" (*adonde hay muchos aposentos*) e relaciona isso diretamente à declaração de Cristo de que no céu "há muitas moradas" (*así como en el cielo hay muchas moradas*)\[77\]. Green atribui o uso do termo "moradas" por Teresa à cabala, ignorando essa clara referência ao Novo Testamento\[78\]. Teresa também descreve as moradas como possuindo várias localizações em três dimensões, e não como sendo consecutivas, com a principal morada localizada no centro. Ela parece falar de sete níveis, nos quais há múltiplos cômodos, exceto no último nível, que parece ter apenas um cômodo (o que faz sentido, pois é onde a presença divina habita). O número sete, obviamente, aparece frequentemente com significado espiritual, não apenas nos escritos cabalísticos. Ele é recorrente na Bíblia, desde os sete dias da criação no início de Gênesis até os sete anjos com as sete últimas pragas perto do final de Apocalipse. Assim, essa parece ser uma fonte mais provável para a escolha de Teresa por esse número. Swietlicki também apoia-se na imagem do castelo de Teresa, feito de diamante ou cristal muito claro, como uma ideia derivada da cabala\[79\]. Contudo, parece muito mais provável que isso venha da visão da cidade celestial descrita em Apocalipse 21:11: "Ela resplandecia com a glória de Deus, e o seu brilho era como o de uma pedra preciosa, como jaspe, clara como cristal." Uma análise dos outros elementos da obra de Teresa, alegadamente derivados da cabala, ainda é necessária. Porém, no momento, o veredito é "não comprovado", e parece, com base no equilíbrio das probabilidades, que o argumento em favor de influências cabalísticas em Santa Teresa não é persuasivo. [BAIXAR Teologi...lita.pdf](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000177-51bd151bd2/Teologia%20M%C3%ADstica%20e%20Espiritualidade%20na%20Tradi%C3%A7%C3%A3o%20Carmelita.pdf?ph=4df81238fe) --- \[1\] A. Castro, *The Structure of Spanish History*, tradução de E.L. King (Princeton, 1954), pp. 521-44. \[2\] G.B. Kaplan, *The Evolution of Converso Literature: the Writings of the Converted Jews of Medieval Spain* (Gainesville FL, 2002), pp. 49-50. \[3\] S. Gilman, *The Spain of Fernando de Rojas: the Intellectual and Social Landscape of La Celestina* (Princeton NJ, 1972), p. 118. \[4\] Castro, *Structure of Spanish History*, pp. 10-11, 54-5. \[5\] *Ibid.*, pp. 525, 557-60, 567-70. \[6\] *Ibid.*, p. 571. \[7\] *Ibid.*, p. 566. \[8\] *Vida*, 9:7. \[9\] Castro, *Structure of Spanish History*, p. 84. \[10\] A. Castro, *Teresa la Santa, Gracian y los Separatismos con otros ensayos* (Madrid, Barcelona, 1972). \[11\] *Ibid.*, pp. 23-4, 45-8. \[12\] G.T.W. Ahlgren, *Teresa of Avila and the Politics of Sanctity* (Ithaca and London, 1996), pp. 9-11. \[13\] Gilman, *The Spain of Fernando de Rojas*, pp. 144-6. \[14\] *Ibid.*, pp. 154-5. \[15\] *Ibid.*, pp. 200-1. \[16\] C.I. Nepaulsingh, *Apples of Gold in Filigrees of Silver: Jewish Writing in the Eye of the Spanish Inquisition* (New York NY, 1995). \[17\] D. Seidenspinner-Núñez, "Inflecting the Converso Voice: A Commentary on Recent Theories", *La Corónica*, 25 no. 1 (1996), 6-18, pp. 16-17; Gerli, "Performing Nobility", pp. 32-4; J. Edwards, "Letter", *La Corónica*, 25 no. 2 (1997), 159-63, pp. 160-1; D. Gitlitz, "Letter", *La Corónica*, 25 no. 2 (1997), 163-6, pp. 163-6; M.D. Meyerson, "Letter", *La Corónica*, 25 no. 2 (1997), 179-80, pp. 179-84. O mesmo número continha uma resposta a essas críticas: D. Seidenspinner-Núñez, "Responses from the Authors: 'Navigating the Minefield'", *La Corónica*, 25 no. 2 (1997), 195-201, pp. 195-201. Round também rejeita uma teoria simples das características literárias dos conversos, mas acredita que a identidade de um converso em seu contexto histórico poderia influenciar sua escrita: N. Round, "La 'peculiaridad literaria' de los conversos ¿unicorno o 'snark'?", in A. Alcalá (ed.), *Judíos, sefarditas, conversos: la expulsíon de 1492 y sus consecuencias* (Valladolid, 1995), pp. 570-1. \[18\] Castro, *Structure of Spanish History*, pp. 525-7. \[19\] *Ibid.*, pp. 532-4. \[20\] Castro, *Structure of Spanish History*, pp. 628-31. \[21\] T. Egido, "The Historical Setting of St Teresa's Life" in *Carmelite Studies* 1, 1980, p. 148. Tradução para o inglês do capítulo "Ambiente histórico" em Barrientos (ed.), *Introducción a la lectura de Santa Teresa*, 2ª edição (Madrid, 2002). \[22\] *Ibid.*, pp. 148-9. \[23\] *Ibid.*, pp. 144-6. \[24\] Gilman, *The Spain of Fernando de Rojas*, pp. 144-6. \[25\] E.M. Gerli, "Performing Nobility: Mosén Diego de Valera and the Poetics of Converso Identity," *La Corónica*, 25 no. 1 (1996), pp. 19-36, pp. 21-3. \[26\] *Ibid.*, pp. 25-6. \[27\] M.J. Crawford, *The Fight for Status and Privilege in Late Medieval and Early Modern Castile 1465-1598* (University Park Pennsylvania, 2014). \[28\] Barrientos (ed.), *Introducción a la lectura de Santa Teresa*, pp. 84-89. O registro desse processo, publicado em 1946 por Alonso Cortés (*Pleitos de los Cepeda* em *Boletín de la real Academia Española*, 25 (1946) pp. 85-110), revelou que Teresa era de uma família conversa. \[29\] Kaplan, *Evolution of Converso Literature*, pp. 19-22. \[30\] J. Edwards, *Inquisition* (Stroud, 1999), p. 66. \[31\] Kaplan, *Evolution of Converso Literature*, p. 23. \[32\] Os principais defensores de tais argumentos foram os conversos Alonso de Cartagena e Juan de Torquemada. Essa teologia foi exposta principalmente no *Defensorium Unitatis Christianae* (Defensorium) de Cartagena e no *Tractatus contra Madianitas et Ismaelitas* (Tractatus) de Torquemada, escritos para contestar a *Sentencia*. \[33\] H. Kamen, *The Spanish Inquisition* (New York NY, London, 1965), pp. 123-7. \[34\] J. Bilinkoff, *The Avila of Saint Teresa: Religious Reform in a Sixteenth-Century City* (Ithica and London, 1989), pp. 146-7. \[35\] Castro, *Teresa la Santa*, pp. 19-24. \[36\] T. Egido, "The Historical Setting of St Teresa's Life". \[37\] *Ibid.*, pp. 154-8. \[38\] *Ibid.*, p. 153. \[39\] R. Williams, *Teresa of Avila* (London and New York, 1991), pp. 21-2. \[40\] Egido, "The Historical Setting of St Teresa's Life", p. 133. \[41\] H.E. Pearson, *Teresa de Cartagena: a Late Medieval Woman's Theological Approach to Disability* (University of Oxford D.Phil thesis, 2010), p. 112. \[42\] Veja, por exemplo, as opiniões do autor anônimo de *The Cloud of Unknowing*, capítulos 17-23. \[43\] R.J. Armstrong, J.A.W. Hellmann e W.J. Short (eds.), *Francis of Assisi: Early Documents* vol.1 (New York, 1999), p. 61. \[44\] N. Péllison, "Les noms divins dans l'oeuvre de sainte Thérèse de Jésus" in *Études sur Sainte Thérèse* (Paris, 1968), pp. 59-197. \[45\] C. Robinson, "Preaching to the Converted: Valladolid's Cristianos nuevos and the Retablo de don Sancho de Rojas (1415)" *Speculum*, 83 (2008), pp. 125, 133-8. \[46\] Pearson, *Teresa de Cartagena*, p. 267. \[47\] *Ibid.*, pp. 267-8. \[48\] Péllison, *Les noms divins*, p. 119. \[49\] J. Edwards, "Fifteenth-Century Franciscan Reform and the Spanish Converso: the Case of Fray Alonso de Espina" in *Monastic Studies: the Continuity of Tradition* (Bangor, 1989), pp. 204-5. \[50\] Esta devoção não deriva de Francisco de Assis. Embora as hagiografias enfatizem sua mística e devoção afetiva à humanidade de Cristo, seus próprios escritos mostram poucas evidências disso e indicam que ele via sua relação pessoal com Deus principalmente como com Deus Pai, e não com Cristo (I. Delio, *Crucified Love: Bonaventure's Mysticism of the Crucified Christ* (Quincy IL, 1998), pp. 3, 5-7). \[51\] Edwards, "Fifteenth-Century Franciscan Reform and the Spanish Converso", p. 204. \[52\] H. Beinart, *Conversos on Trial: The Inquisition in Cuidad Real*, Yael Guiladi (trans.) (Jerusalem, 1981), p. 13. \[53\] R.L. Melammed, "Crypto-Jewish Women Facing the Spanish Inquisition: Transmitting Religious Practices, Beliefs, and Attitudes," in M.D. Myerson and E.D. English (eds.), *Christians, Muslims and Jews in Medieval and Early Modern Spain* (Notre Dame, IN, 2000), pp. 207, 217 n. 33. Beinart cita o exemplo de uma mulher em Cuidad Real acusada de dizer apenas "em nome do Pai" em vez de "em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo", Beinart, *Conversos on Trial*, p. 289. \[54\] M.d.l.A. Fernández García, "Criterios inquisitoriales para detectar al marrano: los criptojudíos en Andalucía en los siglos XVI y XVII," in A. Alcalá (ed.), *Judíos, sefarditas, conversos: la expulsíon de 1492 y sus consecuencias* (Valladolid, 1995), p. 485. Esta foi a acusação mais comum relacionada à oração nos registros da Inquisição, *ibid.*, p. 491. \[55\] Gilman, *Spain of Fernando de Rojas*, p. 363. \[56\] *Cancionero*, pp. xi, xvi. \[57\] Pélisson, *Les noms divins*, p. 157. \[58\] C.P. Thompson, *The Strife of Tongues: Fray Luis de León and the Golden Age of Spain* (Cambridge, 1988), pp. 161-5. \[59\] *Ibid.*, p. 169. \[60\] C. Swietlicki, *Spanish Christian Cabala: the Works of Luis de León, Santa Teresa de Jesús and San Juan de la Cruz* (Columbia MO, 1986). \[61\] D. Green, *Gold in the Crucible: Teresa of Avila and the Western Mystical Tradition* (Shaftesbury, 1989). \[62\] Swietlicki, *Spanish Christian Cabala*, p. 43. \[63\] *Ibid.*, pp. 43-4. \[64\] *Ibid.*, pp. 49-51. \[65\] Green, *Gold in the Crucible*, p. 93. \[66\] Egido, "The Historical Setting of St Teresa's Life," p. 140. \[67\] Bilinkoff, *The Avila of Saint Teresa*, pp. 109. \[68\] *Vida* 2:1. \[69\] Bilinkoff, *The Avila of Saint Teresa*, p. 110; S. Clissold, *St Teresa of Avila* (London, 1979), p. 7; E. de la Madre de Dios e O. Steggink, *Tiempo y vida de Santa Teresa* (Madrid, 1968), pp. 12-3. \[70\] G. A. Davies, "St Teresa and the Jewish Question" in M.A. Rees (ed.), *Teresa de Jesús and her world* (Leeds, 1981), pp. 51-73. \[71\] *Ibid.*, p. 51. \[72\] E. de la Madre de Dios e O. del Niño Jesús, (eds.), *Santa Teresa de Jesus Obras Completas: Nuevas revision del texto original con notas criticas*, Vol. 1 (Madrid, 1951), pp. 131-556. \[73\] *Ibid.*, pp. 164-6. \[74\] *Ibid.*, pp. 175-6. \[75\] Davies, "St Teresa and the Jewish Question," p. 54. \[76\] Swietlicki, *Spanish Christian Cabala*, p. 52. \[77\] *Las Moradas*, 1:1. \[78\] Green, *Gold in the Crucible*, p. 97. \[79\] Swietlicki, *Spanish Christian Cabala*, p. 55. # A ESPIRITUALIDADE PÓS-TRIDENTINA: De Santo Inácio de Loyola a São Francisco de Sales 05/01/2025 **Autor: Fr. Jordan Aumann, O.P** **Tradutor: Prof. Gabriel Sapucaia** ![](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000178-f14dff14e1/Attributed_to_el_Greco_-_Portrait_of_Juan_de_%C3%81vila_-_Google_Art_Project.jpeg?ph=4df81238fe) ##### **ESPIRITUALIDADE PÓS-TRIDENTINA** O período abordado no título deste capítulo corresponde ao terceiro volume da obra *Christian Spirituality*, de Pourrat,(1) que abrange desde meados do século XV até meados do século XVII. Alguns aspectos específicos deste período devem ser destacados. Primeiramente, as escolas de espiritualidade, em sua maioria, são classificadas segundo as nações e não as ordens religiosas, como ocorria nos períodos anteriores. Conforme destaca Pourrat: O princípio de nacionalidade se afirmou de maneira muito notável, especialmente a partir da época do Renascimento. Essa tendência de cada nação a convergir de acordo com o seu próprio gênio, idioma e religião refletiu-se em todas as manifestações de sua vida, inclusive na espiritualidade. Por isso, encontramos nos tempos recentes uma espiritualidade espanhola, italiana e francesa, uma espiritualidade que é fundamentalmente uma e a mesma, na medida em que é católica, mas que difere na forma como é concebida e apresentada.(2) Houve, é claro, indivíduos e ordens religiosas que exerceram tanta influência nesse período que poderiam ser classificados como líderes de escolas distintas de espiritualidade. Contudo, mesmo nesses casos, o temperamento e o espírito nacional eram discerníveis como traços distintivos. Além disso, foram especialmente as ordens religiosas que preservaram a continuidade com o passado. Mudanças abruptas de ideias e atitudes são raras na história, e isso é especialmente verdadeiro na história da espiritualidade. Em segundo lugar, a vasta produção de escritos espirituais durante esse período torna impossível discutir mais do que alguns autores destacados. Apenas listar as obras e seus autores ocuparia um grande volume. Assim, concentraremos nossa atenção nos iniciadores de novas tendências ou escolas que refletem os movimentos de espiritualidade entre o Concílio de Trento e meados do século XVII. **EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS** O estado da Igreja no final da Idade Média era de cisma, falta de respeito pela autoridade e degradação moral escandalosa em todos os níveis da sociedade. O Renascimento introduziu um humanismo simultaneamente cristão e pagão, mas a indulgência deste último atingiu proporções tão universais que Rabelais afirmou que a regra de vida de muitas pessoas era simplesmente: "Faça o que quiser";(3) e Erasmo observou, em 1501, que nem mesmo entre os pagãos houve jamais corrupção maior do que entre os cristãos médios.(4) Diante dessas condições, cristãos fervorosos recorreram a uma espiritualidade de afastamento do mundo, fortalecida por exercícios espirituais bem regulamentados e métodos definidos de oração. Isso, em si, não era uma inovação na vida cristã, pois Cristo ensinou a necessidade de autodisciplina, certo desprendimento do mundo e a prática da oração. São Paulo repetiu a mesma doutrina, e os primeiros cristãos a viveram de tal maneira que a palavra "ascetas" foi aplicada àqueles que seguiam um programa de exercícios espirituais envolvendo jejum, austeridades e continência. O mesmo ensinamento foi incorporado à tradição monástica, com a insistência de que a disciplina externa é ordenada à prática interior da oração. Por fim, através de vários tratados sobre a oração compostos no final do período medieval,(5) a meditação metódica ou sistematizada foi introduzida nos Países Baixos, França, Itália e Espanha.(6) É importante notar que a meditação metódica foi introduzida e promovida principalmente como medida de reforma; parecia ser um caminho seguro para conduzir o clero e os religiosos de volta a uma vida verdadeiramente cristã. Os exercícios espirituais, ou oração mental metódica, parecem ter surgido pela primeira vez nos Países Baixos, entre os Cônegos de Windesheim e os Irmãos da Vida Comum.(7) É provável que João Wessel Gransfort (+1489), amigo de Tomás de Kempis, tenha elaborado o primeiro método de meditação. Este compreendia três etapas: a preparação, livrando-se de distrações e selecionando o material para meditação; a meditação propriamente dita, aplicando a mente, o julgamento e a vontade; e a conclusão da meditação, direcionando a Deus os desejos que foram estimulados.(8) A eficácia da meditação como meio de reforma espiritual tornou-se evidente, pois é difícil imaginar, como mais tarde comentaria Santa Teresa de Ávila, a possibilidade de permanecer em pecado e, ao mesmo tempo, praticar a meditação diária. A prática da meditação logo se espalhou para a França, por influência de João Mombaer (+1502), abade de um mosteiro beneditino perto de Paris. Seu principal tratado, *Rosetum*, baseia-se nas práticas de Windesheim e é metódico ao ponto da exaustão. Basicamente, seu método é o mesmo de Gransfort, embora também recomendasse a meditação sobre os mistérios do rosário.(9) **AFIRMAMOS QUE A MEDITAÇÃO METÓDICA FOI UTILIZADA PRINCIPALMENTE COMO UM MEIO DE REFORMA DA VIDA RELIGIOSA, E ISSO FOI PARTICULARMENTE VERDADEIRO NOS MOSTEIROS BENEDITINOS DA ITÁLIA E DA ESPANHA.** De acordo com Watrigant,(10) a introdução da oração mental metódica na Itália resultou de uma influência direta da *devotio moderna* flamenga. No entanto, outros autores, como Tassi e Petrocchi, rejeitam essa teoria categoricamente ou afirmam que é cedo demais para chegar a tal conclusão.(11) Uma conjectura mais segura seria que houve um desenvolvimento paralelo no sul da Europa, em vez de uma importação dos Países Baixos.(12) Na Itália, os dois grandes reformadores do clero e dos religiosos foram São Lourenço Justiniano (+1455) e Luís Barbo (+1443). Para ambos, o instrumento de reforma foi a prática da oração mental metódica ou meditação. São Lourenço Justiniano, um Cônego Regular de São Jorge, que mais tarde se tornou Patriarca de Veneza, compôs numerosos tratados sobre compunção, humildade, desprezo pelo mundo, os graus de perfeição e o amor divino, sempre buscando incutir a prática da meditação.(13) Luís Barbo, também um Cônego Regular de São Jorge, transferiu-se para o mosteiro beneditino de Pádua, onde se tornou abade. Posteriormente, foi nomeado bispo de Treviso. Sua influência reformadora foi sentida em Montecassino e, através de Garcia de Cisneros, em Valladolid e Montserrat, na Espanha. O tratado de Barbo sobre oração, intitulado *Forma orationis et meditationis* ou *Modus meditandi*, foi publicado pela primeira vez em Veneza, em 1523. Ele descreve três tipos de oração: a oração vocal, mais adequada para iniciantes; a meditação, uma forma mais elevada de oração, para aqueles mais avançados; e a contemplação, a forma mais elevada de oração, à qual se pode ascender por meio da meditação. A pedido do Papa Eugênio IV, Barbo escreveu aos beneditinos de Valladolid, na Espanha, para apresentá-los à meditação metódica. Foi dessa abadia que, em 1492, Garcia de Cisneros partiu com doze monges para reformar a famosa abadia de Montserrat, perto de Barcelona. Embora não tenha alcançado a fama de Santo Inácio, nem mesmo na Espanha, Garcia de Cisneros deve ser reconhecido como uma das figuras mais influentes na reforma tridentina da Igreja e na espiritualidade espanhola inicial.(14) Ele deixou duas obras, impressas em espanhol na tipografia de Montserrat em 1500: *Ejercitatorio de la vida espiritual* e *Directorio de las horas canónicas*. A primeira tornou-se um guia padrão para os exercícios espirituais (*ejercicios*). Normalmente, três semanas eram dedicadas aos exercícios espirituais, sendo a quarta parte do guia destinada especificamente aos contemplativos. O método para realizar os exercícios é detalhado, assim como os temas para as meditações. Na hora designada, o monge vai à capela, ajoelha-se, faz o sinal da cruz e recita a oração "Vinde, Espírito Santo". Em seguida, recita três vezes: "Senhor, vinde em meu auxílio; apressai-vos, Senhor, em socorrer-me". Depois, recolhendo-se na presença de Deus, medita sobre os três pontos do dia, conclui com uma oração de petição e, batendo no peito, repete três vezes: "Ó Deus, tende piedade de mim, pecador". Por fim, recita um salmo e uma oração antes de deixar a capela em estado de recolhimento. Os temas da semana purgativa visam despertar santo temor e contrição: pecado, morte, inferno, juízo, Paixão de Cristo, a Bem-Aventurada Virgem Maria e o céu. Na semana iluminativa, dá-se mais liberdade quanto ao método, e, se a devoção ou o amor o mover, o indivíduo pode abandonar o método completamente. Contudo, se necessário, o monge pode passar até um mês nas meditações purgativas. Na semana iluminativa, o foco está na preparação para uma confissão digna, na contrição pelos pecados e no despertar do amor a Deus. Os temas incluem a criação, a ordem sobrenatural, a vocação religiosa, a justificação, as bênçãos recebidas, a providência divina, o céu; ou a vida de Cristo, dos santos e a oração do Senhor. A via unitiva pressupõe purificação do pecado e iluminação de Deus; o indivíduo é totalmente convertido a Deus, deseja servi-Lo exclusivamente e está desapegado dos bens deste mundo. Nesta etapa, a alma eleva-se a Deus mais por amor do que pelo intelecto. Cisneros descreve seis graus de amor unitivo, que culminam no êxtase.(15) Os temas dessa via incluem Deus como princípio de todas as coisas, beleza do universo, glória do mundo, caridade infinita, regra de toda criatura, governante de tudo e suprema generosidade. Para os que alcançam a contemplação, Cisneros é mais permissivo quanto aos temas e métodos. Ele praticamente transcreve *De monte contemplationis*, de Gerson, mas propõe três formas de contemplar Cristo: primeiro, considerar a humanidade sagrada, como ensina São Bernardo; segundo, olhar para Cristo como Deus e homem; terceiro, elevar-se acima da humanidade sagrada e focar na divindade de Cristo. Cada pessoa, diz Cisneros, deve seguir sua própria atração espiritual, de acordo com o grau de sua vida de oração. Outro renomado beneditino, Luís de Blois (Blósio, +1566), contribuiu para a reforma beneditina nos Países Baixos por meio da meditação e exercícios espirituais. Blósio afirmava que os exercícios externos, como a recitação do Ofício Divino, orações vocais, sinais externos de devoção, jejuns e vigílias, agradam a Deus, mas os exercícios espirituais que unem o homem interior e sobrenaturalmente a Deus são infinitamente superiores.(16) Blósio lia avidamente as obras de **Tauler (discípulo do Mestre Eckhart e manteve profunda relação com a seita esotérica dos Amigos de Deus)** e Suso. As obras de Blósio incluem: *Institutio spiritualis* (1551); *Consolatio pusillanimum* (1555); *Conclave animae fidelis* (1558); *Speculum spirituale* (1558). Esses tratados foram rapidamente traduzidos para os idiomas vernáculos e circulados por mosteiros da Europa. Contudo, assim como alguns monges beneditinos resistiram aos esforços de Luís Barbo, outros temiam que a prática da oração mental pudesse ameaçar a devoção dos monges à oração litúrgica, o *opus Dei*. Eventualmente, os exercícios espirituais começaram a ser praticados também por leigos, conforme Cisneros pretendia. Muitos leigos piedosos iam aos mosteiros para realizá-los, como provavelmente fez Inácio de Loyola em Montserrat, em 1522. Os dominicanos adotaram oficialmente a prática da meditação como exercício comunitário em 1505; os franciscanos seguiram o exemplo em 1594. **HUMANISMO CRISTÃO** Os exercícios espirituais não foram a única arma utilizada contra o avanço do humanismo pagão do Renascimento. Um ataque mais direto foi conduzido pelos "humanistas cristãos". Embora às vezes criticados como precursores da Revolta Protestante liderada por Martinho Lutero, esses humanistas devotos não podem ser acusados de deliberadamente preparar um cisma na Igreja. Embora muitas de suas críticas tenham servido como munição para os ataques dos protestantes contra a Igreja, seus objetivos eram sinceros: proteger os cristãos da corrupção do humanismo pagão, promover a vida interior e a prática da oração, e incentivar o retorno à leitura das Escrituras, não para especulações teológicas, mas para inspiração e instrução. Entre os humanistas cristãos destacados estão Nicolau de Cusa, Pico della Mirandola, Lefèvre d'Étaples, São Thomas More e Erasmo, sendo este último de maior interesse na história da espiritualidade.(17) Nascido em Roterdã entre 1464 e 1466, Erasmo foi educado na escola dos Irmãos da Vida Comum. Mais tarde, ingressou na ordem dos Agostinianos e, após ser dispensado de seus votos religiosos, foi ordenado sacerdote em 1492 pelo Bispo de Cambrai. Renomado em toda a Europa por seu vasto conhecimento, foi altamente estimado pelo Papa Júlio II, pelo Papa Leão X, pelo Rei Carlos V, pelo Rei Francisco I e pelo Rei Henrique VIII. Ele era um crítico da vida monástica e da teologia escolástica, como demonstrado em seu tratado satírico *Elogio da Loucura* (*Stultitiae Laus*). Erasmo dedicou-se intensamente à formação de uma nova teologia baseada nas Escrituras e nos Padres da Igreja. Suas doutrinas podem ser encontradas no *Enchiridion Militis Christiani* (1504), *Paraclesis* (1516) e *Ratio seu Methodus Perveniendi ad Veram Theologiam* (1518).(18) Ele faleceu em Basileia, em 1536, enquanto supervisionava a edição de suas obras. Para Erasmo, a vida cristã é uma batalha constante contra o mundo, o demônio e as paixões pessoais. As principais armas do cristão são a oração, que fortalece a vontade, e o conhecimento, que nutre o intelecto. A prática da oração exige que o cristão se afaste do mundo e concentre-se em Cristo, pois o objetivo da vida cristã é a imitação de Cristo. Até mesmo as práticas externas da religião, se mal empregadas, podem se tornar obstáculos à verdadeira fé, levando a uma observância farisaica, que Erasmo chama de "a religião do povo comum". No *Enchiridion* (cap. 8), Erasmo apresenta vinte e dois preceitos para a imitação de Cristo e a vitória sobre o pecado e as tentações. Se o cristão achar difícil desprender-se do mundo, Erasmo o lembra da vaidade desta vida, da inevitabilidade da morte e da separação final do homem dos bens terrenos. Essa ênfase na morte será posteriormente encontrada nos escritos de Montaigne e de muitos autores espirituais espanhóis do século XVI. No entanto, Erasmo é mais enfático ao discutir o tipo de conhecimento necessário para o sucesso espiritual. Primeiro, o conhecimento de si mesmo, condição primária para a vitória. Em seguida, o conhecimento das verdades reveladas nas Escrituras, não na forma especulativa e argumentativa da teologia escolástica, mas na teologia prática que leva a uma vida santa e se encontra na fonte autêntica: a Bíblia. Todos, afirma Erasmo, devem ler a Bíblia, pois a doutrina de Cristo é para todos. Para não se desviar, o leitor deve seguir as definições da Igreja e os ensinamentos dos Padres e comentaristas. Nas questões não definidas pela Igreja, é o Espírito Santo quem instrui, mas apenas se o leitor abordar as Escrituras com fé e devoção. Quem lê as Escrituras apenas no sentido literal pode estar lendo uma fábula ou lenda; as Escrituras são estéreis a menos que se perceba o significado escondido sob a interpretação literal. O humanismo de Erasmo, Lefèvre e seus companheiros foi severamente criticado por muitos historiadores católicos, apesar de os católicos educados do século XVI terem encontrado sólida instrução e orientação nos tratados devocionais desses homens e do fato de os humanistas cristãos terem se dissociado de Lutero e do movimento protestante assim que foram condenados pelo Papa Leão X em 1520.(19) Ainda assim, há boas razões para as críticas aos humanistas cristãos. Primeiro, em seu zelo por uma "nova teologia" baseada exclusivamente nas Escrituras e nos Padres da Igreja, eles rejeitaram toda a sabedoria teológica da Idade Média e enfraqueceram, ainda que inadvertidamente, a autoridade do magistério da Igreja. Segundo, o estudo intenso dos clássicos gregos e latinos levou-os a uma visão errônea da bondade inerente ao homem, subestimando os efeitos do pecado original e a necessidade de mortificação e abnegação. Terceiro, o simples fato de Lutero ter aprovado algumas teses dos humanistas foi suficiente para descreditá-los, da mesma forma que Tauler **(discípulo do Mestre Eckhart e manteve profunda relação com a seita esotérica dos Amigos de Deus)** e Gerson se tornaram suspeitos entre os católicos por serem citados por Lutero.(20) Assim, por uma reviravolta inesperada, o humanismo cristão, que tentou reformar a Igreja e renovar a vida cristã, tornou-se vítima de seus próprios excessos, contribuindo para a divisão da Igreja. O verdadeiro humanismo cristão só surgiria no início do século XVII, com São Francisco de Sales como seu maior expoente. Este humanismo devoto foi descrito por Bremond da seguinte forma: O humanismo devoto aplica-se às necessidades da vida interior e torna acessíveis a todos tanto os princípios quanto o espírito do humanismo cristão. (...) Na teologia, o humanismo cristão aceita a teologia da Igreja pura e simplesmente. (...) Sem negligenciar nenhuma das verdades essenciais do cristianismo, prefere destacar aquelas que são mais reconfortantes e animadoras, em suma, as mais humanas, que considera também as mais divinas e, por assim dizer, mais em conformidade com a bondade infinita. Assim, não vê no pecado original a doutrina central, mas sim na Redenção. (...) Também não questiona a necessidade da graça, mas, em vez de oferecê-la parcimoniosamente a alguns predestinados, vê-na livremente oferecida a todos, mais ansiosa por nos alcançar do que estamos por recebê-la. (...) O humanista não considera o homem desprezível. Ele está sempre, com todo o coração, do lado de nossa natureza. Mesmo ao vê-la miserável e impotente, ele a justifica; defende-a e a restaura.(21) **SANTO INÁCIO DE LOYOLA** O Renascimento, como já mencionado, exerceu muito menos influência sobre a espiritualidade do que se poderia esperar. No que diz respeito à Igreja como um todo, seus efeitos pareceram mais divisivos do que reformadores. As novas tendências iniciadas por Lefèvre e Erasmo nunca conseguiram romper completamente com as grandes correntes da espiritualidade medieval. Pelo contrário, as personalidades que surgiram na espiritualidade do século XVI demonstraram fidelidade ao passado ao desenvolverem ainda mais a prática da oração mental metódica, que, como vimos, tem suas raízes na tradição monástica. Isso é especialmente evidente no caso de Santo Inácio de Loyola (1491–1556) e da escola espanhola de espiritualidade. De fato, devemos a Santo Inácio duas contribuições notáveis: ele aperfeiçoou os exercícios espirituais e deu à Igreja uma nova forma de vida religiosa. Nascido em 1491, na província basca de Guipúzcoa, ele tornou-se soldado, mas precisou abandonar a carreira militar quando sua perna direita foi ferida na defesa de Pamplona contra os franceses, em 1521. Durante o período de convalescença, parece que a leitura de *Vida de Cristo*, de Ludolfo da Saxônia, e *Legenda Dourada*, de Tiago de Varazze, levou-o a pensar em sua conversão. Após um período de incertezas, escrúpulos e dúvidas, começou a buscar o discernimento da vontade de Deus a seu respeito.(22) Inácio teve contato com várias ordens religiosas. Inicialmente, considerou tornar-se cartuxo. Muitos de seus parentes eram terciários franciscanos, e uma prima foi fundadora de um mosteiro de Clarissas. Passou um longo tempo no convento dominicano de Manresa, onde o prior foi seu confessor e diretor. Mais tarde, um grupo de dominicanos defendeu e auxiliou na aprovação da Companhia de Jesus. Contudo, talvez o contato mais frutífero tenha sido com os beneditinos de Montserrat, onde Inácio provavelmente encontrou a *devotio moderna* e os exercícios espirituais de Garcia de Cisneros. Ele redigiu o primeiro esboço dos *Exercícios* sob inspiração divina, revisando-o em Paris, em 1534, e em 1548 os *Exercícios* foram aprovados pelo Papa Paulo III.(23) **OS EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS** Santo Inácio estabelece um período de quatro semanas para os Exercícios Espirituais, embora esse tempo possa ser estendido ou reduzido conforme as necessidades do exercitante e o julgamento do diretor. Originalmente, cada exercitante era orientado por um diretor, mas, a partir de 1539, os jesuítas começaram a oferecer os Exercícios em grupo. Inicialmente, exigia-se que o exercitante fosse um cristão de boa vontade, desejoso de servir a Deus com fervor e com suficiente bagagem espiritual; posteriormente, os Exercícios foram oferecidos a um público mais amplo. Das vinte anotações incluídas por Santo Inácio na introdução aos *Exercícios*, destacam-se: - **Objetivo dos Exercícios**: ajudar o exercitante a purificar sua alma para discernir sua vocação e segui-la fielmente; - **Flexibilidade pessoal**: permitir que o exercitante abandone o método discursivo e pratique a oração conforme se sentir movido; - **Adaptação ao indivíduo**: ajustar os Exercícios à idade, saúde, conhecimento e estado de vida do exercitante; - **Prudência do diretor**: evitar intervenções excessivas ou influenciar as escolhas ou resoluções do exercitante. Desde o início, Santo Inácio recomenda cultivar uma santa indiferença em relação às coisas criadas, afirmando que o homem é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus e, assim, salvar sua alma. Todas as coisas criadas são para uso do homem na busca desse objetivo; devem ser usadas na medida em que ajudam a alcançar a meta eterna e rejeitadas na medida em que se tornam obstáculos. Esse princípio, enfatizado na primeira semana, torna-se o lema dos jesuítas: *Ad Majorem Dei Gloriam* (Para a Maior Glória de Deus). **AS QUATRO SEMANAS DOS EXERCÍCIOS** 1. **Primeira semana**: meditações sobre o pecado e o inferno. O exercitante utiliza memória, intelecto e vontade para refletir sobre o tema, acompanhando o exame particular e os "dez acréscimos", que tratam de comportamento e penitências. 2. **Segunda semana**: meditações sobre a vida de Cristo até o Domingo de Ramos, com ênfase na eleição segundo a vontade de Deus. Inclui a meditação dos "dois estandartes" (Cristo e Lúcifer) e os "três graus de humildade". A eleição deve visar a glória de Deus e a salvação da alma. 3. **Terceira semana**: meditações sobre a Paixão e morte de Cristo, buscando fidelidade e forças para viver as resoluções tomadas. Regras detalhadas sobre abstinência em comida e bebida refletem a prudência de Santo Inácio em relação à penitência. 4. **Quarta semana**: meditações sobre os eventos da Ressurreição até a Ascensão. O foco é o crescimento no amor, temperança e moderação. Inclui orientações sobre diferentes formas de oração mental e diretrizes para a meditação dos Mandamentos, pecados capitais ou a vida de Cristo. Santo Inácio finaliza os *Exercícios* com regras para o discernimento dos espíritos, normas para a distribuição de esmolas, diretrizes para "pensar com a Igreja" e considerações sobre escrúpulos. **CONTRIBUIÇÕES DE SANTO INÁCIO** Desde o século XVI, a Igreja deve a Santo Inácio contribuições inestimáveis para a espiritualidade cristã, como: - A prática dos exercícios espirituais e retiros; - Métodos eficazes para oração mental; - Popularização dos exames de consciência; - Valorização da mortificação ajustada às capacidades individuais; - Reconhecimento da importância do diretor espiritual; - Uma teologia do apostolado como dever de todos os cristãos; - Adaptação da vida religiosa às necessidades de seu tempo. Santo Inácio transformou a vida consagrada, assim como São Domingos e São Francisco em suas épocas. Ele retirou dos religiosos jesuítas elementos tradicionais da vida monástica, como o hábito, o ofício coral e as observâncias monásticas, dando à Igreja uma nova forma de vida religiosa, baseada na oração mental, direção espiritual e serviço apostólico. Esse modelo influenciou profundamente as congregações religiosas posteriores, antecipando inovações que só seriam vistas novamente com os institutos seculares do século XX.(25) **SANTA TERESA DE ÁVILA** Santa Teresa de Ávila (1515–1582) ocupa um lugar de destaque na história da espiritualidade por dois motivos principais: sua reforma do Carmelo e sua incomparável autoridade na teologia da oração. Nascida em La Moneda, perto de Ávila, em 1515, desde cedo foi atraída para Deus, influenciada pelo exemplo devoto de seus pais. Aos treze anos, perdeu sua mãe e foi enviada a um internato conduzido por freiras agostinianas. Ao sair, já era uma jovem madura, assumindo a responsabilidade de cuidar do lar de sua família. Em 1536, Teresa estava convencida de sua vocação religiosa e, apesar da relutância inicial de seu pai, entrou no mosteiro carmelita da Encarnação, em Ávila. Após professar seus votos, Teresa decidiu buscar a perfeição, mas com um fervor que talvez tenha superado a prudência, o que resultou em uma grave enfermidade. Foi levada à casa de seu pai para tratamento, mas os métodos usados agravaram sua condição, levando-a a um estado tão crítico que ficou em coma por quatro dias. Sua sepultura foi preparada no mosteiro, mas a recusa de seu pai em enterrá-la salvou sua vida. Gradualmente, recuperou-se e atribuiu sua cura à intercessão de São José, nutrindo desde então uma devoção especial a ele. No entanto, a vida no mosteiro da Encarnação estava longe do espírito eremítico característico dos carmelitas. Teresa passava muito tempo no parlatório. Sua conversão interior ocorreu ao contemplar uma imagem realista do *Ecce Homo*, que despertou nela um desejo por maior recolhimento e solidão. O apoio espiritual de confessores, como o jesuíta Baltasar Álvarez, também foi fundamental para seu progresso. **REFORMA DO CARMELO** No século XVI, a observância da clausura era pouco rigorosa, e a vida monástica apresentava muitos sinais de laxismo. Em 1560, Teresa e algumas companheiras decidiram que era necessária uma reforma no Carmelo. Sob um mandato divino, liderou esse movimento, fundando em 1562 o primeiro mosteiro reformado, dedicado a São José, em Ávila. Nos anos seguintes, dedicou-se à fundação de diversos mosteiros pela Espanha, enfrentando críticas de prelados e membros da nobreza, bem como de seus próprios confrades carmelitas. Apesar disso, encontrou defensores leais e recebeu numerosas graças místicas. Faleceu em 4 de outubro de 1582, na festa de São Francisco de Assis, em Alba de Tormes.(26) **ENSINAMENTOS SOBRE A ORAÇÃO** Santa Teresa é reconhecida como a maior mestra das etapas da oração. Desde seu tempo, praticamente todos os escritores espirituais foram influenciados por seus escritos. Autores como Santo Afonso de Ligório e São Francisco de Sales destacam-se entre seus seguidores. Ela escreveu principalmente para as monjas e frades carmelitas, oferecendo um ensinamento prático e descritivo, baseado em sua experiência pessoal e em observações profundas sobre a conduta humana. Seus ensinamentos estão presentes em três grandes obras: *Livro da Vida*, *Caminho de Perfeição* e *Castelo Interior* (*Moradas*), sendo esta última considerada sua obra-prima.(28) No *Castelo Interior*, Teresa descreve a alma como um castelo com várias moradas, no centro do qual Cristo está entronizado. O progresso na oração leva a alma a passar de uma morada para outra, até alcançar a união plena com Deus na sétima morada. Fora do castelo, há trevas e criaturas repulsivas no fosso, simbolizando os perigos do pecado. A jornada espiritual começa com a entrada no castelo, acompanhada de desapego às coisas criadas. **O CAMINHO DA ORAÇÃO SEGUNDO SANTA TERESA** Santa Teresa define a oração como "um diálogo de amizade, um conversar frequente a sós com Aquele que sabemos que nos ama."(29) Ela insiste que o progresso na oração não depende de pensar muito, mas de amar muito. Assim, rejeita métodos rígidos que possam sufocar a liberdade da alma, incentivando a submissão à ação do Espírito Santo. 1. **Primeira morada**: A alma inicia o caminho como principiante, ainda apegada às coisas terrenas. A oração característica é vocal. 2. **Segunda morada**: A alma começa a praticar a oração mental, enfrentando períodos de aridez e dificuldades. Aqui, a meditação discursiva é predominante, mas deve levar ao amor. 3. **Terceira morada**: Surge a oração de recolhimento adquirido, um estado em que todas as faculdades se unem na presença de Deus. Teresa sugere que a alma cultive a consciência da presença divina em todas as suas atividades. 4. **Quarta morada**: Introduz-se a oração de quietude, uma união íntima do intelecto com Deus. A alma sente vivamente a presença divina, embora a memória e a imaginação ainda possam causar distrações. 5. **Quinta morada**: A oração de união prende todas as faculdades da alma em Deus. Neste estado, a alma percebe a presença divina de maneira tão clara que não há dúvidas de que Deus está nela e ela em Deus. 6. **Sexta morada**: A alma experimenta a união extática e a "esponsal mística," acompanhadas de purificações passivas e fenômenos místicos como êxtases, locuções e visões. 7. **Sétima morada**: A alma alcança a "união transformante" ou "casamento místico," onde vive plenamente o pedido de Cristo: "Que todos sejam um, como Tu, Pai, estás em mim e eu em Ti" (Jo 17, 22-23). Neste estado, a alma esquece-se de si mesma, deseja sofrer por Cristo e sente zelo pela salvação das almas. **BASE DA SANTIDADE** Não seria correto pensar que a doutrina de Santa Teresa fosse exclusivamente mística. É verdade que ela escreveu para monjas contemplativas, mas estava ciente de que nem todas se encontravam no estado místico. Com frequência, afirmava que a santidade não consiste no extraordinário, mas em fazer as coisas ordinárias de maneira extraordinária. A base da santidade é a conformidade total com a vontade de Deus, "de modo que, assim que sabemos que Ele deseja algo, sujeitamos toda a nossa vontade a isso... O poder do amor perfeito é tal que nos faz esquecer de agradar a nós mesmos para agradar àquele que nos ama."(37) O caminho mais seguro e rápido para alcançar essa perfeição no amor, segundo Santa Teresa, é a obediência, pela qual renunciamos completamente à nossa própria vontade e a submetemos inteiramente a Deus.(38) Para o crescimento na santidade, ela dá especial atenção à recepção da Comunhão; ao cultivo da humildade, obediência e caridade fraterna; à observância da pobreza; mas, acima de tudo, ao amor a Deus.(39) **SÃO JOÃO DA CRUZ** Não se pode falar de Santa Teresa de Ávila sem pensar em seu grande colaborador, São João da Cruz. Suas vidas, obras e doutrinas estão tão intimamente ligadas que ambos são os pilares sobre os quais se constrói a escola carmelita de espiritualidade. São João da Cruz (1542–1591) não é tão amplamente conhecido e lido quanto merece, e há várias razões para isso: ele escreveu principalmente para almas já avançadas no caminho da perfeição; seus ensinamentos sobre desapego e purificação são exigentes demais para alguns cristãos; e sua linguagem, frequentemente sutil e metafísica, nem sempre agrada ao gosto dos leitores modernos. No entanto, seus escritos e os de Santa Teresa se complementam tão perfeitamente que uma das melhores maneiras de compreender um é estudar as obras do outro. Há, é claro, uma diferença notável entre eles, mas trata-se mais de uma diferença de abordagem do que de essência. Para entender São João da Cruz e Santa Teresa, é necessário considerar o estado da vida cristã na Espanha do século XVI. Pessoas que alegavam receber revelações, visões e outros fenômenos místicos extraordinários eram admiradas e buscadas. Algumas desejavam sinceramente receber esses dons especiais; outras chegavam a simular estigmas ou visões para impressionar os fiéis. O iluminismo (ou *alumbradismo*) ganhou grande força, especialmente em casas religiosas relaxadas, como um caminho para a santidade eminente sem a prática da ascese ou o esforço de adquirir virtudes. Todos os aspectos estruturados e institucionais da religião eram rejeitados como obstáculos ou completamente desnecessários para a união imediata com Deus na experiência mística. O pseudo-misticismo tornou-se objeto de intensa investigação pela Inquisição Espanhola, que conseguiu controlar a situação, mas às custas do desenvolvimento de uma espiritualidade autêntica e ortodoxa.(40) Algumas afirmações nos escritos de Santa Teresa e São João da Cruz podem ser mal interpretadas se o leitor não levar em conta o contexto espanhol do século XVI. João de Yepes nasceu em Fontiveros, perto de Ávila, em 1542. Com apenas alguns meses de vida, perdeu o pai. Reduzida à pobreza, sua família mudou-se para Medina del Campo, onde João trabalhou em diversos ofícios e frequentou a escola jesuíta de 1559 a 1563. Aos vinte e um anos, ingressou na Ordem Carmelita e foi enviado a Salamanca para estudar teologia. Ao retornar a Medina del Campo para celebrar sua primeira Missa, conheceu Santa Teresa de Ávila. Ele havia pensado seriamente em transferir-se para os cartuxos, mas Teresa o convenceu a unir-se à Reforma Carmelita. A primeira casa dos carmelitas descalços foi fundada em Duruelo, e João, juntamente com Antônio de Jesus, foi um dos fundadores. Nos anos seguintes, São João da Cruz ocupou vários cargos: mestre de noviços, reitor do colégio de Alcalá e confessor das carmelitas no mosteiro da Encarnação, em Ávila. Foi durante essa última missão que foi sequestrado pelos carmelitas calçados (1577) e mantido prisioneiro no mosteiro de Toledo por nove meses. Após escapar de Toledo, São João da Cruz passou a maior parte dos anos restantes em Andaluzia, ocupando cargos importantes. No entanto, no Capítulo Provincial de 1591, realizado em Madri, João discordou publicamente do Vigário Geral, Nicolás Doria, que imediatamente o destituiu. Humilhado, mas feliz por poder retornar a uma vida de maior solidão e recolhimento, São João da Cruz encerrou seus dias em Úbeda, onde faleceu após muito sofrimento. Foi canonizado pelo Papa Bento XIII em 1726 e declarado Doutor da Igreja pelo Papa Pio XI em 1926.(41) **AS PRINCIPAIS OBRAS DE SÃO JOÃO DA CRUZ** As obras principais de São João da Cruz são: - **A Subida do Monte Carmelo** (1579–1585); - **A Noite Escura da Alma** (1582–1585); - **O Cântico Espiritual** (primeira redação em 1584 e segunda redação entre 1586 e 1591); - **A Chama Viva de Amor** (primeira redação entre 1585 e 1587 e segunda redação entre 1586 e 1591). Todas essas obras são comentários sobre poemas compostos pelo próprio São João da Cruz, embora os dois primeiros tratados nunca tenham sido concluídos. Contudo, é amplamente aceito que os tratados *Subida–Noite Escura* abrangem toda a temática referente às purificações ativas e passivas dos sentidos e das faculdades espirituais.(42) **INFLUÊNCIAS TEOLÓGICAS** Tendo estudado em Salamanca, São João da Cruz foi formado na teologia tomista, mas também leu as obras de **Pseudo-Dionísio** e São Gregório Magno. No entanto, o autor que mais parece ter influenciado São João foi **Tauler (discípulo do Mestre Eckhart e manteve profunda relação com a seita esotérica dos Amigos de Deus)**, embora seja certo que ele conhecia as obras de São Bernardo, **Ruysbroeck**, Cassiano, os Victorinos, Osuna e, evidentemente, Santa Teresa de Ávila.(43) Apesar disso, João da Cruz não foi um mero imitador; suas obras possuem um caráter distintivo e original. **O PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DA TEOLOGIA DE SÃO JOÃO** O princípio fundamental da teologia de São João da Cruz é que Deus é Tudo, e a criatura é nada. Portanto, para alcançar a união perfeita com Deus, que constitui a santidade, é necessário passar por uma purificação intensa e profunda de todas as faculdades e potências da alma e do corpo. Os tratados *Subida–Noite Escura* descrevem todo o processo de purificação, desde a purificação ativa dos sentidos externos até a purificação passiva das faculdades superiores; já *A Chama Viva de Amor* e *O Cântico Espiritual* descrevem a perfeição da vida espiritual na união transformante. Todo o caminho para a união é chamado de "noite" porque a alma caminha pela fé. João da Cruz apresenta seus ensinamentos de maneira sistemática, utilizando como fontes a Sagrada Escritura, a teologia e sua experiência pessoal. **A UNIÃO DA ALMA COM DEUS** Ao falar da união da alma com Deus, São João refere-se à união sobrenatural e não à união geral pela qual Deus está presente na alma ao sustentá-la na existência. A união sobrenatural da vida mística é uma "união de semelhança" produzida pela graça e pela caridade. Contudo, para que essa união de amor seja tão perfeita e íntima quanto possível, a alma deve livrar-se de tudo o que não é Deus e de qualquer obstáculo ao amor divino. Assim, a alma poderá amar a Deus com todo o coração, alma, mente e forças. Como qualquer deficiência na união de amor é atribuída à alma e não a Deus, João conclui que a alma precisa ser completamente purificada em todas as suas faculdades e potências – tanto no nível sensorial quanto espiritual – antes de ser plenamente iluminada pela luz da união divina. Isso leva à chamada "noite escura," assim denominada porque: - O ponto de partida é a negação e privação do desejo pelas coisas criadas; - O caminho pelo qual a alma viaja é a obscuridade da fé; - O objetivo é Deus, que é também uma "noite escura" para o homem nesta vida.(44) **A NOITE ESCURA: NECESSIDADE E SIGNIFICADO** A necessidade de passar pela noite escura deve-se ao fato de que, do ponto de vista de Deus, os apegos humanos às coisas criadas são pura escuridão, enquanto Deus é luz pura. Como "as trevas não podem receber a luz" (Jo 1,5), dois contrários não podem coexistir no mesmo sujeito. A escuridão dos apegos e a luz divina são opostos e não podem estar presentes simultaneamente na alma. São João explica que a alma deve mortificar seus apetites ou concupiscências e avançar pela fé através da purificação ativa dos sentidos e do espírito. Embora o tratamento possa parecer negativo e severamente ascético, ele insiste que essa purificação não se trata de privação de coisas criadas, mas da negação e extirpação do desejo por elas ou do apego a elas.(45) **O MÉTODO PARA A PURIFICAÇÃO** São João propõe um método simples para realizar essa purificação: 1. Ter um desejo habitual de imitar Cristo; 2. Estudar a vida e as obras de Cristo; 3. Fazer o que Cristo fez.(46) Esse ensinamento reflete a centralidade de Cristo na espiritualidade de São João da Cruz e destaca a necessidade de seguir o exemplo de Cristo como o caminho mais seguro para alcançar a união transformante com Deus. **A NOITE ATIVA DO ESPÍRITO** No **Livro 2 de *A Subida do Monte Carmelo***, São João da Cruz discute a noite ativa do espírito. Ele afirma que a purificação do intelecto, da memória e da vontade é realizada por meio da operação das virtudes de fé, esperança e caridade, explicando em seguida por que a fé é a noite escura pela qual a alma deve passar para se unir a Deus. Ao tratar da prática da oração, ele apresenta três sinais pelos quais a alma pode reconhecer que está passando da meditação para a oração contemplativa: 1. Torna-se impossível meditar como antes; 2. Não há desejo de se concentrar em nada em particular; 3. Surge um anseio por Deus e pela solidão. O que a alma experimenta é uma "consciência amorosa de Deus," que é uma forma de oração contemplativa.(47) **AS PURIFICAÇÕES PASSIVAS** As purificações passivas são explicadas em **A Noite Escura**. Nesse estágio, Deus completa os esforços da alma para se purificar tanto no nível sensorial quanto nas faculdades espirituais. A alma é gradualmente conduzida à contemplação escura, descrita por Pseudo-Dionísio como um "raio de escuridão" e chamada por São João de "teologia mística."(48) Embora se espere que a contemplação mística seja prazerosa, São João explica que, quando a luz divina da contemplação atinge uma alma ainda não completamente purificada, causa escuridão espiritual. Isso ocorre porque a luz divina transcende o entendimento humano e priva a alma de suas operações intelectuais. Mesmo assim, durante essa contemplação escura e dolorosa, a alma pode perceber os primeiros raios de luz que anunciam o amanhecer. Em **O Cântico Espiritual**, São João descreve a busca ansiosa da alma por Deus e o encontro supremo de amor, usando o símbolo da noiva que procura o noivo e, finalmente, alcança a união perfeita do amor mútuo. Deus atrai a alma para si como um ímã poderoso atrai partículas de metal. A jornada da alma em direção a Deus torna-se cada vez mais rápida até que, tendo deixado tudo para trás, ela desfruta da união mais íntima possível nesta vida: o matrimônio místico da união transformante. **A CHAMA VIVA DE AMOR** Em **A Chama Viva de Amor**, São João descreve a sublime perfeição do amor no estado de união transformante. A união entre a alma e Deus é tão íntima que está singularmente próxima da visão beatífica, "tão próxima que apenas um véu muito fino as separa." A alma clama ao Espírito Santo que rasgue o véu da vida mortal para que possa entrar na glória completa e perfeita. Nesta união, a alma é transformada em uma chama de amor, na qual o Pai, o Filho e o Espírito Santo se comunicam com ela. A alma experimenta um antegozo da vida eterna.(49) Não é algo incrível que uma alma, agora examinada, purificada e provada no fogo das tribulações, provas e muitas tentações, e encontrada fiel no amor, receba o cumprimento da promessa do Filho de Deus: que a Santíssima Trindade virá e habitará em quem o ama (Jo 14,23). A Santíssima Trindade habita na alma, iluminando divinamente seu intelecto com a sabedoria do Filho, deleitando sua vontade no Espírito Santo e absorvendo-a poderosamente no doce abraço do Pai.(50) **A HERANÇA DE SANTA TERESA DE ÁVILA E SÃO JOÃO DA CRUZ** Juntos, Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz ofereceram à Igreja uma doutrina espiritual que nunca foi superada. Sua influência foi tão grande e sua exposição tão brilhante que ofuscaram todos os outros escritores da Idade de Ouro da espiritualidade espanhola. **A IDADE DE OURO DA ESPANHA** A Espanha do século XVI produziu uma rica literatura espiritual e um número impressionante de santos. Em certa medida, isso se deveu à situação histórica do período e à localização geográfica da Espanha. Separada dos países ao norte pelos Pirineus, como França, Alemanha e Países Baixos, a Espanha foi menos afetada pelos impactos da Reforma Protestante do que essas nações. Comparativamente, a Espanha desfrutava de um clima de paz propício ao desenvolvimento da espiritualidade e à produção de tratados sobre a vida cristã. Embora a Inquisição restringisse a liberdade de pensamento, ainda permitiu o surgimento de uma literatura espiritual de altíssima qualidade. Infelizmente, em figuras como Melchior Cano, a Inquisição também gerou suspeitas excessivas, severidade injustificada, acusações infundadas e uma tendência definitivamente anti-mística, completamente contrária ao temperamento espanhol.(51) Muitos escritores espirituais de renome foram presos como suspeitos, e diversas obras acabaram incluídas no Índice de Livros Proibidos. Por outro lado, havia razões legítimas para que a Inquisição perseguisse os *Alumbrados*. No início do século XVI, o pseudo-misticismo, com toda sua imoralidade, falsas visões, estigmas e êxtases, havia atraído muitos seguidores, especialmente entre religiosos pouco instruídos. A partir de 1524, a disseminação gradual da doutrina luterana na Espanha trouxe a negação da moralidade objetiva, o desprezo pelas boas obras e a reivindicação de uma orientação individual pelo Espírito Santo. Escritores espirituais das ordens franciscana e dominicana tentaram corrigir os exageros dos pseudo-místicos, mas, em 1551, ficou evidente que eram necessárias medidas mais rigorosas, conduzindo à atuação da Inquisição Espanhola. **OS FRANCISCANOS E A DOUTRINA ESPIRITUAL** Os franciscanos foram os primeiros a oferecer a doutrina espiritual tão necessária. Alonso de Madrid (+1521) publicou um tratado ascético intitulado *A Arte de Servir a Deus*. Ele apresentou inicialmente a teologia básica da vida espiritual, alertando contra sentimentalismos e ilusões, e desenvolveu três temas fundamentais: o autoconhecimento, o crescimento nas virtudes e a prática da oração mental. Santa Teresa de Ávila recomendava esta obra com entusiasmo para suas monjas. Em 1527, Francisco de Osuna (+1540) publicou o *Terceiro Abecedário Espiritual*, um tratado místico sobre a oração que exerceu profunda influência sobre Santa Teresa de Ávila.(52) De maneira reminiscente aos místicos do Reno, Osuna afirmava que o recolhimento em Deus só pode ser alcançado pelo desapego dos sentidos e que a perfeição da oração de recolhimento consiste em não pensar em nada específico, permitindo que a alma seja completamente absorvida por Deus. No entanto, isso deve ser feito com um espírito alegre, pois Osuna declarava que aqueles que se sentem tristes ou desanimados progridem pouco na vida de oração. O tratado inteiro é desenvolvido a partir de uma perspectiva psicológica, que atraiu Santa Teresa e marcou suas próprias obras. Bernardino de Laredo (+1540), um médico que se tornou irmão leigo franciscano, publicou *A Subida do Monte Sião* em 1535. Em 1538, lançou uma nova versão, refletindo mudanças significativas em sua doutrina. Santa Teresa de Ávila afirmou ter encontrado grande esclarecimento e consolo nesta obra, especialmente quando estava preocupada com sua capacidade de meditar sobre Cristo. É interessante notar que, enquanto a edição de 1535 segue os ensinamentos místicos de Ricardo de São Vítor, a edição de 1538 reflete a influência de Pseudo-Dionísio, Hugo de Balma, os cartuxos e Henrique Herp. ***A SUBIDA DO MONTE SIÃO*** *A Subida do Monte Sião* é dividida em três partes: 1. **Primeira parte**: trata do processo de autoaniquilação espiritual, no qual a alma destrói o pecado e cultiva a virtude, com o autoconhecimento e a humildade como elementos indispensáveis. Bernardino afirmava que a oração contemplativa não é exclusiva de monges e frades, mas pode ser alcançada por todos os cristãos que cultivem a humildade e sigam Cristo. 2. **Segunda parte**: oferece meditações sobre os mistérios da vida, morte e ressurreição de Cristo. 3. **Terceira parte**: foca inteiramente na oração contemplativa. Na edição de 1535, Bernardino enfatiza o papel do intelecto na contemplação (seguindo Ricardo de São Vítor); já na edição de 1538, ele descreve a contemplação mística em termos da vontade, que supera o intelecto com aspirações de amor.(53) **SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA** Entre os franciscanos, merece destaque São Pedro de Alcântara (+1562), reformador da Ordem Franciscana na Espanha e conselheiro de Santa Teresa de Ávila. Há muita controvérsia sobre a autoria do *Tratado da Oração e Meditação*, atribuído a São Pedro. Santa Teresa afirma que ele foi "autor de alguns livrinhos sobre oração, escritos em espanhol e amplamente utilizados atualmente."(54) A hipótese mais aceita é que São Pedro tenha adaptado o *Livro da Oração e Meditação*, escrito por Luís de Granada em 1554. Posteriormente, Luís lançou uma nova edição em 1555 e uma versão definitiva em 1566. Ambos os autores exerceram grande influência além dos Pirineus, e sua doutrina sobre oração foi utilizada como fonte por São Francisco de Sales. **LUÍS DE GRANADA** Luís de Granada (+1588) destacou-se como o principal escritor espiritual entre os dominicanos espanhóis do século XVI, embora não tenha escapado à vigilância e condenação da Inquisição Espanhola. Suas obras foram tão amplamente difundidas que logo foram traduzidas para várias línguas, incluindo idiomas de países missionários. Após algumas de suas obras serem incluídas no Índice, Luís submeteu os mesmos livros ao Concílio de Trento e obteve aprovação formal para seus ensinamentos. O que parecia ser a ruína de sua vocação como escritor espiritual transformou-se em vitória: em 1562, recebeu o título de Mestre em Teologia Sagrada, por concessão direta do Mestre Geral da Ordem Dominicana. Dos 84 anos de sua vida, dedicou 35 à pregação e à escrita. Após sua morte, em 1588, o Capítulo Geral dos Dominicanos declarou: "Homem notável em doutrina e santidade, celebrado em todo o mundo." **MÉTODO DE ORAÇÃO** Depois de Santo Inácio de Loyola, Luís de Granada foi o primeiro escritor espiritual a formular um método de oração para os leigos, adotado por algumas ordens religiosas na Espanha. Seu método consistia em seis passos: 1. **Preparação** (geralmente na noite anterior); 2. **Leitura** do material para meditação; 3. **Meditação propriamente dita**, que incluía consideração, aplicação e resolução; 4. **Ação de graças**; 5. **Oferecimento**; 6. **Súplica**. Luís distinguia entre meditação imaginativa (utilizando cenas da vida de Cristo) e meditação intelectual (refletindo sobre um atributo divino ou uma verdade teológica). Poucos autores superaram Luís de Granada como especialista em meditação discursiva. Além de seus escritos sobre oração, Luís compôs tratados voltados para a conversão dos cristãos a uma vida mais devota. Talvez devido à experiência inicial com a Inquisição, raramente abordou temas místicos, o que contribuiu para sua popularidade universal. Grandes santos elogiaram seus escritos, entre eles Santa Teresa de Ávila, São Carlos Borromeu, São Vicente de Paulo, Santa Luísa de Marillac e São Francisco de Sales. **TEMAS FUNDAMENTAIS** O tema central das obras de Luís de Granada é o chamado universal à perfeição cristã. Embora não seja obrigatório alcançar a perfeição nesta vida, todos são obrigados a esforçar-se para alcançar a excelência. Cada cristão deve buscar o objetivo da perfeição de acordo com seu temperamento, estado de vida e dons recebidos de Deus. Luís enumerou diversos caminhos para a santidade, incluindo: - O caminho direto da oração; - A prática das virtudes; - O desprezo pelo mundo; - O caminho doloroso da cruz; - A imitação dos santos; - A obediência aos mandamentos; - A contemplação de Deus na criação e na ordem da graça e do sobrenatural. Independentemente do caminho seguido, Luís insistia que o cristão deve viver a vida de Cristo e identificar-se com Ele por meio da graça que nos foi comunicada pela sua paixão e morte, através da Igreja e dos sacramentos. Para ele, a oração é essencial na vida cristã porque é a linguagem do amor e o meio mais direto e eficaz para alcançar a santidade. **SÃO JOÃO DE ÁVILA** Semelhante a Luís de Granada em seu apostolado e sofrimento nas mãos da Inquisição Espanhola, São João de Ávila (+1569) é conhecido como o Apóstolo da Andaluzia. Respeitado universalmente, teve contato com várias personalidades santas. Correspondia-se frequentemente com Santa Teresa de Ávila e foi responsável pela conversão de São Francisco de Borja e São João de Deus. Dotado de um notável dom de discernimento dos espíritos, São João de Ávila atingiu grandes alturas de experiência mística em sua vida pessoal. Assim como Luís de Granada, ensinava um tipo de meditação simples, cristocêntrica e adaptada a pessoas de todas as condições de vida. Embora fosse cauteloso ao tratar de assuntos místicos, defendeu a experiência mística contra aqueles que a suspeitavam. Quando Santa Teresa lhe enviou um exemplar de *O Livro da Vida*, sugeriu em uma carta que corrigisse certas expressões e explicasse melhor outras. Denunciado à Inquisição Espanhola em 1531, São João de Ávila passou mais de um ano preso antes de ser absolvido. Em 1556, seu tratado *Audi, filia, et vide* foi publicado sem sua permissão e incluído no Índice em 1559. A obra só foi republicada em 1574, após sua morte, com consideráveis modificações. Por isso, historiadores da espiritualidade lamentam que a Inquisição tenha restringido grandes místicos como São João de Ávila, que evitaram publicar as sublimes teologias que pregavam em seus sermões e conferências. O maior apostolado de São João de Ávila foi realizado entre os sacerdotes de sua época. Embora ele próprio não tenha fundado um instituto religioso para sacerdotes, muitos de seus discípulos ingressaram nos jesuítas, algo que João de Ávila também desejava, mas nunca conseguiu realizar. Seus discípulos promoveram uma espiritualidade caracterizada pela obediência filial ao diretor espiritual, pela prática da oração mental, pela teologia espiritual fundamentada nos Evangelhos e em São Paulo, e por um apostolado centrado na pregação. Aqueles que estavam sob sua direção logo percebiam seu dom extraordinário para compreender o mistério de Cristo. Sua espiritualidade cristocêntrica pode ser resumida nas seguintes afirmações: 1. Todas as bênçãos vêm a nós através de Cristo; 2. Na medida em que nos unimos a Cristo, participamos dos frutos da redenção; 3. Nossa incorporação em Cristo começa com a fé e o batismo, sendo aperfeiçoada na Eucaristia; 4. A dedicação total a Cristo produz em nós os frutos da esperança e da alegria.(56) **LUÍS DE LEÓN** Entre os agostinianos, o escritor espiritual mais renomado foi Luís de León (1528–1591), professor da Universidade de Salamanca e editor literário da primeira edição dos escritos de Santa Teresa de Ávila. Profundo conhecedor do hebraico, traduziu e comentou o *Cântico dos Cânticos*, o que levou à sua prisão pela Inquisição por quase cinco anos. Sua obra-prima é indiscutivelmente *Os Nomes de Cristo*.(57) Baseada em fontes bíblicas e patrísticas, a obra também reflete influências da espiritualidade da Alemanha e dos Países Baixos, além de semelhanças com o estilo de São João da Cruz. Embora seus escritos sejam justamente elogiados, Luís de León é frequentemente mais reconhecido por suas contribuições literárias e estéticas do que por sua influência na espiritualidade.(58) **OS JESUÍTAS E A ESPIRITUALIDADE ESPANHOLA** Os jesuítas não contribuíram significativamente para a literatura espiritual espanhola até o século XVII, embora estivessem envolvidos nas tendências contemporâneas. Isso pode ser explicado por diversos fatores: 1. A Companhia de Jesus ainda era jovem, buscando sua forma definitiva e lutando pela sobrevivência diante da oposição de bispos e ordens religiosas mais antigas; 2. Santo Inácio de Loyola havia estabelecido os *Exercícios Espirituais* como a base da espiritualidade jesuíta, o que reduziu o incentivo para explorar outros métodos de oração ou teologia espiritual; 3. A constante ameaça da Inquisição desestimulava um instituto religioso recém-fundado a arriscar-se ao confronto; 4. Havia uma crise interna na Companhia sobre o equilíbrio entre contemplação e ação.(59) Quando Santo Inácio faleceu em 1556, quase dois terços dos membros da Companhia eram espanhóis. Em um período em que a maior parte da literatura espiritual enfatizava a oração contemplativa, os jesuítas enfrentaram a decisão de regulamentar a prática da oração formal. Na Segunda Congregação Geral de 1565, não se chegou a um consenso, e a questão foi deixada para o Superior Geral recém-eleito, São Francisco de Borja, que estabeleceu uma hora diária de oração formal para todos os membros da Sociedade. Com o tempo, outras práticas foram adicionadas, e a Terceira Congregação Geral de 1573 revisitou a questão, buscando retornar às práticas originais instituídas por Santo Inácio. Contudo, o Superior Geral Mercuriano recusou mudanças e, em 1575, proibiu a leitura de autores como Tauler **(discípulo do Mestre Eckhart e manteve profunda relação com a seita esotérica dos Amigos de Deus)**, Ruysbroeck, Mombaer, Herp, Llull, Santa Gertrudes e Santa Matilde, considerando-os incompatíveis com o espírito jesuíta.(60) Durante este debate, muitos jesuítas transferiram-se para os cartuxos. A divisão entre os que defendiam a oração afetiva e contemplativa e os que sustentavam a oração discursiva como própria da Companhia tornou-se evidente. Baltasar Álvarez, um dos defensores da oração contemplativa, foi silenciado por Mercuriano em 1577.(61) Álvarez havia sido ordenado sacerdote em 1558 e foi designado para Ávila, onde se tornou diretor espiritual de Santa Teresa de Ávila. Posteriormente, experimentou a oração mística e, a pedido de seu provincial, escreveu um pequeno tratado explicando a oração de quietude, considerado uma das melhores refutações ao falso misticismo dos *Alumbrados*.(62) **A SOLUÇÃO DE AQUAVIVA** A crise foi resolvida pelo quinto Superior Geral, Aquaviva, que buscou preservar a unidade da Companhia de Jesus. Ele favoreceu a oração discursiva e a ascese, mas enfatizou que a oração é um valor em si mesma, cuja função essencial é conduzir ao conhecimento e amor de Deus, inclusive à contemplação. Contudo, para os jesuítas, a oração nunca deveria ser dissociada de sua vocação ativa. Aquaviva deixou a duração da oração formal ao critério das necessidades individuais, alinhando-se ao ensinamento de Santo Inácio.(63) Após o generalato de Aquaviva, os jesuítas começaram a produzir uma literatura significativa sobre a vida espiritual. **ESCRITORES JESUÍTAS DO SÉCULO XVII** **SÃO ALFONSO RODRÍGUEZ (+1617)** O primeiro nome entre os escritores jesuítas do século XVII é o de São Alfonso Rodríguez, um humilde irmão coadjutor cuja espiritualidade parece contradizer diretamente o modelo defendido por Aquaviva para a Companhia de Jesus. Recusado em duas ocasiões, Alfonso foi finalmente aceito por Cordeses, o provincial de Aragão. Ele ingressou na Companhia como viúvo e passou toda sua vida religiosa como porteiro do colégio jesuíta em Palma de Mallorca. A pedido de seus superiores, deixou uma autobiografia de sua vida espiritual, marcada por provações, severas tentações e os mais altos graus de oração mística.(64) A maior parte de seus escritos só foi publicada no século XIX, o que contribuiu para que não recebesse a popularidade que merece. Místico por excelência, alcançou as alturas da oração contemplativa pelo caminho da humildade, da resignação total a Deus e da obediência literal. **ALFONSO RODRÍGUEZ (+1616)** Totalmente diferente de São Alfonso e muito mais conhecido é Alfonso Rodríguez, mestre de noviços jesuíta na Andaluzia, cuja extensa obra foi publicada sob o título *Ejercicio de la perfección y las virtudes cristianas*.(65) Rodríguez tinha mais de 70 anos quando o livro foi compilado a partir das conferências espirituais que ministrava aos noviços jesuítas. Seu tom é quase exclusivamente ascético e moral, mas considerando que o material visa a formação de noviços, é injusto acusá-lo de ser anti-místico apenas por dedicar pouco tempo a tópicos místicos. Ainda assim, Rodríguez parece fazer uma distinção excessivamente rígida entre a oração ascética ou discursiva e a oração mística, tratando a contemplação mística como algo extraordinário, sem considerar formas intermediárias de oração entre a discursiva e a mística. *A Prática da Perfeição Cristã* foi amplamente distribuída e, após sua tradução para o francês, foi adotada como leitura espiritual obrigatória por muitos institutos religiosos. Contudo, nos tempos modernos, caiu em desuso devido à sua moralidade legalista e ascetismo extremo. **LUÍS DE LA PUENTE (+1624)** Luís de la Puente começou sua carreira como escritor com mais de 50 anos, publicando inicialmente o estudo em dois volumes *Meditações sobre os Mistérios de Nossa Santa Fé*.(66) Desde sua terceira provação na Companhia, foi fortemente influenciado por Baltasar Álvarez e, mais tarde, escreveu uma biografia de Álvarez. Embora seu ensino esteja quase inteiramente restrito aos graus ascéticos de oração, de la Puente contribuiu para reduzir o preconceito contra a oração mística e o estado místico. De maneira lógica, Luís defendia o uso dos *Exercícios Espirituais* e admitia que, embora a oração mística seja um dom especial de Deus, geralmente é concedida àqueles que são fiéis à prática da meditação e do recolhimento sobre os mistérios divinos. Ele usava diversos nomes para descrever a oração contemplativa, como: oração da presença de Deus, oração de repouso, oração de silêncio e oração de recolhimento interior. Na descrição da contemplação, de la Puente segue a tradição ortodoxa dos grandes mestres: "A contemplação... com um olhar simples contempla a soberana verdade, admira sua grandeza e nela se deleita."(67) **ÁLVAREZ DE PAZ (+1620)** Entre os autores jesuítas desse período, Álvarez de Paz foi o primeiro a realizar uma síntese completa da teologia ascética e mística. Outros autores haviam tratado de aspectos ascéticos e místicos da vida espiritual, mas suas obras eram mais manuais de direção espiritual do que tratados de teologia espiritual. Álvarez de Paz trabalhou no Peru, onde escreveu suas obras em latim, publicando-as posteriormente na França (provavelmente para evitar problemas com a Inquisição Espanhola). Os títulos de seus três volumes publicados revelam a vastidão de seu projeto teológico: 1. *De vita spirituali ejusque perfectione* (1608); 2. *De exterminatione mali et promotione boni* (1613); 3. *De inquisitione pacis sive studio orationis* (1617). Ele também planejava escrever um volume sobre a vida ativa no apostolado, mas nunca chegou a concluí-lo. **A DEFINIÇÃO DA VIDA ESPIRITUAL POR ÁLVAREZ DE PAZ** O autor define a vida espiritual como a vida da graça santificante, que admite vários graus, e explica como a alma individual, seja na vida ativa ou contemplativa, pode buscar a perfeição espiritual por meio de uma caridade cada vez mais intensa. Ele dedica atenção especial à necessidade de evitar o pecado, ao cultivo da humildade, castidade, pobreza e obediência, e à prática da mortificação. **TIPOS DE ORAÇÃO MENTAL** Álvarez de Paz divide a oração mental em quatro tipos básicos: 1. **Meditação discursiva**; 2. **Oração afetiva**; 3. **Contemplação inicial** (*inchoate contemplation*); 4. **Contemplação perfeita**. Ele oferece algo que outros antes dele não haviam feito: uma forma de oração que serve como transição entre a oração ascética e a oração mística. Além disso, é reconhecido por introduzir uma classificação original, a **oração afetiva**, cujo nome foi preservado por escritores posteriores. Contudo, ele insiste que, assim como a oração discursiva não pode ser exclusivamente um exercício do intelecto (o que a transformaria em estudo), a oração afetiva também não é uma atividade exclusivamente dos afetos. Trata-se de qual aspecto predomina em determinado tipo de oração, mas o homem deve usar tanto o intelecto quanto os afetos em todas as formas de oração. O objetivo da oração é aumentar a caridade e, por isso, a oração afetiva é considerada uma forma mais pura de oração do que a discursiva. **FORMAS DE ORAÇÃO AFETIVA** A oração afetiva pode ser praticada de três maneiras: 1. Por meio de atos repetidos de amor sob o impulso da graça; 2. Por um ato simples e puro de amor na presença de Deus; 3. Por uma operação especial de Deus na alma (*contemplação inicial*). **CONTEMPLAÇÃO PERFEITA** A contemplação perfeita, por outro lado, possui duas formas: 1. **Dons extraordinários** que, por vezes, são concedidos por Deus como fenômenos místicos (êxtases, visões, etc.); 2. **Um conhecimento simples de Deus**, realizado pelo dom da sabedoria, que eleva a alma, suspende as operações de suas faculdades e a coloca em um estado de admiração, alegria e amor ardente.(68) Álvarez de Paz afirma que as almas podem desejar a contemplação e até mesmo pedi-la humildemente a Deus, pois "é o meio mais eficaz de alcançar a perfeição." **CONTRIBUIÇÕES DA ESPIRITUALIDADE ESPANHOLA** Com isso, concluímos nossa análise da espiritualidade espanhola. Embora tenhamos abordado apenas alguns escritores espirituais que são o orgulho da Idade de Ouro da Espanha, é importante ressaltar que nenhuma outra nação católica contribuiu tanto para a teologia espiritual. A Espanha que deu à Igreja Santa Teresa de Ávila, São João da Cruz e Santo Inácio de Loyola também produziu fundadores de ordens apostólicas, inúmeros missionários para a América Latina e o Oriente e, em tempos mais recentes, um dos mais florescentes institutos de vida consagrada: o **Opus Dei**. **ESPIRITUALIDADE ITALIANA** Enquanto a espiritualidade espanhola, desde o início, tinha uma abordagem psicológica e, após a Idade de Ouro, tendia a tornar-se acadêmica e especulativa,(69) a espiritualidade italiana dos séculos XVI e XVII era prática e voltada para o cultivo de um espírito reformador. Mesmo grandes místicas, como a carmelita Santa Madalena de Pazzi e a dominicana Santa Catarina de Ricci, estavam profundamente preocupadas com a reforma da Igreja. Isso se deveu às alarmantes incursões dos costumes pagãos do Renascimento em toda a Itália. Escritores espirituais, na tradição de Savonarola, logo começaram a exigir medidas para restaurar tanto o clero quanto os leigos a uma autêntica vida cristã. O esforço era ainda mais complicado pelo temor da Revolta Protestante, que levou à criação da Inquisição. Dessa forma, até mesmo os defensores da reforma precisavam agir com grande cautela. Para os italianos, o medo da heresia superava o temor à mundanidade e à sensualidade. **JOÃO BATISTA DA CREMA E O COMBATE ESPIRITUAL** Um dos principais líderes da reação italiana contra a influência pagã do Renascimento foi o dominicano João Batista da Crema, renomado pregador, diretor espiritual e escritor. Após sua morte, em 1552, suas obras foram incluídas no Índice pela Inquisição Italiana, só sendo removidas em 1900.(70) Sua espiritualidade enfatizava o esforço pessoal, a cooperação com a graça e a erradicação do vício. Por insistir no esforço voluntário e tratar inadequadamente a doutrina do amor puro, alguns críticos viram traços de semipelagianismo em sua doutrina. Apesar disso, o movimento iniciado por ele deu frutos em várias áreas, como o surgimento dos clérigos regulares como uma nova forma de vida religiosa e a publicação de *O Combate Espiritual*, atribuído a Lourenço Scupoli. João Batista da Crema foi diretor espiritual de pessoas muito santas, como São Caetano, fundador dos teatinos (1542), e Santo Antônio Maria Zaccaria, fundador dos barnabitas (1530). Assim como Santo Inácio de Loyola, que chegou a Roma em 1537, esses homens estavam convencidos de que a única maneira de reformar o clero era pelo exemplo pessoal e pela influência em pequenos grupos. Assim, os clérigos regulares foram fundados precisamente como um instrumento de reforma do clero. Os clérigos regulares não viviam um estilo de vida monástico nem observavam a pobreza como os mendicantes; enfatizavam, em vez disso, a pobreza interior e o desapego dos bens deste mundo. Sua prática de oração era livre e simples, diferente da oração metódica dos *Exercícios Espirituais* de Santo Inácio, embora seguissem o sistema de combate espiritual defendido por ele. **REFORMA E NOVOS INSTITUTOS RELIGIOSOS** Durante este período de reforma, a Itália produziu numerosos santos e uma grande quantidade de novos institutos religiosos, dedicados à reforma da Igreja ou ao apostolado das obras de misericórdia. Entre eles, destacam-se: - São Roberto Belarmino, - São Filipe Néri (fundador dos oratorianos), - São Carlos Borromeu (fundador dos oblatas), - São Caetano (fundador dos teatinos), - Santa Ângela Mérici (fundadora das ursulinas), - Santo Antônio Maria Zaccaria (fundador dos barnabitas), - São Camilo de Lellis (fundador dos ministros dos enfermos). Apesar do espírito reformador, a espiritualidade italiana nunca se tornou severa ou rígida; manteve-se marcada pela mortificação interior, pelo cultivo do amor divino, pela ternura e pela alegria, como demonstrado na vida de seus santos. ***O COMBATE ESPIRITUAL* DE LOURENÇO SCUPOLI** A obra espiritual mais influente do período foi *O Combate Espiritual*, do teatino Lourenço Scupoli (+1610).(71) Refletindo um período de reforma e renovação da Igreja, o livro tem como objetivo principal a conversão do pecado e o cultivo da vida interior. Estabelece como princípio fundamental que a vida espiritual não consiste essencialmente em práticas externas, mas no conhecimento e no amor a Deus. A perfeição cristã é primariamente interior, exigindo a morte para o ego e a submissão total a Deus por meio do amor e da obediência. A obra enfatiza repetidamente o amor puro a Deus e o desejo de sua glória como os motivos adequados para a vida cristã, embora o temor do inferno e o desejo do céu sejam vistos como bons incentivos para iniciantes. Dado o estado pecaminoso do homem, a perfeição só pode ser alcançada por meio de um combate constante contra si mesmo. **ARMAS DO COMBATE ESPIRITUAL** As principais armas desse combate espiritual são: 1. **Desconfiança de si mesmo** (por si só, o homem nada pode fazer); 2. **Confiança em Deus** (com Ele, tudo é possível); 3. **Uso adequado das faculdades do corpo e da alma**; 4. **Prática da oração**. Essa abordagem reflete o espírito prático e reformador da espiritualidade italiana, que visava não apenas transformar a vida pessoal, mas também renovar a Igreja e a sociedade. **O COMBATE ESPIRITUAL** *O Combate Espiritual*, como o próprio nome indica, trata principalmente do uso adequado das faculdades e poderes humanos. Para esse fim, oferece conselhos específicos sobre como controlar as diversas faculdades e enfatiza a importância da vigilância constante. Contudo, não há uma tentativa de suprimir os sentidos nem de sugerir que sejam necessariamente fontes de mal e pecado. O objetivo é aprender a alcançar Deus pelo uso correto dos sentidos, conforme explicado por Santo Inácio nos *Exercícios Espirituais*. No que diz respeito à prática da oração, a obra não apresenta as explicações detalhadas características da espiritualidade espanhola. Três estilos de oração são recomendados, todos de caráter ascético: 1. **Meditação**, especialmente sobre a paixão e morte de Cristo; 2. **Comunhão com Deus**, por meio do recolhimento frequente em sua presença e o uso de jaculatórias ou breves orações vocais; 3. **Exame de consciência**, que, embora não seja oração em sentido estrito, pode levar à oração. Por fim, sugere-se a comunhão frequente e, quando isso não for possível, a prática da "comunhão de desejo" ou comunhão espiritual. **MÍSTICAS E A MISSÃO SOCIAL** **SANTA MADALENA DE PAZZI (+1607)** Uma das grandes místicas do período, Santa Madalena de Pazzi, carmelita, era uma extática dotada de dons místicos fenomenais. Suas obras foram todas ditadas durante estados de êxtase, com a ajuda de seis secretários que mal conseguiam acompanhar o fluxo de palavras que ela expressava. Suas obras podem ser agrupadas em cinco categorias: 1. Contemplações sobre os mistérios da fé e a vida de Cristo; 2. A vida religiosa e as virtudes; 3. Comentários sobre as Escrituras Sagradas; 4. Contemplações sobre as perfeições divinas; 5. Exclamações, semelhantes às compostas por Santa Teresa de Ávila.(72) **SANTA CATARINA DE RICCI (+1590)** Santa Catarina de Ricci, dominicana, também foi uma mística dedicada à reforma da Igreja. Contudo, diferentemente de Santa Madalena, realizou seu apostolado principalmente por meio de cartas dirigidas aos interessados.(73) Apesar de seu zelo pela reforma da Igreja e do intenso sofrimento ao receber os estigmas da paixão do Senhor, seu biógrafo, Serafino Razzi, relata que Deus inundou sua alma com uma alegria indescritível. Outras místicas da época, como a terciária dominicana Beata Osana de Mântua e a clarissa Beata Batista Varani, manifestaram preocupações semelhantes com a reforma da Igreja e vivenciaram fenômenos místicos similares. **A ALEGRIA NA ESPIRITUALIDADE ITALIANA** A alegria característica dos místicos italianos é especialmente evidente em São Filipe Néri (+1595),(74) frequentemente chamado de "o santo do amor por excelência". Em muitos aspectos, ele antecipou o espírito de São Francisco de Sales, defendendo que "o espírito de alegria alcança a perfeição cristã mais facilmente do que o espírito de tristeza". Apesar disso, insistia na importância da mortificação interior e, junto a São Carlos Borromeu, na prática da oração. Para ele, a mortificação era uma das melhores preparações para a oração. Em períodos de aridez espiritual, dava o mesmo conselho que Santa Teresa de Ávila: em nenhuma circunstância abandonar a oração. Se utilizasse um livro, São Filipe sugeria que se lesse até que a devoção fosse despertada, então se fechasse o livro para começar a orar. Ele dizia: "A oração é, na ordem sobrenatural, o que a fala é na ordem natural."(75) São Filipe Néri dedicava-se frequentemente ao cuidado dos enfermos, afirmando que cuidar dos doentes é um caminho curto para a perfeição. Seu biógrafo, o Cardeal Capecelatro, descreveu-o assim: "\[Ele\] tornou-se o mestre de uma ascese suave, doce, terna e compassiva. Em toda sua vida, encontram-se apenas dois ou três casos de severidade moderada; pelo contrário, vê-se a cada passo uma infinita doçura de caridade para com o próximo."(76) **O AMOR DIVINO NA ESPIRITUALIDADE ITALIANA** Um dos temas centrais da espiritualidade italiana desse período foi o amor divino. Historicamente, sua origem remonta a Santa Catarina de Gênova (+1510), fundadora dos hospitais italianos.(77) Um de seus discípulos, Ettore Vernazza, fundou um grupo religioso chamado *Oratorio del Divino Amore*, que rapidamente se espalhou por toda a Itália. Os escritos de Santa Catarina de Gênova foram editados por Ettore Vernazza e Cattaneo Marabotto, confessor de Santa Catarina, em 1530. Em 1548, Battista Vernazza compôs os *Diálogos*, que foram acrescentados à *Vida* e ao *Tratado do Purgatório* de Santa Catarina na edição de 1551. Embora não tenham sido escritos diretamente por ela, os *Diálogos* refletem fielmente seus ensinamentos sobre o amor divino. A importância dos *Diálogos* reside no fato de que correspondem às experiências místicas de vários santos da época, propondo um amor a Deus livre de interesses pessoais e enfatizando que o amor ao próximo é uma condição indispensável para alcançar esse amor perfeito. A devoção ao amor divino levou à proliferação de "companhias", nome dado a vários novos institutos religiosos dedicados ao apostolado das obras de misericórdia em diversas cidades da Itália. **SÃO FRANCISCO DE SALES** "São Francisco de Sales forma uma escola de espiritualidade por si só. Ele é o seu começo, o seu desenvolvimento, o seu todo."(78) Philip Hughes afirma que "em Francisco de Sales, o Renascimento francês é batizado e o humanismo torna-se devoto."(79) Ele é também uma ponte entre o Renascimento e o período moderno e tem sido uma das influências mais fortes na espiritualidade desde o século XVII até os dias atuais. Nascido em Sabóia, em 1567, Francisco de Sales estudou com os jesuítas em Paris e, depois, em Pádua, onde obteve seu doutorado em Direito Civil e Canônico. Ordenado sacerdote em dezembro de 1593, foi nomeado provedor do Capítulo de Genebra, uma função que ficava apenas abaixo da do bispo. Dedicou-se com grande vigor à evangelização dos calvinistas e teve tanto sucesso que foi nomeado coadjutor do Bispo de Genebra. Em 8 de dezembro de 1602, foi consagrado bispo dessa diocese. Até sua morte, em 1622, dedicou-se à pregação, à escrita espiritual, à direção de almas e à administração de sua diocese. Junto com Santa Joana Francisca de Chantal, fundou o Instituto Religioso da Visitação da Santíssima Virgem, uma comunidade semi-clausurada destinada a jovens e viúvas. Em 1887, o Papa Pio IX declarou São Francisco de Sales Doutor da Igreja, sendo a primeira vez que essa honra foi concedida a um francês.(80) **SUA VIDA E CARÁTER** Desde muito jovem, São Francisco de Sales mostrou grande atração pelas coisas de Deus, e vários acontecimentos em sua vida indicam claramente que seu chamado ao estado clerical foi uma vocação divina imediata. Michael de la Bedoyere afirma que Francisco de Sales é "o maior dos santos — pelo menos para os tempos modernos. E baseio essa convicção no sentimento constante de que aqui estava o ser humano de nossa época na história ocidental que, naturalmente, instintivamente e, também, sobrenaturalmente, refletiu de forma mais direta o caráter e o caminho de Cristo nosso Senhor."(81) **SUA CONTRIBUIÇÃO À ESPIRITUALIDADE** A doutrina ensinada por São Francisco de Sales não era nova, mas ele apresentou o ensinamento espiritual de forma original e merece crédito por retirar a espiritualidade cristã do âmbito estritamente monástico, no qual esteve confinada por séculos. Formado pelos jesuítas, São Francisco claramente seguiu práticas espirituais de inspiração inaciana. Em sua teologia, porém, é agostiniano, com o realismo e o otimismo de um tomista. Provavelmente, estava familiarizado com os escritos da escola flamenga, de Santa Catarina de Sena (por quem tinha grande amor), Santa Catarina de Gênova, São Filipe Néri e diversos escritores da escola espanhola, como Santa Teresa de Ávila, São João da Cruz, Luís de Granada, João de Ávila e García de Cisneros. *O Combate Espiritual* era seu livro de meditação favorito desde os tempos em Pádua. Em Paris, manteve contato com o capuchinho Richard Beaucousin, Bérulle, as carmelitas e Madame Acarie. A edição crítica das obras de São Francisco de Sales compreende 27 volumes, dos quais 12 contêm suas cartas. Os demais incluem *A Defesa do Estandarte da Santa Cruz*, *Introdução à Vida Devota*, *Tratado do Amor de Deus*, *Entrevistas Espirituais*, suas controvérsias e quatro volumes de sermões. Para nossos propósitos, basta resumir a doutrina contida na *Introdução à Vida Devota*. ***INTRODUÇÃO À VIDA DEVOTA*** A *Introdução à Vida Devota* foi publicada pela primeira vez em 1609, com uma edição final revisada por São Francisco em 1619. O livro foi escrito especificamente para os leigos, e São Francisco de Sales pode ser considerado o primeiro escritor espiritual a compor um tratado sobre espiritualidade leiga. Como ele explica no prefácio, os autores anteriores trataram da vida espiritual para instruir pessoas que se afastaram do mundo ou ensinaram uma espiritualidade que as levaria a fazê-lo. A intenção de São Francisco, entretanto, é oferecer instrução espiritual àqueles que permanecem no mundo, em suas profissões e famílias, e que acreditam erroneamente ser impossível buscar a vida devota. **SÃO FRANCISCO DE SALES E A VIDA DEVOTA** O que São Francisco de Sales entende por vida devota ou verdadeira devoção? Primeiramente, ele deixa claro que não consiste em graças ou favores extraordinários, afirmando enfaticamente: "Há certas coisas que muitas pessoas consideram virtudes, mas que não o são de forma alguma... Refiro-me a êxtases, arrebatamentos, insensibilidades, impassibilidades, uniões deíficas, elevações, transformações e outras perfeições semelhantes discutidas em certos livros que prometem elevar a alma a uma contemplação puramente intelectual, à aplicação essencial do espírito e a uma vida supereminente... Essas perfeições não são virtudes; são, antes, recompensas que Deus dá pelas virtudes ou pequenos exemplos das delícias da vida futura... No entanto, não se deve aspirar a tais graças, porque elas não são de forma alguma necessárias para amar e servir bem a Deus, que deve ser nosso único objetivo."(82) Em segundo lugar, a verdadeira devoção não consiste em um exercício espiritual específico: "Ouço muito sobre perfeições, mas vejo poucas pessoas que as praticam... Alguns colocam sua virtude na austeridade; outros na abstinência alimentar; alguns na esmola, outros na frequência aos sacramentos da penitência e da Eucaristia; outro grupo na oração, seja vocal ou mental; outros em uma certa contemplação passiva e supereminente; outros nas graças extraordinárias concedidas gratuitamente. E todos eles estão enganados, tomando os efeitos pelas causas, o riacho pela fonte, os ramos pela raiz, o acessório pelo principal, e muitas vezes a sombra pela substância. Quanto a mim, não conheço nem experimentei outra perfeição cristã senão aquela de amar a Deus de todo o coração e ao próximo como a nós mesmos. Toda outra perfeição sem esta é uma falsa perfeição."(83) **A DEFINIÇÃO DE VERDADEIRA DEVOÇÃO** A verdadeira devoção, que para São Francisco de Sales é sinônimo de perfeição cristã, é o cumprimento do duplo preceito de caridade enunciado por Cristo (Mt 22,34-40). Na *Introdução à Vida Devota*, ele apresenta uma definição detalhada que ecoa a espiritualidade de Luís de Granada:(84) "A verdadeira e viva devoção, Filoteia, pressupõe o amor a Deus; de fato, não é outra coisa senão o verdadeiro amor a Deus, mas não qualquer tipo de amor. Na medida em que o amor divino embeleza nossas almas, ele é chamado graça e nos torna agradáveis à divina Majestade; na medida em que nos dá o poder de fazer o bem, é chamado caridade; mas quando atinge um grau de perfeição em que não apenas nos faz fazer o bem, mas nos faz fazê-lo com cuidado, frequência e prontidão, então é chamado devoção."(85) Embora mencione as boas obras que fluem da verdadeira devoção, São Francisco insiste que a vida devota é essencialmente interior. Além disso, a vida devota será vivida de maneira diferente por pessoas de diferentes vocações ou profissões; cada um deve buscar a perfeição da vida devota de acordo com suas forças pessoais e os deveres de seu estado de vida. **OS ELEMENTOS DA VIDA DEVOTA** Logo após enfatizar o chamado universal de todos os cristãos à perfeição, São Francisco destaca a necessidade de um diretor espiritual. Ele admite que um bom diretor é difícil de encontrar, mas afirma que deve ser um homem de caridade, conhecimento e prudência. Adverte também que a direção espiritual nunca deve impedir a ação do Espírito Santo nem ser um obstáculo à liberdade da alma, pois nem todos são chamados ao mesmo caminho para alcançar a perfeição. Esse conselho ecoa o de Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz. O primeiro passo na vida devota é a purgação do pecado. Nesse ponto, São Francisco segue o ensino de Santo Inácio de Loyola, propondo a meditação sobre os últimos fins e uma confissão geral. Em seguida, é necessário renunciar completamente a todo apego ao pecado, sem o qual não pode haver conversão duradoura nem progresso na perfeição. Para alcançar essa purificação mais profunda, é essencial evitar todas as ocasiões de pecado e envolver-se nos assuntos mundanos apenas quando necessário, nunca por amor às coisas criadas. Embora a alma deva aprender a viver com suas próprias imperfeições, nunca deve aceitar de bom grado os defeitos provenientes do temperamento ou do hábito. Para crescer em virtude, é necessário superar até mesmo as falhas involuntárias. **PRÁTICAS ESPIRITUAIS** Na segunda parte da *Introdução à Vida Devota*, São Francisco propõe uma rotina diária de exercícios espirituais, com ênfase central na oração mental. Esses exercícios incluem: - Oração mental diária; - Orações da manhã e da noite; - Exame de consciência; - Confissão semanal e comunhão frequente; - Leitura espiritual; - Prática do recolhimento interior. O método salesiano de oração mental é simples, claro e breve. Em muitos aspectos, assemelha-se às formas de oração ensinadas por Luís de Granada, Santo Inácio de Loyola e *O Combate Espiritual*. Desde o início, seguindo o ensino de São Bernardo, Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz, Francisco de Sales enfatiza a importância da meditação sobre a vida de Cristo. **SÃO FRANCISCO DE SALES E A VIDA DEVOTA** O que São Francisco de Sales entende por vida devota ou verdadeira devoção? Primeiramente, ele deixa claro que não consiste em graças ou favores extraordinários, afirmando enfaticamente: "Há certas coisas que muitas pessoas consideram virtudes, mas que não o são de forma alguma... Refiro-me a êxtases, arrebatamentos, insensibilidades, impassibilidades, uniões deíficas, elevações, transformações e outras perfeições semelhantes discutidas em certos livros que prometem elevar a alma a uma contemplação puramente intelectual, à aplicação essencial do espírito e a uma vida supereminente... Essas perfeições não são virtudes; são, antes, recompensas que Deus dá pelas virtudes ou pequenos exemplos das delícias da vida futura... No entanto, não se deve aspirar a tais graças, porque elas não são de forma alguma necessárias para amar e servir bem a Deus, que deve ser nosso único objetivo."(82) Em segundo lugar, a verdadeira devoção não consiste em um exercício espiritual específico: "Ouço muito sobre perfeições, mas vejo poucas pessoas que as praticam... Alguns colocam sua virtude na austeridade; outros na abstinência alimentar; alguns na esmola, outros na frequência aos sacramentos da penitência e da Eucaristia; outro grupo na oração, seja vocal ou mental; outros em uma certa contemplação passiva e supereminente; outros nas graças extraordinárias concedidas gratuitamente. E todos eles estão enganados, tomando os efeitos pelas causas, o riacho pela fonte, os ramos pela raiz, o acessório pelo principal, e muitas vezes a sombra pela substância. Quanto a mim, não conheço nem experimentei outra perfeição cristã senão aquela de amar a Deus de todo o coração e ao próximo como a nós mesmos. Toda outra perfeição sem esta é uma falsa perfeição."(83) **A DEFINIÇÃO DE VERDADEIRA DEVOÇÃO** A verdadeira devoção, que para São Francisco de Sales é sinônimo de perfeição cristã, é o cumprimento do duplo preceito de caridade enunciado por Cristo (Mt 22,34-40). Na *Introdução à Vida Devota*, ele apresenta uma definição detalhada que ecoa a espiritualidade de Luís de Granada:(84) "A verdadeira e viva devoção, Filoteia, pressupõe o amor a Deus; de fato, não é outra coisa senão o verdadeiro amor a Deus, mas não qualquer tipo de amor. Na medida em que o amor divino embeleza nossas almas, ele é chamado graça e nos torna agradáveis à divina Majestade; na medida em que nos dá o poder de fazer o bem, é chamado caridade; mas quando atinge um grau de perfeição em que não apenas nos faz fazer o bem, mas nos faz fazê-lo com cuidado, frequência e prontidão, então é chamado devoção."(85) Embora mencione as boas obras que fluem da verdadeira devoção, São Francisco insiste que a vida devota é essencialmente interior. Além disso, a vida devota será vivida de maneira diferente por pessoas de diferentes vocações ou profissões; cada um deve buscar a perfeição da vida devota de acordo com suas forças pessoais e os deveres de seu estado de vida. **OS ELEMENTOS DA VIDA DEVOTA** Logo após enfatizar o chamado universal de todos os cristãos à perfeição, São Francisco destaca a necessidade de um diretor espiritual. Ele admite que um bom diretor é difícil de encontrar, mas afirma que deve ser um homem de caridade, conhecimento e prudência. Adverte também que a direção espiritual nunca deve impedir a ação do Espírito Santo nem ser um obstáculo à liberdade da alma, pois nem todos são chamados ao mesmo caminho para alcançar a perfeição. Esse conselho ecoa o de Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz. O primeiro passo na vida devota é a purgação do pecado. Nesse ponto, São Francisco segue o ensino de Santo Inácio de Loyola, propondo a meditação sobre os últimos fins e uma confissão geral. Em seguida, é necessário renunciar completamente a todo apego ao pecado, sem o qual não pode haver conversão duradoura nem progresso na perfeição. Para alcançar essa purificação mais profunda, é essencial evitar todas as ocasiões de pecado e envolver-se nos assuntos mundanos apenas quando necessário, nunca por amor às coisas criadas. Embora a alma deva aprender a viver com suas próprias imperfeições, nunca deve aceitar de bom grado os defeitos provenientes do temperamento ou do hábito. Para crescer em virtude, é necessário superar até mesmo as falhas involuntárias. **PRÁTICAS ESPIRITUAIS** Na segunda parte da *Introdução à Vida Devota*, São Francisco propõe uma rotina diária de exercícios espirituais, com ênfase central na oração mental. Esses exercícios incluem: - Oração mental diária; - Orações da manhã e da noite; - Exame de consciência; - Confissão semanal e comunhão frequente; - Leitura espiritual; - Prática do recolhimento interior. O método salesiano de oração mental é simples, claro e breve. Em muitos aspectos, assemelha-se às formas de oração ensinadas por Luís de Granada, Santo Inácio de Loyola e *O Combate Espiritual*. Desde o início, seguindo o ensino de São Bernardo, Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz, Francisco de Sales enfatiza a importância da meditação sobre a vida de Cristo. **MÉTODO DE MEDITAÇÃO SEGUNDO SÃO FRANCISCO DE SALES** O corpo principal da meditação consiste na aplicação do intelecto e da vontade ao tema proposto. De forma calma e sem pressa, a mente deve refletir sobre os vários aspectos do mistério apresentado e, assim que encontrar inspiração e prazer em algum ponto, deve pausar e se deter nesse ponto. A meditação, então, produzirá bons movimentos na vontade, tais como: - O amor a Deus e ao próximo, - O zelo pela salvação das almas, - A imitação de Cristo, - A confiança na bondade e misericórdia de Deus. **RESULTADOS DA MEDITAÇÃO** Esses movimentos afetivos devem gerar dois resultados: - **Conversa com Deus**; - **Resoluções práticas para o futuro**. Como o propósito da meditação é o crescimento na virtude e no amor de Deus, São Francisco insiste que a alma não deve se contentar apenas em despertar afetos e conversar com Deus, mas deve formular resoluções específicas para colocar em prática ao longo do dia. Ele escreve: "A tudo isso, acrescentei que se deve colher um pequeno buquê de devoção, e isto é o que quero dizer: ... quando nossa mente considera algum mistério pela meditação, devemos selecionar um ou dois ou três pontos que achamos mais adequados ao nosso gosto e mais úteis para nosso progresso, a fim de recordá-los durante o restante do dia..."(86) São Francisco também oferece conselhos sobre o comportamento após a meditação: buscar uma ocasião para colocar em prática as resoluções; permanecer em silêncio por um tempo; e, então, retomar calmamente os deveres do dia. Retornando à prática da meditação, ele afirma que, embora tenha fornecido um método de procedimento, a alma deve sempre ceder imediatamente a quaisquer inspirações e afetos santos despertados na oração. Os afetos santos nunca devem ser contidos, mas todas as resoluções devem ser feitas apenas ao final da meditação. **A PRÁTICA DAS VIRTUDES** Na terceira parte da *Introdução à Vida Devota*, São Francisco trata da prática das virtudes, selecionando aquelas que são particularmente necessárias ao cristão leigo. Entre todas as virtudes, após a caridade, a virtude predominantemente salesiana é a mansidão. Ele escreve em uma de suas cartas: "Lembre-se da lição principal, aquela que \[nosso Senhor\] nos deixou em três palavras, para que nunca nos esqueçamos e que deveríamos repetir cem vezes por dia: 'Aprendei de mim, pois sou manso e humilde de coração.' Isso é tudo. Basta manter seu coração manso em relação ao próximo e humilde em relação a Deus."(87) Nas duas últimas partes da *Introdução à Vida Devota*, São Francisco aborda temas como tentações, tristeza, consolações e aridez. Ele conclui a obra com uma série de autoexames e considerações que permitem à alma avaliar seu progresso na verdadeira devoção. Assim, em sua totalidade, a *Introdução à Vida Devota* oferece um programa completo para o avanço espiritual dos leigos. Enquanto a *Introdução* foi composta para todos os cristãos de boa vontade, o *Tratado do Amor de Deus* foi dirigido a um grupo mais seleto. Segundo Dom Mackey, ele também revela a alma e o coração de São Francisco de Sales no auge de sua santidade.(88) Contudo, a doutrina contida no *Tratado* nem sempre foi devidamente apreciada, em parte porque jansenistas, quietistas e Fénelon tentaram usar os ensinamentos de São Francisco para defender seus erros. Ainda segundo Dom Mackey, até mesmo Bossuet prejudicou o ensino de São Francisco ao tentar refutar os erros de Fénelon.(89) Como resultado, São Francisco não exerceu a influência na escola francesa que poderia ter tido. O objetivo do *Tratado* é traçar o progresso da alma de seu estado de queda até as alturas do amor divino, que constituem a perfeição e a santidade cristãs. São Francisco fornece explicações psicológicas necessárias para compreender a teologia do amor. Ele desenvolve o tema da origem divina do amor, mostrando que o amor do homem por Deus é uma participação na eterna caridade do próprio Deus. E, dado que é da natureza do amor crescer ou enfraquecer, São Francisco trata do crescimento na caridade, que pode ser promovido até mesmo pelas ações mais insignificantes; dos obstáculos à caridade; e das várias maneiras pelas quais a alma pode abandonar o amor divino pelo amor às criaturas. Ele enfatiza a distinção entre o amor de complacência e o amor de benevolência, afirmando que o primeiro é próprio da glória, onde o amor se experimenta em contemplação e repouso, enquanto o segundo é próprio da alma nesta vida. Ao falar da oração mística e das experiências extáticas que podem acompanhá-la, São Francisco, que constantemente expressou receio de ilusões e repugnância por fenômenos místicos,(90) parece escrever sobre algo que ele mesmo experimentou. Contudo, a vida de caridade não consiste exclusivamente no deleite da oração mística; inclui também obediência e sofrimento. Assim, São Francisco discute o "amor de conformidade", pelo qual a alma obedece aos mandamentos, conselhos e inspirações particulares, e a "união da nossa vontade com a vontade divina de bom prazer", pela qual a alma aceita o sofrimento. O *Tratado* termina com um resumo da teologia da caridade. São Francisco discute os preceitos do amor a Deus e ao próximo; a caridade como vínculo e impulso de todas as virtudes; os dons e frutos do Espírito Santo; e sugestões precisas para realizar as ações da maneira mais perfeita possível. Do ponto de vista doutrinal, uma das contribuições mais significativas de São Francisco de Sales à teologia espiritual foi unificar toda a moralidade e santidade cristã sob o vínculo da caridade. Essa doutrina, embora explicitamente ensinada por Santo Tomás de Aquino(91) e outros teólogos medievais, necessitava ser reafirmada no tempo de São Francisco, destacando que a perfeição cristã não consiste em qualquer exercício ou prática particular, mas no amor a Deus e ao próximo. Poucos autores trataram da caridade e das outras virtudes com maior unção e poder de persuasão. Outra contribuição importante foi a insistência de que a perfeição da caridade é a vocação de todos os cristãos, independentemente de sua vocação ou estado de vida. Por fim, ele explicou detalhadamente dois exercícios fundamentais para a vida cristã: a prática da oração mental e o cultivo das virtudes adequadas ao estado de vida de cada um. São Francisco de Sales pode ser justamente chamado de pai da espiritualidade moderna, embora eventos históricos tenham limitado o alcance de sua influência a um nível aquém do desejado. [BAIXAR ESPIRIT...TINA.pdf](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000180-45fda45fdb/ESPIRITUALIDADE%20P%C3%93S-TRIDENTINA.pdf?ph=4df81238fe) --- - Cf. P. Pourrat, *Christian Spirituality*, tr. W. H. Mitchell, 3 vols., Newman Press, Westminster, Md., 1953. - P. Pourrat, *op. cit*., Vol. 3, p. v. - Cf. *Gargantua*, 5, 47. - Cf. Erasmus, *Enchiridion militis christiani*, 5, 40, 8. - Cf. Guigo I, *Scala claustralium,* PL 184, 476; Aelred, *De Vita eremetica*, PL 32, 1461; David of Augsburg, *De exterioris et interioris hominis compositione*, Quaracchi, 1899. - Cf. P. Pourrat, *op. cit*., Vol. .3, pp. 4-22. - Cf. P. Pourrat, *op. cit*., Vol. 3, p. 13. - J. W. Gransfort, *Tractatus de cohibendis cogitationibus et de modo constituendarum meditationum*, in *Opera omnia*, Amsterdam, 1617. - *Rosetum exercitiorum spiritualium et sacrarum meditationum*, Paris, 1494. The *Rosetum* was widely circulated and reprinted in many places. - Cf. H. Watrigant, *Quelques promoteurs de la méditation méthodique au XVe siècle*, Enghien, 1919. - Cf. I. Tassi, *Ludovico Barbo* (1381-1483) Rome, 1952; M. Petrocchi, *Una "devotio moderna" nel Quattrocento italiano? ed. altri studi*, Florence, 1961. - Cf. the excellent study by A. Huerga, "La vida cristiana en los siglos XV-XVl," in *Historia de la Espiritualidad*, ed. B. Duque--L. S. Balust, Juan Flors, Barcelona, 1969, Vol. I, pp. 34-41. - Cf. N. Barbato, *Ascetica dell'orazione in S. Lorenzo Giustiniani*, Venezia, 1960. - Cf. E. Allison Peers, *Studies of the Spanish Mystics*, London, 1930, Vol. 2, pp. 3-37. - This is in the tradition of St. Bonaventure and Richard of St. Victor. Some authors add two more degrees of unitive love: sense of security and perfect tranquillity. - Cf. L. Blosius, *The Book of Spiritual Instruction*, London, 1925, chap. 5. - Few of the Christian humanists were concerned explicitly with spiritual theology. Pico della Mirandola, who died at the age of thirty-one (1494), wrote the *manifesto* of Christian humanism, of which thirteen theses were declared heretical. Lefevre, the greatest French humanist, wrote commentaries on part of the Bible and on pseudo-Dionysius; he also translated and commented on the works of Aristotle. Luther used the works of Lefevre to defend his doctrine on justification by faith alone. Cf. F. Robert, *L'humanisme essai de définition*, Paris, 1946. - Cf. R. G. Villosleda, "Erasme," in *Dictionnaire de Spiritualité*, Vol. 4, pp. 925-936; *Opera omnia*, Leyden, 1703, 10 vols.; *Opus epistolarum*, ed. P. S. Allen and H. M. Allen, Oxford, 1906-1947. - Cf. P. Pourrat, *op. cit*., Vol. 3, pp. 59-62. - Cf. P. Pourrat, *op. cit*., Vol. 3, pp. 72-79. - M. Bremond, *Histoire littéraire du sentiment réligieux en France*, Paris, 1916, Vol. 1, pp. 10-12, passim. - Cf. G. de Guibert, *Ignace mystique*, Toulouse, 1950; H. Rahner, *Ignaz von Loyola and das geschichtliche Werden seiner Frommigkeit*, Vienna, 1947; H. Pinard de la Boullaye, *La spiritualité ignatienne*, Paris, 1949. - Cf. I. Iparraguirre, *Historia de la Espiritualidad*, Vol. 2, pp. 210-211. For further details on the life and spirituality of St. Ignatius, see P. de Leturia, *Estudios ignacianos*, 2 vols., Rome, 1957. The standard critical edition of the Exercises is found in *Obras completas de san Ignacio de Loyola*, ed. I. Iparraguirre, and C. de Dalmeses, Madrid, 3rd corrected ed. 1963. For bibliographies, see I. Iparraguirre, *Orientaciones bibliográficas sobre san Ignacio de Loyola*, Rome, 1957. - According to F. Charmot, the teaching of St. Ignatius Loyola is based on two fundamental theological principles: "without me you can do nothing" and the necessity of cooperation with God's grace. The second principle is developed in the *Spiritual Exercises*. Cf. *Ignatius Loyola and Francis de Sales*, B. Herder, St. Louis, Mo., 1966, p. 41. - Cf. I. Iparraguirre, *op. cit*., pp. 207-230. - For further details on the life and works of St. Teresa, cf. St. Teresa, *The Life*, tr. E. Allison Peers, Sheed & Ward, New York, N.Y., 1946; Silverio de Santa Teresa, *Saint Teresa of Jesus*, tr. Discalced Carmelite, Sands, London, 1947; W. T. Walsh, *Saint Teresa of Avila*, Bruce, Milwaukee, Wis., 1954; E. Allison Peers, *Handbook to the Life and Times of St. Teresa and St. John of the Cross*, Newman, Westminster, Md., 1954. - Cf. M. Menéndez y Pelayo, *Historia de los Heterodoxos Españoles*, Madrid, 1880, Vol. 2; E. Allison Peers, *Spanish Mysticism, a Preliminary Survey*, London, 1924; A. Huerga, "La vida cristiana en los siglos XV-XVI, " in *Historia de la Espiritualidad*, pp. 75-103. - For information on the autographs and various editions of the works of St. Teresa, cf. *Obras Completas*, ed. E. de la Madre de Dios, Madrid, 1951. For English translations, cf E. Allison Peers, *The Complete Works of St. Teresa*, 3 vols. Sheed & Ward, New York, N.Y., 1946, and *The Letters of St. Teresa*, 2 vols., London, 1951; K. Kavanaugh-O. Rodriguez, *The Collected Works of St. Teresa of Avila*, 2, vols., ICS, Washington, D.C., 1976-1980. - Cf. P. Eugene-Marie, *I Want to See God*, tr. M. Verde Clare, Chicago, Ill., 1953. - Cf. *The Way of Perfection*, chap. 28. - For a comparative study of St. Teresa's terminology regarding passive recollection and the prayer of quiet, cf. E. W. T. Dicken, *The Crucible of Love*, New York, N.Y., 1963, pp. 196-214. Most authors prefer to speak of passive recollection and the prayer of quiet as specifically distinct: cf. J. G. Arintero, *Stages in Prayer*, tr. K. Pond, St. Louis, Mo., 1957, pp. 24-27; 36-44. - Cf. *The Interior Castle*, E. Allison Peers tr. Vol. 2, pp. 253-258; 264-268; *The Life*, E. Allison Peers tr., Vol. I, pp. 105-110. - Cf. *The Interior Castle*, E. Allison Peerstr., Vol. 2, pp. 324-326. - Cf. *The Interior Castle*, E. Allison Peers tr., Vol. 2, pp. 287. - Cf. *ibid.*, E. Allison Peers tr., Vol. 2, pp. 333-334. - Cf. *The Way of Perfection*, E. Allison Peers tr., Vol. 2, p. 129. For studies on the teaching of St. Teresa, E. Allison Peers, *Studies of the Spanish Mystics*, Vol. I, New York and Toronto, 1927; E. W. T. Dicken, *The Crucible of Love*, New York, N.Y., 1963; J. G. Arintero, *Stages in Prayer*, tr. K. Pond, St. Louis, Mo., 1957; P. Marie-Eugene, *I Want to See God*, tr. M. Verda Clare, Chicago, Ill., 1953, and *I am a Daughter of the Church*, tr. M. Verda Clare, Chicago, Ill., 1955. - Cf. *Book of Foundations*, E. Allison Peers tr., Vol. 3, p. 23. - Cf. *ibid., loc. cit*. - Cf. *The Way of Perfection*, E. Allison Peers tr., Vol. 2, pp. 15-21; 30-37; 57-59. - Cf. A. Huerga, "Introduction" to Louis of Granada, *Summa of the Christian Life*, tr. J. Aumann, B. Herder, St. Louis, Mo., 1954, Vol. 1; M. Menéndez y Pelayo, *Historia de los heterodoxos españoles*,.ed. BAC, Madrid, 1951, pp. 4-59. - For further details on life of St. John of the Cross, cf M. del Niño Jesús, *Vida y Obras de San Juan de la Cruz*, Madrid, 1950; E. Allison Peers, *Spirit of Flame*, London, 1943; C. de Jesús Sacramentado, *The Life of St. John of the Cross*, London, 1958; G. of St. Mary Magdalen, *St. John of the Cross*, Mercier, Cork, 1947. - Cf. K. Kavanaugh-O. Rodriguez, *The Collected Works of St. John of the Cross*, Doubleday, New York, N.Y., 1964, pp. 54-56. - Cf. C. de Jesús, *San Juan de la Cruz: su obra científica y literaria*, Avila, 1929, Vol. I , p. 51. - *The Ascent of Mount Carmel*, Book I, chapter 2, no. I. - Cf. *ibid.*, Book I, chap. 3, no. 4. - Cf. *ibid.*, Book I, chap. 13, nos- 3-4. - *The Ascent of Mount Carmel*, Book 2, chap. 13, nos. 2-4. Cf. K. Wojtyla (Pope John Paul II), *Faith according to St. John of the Cross*, tr. J. Aumann, Ignatius Press, San Francisco, Calif, 1981. - Cf. *ibid.*, Book 2, chap. 5. - *The Living Flame of Love*, Stanza I. - *The Collected Works of St. John of the Cross*, tr. K. Kavanaugh-O. Rodriguez, p. 585. - Cf. M. Menéndez y Pelayo, *op. cit*., pp. 4-59. - The complete edition of the three *Primers* (*Abecedarios*) was published at Seville in 1554 and the first one written, that of 1527, is placed third in the complete edition. The other two, written in 1528 and 1530, treat of the passion of Christ and ascetical matters. Cf. *Neuva biblioteca de autores españoles*, Madrid, 1911, Vol. 16; F. de Res, *Un mâitre de sainte Thérèse: le P. François d'Osuna*, Paris, 1936; E. Allison Peers, Studies of the Spanish Mystics, Vol. 1, pp. 77-131. For an English version, cf. Francisco de Osuna, *The Third Spiritual Alphabet*, Paulist Press, New York, N.Y., 1983. - Cf. F. de Ros, *Un inspirateur de S. Thérèse: Le Frère Bernardin de Laredo*, Paris, 1948; K. Pond, "Bernardino de Laredo," in *Spirituality through the Centuries*, ed. J. Walsh, Kenedy, New York, N.Y., 1964; *The Ascent of Mount Sion*, tr. E. Allison Peers, London, 1952, which contains only the third part on contemplative prayer. See *Vida* 27; E. Allison Peers tr. Vol. 1, 171. - *The Life*, E. Allison Peers tr., Vol. 1, p. 194. - Cf. A. Huerga, "Introduction" to *Summa of the Christian Life*, tr. J. Aumann, St. Louis, Mo., 1954-1958, 3 vols. This work is now available from TAN Books, Rockford, Ill. - Cf. *Obras Completas*, ed. L. S. Balust, 2 vols., Madrid, 1952-1953; A. Huerga, *El Beatojuan de Avila*, Rome, 1963; E. Allison Peers, *Studies of the Spanish Mystics*, Vol. 2. - *Los Nombres de Cristo* was published at Salamanca in 1583; for an English version, cf. *The Names of Christ*, tr. E. J. Schuster, B. Herder, St. Louis, Mo., 1955. - Cf. E. Allison Peers *op. cit*. - Cf. P. de Leturia, *Estudios ignacianos*, Rome, 1957, Vol. 2. - His exact words were: "Instituti nostri rationi minus videntur congruere. " - Cf. B. Alvarez, *Escritos espirituales*, ed. C. M. Abad and F. Boado, Barcelona, 1961, pp. 134-160. See *Vida* 28, 33; E. Allison Peers tr. Vol. 1, 185-186; 224-225. - Cf. L. de la Puente, *Vida del V. F. Báltasar Alvarez*, Madrid, 1615. - Cf. P. de Leturia, *op. cit*., p. 321. - Cf. J. Nonell, *Obras espirituales del Beato Alonzo Rodriguez*, 3 vols. Barcelona, 1885; V. Segarra, *Autobiografía. San Alonso Rodriguez*, Barcelona, 1956; *The Autobiography of St. Alphonsus Rodriguez*, tr. W. Yeomans, London, 1964. - A Rodriguez, *The Practice of Perfection and Christian Virtues*, tr. J. Rickaby, 3 vols., Chicago, Ill., 1929. - Cf. *Meditaciones de los misterios de la nuestra santa fe*, Valladolid, 1605. - Cf. *Vida del Báltasar Alvarez*, Madrid, 1612, p. 14. - Cf. *De inquisitione pacis*, 5. - The Carmelite writers, John of Jesus-Mary (+ 1615), Thomas of Jesus (+ 1627) and Joseph of the Holy Spirit (+ 1674), were principally responsible for introducing the argument on the distinction between acquired and infused contemplation. Later, another Carmelite, Joseph of the Holy Spirit (+ 1730), published a lengthy theological synthesis entitled *Cursus theologiae mystico-scholasticae* in six volumes. - Melchior Cano, the ruthless Spanish inquisitor, considered John Baptist da Crema to be as "dangerous" as Tauler and Herp. - The work has sometimes been attributed to the Spanish Benedictine, John Castañiza, or the Italian Jesuit, Achille Gagliardi, but there seems to be little doubt that the work comes from the Italian school of the Theatines. The first edition appeared at Venice in 1589. The treatise was enlarged in later editions. - The works of St. Magdalen were published by the Carmelite, Laurence Brancaccio, under the title, *Opera di Santa Maria Maddalena de Pazzi carmelita di S. Maria di Firenze*, Florence, I 6o9. A later edition at Florence (1893) includes her letters. - See *Lettere*, ed. C. Guasti, Prato, 1861. - Cf. Cardinal Capecelatro, *Vie de saint Philippe de Néri*, tr. H. Bézin, Paris, 1889, Vol. I, p. 512. - Bayle, *Vie de saint Philippe de Néri*, Paris, 1859, p. 247. - Cf. Cardinal Capecelatro, *op. cit*., Vol. I, p. 483. - Cf. F. von Hügel, *The Mystical Elements of Religion as Studied in Saint Catherine of Genoa and her Friends*, 2 vols., London, 1908. - P. Pourrat, *Christian Spirituality*, Vol. 3, p. 272. - P. Hughes, *A Popular History of the Catholic Church*, Garden City, New York, N.Y., 1954, p. 196. - For details on the life of St. Francis de Sales, cf. H. Burton, *The Life of St. Francis de Sales*, London, 1925-1929, M. de la Bedoyere, *François de Sales*, New York, N.Y., 1960; M. Henry-Coüannier, *Francis de Sales and His Friends*, tr. V. Morrow, Staten Island, New York, N.Y., 1964; F. Trochu, *S. François de Sales*, Lyon-Paris, 1941-1942, 2 vols.; M. Trouncer, *The Gentleman Saint: St. François de Sales and His Times*, London, 1963. - Cf. M. de la Bedoyere, *op. cit*., p. 9. *Oeuvres de Saint François de Sales* (Annecy 1892-1964) 27 v., published under the direction of the Visitandines at Annecy, with introductory material by Dom B. Mackey, O.S.B. - Cf. *Oeuvres* 3, 131. - Quoted from *St. Francis de Sales* by Bishop Jean-Pierre Camus. Cf. F. Charmot, *Ignatius Loyola and Francis de Sales*, tr. M. Renelle, St. Louis, Mo., 1966, p. 7. - Cf. L. Granada, *Libro de la Oración y Meditación*, 2, 1. - *Oeuvres*, 3, 14. - Cf. *Oeuvres*, 3, 82-83. - Cf. *Oeuvres*, 13, 358. - Cf. *Oeuvres*, Vol. 4, Introduction. - Cf. *Oeuvres*, Vol. 4, p. vii. - Cf. *Oeuvres*, 3, 109; 131-132. - Cf. *Summa Theologiae*, IIa IIae, q. 23, art. 4-8. # O CARMELO DESCALÇO E O ESOTERISMO: PARTE 2 - O Castelo Interior ou Moradas de S. Teresa D'Ávila 05/01/2025 *Autora: Julienne McLean* *Tradução: Prof. Gabriel Sapucaia* ![](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000189-343bc343be/bernini-santa-teresa-frame_1_.jpeg?ph=4df81238fe) ##### **Rumo à União Sagrada: A Jornada Mística da Alma** **Prefácio** Gostaria de apresentar os escritos espirituais, experiências e orientações da santa e mística cristã, Santa Teresa de Ávila, que viveu na Espanha do século XVI. Meu objetivo é explorar seus escritos sob várias perspectivas inclusivas. Primeiramente, buscarei situar alguns de seus escritos em um amplo contexto espiritual e histórico, a fim de demonstrar conexões e inter-relações entre as tradições místicas cristã, sufista e judaica. Em segundo lugar, abordarei com certo detalhe os escritos de Santa Teresa sobre as sete moradas da alma, contidos na obra-prima mística *O Castelo Interior*, escrita no final de sua vida. A busca do místico pela união com Deus tem sido tradicionalmente simbolizada por uma jornada ou passagem por sete câmaras interiores – expressas como moradas, estações, palácios ou salões – que sempre fizeram parte de um padrão mais abrangente de simbolismo religioso adotado por cristãos, judeus e muçulmanos ao longo da história. Cada tradição mística fala sobre a "jornada em Deus" – do intenso anseio por Deus e da devoção da alma a Ele – de entrega e purificação, de renúncia e abandono resolvidos na união pelo Amor. Diz-se que todos os místicos se reconhecem mutuamente porque vêm do mesmo país. Contudo, por trás da multiplicidade de formas religiosas, ideias e expressões dessa jornada, há apenas um Deus e apenas uma "jornada em Deus". Há conexões e semelhanças notáveis entre as experiências, ideias e escritos de Santa Teresa e as tradições místicas judaica e sufista. Para explorar algumas dessas conexões, será útil examinar a fase inicial da tradição mística judaica conhecida como tradição Merkabah, juntamente com trechos do *Zohar*, que pertencem à tradição cabalística medieval, a respeito dos sete Salões do Céu. Em seguida, farei referência a escritos iniciais dos místicos e poetas sufistas sobre as sete estações do coração. **Tradição Merkabah** Na tradição mística judaica, desde os tempos antigos – através da tradição Merkabah e Hekhalot até a Cabala medieval e aos dias atuais – há um tema constante que se refere ao místico que viaja até o Trono de Deus por meio do reino mitológico ou espiritual dos sete céus. A fase mais antiga do misticismo judaico, antes de sua cristalização na Cabala medieval, é a mais longa – do século I a.C. ao século X d.C. – e é conhecida como tradição Merkabah, misticismo do Carro ou do trono. Ela se desenvolveu a partir de especulações sobre as visões proféticas do Antigo Testamento, principalmente em Gênesis, Ezequiel, Isaías e Reis. Tipicamente, durante esse período inicial, o visionário ou místico era levado ao reino celestial e percebia o Santo ou Rei Divino sentado em um trono, sustentado por um carro em um firmamento de cristal, cercado por fogo, pelos querubins e pelas quatro criaturas viventes. A primeira apresentação abrangente da mística Merkabah, ou do Carro, está contida nos escritos visionários conhecidos como os livros Hekhalot. Essa literatura, datada do século III ao X, elabora os temas essenciais das visões proféticas do Antigo Testamento. Principalmente, baseia-se nos primeiros capítulos de Gênesis e Ezequiel. Esses escritos visionários consistem em descrições de certos *hekhalot*, ou salões ou palácios celestiais. O desejo mais profundo do místico era alcançar esse reino, durante a ascensão aos céus, para contemplar o esplendor da Shekinah e a majestade do Santo. O gnóstico, ou místico, percorria uma série de sete câmaras, ou palácios, concebidos como uma série de círculos concêntricos, e na sétima e mais interior câmara encontrava o trono da Glória Divina de Deus. **Tradição Cabalística** Os séculos XII e XIII foram o período formativo para o crescimento criativo da Cabala, particularmente na Espanha e na Provença. O *Zohar* – o grande comentário místico e espiritual judaico que epitomiza a Cabala espanhola – foi compilado no final do século XIII por Moisés de Leon, mas é geralmente aceito como obra de vários autores. Os autores do *Zohar* basearam-se em uma ampla gama de fontes e certamente fizeram referência a materiais provenientes do fluxo anterior do misticismo judaico, que é reavaliado e reinterpretado. O *Zohar* é escrito em forma pseudo-epigráfica, descrevendo os ensinamentos do Rabino Simeão ben Yohai, que viveu na Palestina no século II. No texto, a experiência visionária é colocada na boca do mestre que, ao libertar momentaneamente sua alma do corpo, experimentou uma magnífica revelação na forma dos sete Palácios do Paraíso, juntamente com seus contrapartes, os Sete Palácios do Inferno. O que é revelado é um sistema que se baseia nos ensinamentos anteriores de *Hekhalot* para seu simbolismo essencial, ao mesmo tempo que mostra a influência da tradição cabalística em desenvolvimento e as novas ideias sobre o mistério do carro. É muito evidente no texto o movimento de afastamento das preocupações sobrenaturais ou mágicas dos escritos anteriores da tradição Merkabah, com maior ênfase na oração, meditação, contemplação mística e no desenvolvimento de qualidades éticas e morais, frequentemente mencionadas como pré-requisitos para a compreensão dos segredos dos sete palácios. É dito que as orações de uma pessoa justa e sincera são levadas de um palácio ou morada para o próximo pelos serafins, até serem apresentadas diante do Rei dos Reis e transformadas em joias para sua coroa. No *Zohar*, os sete salões são habitados por hostes de espíritos, luzes, rodas, serafins e anjos, que irradiam Luz e estão interligados. Os salões celestiais atuam como uma espécie de ponte entre as forças de emanação e o cosmos material. O objetivo dos palácios celestiais é preservar a *Shekinah*, cuidando tanto dos mundos superiores quanto do nosso próprio mundo. No *Zohar*, o Primeiro Salão do Céu é descrito como um "pavimento de safira sob Seus pés", onde se diz que sua "Luz, que nunca repousa, é como a luz do sol na água, que ninguém pode dominar, exceto pela devoção que o justo demonstra na oração que adentra o salão." O Segundo Salão do Céu é chamado de essência do Céu, ou o Resplendor. O Terceiro Salão do Céu é descrito como o mais claro e puro dos salões inferiores, sendo chamado de Salão do Esplendor. O Quarto Salão é o Salão do Mérito. O Quinto Salão é o Salão do Amor, que, segundo o texto, "tem existência perpétua e está oculto no mistério dos mistérios para aquele que precisa nele se apegar." O Sexto Salão é o Salão da Benevolência (*Tishby*, 1949, p. 597–611). O *Zohar* descreve o Sétimo Salão Celestial como sendo: "sem forma visível, sendo o mais elevado e misterioso de todos, envolto por um véu que o separa de todas as outras esferas e mansões... É então que todos os espíritos, como luzes menores, se fundem com a grande luz divina e, ao adentrarem o véu do Santo dos Santos, são inundados pelas bênçãos que dele procedem como águas de uma fonte inesgotável e sempre fluente. Nesta mansão está o grande Mistério dos Mistérios, o mais profundo, mais sublime e além de toda a compreensão e entendimento humanos, a Vontade eterna e infinita." (*Green*, 1989, p. 92). Em contraste com o objetivo dos primeiros místicos da tradição Merkabah, a condição ideal agora buscada pelo místico era uma união amorosa ou comunhão com a Divindade, uma fusão harmoniosa das vontades humana e Divina, culminando em êxtase e simbolizada pelo "Beijo de Amor." Este "Beijo," que une a alma a Deus, é geralmente atribuído ao sétimo palácio e é dito ser de tal intensidade que pode levar a alma a deixar o corpo e unir-se a Deus, chegando até a causar a morte física. Santa Teresa também fala de experiências extáticas intensas em que a alma parece ser arrebatada do corpo e elevada à comunhão com a Divindade; e caracteriza essas experiências como traumáticas o suficiente para envolver o perigo de morte. Santa Teresa também descreve, assim como o *Zohar*, o Beijo com o qual o Rei Divino consuma o Matrimônio Espiritual na sétima morada de seu "castelo interior." **Tradição Sufi** Há uma longa tradição na literatura mística islâmica de descrever a experiência religiosa em termos de sete castelos concêntricos. Muitos textos, alguns datando do século IX, utilizam essa imagem, que em alguns casos apresenta semelhanças impressionantes com as sete moradas de Santa Teresa. No século XVI, um desses textos é o livro místico conhecido como *Nawadir*, uma compilação de histórias e pensamentos religiosos atribuídos a Ahmad al-Qalyubi, onde são descritos sete castelos, cada um dentro do outro. Nesse texto, a alma que aspira à contemplação é concebida como se movendo ou evoluindo por sete graus de perfeição, que se assemelham a castelos ou moradas concêntricas, e no sétimo e mais interior habita Deus, onde a união extática é alcançada. No *Nawadir*, os castelos são descritos da seguinte forma: "Deus colocou para cada filho de Adão sete castelos, dentro dos quais Ele está, e fora dos quais Satanás ladra como um cão. Quando o homem permite que uma brecha seja aberta em um deles, Satanás entra por ela. O homem deve, portanto, vigiar com o maior cuidado e guardar os castelos, especialmente o primeiro deles, pois enquanto este permanecer íntegro e firme em seus alicerces, não há mal a temer. O primeiro dos castelos, que é de pérola branquíssima, é a mortificação da alma sensível. Dentro dele, há um castelo de esmeralda, que é a pureza e a sinceridade de intenção. Dentro deste, há um castelo de porcelana brilhante e reluzente, que é a obediência aos mandamentos de Deus, tanto os positivos quanto os negativos. Dentro deste castelo, há um castelo de rocha, que é a gratidão pelos dons Divinos e a entrega à vontade Divina. Dentro deste castelo, há ainda outro, de ferro, que é entregar tudo nas mãos de Deus. Dentro deste, há um castelo de prata, que é a fé mística. E dentro deste, há um castelo de ouro, que é a contemplação de Deus – glória e honra a Ele! Pois Deus – louvado seja! – disse: 'Satanás não tem poder sobre aqueles que creem e confiam em Deus.'" (*Lopez – Baralt*, 1992, p. 108). O documento sufi mais antigo a apresentar tratados sobre os sete castelos concêntricos data do século IX. É o *Maqamat al-qulub* ou "Estações do Coração", de Abu l-Hasan Nuri de Bagdá. Nesse texto, Nuri ilustra o caminho que a alma deve percorrer para alcançar Deus e emprega o símbolo dos sete castelos concêntricos para fazê-lo. É extraordinário como Nuri prefigura precisamente o *Nawadir* e utiliza metáforas religiosas semelhantes às que Santa Teresa elaboraria oito séculos depois. Em ambos, o caminho místico da alma é concebido como as sete moradas ou câmaras sucessivas representadas por castelos ou mansões concêntricos, onde, nos estágios iniciais, a alma aspirante é mortificada até que o castelo ou mansão mais interior seja alcançado, onde Deus é finalmente possuído. Aqui, Nuri descreve *"Os Castelos do Coração do Crente"*: "Sabei que Deus – louvado seja! – criou no coração dos crentes sete castelos cercados por muralhas. Ele ordenou que os crentes habitassem dentro desses castelos e colocou Satanás do lado de fora, latindo para eles como Deus ladra. O primeiro castelo fechado é de coríndon e é o conhecimento místico de Deus – louvado seja! – e em torno desse castelo há um castelo de prata, que é a fidelidade em palavra e ação; e em torno desse castelo há um castelo de ferro, que é a entrega à vontade divina – bendita seja a Divindade! – e em torno desse castelo há um castelo de bronze, que é o cumprimento dos mandamentos de Deus – louvado seja! – e em torno desse castelo há um castelo de alúmen, que é guardar os mandamentos de Deus, tanto os positivos quanto os negativos; e em torno desse castelo há um castelo de argila cozida, que é a mortificação da alma sensível em cada ação." (*Lopez – Baralt*, 1992, p. 111–112). No século XII, o famoso poeta místico persa Farid ad-din Attar escreveu sobre os sete vales do Caminho em seu poema épico *A Conferência dos Pássaros*. Attar descreveu os estágios enfrentados pelo peregrino em sua "jornada em Deus", o que, novamente, revela semelhanças notáveis com as descrições de outros mestres e místicos. Ele descreveu como uma jornada extremamente perigosa – *"De todo o exército que partiu, quantos poucos sobreviveram... nem um em cada mil almas chegou – em cada cem mil, uma sobreviveu"* (*'Attar*, 1984, p. 214). O primeiro estágio é o Vale da Busca; o início da purificação interior, da busca e da renúncia ao "mundo, ao poder e a tudo o que se possui" (*ibid.*, p. 167). O Vale do Amor segue, onde ele descreve um desejo mais profundo, uma entrega e um ardor interior no coração do peregrino – *"O amante é um homem que arde e queima, cujo rosto está febril, que em frenesi anseia."* As faculdades da mente e da razão sozinhas são cada vez mais frustradas – *"O amor aqui é fogo; sua espessa fumaça nubla a mente – quando o amor chega, o intelecto foge"* (*ibid.*, p. 172). O terceiro estágio é o Vale da Compreensão do Mistério. Essa apreensão mais profunda dos mistérios espirituais, enfatiza Attar, é diferente para cada peregrino, dependendo de "suas qualidades e estado específicos." Barreiras interiores e véus começam a ceder, abrindo caminho para uma percepção e discernimento espirituais mais profundos, de modo que *"quando a luz do Sol da Verdade clareia o ar superior, cada peregrino vê que é bem-vindo lá"* (*ibid.*, p. 180). O Vale do Desapego vem em seguida, onde há uma separação crescente das identificações e apegos mundanos. Attar escreve sobre uma entrega e renúncia ainda maiores do Eu a Deus, onde *"todas as pretensões, toda luxúria por significado desaparecem"* e uma perspectiva muito mais grandiosa e universal da vida emerge – *"se todas as estrelas e céus viessem à ruína, seriam como a queda de uma folha seca"* (*ibid.*, p. 185). **O Vale da Unidade é então atravessado.** Por meio de uma longa renúncia e transformação interior, a diferença e a diversidade parecem se dissolver – *"os muitos aqui se fundem em um; uma forma envolve o multifário e denso enxame"* (*ibid.*, p. 191). O sexto vale é o Vale da Perplexidade. Aqui, a plenitude do Amor domina o coração do peregrino de forma ainda mais completa, deixando-o ainda mais confuso e incerto – *"meu coração está vazio, mas cheio de Amor; meu próprio amor é para mim incrível"* (*ibid.*, p. 197). O local final é o Vale da Pobreza e do Nada, onde o peregrino está *"manco e surdo, a mente se foi; você entra em um esquecimento obscuro"* que *"as palavras não podem expressar"* (*ibid.*, p. 203). Ele escreve que *"Aquele que se afunda neste mar é abençoado e, na perda de si mesmo, alcança o descanso eterno"* (*ibid.*) e conclui: **Primeiro, perca a si mesmo, depois perca esta perda e então Retire-se de tudo o que perdeu novamente – Vá em paz e progrida passo a passo Até alcançar os reinos do Nada; Mas, se você se apegar a qualquer traço mundano, Nenhuma notícia chegará a você daquele lugar prometido.** (*'Attar*, 1984, p. 205) **Santa Teresa de Ávila** Agora pretendo explorar os escritos de Santa Teresa sobre as sete moradas da alma, contidos em *O Castelo Interior*. Esta foi sua obra mais madura sobre a vida mística, e ela a considerava a melhor. É nesta obra que Teresa fala com maior autoridade sobre suas próprias experiências interiores e discorre sobre espiritualidade com uma segurança e maturidade que não se encontram em seus outros escritos. Parece haver muitos elementos comuns com as tradições místicas judaica e sufista, no que diz respeito à expressão da jornada mística como uma passagem por sete câmaras interiores do coração e da alma. Em primeiro lugar, gostaria de fornecer alguns detalhes pessoais de sua vida para situá-la em um contexto histórico. Teresa era de ascendência judaica, sua família paterna originária de Toledo. Ela nasceu em 1515, em uma família nobre castelhana, e faleceu em 1582. Canonizada quarenta anos após sua morte, foi conhecida popularmente em vida como a Santa Madre. Sua criação foi típica para uma mulher de sua família e posição: frequentou uma escola de convento e foi chamada para a vida religiosa desde cedo, ingressando em um convento carmelita aos 21 anos. Teresa considerava parte de seu destino reformar a Ordem Carmelita. Muitas ordens religiosas, em meados do século XVI, estavam se tornando cada vez mais decadentes, com maior interesse e apego ao status social e econômico do que à vida espiritual mais profunda. Era a véspera da Reforma e o início de mudanças religiosas massivas em toda a Europa. Aos 46 anos, após 20 anos em um mosteiro carmelita, Teresa iniciou suas reformas fundando a ordem dos Carmelitas Descalços. Isso envolveu grandes dificuldades, exigindo profunda fé e confiança na ajuda e orientação divina, sendo auxiliada por São João da Cruz. Essencialmente, foi um retorno aos ideais e práticas originais dos eremitas do Monte Carmelo, na Galileia: uma vida mais rigorosa de oração, solidão e simplicidade na vida espiritual. **O Castelo Interior** Sua obra-prima mística, *O Castelo Interior*, foi escrita em 1577, cinco anos antes de sua morte. Ela foi ordenada a escrevê-la por seus confessores, contra sua vontade. Originalmente, era destinada apenas às mulheres de sua própria ordem e foi escrita ao longo de três meses no mosteiro dos Carmelitas Descalços em Toledo. Santa Teresa descreve o progresso espiritual entre as sete moradas que, em resumo, representam três principais estágios na vida de interiorização e oração. - **As três primeiras moradas** concentram-se no que podemos fazer para nos mover em direção às moradas interiores onde Deus habita – crescer no amor ao próximo, renunciar ao julgamento dos outros, buscar o autoconhecimento, praticar a humildade e interiorizar o desejo por Deus. - **A quarta morada** é um estágio de transição, onde a alma começa a responder ao toque divino e Deus começa a tomar o controle. - **As moradas mais interiores** são onde Deus purifica progressivamente a alma à Sua semelhança, culminando no estado de matrimônio espiritual. Este percurso místico reflete sua profunda fé e experiência, tornando-se um legado espiritual que transcende gerações, inspirando aqueles que buscam uma relação mais íntima com Deus. **Primeira Morada** Santa Teresa descreve a alma como um *"castelo feito de um único diamante, ou de um cristal muito claro, no qual há muitos quartos, assim como no Céu há muitas moradas"* (Santa Teresa, 1946, p. 201). A primeira morada é a morada da devoção, onde a alma começa a despertar para a vida espiritual por meio da devoção, do desejo por Deus e do despertar do amor nas profundezas do coração. Nesses primeiros estágios da jornada mística, Teresa constantemente enfatiza a importância da humildade, do autoconhecimento, da oração, da reflexão e da meditação. O autoconhecimento é o crescimento lento e meticuloso da consciência sobre nosso estado físico, emocional e psicológico, assumindo responsabilidade por ele. Ela discute as enormes dificuldades, obstáculos e resistências que surgem nesses estágios iniciais: o afastamento das aparências e dos sentidos físicos, do que pode ser visto e ouvido externamente, rumo à vida interior de renúncia. A primeira morada é o início do afrouxamento de milhares de apegos e identificações do ego, levando ao enfrentamento de mentiras internas, enganos, dúvidas e confusões. É o lugar de relembrar de onde viemos, para onde estamos indo e despertar para uma dimensão diferente da Existência. Não é um processo intelectual. É o despertar do amor e da relação com a totalidade da criação como uma força vital consciente. É essencial, nesses primeiros estágios, manter-se próximo a professores e mentores espirituais. A alma ainda não é forte o suficiente nas moradas exteriores para se defender sozinha; ela precisa de proteção, orientação e do cultivo da esperança e da fé. **Segunda Morada** A segunda morada é a morada da purificação. É o lugar do lento morrer do pequeno eu, ou ego pessoal, para que uma perspectiva mais universal possa crescer. É uma zona invisível, frequentemente experimentada como um abismo, mas que é a janela para outra dimensão. É um lugar de abandono, de desapego, de perseverança e da necessidade constante de maior humildade. Frequentemente é vivenciada como uma morte do ego, ou noite escura da alma, e pode ser extremamente dolorosa. Não é possível embarcar nessa jornada sem a sensação de estar se tornando mais leve e deixando para trás toda bagagem desnecessária. Teresa enfatiza a necessidade fundamental de trabalhar com companheiros – seja em grupo ou em comunidade. Não é possível fazer essa jornada sozinho. Grande parte do processo de purificação ocorre em nossos relacionamentos com os outros e com o mundo externo. Nesta morada, a alma experimenta maior separação e exílio de Deus, mas, de fato, está em menos perigo do que em outros estágios. Quanto mais a alma busca seu Divino Esposo, mais Ele a busca e a chama para Si. A alma desenvolve uma compreensão e esperança crescentes porque este é o início de uma experiência interior direta e da renúncia a Ele. A alma agora entrou no caminho espiritual e se depara com toda a sua vida, enfrentando e reconhecendo todos os aspectos de sombra e escuridão. Há uma completa reavaliação da vida e de todos os valores internos, sendo necessária uma perspectiva muito mais objetiva e honesta sobre si mesma e sobre a vida. **Terceira Morada** A terceira morada é a morada da sinceridade, onde a alma está em jornada e sendo testada cada vez mais profundamente. Os testes interiores tornam-se mais sutis e menos baseados em aparências e no que o mundo exterior pode ver. Esses testes são fundamentados na maturidade psicológica e espiritual, na sinceridade da alma e na sua determinação em continuar a jornada. A crescente disposição para se entregar, desapegar e confiar na Vontade e Providência Divinas faz parte desse processo. A força desse desejo e a firmeza da decisão são os principais critérios para cruzar o limiar com sucesso. A alma é pura e sincera em sua vida emocional e espiritual na medida em que sente sua nulidade, ignorância e completa dependência de Deus. **Quarta Morada** Aqui encontramos a morada da transição e transformação, onde Deus começa a assumir o controle. A alma começa a experimentar algo muito diferente, como se estivesse sendo arrebatada para um mundo distinto, para algo totalmente Outro, que ocorre sem esforço e apenas pela graça. Teresa enfatiza o combustível essencial para essa jornada. Ela afirma que as faculdades racionais devem diminuir à medida que a capacidade de amar e ser amado aumenta. É importante entender que não se trata de um amor pessoal, mas de outro nível de Amor – o amor por Deus, pela nossa fonte divina do Ser, que é a constante origem de transformação em nossa vida interior. Esse processo intenso de transformação pode gerar muitas sensações diferentes. Frequentemente, há um senso de profunda alegria e êxtase, mais poderoso e interno do que qualquer outra coisa já sentida; sentimentos de amor profundo podem brotar da essência do ser, ou uma sensação de intoxicação, de total e completo assombro. Teresa usa a famosa metáfora das águas celestiais para descrever esses estados de Ser. Ela nos conta como essas águas espirituais fluem das moradas mais interiores, de Deus: *"Quando essa água celestial começa a fluir desta fonte de que estou falando – ou seja, das nossas profundezas mais interiores –, ela se espalha dentro de nós, causando uma dilatação interior e produzindo sentimentos inefáveis, de forma que a própria alma não consegue compreender tudo o que recebe ali. A fragrância que experimenta, poderíamos dizer, é como se, nessas profundezas interiores, houvesse um braseiro onde se lançassem doces perfumes; a luz não pode ser vista, nem o lugar onde ela habita, mas a fumaça perfumada penetra toda a alma e, muito frequentemente, os efeitos se estendem até o corpo. Observe – e compreenda-me aqui – que nenhum calor é sentido, nem fragrância percebida: é algo mais delicado que isso. Só o descrevo dessa forma para que possa ser entendido."* (Santa Teresa, 1946, p. 238) O Espírito Santo está se dissolvendo e sendo infundido no centro da alma, algo que ocorre fora do tempo e espaço ordinários. É o início do Esponsal do Espírito com a alma. Não é possível compreender o que está acontecendo apenas com faculdades psicológicas comuns, pois tudo parece paradoxal e milagroso. O centro de gravidade da alma começa a ser absorvido em outro nível de Ser e conhecimento, tornando-se cada vez mais centrado em uma perspectiva universal e na vida espiritual maior. Teresa sempre testava a sinceridade e autenticidade das experiências espirituais, enfatizando a necessidade de discernimento constante e auto-observação, com a intenção consciente de agir retamente. **Quinta Morada** A quinta morada é a da santidade. Os escritos de Teresa sobre esta morada ocupam quase metade de *O Castelo Interior*, devido à orientação espiritual cuidadosa e aos conselhos necessários nesses estágios mais profundos. A transformação interior torna-se mais intensa e profunda, à medida que nosso coração se rende ainda mais para ser infundido e penetrado pela Luz Radiante e Presença Divina. Teresa descreve isso como uma *"morte deliciosa, um arrebatar da alma de todas as atividades que pode realizar enquanto está no corpo, uma morte cheia de deleite, pois, para se aproximar de Deus, a alma parece ter-se afastado tanto do corpo que não sei se tem vida suficiente para conseguir respirar"* (Santa Teresa, 1946, p. 248). Teresa fala das enormes dificuldades de lidar, às vezes, com a intensidade de tal transformação e mudança interior, especialmente no esforço de conter ou sustentar essas experiências, quando as águas espirituais transbordam e encontram um ego e corpo frequentemente frágeis e vulneráveis. É muito difícil compreender ou ter qualquer perspectiva sobre o que realmente está acontecendo até que o processo tenha sido concluído, pois a profundidade do coração está em outra dimensão, no reino espiritual do Ser. Pode ser descrito apenas como um caso de amor muito intenso, de pura alegria, reverência e liberdade, onde cada célula do nosso ser está se unindo e conectando às células de um Ser maior. Quais são as características de uma verdadeira experiência mística? Teresa sugere vários indicadores. Ela afirma que permanece uma certeza absoluta depois, o que só é possível se houver uma experiência direta de Deus. Tal experiência carrega um peso de autoridade e poder ao longo do tempo, impossível de esquecer. É como se algo fosse queimado ou permanentemente impresso no ser, mudando tudo. A experiência psicológica e a imaginação não podem proporcionar a profundidade de transformação e reverência que o contato com o Espírito Santo confere. Há uma grande paz interior e alegria, juntamente com um senso de humilde gratidão por ter sido grandemente abençoado. Ela diz que não é possível entrar nesses reinos espirituais apenas com nosso esforço. Nossa vontade está sendo rendida à Vontade Divina, algo concedido pela graça e providência. Nosso coração está mudando completamente, tornando-se mais vazio, amplo, humilde e com uma perspectiva mais universal. Teresa usa a famosa metáfora do bicho-da-seda para descrever a transformação espiritual. A alma, em seu estado latente e adormecido, é como um bicho-da-seda que passa por morte e renascimento em um lugar escuro e envolto por um casulo por muito tempo, até ser transformada em uma nova espécie, uma borboleta, em um nível completamente diferente de Ser. Não se pode subestimar o quanto de dor, agonia e sofrimento – frequentemente acompanhados de grandes dificuldades, solidão e renúncia – é experimentado nesse processo de morte e renascimento. **Sexta Morada** Teresa escreveu mais de 60 páginas sobre a sexta morada da santificação. Nelas, aborda os crescentes testes, provações, obstáculos e oposições, internos e externos, que se tornam mais fortes e, ao mesmo tempo, mais sutis, exigindo discriminação constante. A severidade e intensidade de tais provas não podem ser subestimadas – todos os místicos falaram sobre perseguições, zombarias, doenças graves e solidão intensa nesses momentos. A necessidade de vigilância, cautela e atenção é constante. Ela fala longamente, com paixão, sobre o Amor Divino de Deus pela alma e da necessidade de renúncia por parte da alma a esse grande Amor que o Santo tem por sua Esposa. Muitos místicos falam de se sentirem quebrados, feridos no coração, enquanto outros descrevem estarem em chamas, com um fogo queimando por todo o seu ser, ou de serem atravessados no coração por raios de luz cegante. O Amor Divino desperta a alma por meio de seus sentidos interiores, não pelos sentidos físicos exteriores. A alma começa a ver Deus por meio da visão interior, a ouvir Seu chamado Divino ou a perceber aquele delicado sabor interior, o doce perfume do Espírito Santo. A alma é desposada pelo Santo de diferentes maneiras. A graça espiritual é concedida pelo Espírito Santo como um sinal do Esponsal, preparando-a para se tornar Sua Esposa. É um Caso de Amor com o Divino – inexplicável, misterioso e compreendido de maneiras incompreensíveis. A sexta morada, então, é o lugar da santificação, o lugar do angelical, da música das esferas. Para os imaturos, despreparados e ingênuos, é um lugar imponente e aterrorizante. Aqui, Teresa diz, são necessários grande coragem, fé, confiança e uma renúncia e entrega ainda mais profundas à Vontade Divina para entrar nesses reinos. Ela também enfatiza a importância vital de um ritmo físico e emocional diário na vida ordinária para sustentar e suportar com segurança tais estados interiores de transformação. **Sétima Morada** Teresa escreve que a sétima e mais interior morada é diferente de todas as anteriores. É o estado de união mística, de gnose direta. No âmago de nosso coração, não há separação entre a Luz radiante que emana do Santo e todo o nosso ser. Eles estão fundidos, derretidos em Um só. Ela afirma que o matrimônio espiritual *"poderia ser comparado à água que cai do céu em um rio ou fonte, onde as águas estão unidas, e não seria mais possível separá-las ou dividir a água do rio daquela que caiu dos céus. Ou como um pequeno riacho que deságua no mar – não há possibilidade de separá-los."* (Santa Teresa, 1945, p. 109). É como se o coração ouvisse e percebesse diretamente, sendo infundido pelos recônditos mais profundos dos mistérios de Deus e pelo esplendor de Sua Luz Divina. Teresa declara que *"esses são os toques de Seu Amor, tão suaves e penetrantes. Quando você recebe esses impulsos, lembre-se de que eles vêm desta morada mais interior onde Deus habita em nossa alma, e louve-O grandemente, pois certamente esta mensagem ou ordem do Rei é Sua própria, escrita com tanto amor e de uma maneira que revela Seu desejo de que você, somente você, leia a escrita e saiba o que Ele está pedindo de você"* (Santa Teresa, 1945, p. 113). Nesse estado de União, tudo ocorre sem esforço e no Silêncio, onde Teresa descreve sua própria experiência: *"Aqui, o entendimento não precisa se agitar nem buscar por mais nada; o Senhor, que o criou, deseja agora que ele descanse, e apenas por uma pequena fresta observe o que está passando na alma. Esta visão pode ser perdida às vezes, ou pode ser permitido vê-la, mas apenas por um intervalo muito curto, porque os poderes e faculdades estão agora suspensos; simplesmente não estão funcionando, mas permanecem como que maravilhados."* (Santa Teresa, 1945, p. 114). O matrimônio espiritual é consumado com o Beijo que une a alma a Deus: *"Deus concede esses estados sublimes e íntimos interiores quando Ele liga a alma a Si mesmo, com aquele Beijo que a noiva pede."* Ela conclui seu tratado espiritual com palavras finais de sabedoria: \*"Não construam torres sem alicerces, pois o Senhor não considera tanto a grandeza de nossos feitos, mas o Amor com que são realizados, e quando fazemos tudo o que podemos, Sua Majestade tornará possível que façamos mais e mais. Embora eu tenha descrito não mais do que sete moradas, em cada uma delas há muitas – abaixo, acima e aos lados – com fontes encantadoras, jardins e coisas tão deleitáveis, que você desejará gastar-se em louvar o grande Deus, que criou a alma à Sua imagem e semelhança."\* (*Santa Teresa, 1945, p. 120-121*). --- **Referências** - Attar, Farid ad-din. (1984). *Conference of the Birds.* Tradução de Davis e Darbandi. Londres: Penguin. - Green, D. (1989). *Gold in the Crucible.* Reino Unido: Element. - Lopez-Baralt, L. (1992). *Islam in Spanish Literature: From the Middle Ages to Present.* Leiden: E.J. Brill. - Teresa de Jesus, Santa. (1946). *Complete Works of Saint Teresa of Jesus, Volume 2.* Tradução e edição de E. Allison Peers. Londres: Sheed and Ward. - Teresa de Jesus, Santa. (1945). *The Interior Castle.* Tradutor Anônimo. Londres: Sands and Co. - Tishby, I. (1949). *The Wisdom of the Zohar: An Anthology of Texts.* Oxford: Oxford University Press. © Julienne McLean # Pseudo-Dionísio Areopagita (Proclo): tão místico que escreveu fórmulas dogmáticas do futuro. 08/01/2025 Autor: Taylor Marshall Tradução: Prof. Gabriel Sapucaia ![](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000197-0dcf20dcf4/61n3vOOfr7L._AC_UF1000%2C1000_QL80_.jpeg?ph=4df81238fe) "Há três evidências que demonstram conclusivamente que São Dionísio, o Areopagita (cf. Atos 17), não foi o autor do *Corpus Areopagiticum*. Primeiramente, o autor descreve o lugar do Credo na liturgia eucarística (*Hierarquia Eclesiástica* 3, 436c). Isso é claramente anacrônico. O Credo (presumivelmente o Credo Niceno) só foi composto entre os anos 325-381. Além disso, ele não possuía um lugar litúrgico até o século V. Em segundo lugar, o autor faz uso de conceitos do neoplatonista Proclo (411-485 d.C.). Curiosamente, há apologistas ortodoxos orientais que afirmam o oposto: que Proclo teria plagiado Dionísio. Por fim, a terminologia cristológica do Concílio de Calcedônia (451 d.C.) é empregada nos escritos atribuídos a Dionísio. Isso seria uma façanha impressionante para um autor do primeiro século. Ainda assim, a importância desses escritos, provavelmente datados do final dos anos 400, não deve ser ignorada por conta de suas origens pseudepigráficas. Como observou Jaroslav Pelikan, é curioso que o nome de Dionísio não tenha sido usado como pseudônimo antes do século V. Ele teria sido o pseudônimo ideal para um autor gnóstico ambicioso, pois representa tanto a tradição paulina (Atos 17) quanto a tradição mística grega. Providencialmente, os escritos "dionisianos" pseudepigráficos foram obra de um gênio ortodoxo, que possivelmente demonstrava tendências mais tarde associadas ao monotelismo. Faça um favor a si mesmo e adquira uma cópia dos escritos de Dionísio." \- Taylor Marshall: [https://taylormarshall.com/2008/06/why-dionysius-areopagite-did-not-write.html](https://taylormarshall.com/2008/06/why-dionysius-areopagite-did-not-write.html) # O CARMELO DESCALÇO E O ESOTERISMO: PARTE 3 - “Uma Água Traz Outra.” S. Teresa de Jesús e Ibn ‘Arabi 08/01/2025 Autora: **María M. Carrión** Tradução: Prof. Gabriel Sapucaia ![](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000199-605d0605d1/61W4Y5mJUfL._UF894%2C1000_QL80_.jpeg?ph=4df81238fe) **1. Introdução** "Para cada membro ou órgão existe um tipo particular de conhecimento espiritual proveniente de uma única fonte, que é multifacetada em relação aos muitos membros e órgãos, assim como a água, embora seja uma realidade única, varia em sabor de acordo com sua localização: algumas são doces e agradáveis, outras salgadas e amargas. Apesar disso, ela permanece invariavelmente água em todas as condições, com todas as variedades de sabor." (Ibn al-'Arabi, 2015). No final dos anos 1400 d.C., quatro eventos alinharam-se para transformar o panorama religioso e cultural do que era conhecido por diferentes povos como Hispania, Ibéria e al-Andalus: a "descoberta" das Américas; a publicação da primeira gramática espanhola, "parceira do império"; a expulsão dos judeus do solo espanhol; e a transferência de Granada—o último reino muçulmano da Península—do Sultão Abū 'Abdillāh Muhammad ath-thānī 'ashar, último governante da dinastia Nasrida, para Isabel e Fernando, Rainha e Rei Católicos. Qualquer pessoa que permanecesse dentro dos limites geográficos do moderno Estado-Igreja da Espanha foi forçada a converter-se ao catolicismo, a religião oficial. A primeira metade do século XVI testemunhou inúmeras conversões (Havrey, 2005; Catlos, 2014). No final da década de 1560, a *Recopilación de las Reyes destos Reynos*, a primeira compilação legal unificada da Península, inaugurou o código centralizador de cidadania da Espanha, organizado em torno da espinha dorsal da lei nacional, "De la Santa Fé Católica" (Sobre a Santa Fé Católica): "A Santa Madre Igreja ensina e prega que todo cristão fiel, reformado pelo santo Sacramento do Batismo, acredita firmemente e confessa simplesmente que há um único Deus verdadeiro, eterno, imenso, imutável, onipotente, inefável, Pai, Filho e Espírito Santo, três Pessoas e uma essência, substância ou natureza: o Pai inalcançável, o Filho gerado unicamente pelo Pai e o Espírito Santo soprado da suprema simplicidade, procedendo igualmente do Pai e do Filho em essência, iguais em onipotência: e um princípio único de todas as coisas visíveis e invisíveis." (*Recopilación*, Livro I, Título 1, Lei 1; tradução minha). Apesar da poderosa carga retórica desta "Primeira Lei" e das subsequentes "Leis" que definem claramente as diretrizes teológicas e políticas hierárquicas para que os cidadãos espanhóis professassem sua aliança e devoção exclusivas ao catolicismo, as vidas dos súditos da Coroa na Península seguiram em muitas direções diferentes. Era como se *As Jóias da Sabedoria* de Ibn 'Arabi pressagiassem, já na Múrcia do século XIII, que o corpo espanhol seria uno, e que seus órgãos e membros—como diferentes corpos d'água em relação à fonte principal—emanariam de uma única fonte, mas teriam "um tipo particular de conhecimento espiritual". Há amplas evidências de que um número significativo de cripto-muçulmanos e *conversos*—*anusim*—declararam publicamente sua adesão à Santa Fé Católica, enquanto, ao mesmo tempo, continuavam a praticar sua fé islâmica ou judaica em espaços clandestinos e horários secretos (Havrey, 2005, pp. 102–121).\[1\] Contra todas as probabilidades, e fiéis à sua fé da melhor forma possível em um solo declarado inóspito para sua religião, a perseverança desses indivíduos e de suas comunidades preservou o pluralismo religioso dentro da Península. Seja como for, a importância de suas vidas e vozes permaneceu encoberta por séculos sob a égide de uma unidade nacional católica. O movimento conhecido como misticismo espanhol é mais um exemplo desse tipo de sobrevivência do pluralismo religioso na Espanha do século XVI e de sua recepção parcial posteriormente.\[2\] Em uma era em que a virtude moral e os rituais e iconografias religiosas eram fortemente regulados para favorecer uma gestalt católica (alimentação, vestuário, movimentos, figuras inspiradoras, imagens devocionais e rituais, entre outros), místicos na Espanha engajaram-se em tradições das três religiões mais proeminentes de al-Andalus—cristianismo, islamismo e judaísmo. Com essa abordagem híbrida à vida religiosa, eles moldaram um rico legado espiritual, que está sendo plenamente revelado apenas no último século por trabalhos acadêmicos, como os apresentados nesta edição especial de *Religions*. Entre inúmeras outras imagens e práticas, os místicos espanhóis do século XVI imaginaram e escreveram sobre a noite escura, os sete castelos concêntricos, a gazela, o pássaro, os iggulim (*círculos*) ou o *yosher* (*torre*) das sefirot, ruínas e jardins, e a fonte sagrada, para inspirar outros a buscarem seus próprios caminhos espirituais.\[3\] Os laços que unem os místicos espanhóis e sufis são, sem dúvida, numerosos; ao mesmo tempo, são bastante complexos e, por isso, exigem análises rigorosas de caráter comparativo, teológico, histórico e textual.\[4\] Essa análise é particularmente difícil porque os meios de transmissão de ideias e práticas de espiritualidade produzidas pelas figuras que compõem esses dois grupos começaram a ser analisados apenas recentemente. Dadas as histórias de conflito e violência em nome da religião que caracterizaram o final da Idade Média e o Renascimento na Espanha, bem como as práticas religiosas clandestinas mencionadas anteriormente, esses meios de transmissão têm se mostrado difíceis de identificar. Pode parecer que as práticas místicas sufis e espanholas não atravessaram as divisões religiosas. Com essa premissa em mente, este estudo analisa como a água, um elemento material e espiritual fundamental representado nas obras místicas de Ibn 'Arabi e Teresa de Jesús, faz com que os mundos teológicos do islamismo e do cristianismo se sobreponham e, quando lidos juntos, cresçam substancialmente.\[5\] O método aqui, então, não foi elaborado para contribuir com a questão de como as ideias de um místico sufi foram transmitidas às de uma mística espanhola. A abordagem comparativa é utilizada aqui não para provar como suas ideias compartilhadas viajaram da Múrcia do século XIII para Ávila no século XVI, ou de uma jornada espiritual medieval para uma renascentista, mas sim para focar na leitura conjunta de suas ideias para explorar as maneiras pelas quais suas versões separadas e correspondentes da água expandem, e não limitam, o crescimento espiritual. Para ser claro, as influências "mútuas" aqui observadas entre as obras desses dois místicos não apontam para um ciclo de troca literária ou religiosa sincrônica entre eles, nem para um cenário imaginado de que um ou outro tenha lido a obra do outro; dada a distância de quase quatro séculos que os separa, isso simplesmente não seria lógico.\[6\] Além disso, como meu argumento não busca determinar uma réplica exata do elemento água representado em seus textos, nem uma influência unilateral autoritária de Ibn 'Arabi sobre Teresa de Jesús (doravante identificada apenas por "De Jesús"), ou vice-versa a posteriori, a leitura aqui proposta explorará as formas como seus textos mutuamente se informam ao representar a água e seus significados amorosos, enquanto discernem os respectivos contextos de produção dessas obras. A vida bem irrigada descrita por esses místicos enfatiza o elemento água como um caminho para a vida, o conhecimento e o amor de e para Deus, ao mesmo tempo que destaca o valor espiritual do movimento, do fluxo e da circulação. Por meio do símbolo da água, os leitores podem reunir leituras que, de outra forma, seriam díspares, tanto das obras individuais dessas duas figuras quanto de seu pertencimento a um continuum revisado do misticismo andalusino e espanhol. **2. A Água em Quatro Direções de Teresa de Jesús** "Preste atenção à palavra do Altíssimo: 'É regada com uma só água' (Alcorão, 13:4). A terra é uma, mas os sabores, fragrâncias e cores diferem." (Ibn 'Arabi, *Al-Futūḥāt al-Makkiyya*/*As Iluminações de Meca* (III, 231, Capítulo 351)).\[7\] Teresa de Jesús, uma proeminente mística espanhola, declarou publicamente sua afiliação à Igreja Católica e viveu de acordo com ela. Em 1622, cerca de quarenta anos após sua morte, o Papa Gregório XV a canonizou, sendo conhecida como Santa Teresa de Ávila para alguns, De Jesús para outros, ou simplesmente Santa Teresa. Poucos anos depois, foi nomeada Padroeira da Espanha pelo Rei Filipe IV, ficando ao lado de São Tiago, Santiago Apóstolo. Por suas contribuições teológicas e escritos religiosos, o Papa Paulo VI concedeu a ela e a Catarina de Siena o título de Doutoras da Igreja em 1970, sendo as primeiras mulheres a receber tal honra (Slade, 1970; Bilinkoff, 1989). Apesar de sua devoção à Santa Fé, ela viveu e escreveu sem aderir totalmente ao excepcionalismo e ao isolamento religioso promulgados pela *Recopilación* em meados do século XVI. Em vez disso, desenvolveu uma ética literária e religiosa que, em oposição à vontade expressa do Estado-Igreja, conjugava sinais e práticas de diferentes tradições espirituais e religiosas. As palavras do Capítulo XIX de seu *Livro da Vida*, citadas no título, ilustram essa revelação: "un agua tray otra" (uma água traz outra) (pp. 138, 109).\[8\] Com essa frase, De Jesús conclui uma extensa meditação sobre a imagem do jardim, uma metáfora que ela desenvolve para referir-se ao coração e à importância da irrigação, ou da oração, para o seu bem-estar. Seus textos repetidamente afirmam que água equivale à oração e, ao concluir sua articulação teológica do jardim, uma espécie de paraíso recuperado, uma água-oração traz (tray-trae), carrega ou atrai outro tipo. A tristeza e a dor que trouxeram lágrimas à sua vida antes de ela construir seu próprio jardim são conjugadas com as águas da fonte, do poço, da nascente, do rio e da chuva—um universo líquido que ela, assim como qualquer de seus leitores, pode aprender a manejar se souber como a água pode transformar suas lágrimas em vida. Essa conjugação de água, jardim e oração abre um caminho para os leitores meditarem sobre o significado desse elemento como um caminho para a vida, o conhecimento e o amor de e para Deus. Este jardim bem irrigado cresceu no contexto do pluralismo religioso subterrâneo em que De Jesús viveu, onde o misticismo sufi estava mais presente do que a história levou os leitores a acreditarem. Teresa de Jesús dedicou boa parte de sua vida à reforma da Ordem Carmelita Descalça na Espanha. Para isso, fundou dezessete conventos organizados para apoiar o bem-estar e a melhoria da vida espiritual das mulheres. Ela escreveu quatro obras principais: *Livro da Vida*, *Caminho de Perfeição*, *Castelo Interior* e *Livro das Fundações*. Devido às suas experiências religiosas e aos programas que instituiu em seus conventos, seus confessores insistiram que ela documentasse tudo; o fato de seu primeiro livro ter passado décadas nas mãos do Santo Ofício da Inquisição concedeu aos seus escritos uma camada jurídico-confessional que não passou despercebida pelos estudiosos (Llamas Martínez, 1972; Egido, 1986; Slade, 1995, pp. 9–29). Com os confessores claramente presentes em sua vida e obras narrativas, Teresa falava abertamente com suas irmãs, as freiras que viviam em seus conventos reformados, com quem mobilizou uma rede de comunicação altamente sofisticada que Alison Weber chamou de "retórica da feminilidade" (Weber, 1990). Devido à sua ascendência judaica, sua obra foi associada a tradições semíticas (Álvarez, 1995; Connor, 1986, pp. 43–81; López-Baralt, 1985, pp. 120–141, 156–160). Por ser uma súdita do Estado-Igreja da Espanha do século XVI e uma reformadora chave da Ordem Carmelita, sua obra também foi vinculada ao catolicismo e, frequentemente, à "Idade de Ouro Espanhola", uma era tradicionalmente caracterizada, como observa Carlos Conde Solares, pelos "ápices políticos e imperiais da Espanha" (Conde Solanes, 2020, p. 1).\[9\] Através das imagens presentes em seus livros—como a escuridão da alma, os sete castelos concêntricos, o pequeno pássaro, espaços como ruínas e jardins—e dos projetos de seus conventos e abordagens à vida espiritual, sua obra também foi associada a tradições islâmicas (Asín Palacios, 1946; López-Baralt, 2002, 1985, 1981; Carrión, 2017, 2016b, 2016a, 2013, 2012, 2010, 2009). Além disso, por suas reformas conventuais e escritos definirem novos territórios para as mulheres no que tange à oração, humildade e virtude, suas obras continuam a inspirar muitas comunidades femininas ao redor do mundo (ver Dorgan, 2015; Pérez, 2013). O *Livro da Vida* e o *Castelo Interior* colocam a água no centro da busca espiritual de Teresa de Jesús. Comunidades que leem suas obras atentamente e organizam suas vidas espirituais com base nessas leituras frequentemente enfatizam a importância desse símbolo na vida espiritual. Carol Ann Chybowski, por exemplo, oferece um resumo econômico de "As Quatro Águas de Santa Teresa de Ávila", observando que elas "são baseadas em suas próprias experiências com a oração mística. É um caminho que todos devemos seguir à nossa maneira enquanto fazemos nossa jornada de volta para Deus" (Chybowski, 2015). O caminho cultivado começa com o ato de retirar água de um poço na primeira etapa; em seguida, passa-se a usar uma roda d'água para aliviar o trabalho pesado; na terceira etapa, surge um rio ou um riacho, elevando ainda mais o espírito do jardineiro; e, finalmente, a chuva abençoada, quando se abandona o trabalho para se deixar envolver pela chuva de Deus. Mergulhado em uma jornada líquida, o jardineiro trabalha através do esforço, distrações, avanço espiritual, dificuldade, recolhimento e pura vontade, deixando para trás o solo árido e alcançando uma paisagem exuberante de plenitude espiritual. As Irmãs Carmelitas do Sagrado Coração de Los Angeles comparam o mundo aquático de Teresa de Jesús com passagens bíblicas (Gênesis, João 4:10, 13–14 e Marcos 10:17–31), bem como com as obras de João de Ruysbroeck e George Bernard Shaw, destacando como essa vida de irrigação e oração marca um caminho sólido para conhecer o dom de Deus (Carmelite Sisters of the Most Sacred Heart of Los Angeles, 2015). Esse conhecimento experiencial proporcionado pela água contrasta com a pouca atenção dada pelos estudiosos a essa importante unidade do legado místico da Espanha. Estudos abundam sobre a presença e os significados dos jardins na história cultural espanhola, desde a tradição do *hortus conclusus* nas narrativas rimadas hebraicas ibéricas e nos *Milagros de Nuestra Señora* de Berceo até a paisagem sexual representada no *huerto* paternal de *Celestina* (Decter, 2007; Alchalabi, 2004; Bailo, 2016; Snow, 2000).\[10\] Há também uma considerável pesquisa sobre a centralidade dos jardins na vida e cultura da Península. Por exemplo, os sofisticados sistemas hidráulicos e de irrigação medievais que informaram a entrada da Espanha na modernidade da engenharia (Glick, 1996), a singular presença dos jardins islâmicos, especialmente na região que hoje é a Andaluzia (Ruggles, 1997, 2003), e o design e desenvolvimento dos jardins reais em El Escorial e Aranjuez para fomentar a indústria moderna de destilarias de água (Rey Bueno, 2004, 2009). Poucos estudiosos destacaram a importância crítica dos jardins nas obras dos místicos espanhóis (Lottman, 2010; Carrión, 2012, 2013). A obra na qual Teresa de Jesús utiliza mais amplamente a palavra *água* é sua primeira, o *Livro da Vida*, embora o *Castelo Interior* também dedique passagens importantes à presença e ao significado da água para o coração. Por questões de brevidade, este estudo focará na representação da água no *Livro da Vida*, estruturada como um espaço e meio em quatro direções.\[11\] Usada mais de 70 vezes entre os capítulos 6 e 22, a palavra *água* cria um campo semântico com o qual a autora traça um caminho que vai das lágrimas de tristeza para um universo de alegria e plenitude, organizado em quatro níveis: água subterrânea do poço, água extraída por dispositivos mecânicos, água fluindo em um rio ou riacho e água da chuva. Esses quatro estágios da água, que se movem do nível subterrâneo para o alto da atmosfera, de onde caem como chuva, correspondem a formas de irrigar a alma que, por sua vez, equivalem a quatro estágios de trabalho, conhecimento e amor no jardim. Abrangendo tudo isso, uma estrutura correspondente se alinha a esses quatro estágios de água: os quatro graus de oração. O primeiro estágio, caracterizado por trabalho árduo e uma base de tristeza e dor, convida os leitores a se imaginarem como jardineiros que abaixam um balde às profundezas de um poço para obter água. Citando a água como um elemento que, após sua experiência de quase morte no capítulo 5, ela mal podia tolerar, Teresa eventualmente transforma essa aversão em desejo de alcançar a Oração de Quietude. No capítulo 11, ela sugere que um livro pode ajudar a focar na oração, mas que para ela, "olhar para um campo, ou água, ou flores" serve para lembrá-la do Criador, despertá-la e recolhê-la (*Livro da Vida*, p. 66). O livro que ela recebe, *Confissões* de Agostinho, não sacia sua sede espiritual porque os santos caem e se recuperam, mas ela cai muitas vezes e parece não progredir na vida. Como mulher, "escrevendo simplesmente o que me mandam", ela prefere não fazer comparações, mas a linguagem espiritual exige que o faça, e assim ela recorre à prática básica da oração: "O iniciante deve considerar-se como alguém que começa a fazer um jardim no qual o Senhor deve encontrar Sua alegria, ainda que em solo muito infértil e cheio de ervas daninhas. Sua Majestade arrancará as ervas daninhas e plantará boas plantas em seu lugar. Suponhamos que isso já tenha sido feito — que uma alma tenha decidido praticar a oração e já tenha começado a fazê-lo. Agora devemos, com a ajuda de Deus, como bons jardineiros, fazer essas plantas crescerem e regá-las cuidadosamente, para que não pereçam, mas produzam flores que exalem grande fragrância para refrescar este nosso Senhor, para que Ele possa frequentemente vir ao jardim para se deleitar e alegrar-se entre estas virtudes" (*Livro da Vida*, p. 73). Neste primeiro estágio da oração, onde o paraíso perdido do jardim aparece pela primeira vez, Teresa imediatamente destaca a importância da água. Não como posse, mercadoria ou entidade a ser contida e controlada—isso é trabalho dos homens. Em vez disso, ela literalmente conjuga a água como um verbo, *regar*, para irrigar, como um trabalho proativo que flui com conhecimento e vontade para dar vida ao jardim da alma: "Consideremos como este jardim pode ser regado, para que saibamos o que temos de fazer, quanto trabalho nos custará, se o ganho superará o trabalho e por quanto tempo esse trabalho deverá ser suportado" (*Livro da Vida*, p. 73). Aqui, o jardim adota a forma clássica das quatro direções, que também abrigam quatro formas de irrigar; tanto o leitor quanto o jardineiro devem lembrar que já estão dentro do primeiro estágio do jardim, onde prevalecem a dor e a tristeza. Essa é uma estratégia retórica à qual Teresa retornará no *Castelo Interior*, onde tenta explicar como se deve entrar no espaço em que já se está, e como alcançar a câmara mais íntima onde o Senhor está sentado e onde a união mística está destinada a acontecer. O segredo desse paradoxo, Teresa revelará no *Castelo*, é saber que essa câmara tem muitas outras mansões acima e abaixo, em todos os lugares, onde o Senhor está presente, pois o castelo é a alma, e qualquer pessoa, especialmente as freiras que leem seu texto, pode vagar livremente nesse espaço. O mapa é claro, embora o labirinto seja denso: há quatro estágios do jardim, que são quatro formas de irrigar, e quatro formas de orar. Parece-me que o jardim pode ser regado de quatro maneiras: retirando a água de um poço, o que nos custa grande esforço; ou por meio de uma nora e baldes, quando a água é retirada por um torno (às vezes já retirei água dessa forma: é menos trabalhoso do que a outra e fornece mais água); ou por um rio ou riacho, que rega o solo muito melhor, saturando-o mais completamente e reduzindo a necessidade de regar com frequência, aliviando bastante o trabalho do jardineiro; ou por uma chuva forte, quando o Senhor rega sem qualquer esforço nosso, sendo essa maneira incomparavelmente melhor do que qualquer uma das descritas (*Livro da Vida*, p. 73). Entretanto, a aplicação dessas formas de regar não é tão fácil ou simples quanto a descrição parece indicar. De fato, a primeira parte do jardim, com o poço em seu núcleo, é um lugar de fadiga, trabalho árduo, distrações, "aridez, desgosto, aversão e tão pouco desejo de ir buscar água" que podem levar tanto o jardineiro quanto o orante a desistirem (*Livro da Vida*, p. 74). Nesse deserto, onde ecos de desespero podem ser ouvidos, a perda e a tristeza podem comprometer a busca; no entanto, o texto lembra aos leitores-jardineiros da capacidade de Sua Majestade de manter "as flores vivas sem água" e de fazer "as virtudes crescerem" (*Livro da Vida*, p. 74). Aqui, a água são as lágrimas "ou, se não houver lágrimas, a ternura e um sentimento interior de devoção" (*Livro da Vida*, p. 74). Essa devoção é alimentada pela humildade e, por meio de uma série de gestos reiterados de paciência que ecoam a morte de Cristo na cruz, São Jerônimo no deserto e outras imagens devocionais cristãs, o texto encoraja os leitores a não desistirem, mas a considerarem o "firme fundamento" que está sendo lançado para o jardim (*Livro da Vida*, p. 75). Somente dessa forma, todos os jardineiros, prisioneiros nessa terra seca, e, mais precisamente, "pobres mulheres como eu, que são fracas e carecem de fortaleza", serão capazes de suportar a dor e a tristeza que permeiam esse estágio de três capítulos, até que possam literalmente se encontrar em pastagens mais verdes (*Livro da Vida*, p. 75). A irrigação e o jardim, como veremos, abrigam a conexão entre os personagens cristãos da narrativa e os sinais místicos sufis. O capítulo 14 começa com uma lembrança da descrição anterior do segundo grau de oração, no qual a estrutura do torno e dos baldes reduz o esforço, permitindo que o jardineiro "possa descansar um pouco, em vez de estar continuamente trabalhando" (*Livro da Vida*, p. 86). Nesse estágio, "a graça se revela à alma mais claramente", enquanto as faculdades se recolhem, lembram-se com graça e movem-se para o espaço interior onde o jardineiro pode fazer sua Oração de Quietude (*Livro da Vida*, p. 86). O torno e os baldes movem a água com significativamente menos esforço por parte do jardineiro, transformando o lugar em um espaço onde ela pode se concentrar em receber a graça de Deus. A vontade está cativa, como a água nos baldes e, por sua vez, os baldes no torno. Ao mesmo tempo, outras faculdades—memória e imaginação—participam na coleta de água e no recolhimento da mente e da alma, e, à medida que esse segundo grau de oração se desenrola, as lágrimas de desespero e tristeza se transformam em um fluxo alegre, uma "água de grandes bênçãos e favores que o Senhor concede nesse estado", que fortalece os pequenos brotos das virtudes (*Livro da Vida*, p. 87). Nesse espaço, as práticas comuns de jardinagem—podar, arrancar ervas daninhas, enraizar—ganham destaque, e a temperatura entra em cena, com o frio do inverno sendo um fator decisivo, assim como era nas terras onde Teresa viveu. Quando o inverno se aproxima, o texto afirma, a centelha plantada anteriormente por Deus inicia o fogo que aquecerá o lugar. O capítulo 16 avança para o terceiro grau de oração, a "terceira água", que flui sem estruturas mecânicas, uma etapa da vida do jardineiro onde o trabalho diminui, dando lugar ao prazer, à doçura, ao deleite, à alegria inefável e à água da graça que "sobe até o próprio pescoço da alma" na fruição de Deus (*Livro da Vida*, p. 95). Nessa área do jardim, o Criador da água irriga a alma sem limites, resultando em uma fusão da alma com o Senhor que remete ao *Cântico dos Cânticos* hebraico. A humildade funde-se com a alegria, e um evento inexplicável ocorre: "o que a pobre alma não poderia adquirir, mesmo que trabalhasse e fatigasse seu entendimento por mais de vinte anos, este Celestial Jardineiro realiza em um momento; o fruto cresce e amadurece de tal forma que, se o Senhor quiser, a alma pode obter nutrição suficiente de seu próprio jardim" (*Livro da Vida*, p. 99). A morte-em-vida e a tristeza presentes no primeiro grau de oração, aquele ponto de desespero onde termina a história de Melibea, são transformadas no capítulo 18 do *Livro da Vida* na quarta e última água, onde ocorre outra morte: a da alma para o mundo. Nesse espaço "não há sentimento, apenas júbilo, sem qualquer compreensão daquilo no qual a alma está se regozijando", pois aqui a graça chove sobre o solo/alma (*Livro da Vida*, p. 95). A grande recompensa dessa chuva pode vir em abundância, concedida pelo Senhor quando a vontade é totalmente entregue a Ele na oração, frequentemente "quando o jardineiro menos espera" (*Livro da Vida*, p. 104). Os benefícios dessa água para a alma são os maiores que se pode imaginar na oração. Os capítulos seguintes abordam vários possíveis cuidados na aplicação desse sistema de irrigação; no entanto, De Jesús conclui esse segmento de sua jornada mística afirmando que a água é um elemento fundamental para a vida espiritual. **3. Ibn 'Arabi: Uma Água e Muitas Formas** "Mas aqui é como a chuva que cai dos céus em um rio ou uma nascente; não há nada além de água ali, e é impossível dividir ou separar a água pertencente ao rio daquela que caiu dos céus." — Santa Teresa de Ávila, *Castelo Interior* (De Jesús, 1961, p. 132). As lacunas cronológicas, teológicas e de gênero que separam Teresa de Jesús de Ibn 'Arabi são consideráveis. Ele deixou a Espanha em 1193 para realizar a peregrinação a Meca, uma jornada que Claude Addas chama de "a viagem sem retorno". Essa primeira incursão levou Ibn 'Arabi a múltiplas viagens pelo Magrebe, Egito, Mesopotâmia, Anatólia, Palestina e Síria, onde encontrou os santos de sua época e leu livros que marcaram seu caminho. Essas experiências, por sua vez, conduziram-no a uma viagem interior guiada pelo aprendizado das doutrinas sufis, da santidade, dos discípulos e tribos, da servidão e da viagem noturna, bem como dos ensinamentos e legados dos profetas, da unicidade do Ser e do Selo dos Santos, entre outros (Addas, 2000). Teresa, por outro lado, viajou apenas dentro da Península Ibérica, quando começou a reforma da Ordem Carmelita Descalça, já em um momento tardio de sua vida. Ela não teve a exposição abrangente a outras áreas do mundo como Ibn 'Arabi, nem experiências comparáveis às que ele adquiriu no Norte da África e no Oriente Médio. Apesar das distâncias no espaço e no tempo em que viveram e escreveram, uma prática comum de questionamento das fronteiras emerge em suas obras. Afinal, ambas as vidas foram marcadas por diferenças culturais e reformas religiosas.\[12\] Por um lado, Teresa de Jesús negociava sua ascendência judaica com memórias de al-Andalus e uma profissão e devoção católica obrigatórias. Por outro lado, Ibn 'Arabi negociava sua linhagem sunita com círculos islâmicos xiitas onde seus escritos se tornaram populares, além de histórias e personagens judaicos e cristãos que frequentemente aparecem em seus textos. Enquanto leitores dentro e fora dos conventos reformados por Teresa liam seus livros, os ensinamentos de Ibn 'Arabi rapidamente se espalharam por todo o mundo islâmico e continuaram a se propagar onde quer que o Islã fosse, alcançando regiões como a África Negra, os Bálcãs, a Indonésia e a China, além de serem traduzidos para línguas como urdu, turco e persa (Chittick, 2007, pp. 2–3). No cerne de suas vidas, compartilhavam interesses e vocações, entre os quais destacam-se o misticismo, a escrita e a teologia. Na formação teológica, também encontraram terreno comum. Apesar das diferenças em suas formações formais, ambos privilegiavam a amizade e a experiência pessoal no treinamento e crescimento religiosos. Em vez de derivarem seus princípios e práticas religiosas exclusivamente de uma escola formal de teologia, tanto Teresa de Jesús quanto Ibn 'Arabi desenvolveram estruturas teológicas sofisticadas por meio da reflexão, do diálogo com outros e, especialmente, da dedicação ao caminho espiritual. Como observa Scott Kugle, característica do misticismo sufi, ambos os autores buscavam mais amar a Deus e serem amados por Ele do que articular argumentos teológicos para debate ou transformação em lei (Kugle, 2007, p. 1). "Mas aqui é como a chuva que cai dos céus em um rio ou uma nascente; não há nada além de água ali, e é impossível dividir ou separar a água pertencente ao rio daquela que caiu dos céus." — Santa Teresa de Ávila, *Castelo Interior* (De Jesús, 1961, p. 132). Na vida de devoção amorosa, a água desempenha um papel tão crítico para Ibn 'Arabi quanto para Teresa de Jesús, embora os dois místicos articulem esse papel de maneiras narrativas e espaciais distintas. Ibn 'Arabi não estrutura níveis para irrigar o jardim da alma em quatro formas, como Teresa faz; contudo, sua articulação da água como um caminho espiritual abrange áreas de representação que Angela Jaffray reconhece como "vida, conhecimento, sharī'a e purificação" (n.p.). Dizer, porém, que a estrutura dos segmentos do jardim, tipos de irrigação e graus de oração meticulosamente elaborados por Teresa no *Livro da Vida* é a mesma que as quatro áreas de significado da água representadas em vários livros de Ibn 'Arabi seria, em resumo, comparar maçãs com laranjas. No entanto, as formas estruturadas pelas quais Ibn 'Arabi inscreve a água em sua compreensão do caminho espiritual são de importância crítica para sua busca de amar a Deus e ser amado por Ele, assim como ocorre com Teresa. Partindo do versículo do Alcorão "É regada com uma só água" (13:4), suas *Iluminações de Meca* exploram as muitas águas da intenção divina, classificadas em excelência, unicidade essencial e diversidade perceptiva. A intenção divina "é como a água", e os muitos sabores diferentes em frutas e vegetais ocorrem tanto apesar quanto por causa da única água que os irriga, produzindo uma variedade de gostos, fragrâncias e cores, bem como um paradoxo natural, tudo devido a uma única água. Sem dúvida, essa obra mais volumosa de Ibn 'Arabi confere significado e peso significativos à água, assim como outras de suas obras. Contudo, assim como ocorre com o *Livro da Vida* em relação a outras obras de Teresa onde a água aparece, o livro onde Ibn 'Arabi articula uma abordagem mais tangivelmente estruturada sobre a água é o *Fusūs al-Hikam* (*Bezels of Wisdom*), onde o esplendor de 27 profetas é gerado por meio de uma pedra preciosa diferente, correspondente a uma virtude divina (como paciência, unicidade, coração ou ser) e, em alguns casos, claramente definida pela água.\[13\] Conforme Todd Lawson, cada um dos 27 *bezels* que compõem este livro em tantos capítulos "é dado a uma comunidade particular na narrativa e na persona poética de um profeta específico. O *bezel* ou realidade profética é moldado para receber a virtude divina particular da mesma forma que a marca da amizade nas costas de Ibn 'Arabi foi moldada para receber o selo profético nas costas do Profeta Muhammad" (Lawson, 2016, p. 35). Em outras palavras, dentro da estrutura de seus capítulos individuais, essas pedras preciosas falam das relações entre cada profeta e suas comunidades; como um todo, entretanto, estabelecem uma "rima de amizade" ou "dissolução de identidade que pode ocorrer por meio da imitação do Profeta", que aqui se dá entre o profeta particular e a Divindade (Lawson, 2016, p. 36). Essa estrutura é um espaço sonoro de rima em árabe que revela uma comunidade de profetas relacionados entre si, como Lawson aponta, em ordem alfabética e de maneira não hierárquica: "Como um grupo especial de *awliyā'* (todos os mensageiros e profetas são *awliyā'*, mas nem todos os *awliyā'* são mensageiros ou profetas), eles compreendem os elementos linguísticos, o vocabulário espiritual, para a nova/antiga linguagem e revelação do Islã, na qual cada comunidade que já existiu teve um profeta, e na qual cada profeta fala à sua comunidade na língua dessa comunidade" (Lawson, 2016, p. 37). A circulação não hierárquica entre eles, sinalizada no padrão rítmico de rima poética e nos títulos alfabéticos, abriga ecos do jardim e das Mansões que Teresa descreveria quatro séculos depois, onde os leitores poderiam encontrar-se e, ao mesmo tempo, perder-se no embalo da oração poética: *A sabedoria do louvor divino no ensinamento de Noé é: Hikma subūHiyya fī kalima nūHiyya* *A sabedoria da misericórdia divina no ensinamento de Salomão é: Hikma raHmāniyya fī kalima sulaymāniyya* *A sabedoria do Ser divino no ensinamento de Davi é: Hikma wujūdiyya fī kalima dāwūdiyya* A sabedoria da unicidade divina no ensinamento de Muhammad é: *Hikma fardiyya fī kalima muHammadiyya* (Lawson, 2016, p. 36). Certamente, essa não é uma circulação aleatória; linguagem, profeta, comunidade, Deus, o *walī* e Muhammad, como observa Todd Lawson, constituem uma tapeçaria intrincadamente interligada de correspondências e relações no *Fusūs*: "verdadeiramente, um oceano sem margens, que atesta a realidade e veracidade da visão." O elo que os entrelaça nessa única tapeçaria de *walāya* ou amizade amorosa é *sarayān*, que significa "corrente, fluxo, circulação, emanação e permeação", produzindo ritmo, movimento e beleza (Lawson, 2016, p. 37, 45). O *bezel* da "sabedoria profética que existe na essência de Jesus" conjuga aspectos da água e, mais especificamente, seu fluxo ou circulação após deixar a fonte, com o caminho espiritual. Logo após o *bezel* da "sabedoria da predestinação na essência de Esdras" e antes do *bezel* da "sabedoria da misericórdia na essência de Salomão", Ibn 'Arabi posiciona o capítulo sobre Jesus, o único portador da sabedoria profética porque, como aponta Chittick, sua profecia é eterna (Chittick, 1984, p. 25). Para caracterizar essa atemporalidade de Jesus e sua profecia, Ibn 'Arabi utiliza um termo relacionado à liquidez: "Essa medida de vida que permeia as coisas é chamada de natureza divina (*lāhūt*), e a natureza humana (*nāsūt*) é o substrato no qual esse espírito habita. *Nāsūt* é chamada de espírito por causa daquilo que nela reside" (*Bezels*, p. 105; grifo meu).\[14\] A interligação da água nessa articulação narrativa da divindade torna-se ainda mais palpável na tradução de Yoshihiko Izutsu: "A Vida (universal), que flui por todas as coisas (*wa sarat al-hayāt fihi*), é chamada de 'aspecto divino' (*lāhūt*) do Ser, enquanto cada locus individual no qual esse Espírito (isto é, Vida) reside é chamado de 'aspecto humano' (*nāsūt*). O 'aspecto humano', também, pode ser chamado de 'espírito', mas apenas em virtude daquilo que reside (*al-qā'im*) nele" (citado por Lawson, 2016, p. 46; grifo meu). A vida eterna de Jesus permeia e flui, como a água, da natureza divina ou aspecto divino para existir essencialmente ou permanentemente, para inerir, para habitar naqueles que o recebem. A encarnação de Jesus no *Bezels* é o ponto em que a água se torna plenamente evidente neste capítulo: "o corpo de Jesus foi criado da água real de Maryam e da água imaginária de Jibrīl, que permeava a umidade de seu sopro, porque o sopro de um ser animado contém umidade e um elemento de água em si. O corpo de Jesus foi composto de água imaginada e real" (*Bezels*, p. 105). A cena do nascimento gera uma meditação sustentada sobre o sopro espiritual, a revificação, a luminosidade, a elevação e os atributos do que Ibn 'Arabi chama de Homem Perfeito, mobilizado pela água como processo, elemento e essência divina. "O cosmos," diz Ibn 'Arabi, "surgiu na forma de seu originador, isto é, o sopro divino. Quando está quente, ele sobe, e quando está frio e úmido, ele cai, pois a precipitação pertence ao frio e à umidade, e quando está seco, é estável sem tremores. A precipitação decorre do frio e da umidade" (*Bezels*, p. 108). Essa articulação científica da origem divina e do fluxo subsequente da água parece fundir *walāya* e *wilāya*, esses termos de relação e comando, de amor e autoridade que preocupavam Ibn 'Arabi e outros místicos\[15\]. Por um lado, a água circula livremente, como a amizade ou relacionalidade indicada por *walāya*; por outro, a imutabilidade do originador, que é o portador da autoridade indicada por *wilāya*, ambas se fundindo no ato da criação. Junto a Jesus, vários profetas mobilizam suas pedras preciosas por meio da água, formando assim um corpo de conhecimento discreto dentro do grande oceano sem margens. Por exemplo, "O *bezel* da sabedoria do invisível existe na essência de Jó" (*Bezels*, p. 132). O capítulo da pedra preciosa de Jó começa com uma visão abrangente sobre a água: "Saiba que o mistério da vida permeia a água, pois ela é a raiz dos elementos e a fundação (*'anāsir*, *arkān*). Por essa razão, Deus faz 'de água todas as coisas vivas' (Alcorão 21:30) \[...\] E a raiz de tudo é a água" (*Bezels*, p. 132). De fato, para Ibn 'Arabi, a água é o material que sustenta a vida. O Trono, assim como o Castelo para Teresa de Jesús, é o coração e o centro de toda atividade espiritual.\[16\] Esse espaço e material de divindade repousa sobre a água "porque foi composto de água; ele flutua sobre a água, e a água o sustenta por baixo" (*Bezels*, p. 132). A água sustenta o mundo e significa conhecimento. A pedra preciosa do conhecimento existe na essência de Moisés, pois ele possui "muitos tipos de sabedoria" (*Bezels*, p. 156). Codificado em uma interpretação da história de Moisés, Ibn 'Arabi oferece a correspondência entre a água e o conhecimento: "Quanto à sabedoria de colocá-lo (Moisés) no cesto (*tābūt*) e lançá-lo no rio, (o significado é o seguinte): o cesto alude à sua humanidade, enquanto o rio é o símbolo do conhecimento que ele alcançou por meio de seu corpo. Apenas através do corpo, composto pelos quatro elementos, a alma humana pode ser suprida com as faculdades de raciocínio, sensação e imaginação. \[...\] Quando ele foi lançado ao rio para obter diferentes tipos de conhecimento por meio dessas faculdades, Deus lhe ensinou que, embora o espírito que o guia seja seu governante, o espírito o direciona por meio dessas faculdades" (*Bezels*, p. 157). Assim como Teresa de Jesús via a morte do eu do jardineiro como necessária para receber a chuva de Deus, Ibn 'Arabi enxerga a imersão nas águas do conhecimento experimentada por Moisés, quando colocado no cesto e lançado ao rio, como "uma forma externa de destruição", um momento em sua vida que, ao mesmo tempo, o salva de ser morto posteriormente (*Bezels*, p. 158). Moisés, o homem cujo nome deriva do copta *mū* (água) e *sā* (árvore), traz vida ao Faraó e à sua esposa, apenas para ser tecido em uma densa tapeçaria de exaltação da sabedoria onde Adão, Faraó e al-Khidr desempenham papéis relacionados à água, ao conhecimento, à vida e à morte. O *bezel* da sabedoria de exaltação de Noé envolve transcendência, limitação e restrição, mostrando como restringir o fluxo de seu chamado ao seu povo—a combinação de um chamado para um Deus transcendente e um Deus imanente—levou seu povo a fugir e não ouvir sua mensagem. Por não combinar ambos os chamados, Noé recorre à citação do Alcorão: "Ele enviará chuva abundante do céu para vocês," mas falha em revelar que a chuva representa diversos tipos de conhecimento intelectual e, por isso, a chuva e o conhecimento acabam "distantes dos frutos da reflexão" (*Bezels*, p. 39). Por não atenderem ao seu chamado, o povo de Noé perece nas mesmas águas do mar de conhecimento de Deus. Conhecimento e amor devem fazer parte do processo de imersão na água, para que o caminho espiritual seja liberado em direção à união com Allah. Para Angela Jaffray, a água desempenha mais do que um papel de suporte em outras unidades narrativas teológicas (como personagem, lugar, ação, e assim por diante). Em sua análise da visão de Ibn 'Arabi sobre o Um e o Múltiplo, ela argumenta que a água contém pistas poderosas, porque "desempenha uma função nos escritos de Ibn 'Arabi que é análoga ao seu tratamento do Islã, do Alcorão e do profeta Muhammad" (n.p.). Assim como a água é um dos quatro elementos, o Islã é uma das quatro religiões monoteístas mencionadas no Alcorão, ao lado do Judaísmo, Cristianismo e Sabeísmo. Para os fiéis, a água é tanto um elemento ligado ao discurso científico, carregado de fórmulas, abstrações ou objetos materiais de engenharia, como poços, reservatórios, rodas d'água ou oásis, quanto um princípio metafísico, pois "ela estimula a imaginação como um símbolo polivalente que expressa muitas coisas" (Jaffray, 2008, n.p.). **4. Conclusões** A água, de fato, estimula a imaginação e se desdobra de forma proteica para significar muitas coisas diferentes nas obras de Teresa de Jesús e Ibn 'Arabi: vida, caminho, combustível para a oração, conhecimento, morte, processo, origem e sopro divino, entre muitas outras. Em seus inúmeros livros dedicados ao caminho espiritual e às experiências de amor por Deus e com Deus, ambos inscrevem diversas versões e formas de água que oferecem aos leitores e interlocutores espirituais maneiras de imaginar e compreender, intelectualmente e somaticamente, esse amor divino. A água, então, não é apenas um elemento a ser administrado, controlado ou conhecido racionalmente; como aponta Lawson, ela é um sinal e elemento cuja permeação e fluxo constante permitem que "todas as várias oposições sejam resolvidas, dissolvidas e até invertidas. Em resumo, a simetria temível de nossas vidas é mostrada como efêmera, enquanto a substância de nossas vidas, *walāya*, é mostrada como atemporal e permanente" (Lawson, 2016, p. 48). Esse significado atemporal e permanente da água certamente compartilha terreno simbólico e semântico com os aspectos teológicos e legais do Batismo, o Sacramento cristão projetado para trazer a vida divina a um crente e assegurar uma presença permanente de Deus em sua alma. Ibn 'Arabi também menciona o aspecto ritual da ablução como um meio de purificar e preparar o corpo para receber Deus. Esses são enfoques ritualizados e institucionalizados da água que, sem dúvida, ocupam um lugar importante nas crenças desses dois místicos. No entanto, a água também é fonte de vida, conhecimento, *poesis*, beleza e um caminho para experimentar e expressar o amor a Deus e o amor de Deus por eles. Como tal, a água é nexo, estrutura, vínculo, origem e canal do e para o caminho espiritual. Humildade e piedade são os átomos que constituem esse elemento, assim como o são as relações com outros, como os confessores, as freiras e Deus no caso de Teresa de Jesús, ou com os profetas, os membros de suas comunidades e Deus no caso de Ibn 'Arabi. Essa relacionalidade é marcada por um desejo de comunicar a centralidade da água, da oração e do conhecimento em termos de beleza. Embora suas obras sejam escritas em forma narrativa, as páginas anteriores mostram os benefícios de lê-las como *poesis*, pois a beleza é parte integral do acontecimento da água como caminho espiritual e da jornada espiritual de um crente. Rimas, estruturas, padrões, números e relações entre sinais e pessoas compõem o aspecto sistemático dessas vertentes espirituais. Ao permitir que a vida do corpo e do espírito negocie o divino e o humano, *walāya* e *wilāya*, umidade e secura, uma pedra preciosa e outra, um profeta e outro, ou um segmento do jardim e outro em movimento constante, fluindo como e com a água, os leitores podem captar uma parte substancial de sua mensagem. Muito trabalho ainda precisa ser feito para compreender plenamente o impacto e o significado da água em relação aos jardins, à profecia, à amizade, à autoridade, à santidade, aos sacramentos, aos rituais, entre outros, tanto no misticismo cristão/espanhol quanto no sufi. Espera-se que o crescimento experimentado nos estudos andalusinos nas últimas décadas continue a revelar descobertas sobre as formas de transmissão do misticismo sufi andalusino e seu contínuo em períodos históricos posteriores na Península Ibérica. Até lá, as evidências fornecidas por esses textos místicos oferecem prova de um diálogo textual baseado em imagens fornecidas por seus autores para alimentar sua busca espiritual e a de seus leitores. A presença e o significado da água nas obras desses dois e de outros místicos podem ser interpretados como um convite para afrouxar as rédeas de argumentos estritamente nacionais, religiosos, históricos ou filológicos, um sinal em seus textos que, quando lidos em diálogo, podem contribuir para uma melhor compreensão dos grandes caminhos espirituais que construíram. Ao lado do *Cristo de la Cepa*, do pássaro, dos sete castelos concêntricos ou mansões e de inúmeros outros sinais e símbolos místicos que conectam o misticismo cristão/espanhol ao sufi, a água mostra outro exemplo de como esses grandes legados espirituais se informam mutuamente. Com quatro caminhos, ou uma e muitas águas, cada crente pode encontrar sua própria maneira de chegar a Deus e de caminhar com Ele. Com Ibn 'Arabi, concluo recitando do *Fusūs*: "Se o crente entendesse o significado da frase 'a cor da água é a cor do recipiente', ele admitiria a validade de todas as crenças e reconheceria Deus em todas as formas e em todos os objetos de fé."\[17\] Que possamos deixá-las fluir juntas. \[1\] A importante coletânea de ensaios editada por Richard Pym sobre vários aspectos da moralidade estabelece uma crítica radical às leituras convencionais da história espanhola como plenamente alinhada a este poderoso quadro retórico de virtudes e moral exclusivamente católicas. Segundo Pym (2006), o tom imperativo e o registro de documentos oficiais—como as *Recopilaciones* e a série de éditos, publicados e entregues por *pregoneros* (arautos) em toda a Península para tornar essas leis conhecidas de todos os cidadãos—não "se mapeavam sem problemas na complexa topografia da vida cotidiana, ou na experiência imediata dos espanhóis", onde abundavam vozes de ceticismo, subversão, ironia, sobrevivência e outras formas de resistência (p. ix). \[2\] Enfatizo "misticismo espanhol" para questionar a percepção de que a literatura e a história desses místicos sejam exclusivamente espanholas, o que pode parecer significar que foram produzidas em, ou que só sejam significativas para, um sentido religioso ou linguístico exclusivo, um espírito nacionalista ou um tom e registro imperial. Esses textos foram produzidos na Espanha, na maior parte, por figuras monásticas católicas; entretanto, como tem se tornado evidente, o espírito e as letras de seu legado estão longe de ser monolíngues, monoculturais ou inspirados por um único dogma. Sem dúvida, chamá-los de místicos andalusinos não seria totalmente correto, dadas as mudanças políticas trazidas pela capitulação do Reino Nasrida de Granada após 1492. Para descolonizar a expressão, o presente estudo emprega intencionalmente a expressão "místicos espanhóis" como figuras que inscrevem a memória histórica de al-Andalus em suas obras literárias e teológicas. \[3\] Cynthia Robinson (2006, 2013) e Conde Solanes (2020) estão entre os muitos estudiosos que analisaram o solo fértil medieval sobre o qual a sobrevivência desse pluralismo religioso e espiritual se fundamenta. O trabalho de Robinson mostra como tradições espirituais ibéricas, como a do "Cristo de la Cepa" (figura devocional de Cristo esculpida em madeira de videira), foram forjadas em al-Andalus pela influência de místicos sufis do século IX, como Abū 'l-Mughīth al-Husayn bin Mansūr al-Hallāj e Sahl al-Tustarī, da Pérsia, e 'Abd Allah b. Masarra, de Córdoba. Conde Solanes também aponta que práticas devocionais sustentadas como esta revelam a existência de legados "preservados na Espanha medieval por monges beneditinos e dominicanos cuja principal missão era converter almas judaicas e muçulmanas ao cristianismo" (Conde Solanes, 2020, p. 4). O sistema devocional estruturado por árvores de amor e conhecimento, sinais-chave do jardim espiritual e artístico andalusino, e sua influência nas práticas devocionais castelhanas são explorados em profundidade por Robinson (2006). \[4\] Os debates recentes sobre as origens do misticismo sufi em al-Andalus tornam ainda mais difícil a leitura do cenário das práticas cripto-religiosas na Espanha do século XVI. Consulte *The Rise of the Andalusī Mu'tabirūn* de Yousef Casewit (Casewit, 2017, pp. 57–90). O modelo de aprendizado profundo e teologia comparativa de Francis X. Clooney (Clooney, 2010) através de fronteiras inspirou boa parte do pensamento por trás deste estudo comparativo; os erros, claro, são todos meus. \[5\] Para uma análise da água em cosmogonias heterodoxas islâmicas e cristãs do período otomano, veja Stoyanov (2001). \[6\] Muḥyī al-Dīn Muḥammad ibn 'Alī ibn al-'Arabī (560/1165–638/1240) é referido aqui pelo nome mais comum, Ibn 'Arabi, e Teresa de Cepeda y Ahumada (1515–1582), mais conhecida como Santa Teresa de Ávila, é nomeada aqui por seu pseudônimo, Teresa de Jesús, e doravante chamada apenas de De Jesús. Sobre os nomes de Teresa de Jesús e sua importância crítica, consulte Carrión (1994, pp. 43–67). \[7\] Citado em Jafray (2008, n.p.). \[8\] Doravante citado como *Vida* (De Jesús, 1995). O primeiro número de página entre parênteses corresponde à versão original em espanhol, citada a partir da edição do Padre Silverio de Santa Teresa O.C.D. (De Jesús, 1915); salvo indicação em contrário, as citações em inglês são da tradução de Edgar A. Peers (De Jesús, 1995). \[9\] Para uma amostra representativa das análises literárias e espirituais de Teresa de Jesús favorecendo esses ápices, que constituem a vasta maioria da recepção de sua obra até há um século, ver Ricard (1965), Dickens (1970) e García de la Concha (1978). Para uma bibliografia mais completa dessas vertentes de recepção, ver Carrión (1994). \[10\] Liz Herbert McAvoy (2014a, 2014b) e Naoë Kukita Yoshikawa (2014) oferecem críticas feministas importantes à tradição do *hortus conclusus* na literatura do Norte da Europa. \[11\] A representação da água no *Castelo Interior* oferece a possibilidade de uma leitura teológica comparativa com os edifícios e jardins de La Alhambra. Ver Carrión (2017). \[12\] Manuela Ceballos argumenta que a questão das fronteiras, especialmente a compreensão clara da porosidade dessas fronteiras, é crucial para a interpretação das obras de místicos sufis e cristãos de al-Andalus e do Norte da África (Ceballos, 2016). \[13\] Doravante citado como *Bezels*. Salvo indicação em contrário, as citações em inglês são da tradução de Binyamin Abrahamov. \[14\] Para uma análise filosófica comparativa da água como vida no taoísmo e no sufismo, ver Izutsu (1984, pp. 141–151). \[15\] Vincent Cornell examina profundamente a importância crítica desses "gêmeos fraternais semânticos que coexistem simbioticamente, como yin e yang" para entender a santidade no Marrocos (Cornell, 1998, p. 1). \[16\] Sobre o coração dos fiéis como o Trono do Todo-Misericordioso, ver Nasr (2002). \[17\] Citado na introdução sobre Ibn 'Arabi no site da *The Muhyiddin Ibn Arabi Society*. Disponível em: https://ibnarabisociety.org/introduction-muhyiddin-ibn-arabi/. Acesso em: 11 out. 2020. --- [ARTIGO NO IDIOMA ORIGINAL](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000201-5d7085d70a/religions-11-00542.pdf?ph=4df81238fe) # O CARMELO DESCALÇO E O ESOTERISMO: PARTE 4 - O SÍMBOLO DOS SETE CASTELOS CONCÊNTRICOS DA ALMA 08/01/2025 Autor:Luce López-Baralt Tradução: Prof. Gabriel Sapucaia ![](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000203-1ee7d1ee7e/concentric-castles-1024x512.jpeg?ph=4df81238fe) ##### **TERESA DE JESÚS E O ISLÃ: O SÍMBOLO DOS SETE CASTELOS CONCÊNTRICOS DA ALMA** Santa Teresa de Jesús, uma das mais ilustres contemplativas do Renascimento Espanhol, enfrenta uma avassaladora afasia ao se deparar com a difícil tarefa de comunicar, de alguma forma, seu êxtase místico. No entanto, ela está em obediência e sabe que deve instruir suas freiras sobre o caminho interior que devem seguir para alcançar a união com aquele Amor que, para Dante, movia "o sol e as outras estrelas".\[1\] Ela está ciente de que sua tarefa não é apenas difícil, mas, em si, impossível: nessas operações íntimas da alma, acessa-se a linguagem secreta de Deus. E com essa "linguagem de Deus" (como disse seu mestre espiritual, São João da Cruz), é necessário "entendê-la para si mesmo, gozá-la e senti-la, e quem a possui deve permanecer em silêncio".\[2\] Mas era importante que as freiras, a quem a Madre Reformadora dirigia com tanta vigilância, de alguma forma acessassem o domínio superior de sua diretora espiritual. Santa Teresa pede inspiração a Deus e sente que a encontra: "Hoje \[eu estava\] suplicando a nosso Senhor que falasse por mim—porque eu não atinava coisa a dizer nem como começar a cumprir com esta obediência \[escrever o livro do *Castelo Interior*\] com algum fundamento, que é considerar nossa alma como um castelo todo de diamante ou cristal muito claro, onde há muitos aposentos, assim como no céu há muitas moradas."\[3\] A inspiração de Santa Teresa encontra expressão em um símbolo de estranha beleza e complexidade imaginativa. A alma revela-se a ela na forma de sete castelos ou globos concêntricos feitos de cristal fino ou diamante; a santa percebe que sua alma interior é composta da luz incriada na qual todos os autênticos místicos sentem-se, de alguma forma, imersos. No último castelo resplandecente está Deus, com quem a alma se une, deixando para trás o demônio que—na forma de diferentes animais venenosos—tenta penetrar os castelos que marcam as moradas progressivas do caminho místico. O esquema simbólico pareceria ser original, devido a uma consideração importante: foi impossível documentá-lo, em todos os seus detalhes e elementos constitutivos, no misticismo europeu que precede a Reformadora. E a santa, que geralmente tinha tanta dificuldade em lembrar suas fontes, não nos ajuda na tarefa de rastrear as possíveis origens de seu símbolo luminoso. Hoje, abordamos símbolos místicos com ferramentas teóricas mais modernas. Mesmo que as visões que deram origem aos escritos da santa fossem autênticas, Barbara Kurtz alerta que "a linguagem dos místicos não pode transcrever uma experiência sem interpretá-la e mediá-la, por mais que o místico lute contra os limites da linguagem humana, incapaz de se aproximar da transcendência".\[4\] É impossível expressar uma experiência pura em forma literária sem algum tipo de mediação verbal. Assim, a experiência mística toma forma a partir de elementos relacionados às coordenadas culturais que o místico traz para a experiência, influenciando, inclusive, a própria forma da experiência. Os místicos usam—e, de fato, não podem deixar de usar (e agora cito Stephen Katz)—"os símbolos disponíveis de seus contextos culturais e religiosos".\[5\] Se aceitarmos a sugestão de Katz (e suas palavras são, em todos os aspectos, persuasivas), Santa Teresa de Jesús nos apresenta um problema histórico-literário de primeira magnitude: seus estranhos castelos concêntricos não parecem ser descendentes da tradição cristã ocidental. É precisamente para contribuir com a elucidação desse antigo enigma literário que dirijo estas páginas. O símbolo teresiano das moradas interiores da alma gerou, de fato, um dos problemas filológicos mais interessantes da literatura espanhola. O símile desses sete castelos concêntricos, como já mencionei, não faz parte do legado cultural europeu; por isso, estudiosos têm se dedicado febrilmente à busca de fontes literárias para essas esquivas fortalezas da alma. Fazer um inventário desses estudos de fontes—por mais enganoso que seja—é um trabalho que já realizei em outro lugar;\[6\] por isso, limitarei-me aqui a lembrar apenas os casos mais representativos. As descobertas de estudiosos como Morel Fatio, Gaston Etchegoyen, Menéndez Pidal e R. Hoornaert atenuam, até certo ponto, nossa surpresa diante do símile da alma como um castelo, pois documentam equivalências semelhantes em autores anteriores à santa. No entanto, parece justo destacar que Carl Jung e Mircea Eliade também enfatizam a universalidade dessa imagem. Em seus estudos sobre alquimia, Jung reproduz uma gravura de um castelo fortificado com 16 torres e um fosso interior. Esse esquema coincide com os mandalas orientais que descrevem o Tao ou a busca pela consciência profunda, mas foi desenhado por ninguém menos que um de seus pacientes.\[7\] Há alguns anos, percorri o templo de Borobudur, em Java, uma grande torre cercada por uma escadaria em espiral que leva lentamente ao seu interior simbólico. As fortificações, que devem ser superadas em etapas, são evidentemente um símile comum para descrever o acesso à interioridade da alma. Contudo, esses antecedentes—o castelo arquetípico desenhado pelo paciente de Jung, os edifícios orientais construídos como mandalas de pedra e os textos literários identificados por críticos europeus ilustres, que examinarei nas páginas seguintes—acabam sendo de pouca utilidade para o projeto de rastrear as fontes teresianas. Em nenhum deles encontramos o avanço místico da alma claramente estruturado em sete moradas (ou castelos), progressivamente mais interiores. Gaston Etchegoyen, um dos críticos que mais profundamente estudaram o problema filogenético dos castelos em sua obra *L'amour divin: essai sur les sources de Sainte-Thérèse* (1923),\[8\] propõe como principais fontes de Teresa Bernardino de Laredo e Francisco de Osuna. Ambos os autores, frequentemente lidos pela santa, são insuficientes para explicar os detalhes do símbolo da Reformadora. Osuna limita-se a um esboço muito atrelado às alegorias medievais, nas quais os inimigos tradicionais (a carne, o mundo e o demônio) tentam penetrar o castelo da alma. Osuna escreve: "\[Q\]ue se guarde o coração com toda diligência, como se guarda o castelo que está cercado, colocando contra os três cercadores três lâmpadas: contra a carne, que nos cerca com deleites, ponha-se a castidade; contra o mundo, que nos rodeia com riquezas, ponha-se a liberalidade e a esmola; contra o demônio, que nos persegue com rancores e inveja, ponha-se a caridade."\[9\] O símile de Laredo é mais intrigante e complexo, mas fundamentalmente mais distante do de Teresa: o entendimento é como uma *civitas sancta* situada em um campo quadrático, com uma fundação de cristal e muros de pedras preciosas, com um círio pascal no centro simbolizando Cristo. Para Bernardo de Claraval, o castelo da alma baseia-se em uma alusão, sem dúvida mais utilitária e prosaica, ao castelo da Ordem de Claraval. Por sua vez, Robert Grosseteste opta por equiparar seu castelo interior ao ventre da Virgem Maria recebendo Cristo, como faz em seu *Château d'amour*, um tratado anglo-francês escrito no século XIII. Ele é ecoado por Mestre Eckhart, que reforça essa equivalência ao utilizar uma passagem do evangelho de Lucas (10:38): *Intravit Jesus in quodam castellum*. Certamente, não ocorreu a Santa Teresa utilizar esse útil reforço bíblico; sua imagem, sem dúvida, seguiu outras direções. Os portugueses estavam fascinados pelo símile do castelo espiritual, embora o desenvolvessem com as mesmas limitações de seus correligionários europeus. Para Santo Antônio de Lisboa (ou de Pádua), o *castellum*, cujas torres e muros ele descreve cuidadosamente em seus *Sermones et evangelia dominicarum*, simboliza a Virgem Maria; seu compatriota Frei Paio de Coimbra concorda. Mais interessante, talvez, é Dom Duarte, que em seu *Leal Conselheiro* nos fala das "cinco casas do nosso coração", progressivamente mais interiores. O aposento mais interior é o "oratório", e Mario Martins está correto ao perceber uma certa relação de parentesco entre esse escritor português e Santa Teresa: "eles pertencem à mesma tribo, embora de família mais humilde."\[10\] Diante da dificuldade de encontrar a semente desse símile, Ramón Menéndez Pidal propôs como antecedente os romances de cavalaria—os *best-sellers* do Renascimento Espanhol—que a santa leu com tanta paixão juvenil. Mas, ao examinarmos de perto os castelos encantados de Amadís, do *Baladro del sabio Merlín*, da *Peregrinación de la vida del hombre* (de Pedro Hernández de Villalumbrales), entre tantos outros livros semelhantes, somos forçados a concluir que eles não nos oferecem a chave para o símbolo da imaginativa freira de Ávila. Neles, vemos palácios resplandecentes de ouro ou prata, adornados com joias; mas nunca são sete vezes concêntricos, nem celebram a união teopática em seus recessos interiores. Em um ato que quase parece de desespero crítico, por outro lado, alguns estudiosos optaram por uma solução extraliterária para explicar a inspiração repentina da Reformadora. Miguel de Unamuno propôs, por volta de 1909, que a cidade murada de Ávila serviu como modelo para *Las moradas*, e Robert Ricard, em 1965, deu credibilidade a Unamuno.\[11\] Em 1970, Trueman Dicken propôs como solução filogenética não Ávila, mas o castelo da Mota em Medina del Campo, que ele se apressou em comparar minuciosamente (e, ao que me parece, sem muito sucesso) com o castelo das sete moradas do misterioso símile de Santa Teresa.\[12\] Nenhuma dessas estruturas (como é óbvio para todos, uma vez que ainda podemos visitá-las) consiste em sete castelos progressivamente mais interiores. E. Allison Peers resume a decepção geral dos estudiosos ocidentais diante da impossibilidade de encontrar precedentes para o esquema simbólico de Teresa na espiritualidade cristã com estas palavras solenes: "nunca houve um escritor cujas fontes fossem menos proveitosas de estudar."\[13\] Nem outras tentativas de contextualizar o símile dentro de uma cosmogonia espiritual de origem aristotélica conseguem explicar seus detalhes principais. É evidente que Santa Teresa, ao nos falar de sua alma na forma de sete círculos ou castelos concêntricos, alude indiretamente às sete esferas planetárias. Nesse aspecto, ela coincide, em traços amplos, com escritores espirituais de diversas crenças religiosas que fizeram o mesmo. A Reformadora visualiza sua alma como um símbolo microcósmico do macrocosmo celestial: ela equipara suas moradas espirituais não apenas a castelos, mas a esferas celestes. Em seu tratado *Las Moradas*, ela faz referência ao "céu divino", ou seja, à contraparte celestial que é sua alma ou o castelo mais recôndito em estado de perfeita unidade. São João da Cruz também alude, certamente, a essas sete moradas que constituem sua alma concêntrica. Ao fazer isso, ambos os místicos ecoam uma venerável tradição cosmológica que alcançou tanto o Oriente quanto o Ocidente. Em seu *De caelo*, Aristóteles imagina um universo na forma de esferas concêntricas girando em movimento circular; e esse esquema cósmico, como Seyyed Hossein Nasr lembra, "transformou-se em um símbolo que forneceu o pano de fundo para o caminho espiritual do ser humano".\[14\] As tradições neoplatônicas, helênicas, pitagóricas, gnósticas e herméticas adaptam a estrutura simbólica universal à espiritualidade pessoal. Em textos tão diversos como o Alcorão (23:17 e 65:12) e os tratados espirituais de Pseudo-Dionísio, o Areopagita, encontramos o símile concêntrico repetido. Todas essas tradições, tão dissimilares entre si, propõem que o homem primordial, cuja natureza (de origem divina) permaneceu presa em um corpo mortal, deve ascender simbolicamente pelas órbitas concêntricas do universo até alcançar a reunião com a Divindade. O *Miʿraj* (traduzido na Europa como *O Livro da Escada* do profeta Maomé) é, talvez, o exemplo mais claro da elaboração islâmica do antigo motivo cósmico, enquanto o Livro 3 de Enoque ou o Livro dos *Hejalots* representa uma reescrita hebraica da mesma tradição venerável.\[15\] A *Divina Comédia* de Dante (tão em dívida, como demonstrou Miguel Asín, com a escatologia muçulmana) também estrutura o caminho espiritual simbólico pelas esferas.\[16\] Francisco Rico e Aurora Egido acrescentam outros escritores espirituais ocidentais que reformulam a imagem da alma como um "pequeno céu".\[17\] Henry Corbin\[18\] e Michael Sells\[19\] acrescentam paralelos no misticismo islâmico: numerosos sufis ascendem por esferas concêntricas, simbólicas da alma, em busca do estado de *fanāʾ*, ou união espiritual suprema. Nesse sentido, lembremos os sete órgãos ou centros sutis (*laṭīfa*) de Simnani, os sete céus interiores de Najm al-Din al-Kubrā e os sete orifícios do trono de Deus, que constituíam a contraparte da alma do homem, segundo a cosmogonia espiritual de Ruzbehan de Shiraz. Santa Teresa alinha-se com todos esses contemplativos, herdeiros das antigas cosmogonias gregas, e descreve em suas *Moradas* um caminho de descida espiritual rumo ao ápice último de sua alma por meio de sete etapas ou moradas sucessivas que lembram céus concêntricos. Mas ela impõe a si mesma uma ressalva: a santa visualiza suas moradas ou esferas como castelos simbólicos, e parece, com isso, ter introduzido uma variante singular ao esquema cósmico venerável das órbitas planetárias que herdou, em última análise, de Aristóteles. Parece, então, que o alerta de E. Allison Peers continua sendo ignorado: "nunca houve um escritor cujas fontes fossem menos proveitosas de estudar." Miguel Asín, no entanto, rompeu o impasse crítico ao anunciar a existência de um texto anônimo chamado *Nawadir*, uma "curiosa compilação de relatos e pensamentos religiosos \[...\] redigida no final do século XVI".\[20\] Asín conseguiu encontrar o germe esquemático, mas preciso, dos castelos teresianos e descreve sua descoberta em um ensaio brilhante que veio à luz postumamente, em 1946: *El símil de los castillos y moradas en santa Teresa y en el Islam* ("O símile dos castelos e moradas em Santa Teresa e no Islã"). Embora não encontremos no *Nawadir* a elaboração mística exaustiva que Santa Teresa leva a termo, estão presentes ali os principais elementos da imagem que a Reformadora acreditava ser produto exclusivo da inspiração de Deus: "Deus colocou para cada filho de Adão sete castelos, dentro dos quais está Ele e fora dos quais Satanás late como um cão. Quando o homem permite que uma brecha seja aberta em um deles, Satanás entra por ela. Por isso, é aconselhável que ele vigie e proteja esses castelos com todo cuidado, particularmente o primeiro; pois, enquanto seus fundamentos permanecerem intactos e em pé, não há mal a temer. O primeiro dos castelos, feito de pérola branca, simboliza a mortificação da alma sensitiva. Dentro dele, há um castelo de esmeralda, que representa a pureza e sinceridade de intenção. Dentro deste, encontra-se um castelo de mármore brilhante, que simboliza a obediência aos mandamentos de Deus, tanto positivos quanto negativos. Dentro dele, há um castelo de pedra, que representa a gratidão pelos benefícios divinos e a conformidade com o divino beneplácito. Dentro desse castelo, há um de ferro, que simboliza o abandono nas mãos de Deus. Dentro do castelo de ferro, há um castelo de prata, que representa a fé mística. E, por fim, dentro deste, há um castelo de ouro, que simboliza a contemplação de Deus—glorificado e honrado seja!—. Como já disse Deus (exaltado seja!) no Alcorão (16:101): "Satanás não tem poder sobre os que creem e colocam sua confiança em Deus."\[21\] O problema da relação islâmica com o castelo concêntrico de Teresa, contudo, não foi completamente resolvido por Asín, pois as evidências documentais que ele possuía provinham de um texto do final do século XVI—portanto, contemporâneo ou posterior à santa de Ávila. Asín acreditava que o símile havia sido aperfeiçoado no Islã de sua época, já que Aḥmad al-Ghazālī (irmão do célebre filósofo) delineou, em seu *Kitāb al-Tayrīd*, o esquema da alma em termos de círculos concêntricos. Nesse ponto, o mestre estava equivocado, como eu mesma viria a descobrir muitos anos depois. Em 1981,\[22\] anunciei minha boa sorte em resolver as principais dúvidas de Asín quanto à origem do símbolo, pois obtive evidências documentais das quais o mestre não tinha conhecimento quando escreveu seu ensaio em 1944. Esse documento foi encontrado inserido no *Maqāmāt al-Qulūb* (ou *Moradas dos Corações*), de Abu-l-Ḥasan al-Nūrī de Bagdá, que publiquei em versão espanhola.\[23\] À luz dessa descoberta, pareceu plausível que estivéssemos diante de um motivo simbólico recorrente no misticismo islâmico. Al-Nūrī repete, com variantes pouco significativas, o esquema simbólico dos sete castelos concêntricos do *Nawādir* na oitava vinheta de seu tratado. Os dois exemplos documentados por Asín e por mim—com séculos de diferença entre os textos, do século IX ao XVI—apontaram para a probabilidade de uma tradição recorrente na literatura sufista. Muitos anos após o anúncio inicial da minha descoberta, é gratificante apontar que já não estamos em território especulativo: consegui documentar o símbolo dos sete castelos concêntricos não apenas nas *Moradas dos Corações* de Al-Nūrī, mas também em outros autores islâmicos adicionais. Os principais—embora não os únicos—são Al-Ḥakīm al-Tirmidhī, que concebeu o símile no século IX (antes de Al-Nūrī, em seu *Gawr al-Umūr* ou *Livro sobre a Profundidade das Coisas*); e Muḥammad b. Mūsā al-Damīrī (falecido em 808/1405), autor do extenso *Dicionário de História Natural*, conhecido em árabe como *Kitāb Ḥayāt al-Ḥayawān*. Al-Damīrī repete o símile no século XIV, sem dúvida emprestando-o de fontes anteriores. Temos, portanto, o esquema teresiano dos sete castelos concêntricos documentado no século IX (dois casos), no século XIV e no século XVI. Estamos, sem sombra de dúvida, diante de uma imagem recorrente no Islã, como Asín e eu havíamos suspeitado desde o início. Outros escritores espirituais sufis também aludem a ela, como Jalāluddīn Rūmī, no século XIII, e Ṣadr al-Dīn Shīrāzī (conhecido como Mullā Ṣadrā), no século XVI. Numerosos autores utilizaram o símile dos castelos interiores, e entre eles, José Antonio Antón Pacheco\[24\] acrescenta o caso do persa Suhrawardi. O célebre contemplativo do século XII emprega a imagem em seu *Kitab Hayakil an-Nur* (*O Livro dos Templos de Luz*) e considera que cada um de seus sete *hayakil* ("templos" ou "palácios") corresponde a momentos distintos no processo de interiorização mística e metafísica. Como muitos outros autores, Suhrawardi interioriza a jornada simbólica pelas sete órbitas planetárias, transformando o percurso *ad extra* em uma jornada *ad intra*. Embora Antón Pacheco acredite—em consonância com Louis Massignon e Henri Corbin—que essas coincidências entre o misticismo islâmico e o teresiano não se devem a influências ou empréstimos literários, mas ao fruto de "uma experiência espiritual originária",\[25\] em minha opinião, não vejo problema em acrescentar o caso de Suhrawardi à longa cadeia de autores islâmicos que empregam o símbolo dos sete castelos ou palácios concêntricos no caminho místico. Essa cadeia de autores é extensa e consistente demais para ser mera coincidência: tudo indica que estamos diante de um lugar-comum no sufismo. A poetisa e orientalista Clara Janés, por sua vez, também faz referência ao tema e acrescenta novos pontos de contato entre Santa Teresa e os sufis em seu discurso de aceitação do décimo *Premio Nacional de las Letras Teresa de Ávila* (2007).\[26\] Não é difícil imaginar que novas pesquisas trarão à luz outros exemplos do símile do castelo interior sete vezes concêntrico na literatura islâmica. Os estudos realizados até agora confirmam a intuição pioneira de Miguel Asín. Santa Teresa, portanto, não parece ter "inventado" a bela e plástica imagem dos castelos interiores, por mais incomum que ela possa ter parecido às sensibilidades ocidentais. Ela simplesmente a elaborou com engenhoso detalhe, cristianizou-a e adaptou-a aos seus próprios propósitos. As origens do símbolo, como temia E. Allison Peers, não são, então, tão "inúteis" de se estudar. Elas apenas são desveladas com grande esforço: obviamente, foi necessário que eu realizasse este estudo prolongado não no Ocidente, mas no Oriente, e esse fato fala por si. Antes de passar à explicação do símbolo dos castelos concêntricos no Islã e explorar suas ressonâncias e variantes com as moradas de Teresa, considero válido relatar as múltiplas moradas—mais de sete, sem dúvida—que tive de habitar ao longo da investigação deste símbolo concêntrico da alma, cujo primeiro traço Miguel Asín descobriu com tanta fortuna. A tentativa de esclarecer a origem do símile dos castelos transformou-me em uma itinerante, *causa sophiae*—em busca de sabedoria, como diziam aqueles escolares medievais que viajavam laboriosamente em busca de códices e mestres. Um comparatista, como meu amigo Claudio Guillén certa vez disse, é "uma pessoa que frequentemente incomoda seus amigos". Ainda mais, um hispano-arabista que escreve das *ínsulas extrañas* ("ilhas estranhas"), das quais São João da Cruz cantou no século XVI.\[27\] Minhas primeiras investigações começaram em 1971, durante meu período de estudos na *American University of Beirut*, no Líbano. Tudo aconteceu, como geralmente ocorre, fortuitamente. A sorte trouxe-me a amizade de uma freira de Malta, Irmã Mary Busutil, com quem compartilhava interesse por temas espirituais. Uma tarde, ela me convidou a estudar com ela no convento onde vivia no Beirute daquela época, hoje perdido para sempre. Na modesta estante de sua cela, deparei-me com o livro de Paul Nwyia, *Exégèse coranique et langage mystique*, que havia sido publicado recentemente.\[28\] Ao folhear ansiosamente suas páginas, rendi-me à surpresa—uma sensação que ainda sinto vividamente—de descobrir que um remoto visionário de Bagdá do século IX, chamado Abu-l-Ḥasan al-Nūrī, concebera seu coração extático sob o símbolo de sete castelos ou moradas concêntricas (*maqāmāt al-qulūb*), no centro mais profundo das quais ocorria o milagre da união com Deus. Essa descoberta foi um presente inestimável para um leitor de Santa Teresa de Jesus. O professor Iḥsan ʿAbbas iniciou-me, então, nas teorias de Asín Palacios sobre a possível raiz islâmica do símile de Santa Teresa (devo admitir que eu era uma jovem iniciante na época e ainda não havia lido o célebre ensaio de Asín). Ao lê-lo, percebi que nem Miguel Asín nem Louis Massignon tinham conhecimento de Nuri, um escritor espiritual do século IX pertencente à escola de Bagdá dos "místicos inebriados". Ele foi um pioneiro na codificação do misticismo islâmico, ao qual foram atribuídos inúmeros carismas e uma espiritualidade que beirava o heroico. Seus ensinamentos piedosos, sua percepção espiritual aguçada e, acima de tudo, sua iluminação interior lhe renderam os epítetos de Nuri ou "luminoso" e "Príncipe dos Corações". Junayd, apesar das diferenças de interpretação do caminho místico que às vezes o separavam de Nuri em vida, lamentou a morte de seu companheiro com estas palavras solenes: "\[m\]etade do sufismo desapareceu com ele".\[29\] Minha primeira tradução do árabe, tão hesitante quanto jubilosa, foi precisamente dessas *Maqāmāt al-Qulūb* ou *Estações dos Corações*. Eu estava no caminho. Anos depois, com o primeiro rascunho da minha tradução das *Maqāmāt al-Qulūb* em mãos, encontrei-me na Universidade de Harvard com Kamil al-Sheibi, o grande estudioso iraquiano de Nuri. Com o apoio de uma bolsa do *National Endowment for the Humanities*, fui a Bagdá estudar com Sheibi a obra desse enigmático contemplativo, que antecedera o símbolo dos castelos teresianos por sete longos séculos. Naquele tempo, Sheibi preparava sua edição das obras completas de Nuri, baseada nos manuscritos inéditos de sua obra, que ele havia conseguido reunir ao longo de muitos anos. Generosamente, ele compartilhou comigo alguns desses códices. Permanecerá para sempre gravada na minha memória aquela cena às margens do rio Tigre, ladeado por palmeiras, onde trabalhávamos, um cenário que foi palco de tantas anedotas milagrosas atribuídas ao contemplativo piedoso que motivava minhas vigílias estudiosas. Sheibi e eu continuamos nossas investigações por correspondência até que, anos depois, perdi o rastro do meu generoso colega. Somente em 2007 soube de sua morte, ocorrida em uma Bagdá já dilacerada pela guerra. A biblioteca Al-Awqaf, que abrigava os códices inéditos de Nuri, foi consumida pelas chamas: talvez o místico sufi tenha tido a misteriosa desventura de morrer duas vezes em Bagdá, com 11 séculos de diferença. Confio que o futuro contradirá minhas sombrias suspeitas como estudiosa, mas, até hoje, não sei se meu colega Sheibi conseguiu publicar sua edição das obras completas de Nuri. A passagem dos anos levou-me de volta a Harvard, desta vez ao *Center for Near Eastern Studies*, onde finalizei uma primeira revisão do rascunho da minha tradução. Não a editei então porque, para obter uma visão mais completa da simbologia mística islâmica e sua possível relação com os castelos concêntricos de Santa Teresa, era imperativo conseguir um texto adicional que Paul Nwyia mencionava de passagem em uma nota de rodapé em seu já citado *Exégèse coranique*: o *Gawr al-umur*, ou *Livro da Profundidade das Coisas*, de Al-Ḥakim al-Tirmidhī (século IX). Eu sabia que o manuscrito usado por Nwyia estava catalogado como "Esat Efendi 1312" na Biblioteca Suleymaniye Cami, em Istambul, porque o pesquisador libanês havia dito, em sua breve nota, que Tirmidhī precedera Nuri em sua concepção dos sete castelos concêntricos da alma. Ele mencionava inclusive os fólios específicos que continham o trecho do *Gawr al-umur* que tanto me interessava. Iniciei a investigação imediatamente, agora da Universidade de Yale, onde lecionava na época. Meus colegas do Departamento de Estudos do Oriente Próximo moveram céus e terra para convencer a Biblioteca Suleymaniye Cami a nos enviar uma cópia do manuscrito. Mas, infelizmente, todos os esforços foram em vão. Levaria 12 longos anos até que eu finalmente tivesse acesso ao *Gawr al-umur*, mas às vezes os obstáculos produzem frutos inesperados. Quando, enfim, tive a oportunidade de organizar uma viagem de pesquisa à Turquia—outro *itinerarium causa sophiae*—, meu colega tunisiano Abdeljelil Temimi veio em meu auxílio e persuadiu o Dr. Ekmeleddin Ihsanoglu, diretor do *Research Center for Islamic History, Art and Culture* em Istambul, a fornecer-me um microfilme do códice, que pude buscar pessoalmente durante minha estada. Na Turquia, tive a sorte de coincidir com o arabista Pablo Beneito, com quem revisei, em várias tardes de outubro às margens do Bósforo, a versão final da minha tradução das *Maqāmāt al-qulūb*. Meu colega Beneito também me proporcionou acesso à sala de leitura de manuscritos da Biblioteca Suleymaniye Cami, onde pude examinar pessoalmente o códice. O leitor perdoará esta nota pessoal, pois trata-se de uma investigação que levou décadas: aquela sala de manuscritos, íntima e acolhedora, através da qual era possível vislumbrar um jardim de rosas pela grade da janela, teria encantado Jorge Luis Borges, com quem compartilho a visão de paraíso como uma imensa biblioteca. Ao revisar o códice turco, pude corroborar que, de fato, Tirmidhī antecedera o esquema dos castelos de Teresa, que eu havia documentado na obra de Nuri de Bagdá. Mas ainda outra surpresa me aguardava. Descobri que Tirmidhī não estava sozinho em sua formulação do célebre símile "teresiano": a estudiosa Geneviève Gobillot, editora de Tirmidhī, anunciou, em seu *Livre de la profondeur des choses*—mais uma vez, em uma breve nota de rodapé—a existência da obra de outro autor muçulmano que concebia a alma como sete castelos concêntricos. Tratava-se do *Kitāb Ḥayāt al-Ḥayawān* ou *Dicionário de História Natural* de Musa al-Damīrī (falecido em 808/1405). Dessa vez, felizmente, o original em árabe foi mais fácil de obter, pois a própria Geneviève Gobillot, que eu havia conhecido na Tunísia, enviou-o da França para Porto Rico (pelo que sempre serei grata). Depois de traduzir do árabe os trechos pertinentes de Tirmidhī e Al-Damīrī, consegui demonstrar que, de fato, o símbolo das moradas ou castelos sete vezes concêntricos, que inicialmente me levou ao estudo de Nuri de Bagdá, era—como Miguel Asín Palacios e eu sempre suspeitamos—um símbolo frequentemente reiterado na espiritualidade islâmica. Pude confirmar isso mais uma vez em Teerã, durante uma conferência internacional sobre o místico persa Mullā Ṣadrā, realizada em maio de 1999. Esse encontro de estudiosos levou-me a descobrir, como explicarei, que os persas Rumi e Mullā Ṣadrā também utilizavam o símile dos sete castelos ou moradas da alma. Descobri também, por outro lado, que, se o estudo sistemático desse símile não foi feito no Ocidente—como já sabíamos—, tampouco foi feito no Oriente. Não seria exagero afirmar que Asín e eu tropeçamos em um autêntico lugar-comum (eu diria até um clichê) da literatura mística muçulmana. De uma perspectiva diferente, até mesmo meu colega marroquino Ouakil Sebbana confirma isso: em suas aulas de religião na escola primária em Rabat, explicava-se aos alunos que a alma era constituída simbolicamente como sete cidadelas ou castelos fortificados que era necessário atravessar até chegar ao último, que significava alcançar a vida espiritual mais autêntica. O símbolo dos castelos concêntricos só parece estranho quando o tiramos de seu contexto natural, que é islâmico. Ou seja, Santa Teresa o reescreveu em espanhol e o cristianizou em suas *Moradas*, para o assombro da erudição ocidental, que não buscou explorá-lo fora do arcabouço literário europeu. É importante, portanto, seguirmos os passos ilustres de Asín, continuando o projeto delineado em seu ensaio póstumo, no qual, pela primeira vez, ele localizou a gênese do símile de Teresa no misticismo sufi. Passarei agora a explorar mais de perto os antigos textos árabes que celebram a alma sob a forma de sete moradas ou castelos, progressivamente mais interiores. Já mencionei que o primeiro autor a capturar minha atenção foi o Abu-l-Ḥasan al-Nuri, do século IX, em Bagdá; contudo, não podemos rastrear a origem da bela imagem plástica até Nuri porque Tirmidhi o precede. Talvez ele também não tenha sido o primeiro a originar o símbolo dos sete castelos concêntricos na literatura islâmica. Nuri elabora, na oitava vinheta de suas *Moradas*, o motivo dos "castelos do coração do crente", seguindo o mesmo esquema fundamental encontrado no *Nawadir*. Ele utiliza a palavra *ḥiṣn* para se referir ao castelo fortificado da alma, assim como o autor muçulmano anônimo do século XVI descoberto por Asín e, também, como Santa Teresa.\[30\] Satanás ataca, sobretudo, os primeiros castelos, construídos com materiais frágeis, enquanto o crente que consegue refugiar-se nas fortalezas finais já não tem nada a temer. Nuri e seus correligionários sufis associam o inimigo demoníaco da alma a um cachorro que late ameaçadoramente, tentando ganhar acesso aos castelos, enquanto Santa Teresa imagina o mal espiritual na forma de répteis, insetos ou animais venenosos. Ambas as imagens são perfeitamente equivalentes, já que o cachorro é considerado um animal impuro no Islã e pode ser associado às pequenas bestas com as quais a santa de Ávila metaforiza as impurezas espirituais ou o próprio diabo. Vejamos a versão do contemplativo de Bagdá: **Os castelos do coração do crente**: "Deveis saber que Deus—exaltado seja—criou no coração do crente sete\[31\] castelos (*ḥuṣūn*)\[32\] com cercas e muros ao redor. Ele ordenou ao crente que permanecesse dentro desses castelos, enquanto permitiu que Satanás permanecesse fora, de onde ele chama e late como um cão. O primeiro castelo murado é feito de coríndon (*yaqūt*),\[33\] e é o conhecimento místico (*maʿrifa*) de Deus—exaltado seja; ao seu redor há um castelo de ouro\[34\], que é a fé em Deus—exaltado seja; ao seu redor há um castelo de prata, que é a pureza de intenção em palavras e ações; ao seu redor há um castelo de ferro, que é a conformidade com a vontade divina; ao seu redor há um castelo de bronze, que é a execução das prescrições de Deus (*farāʾiḍ*)\[35\]—exaltado seja; ao seu redor há um castelo de alúmen, que é a obediência às ordens de Deus, positivas e negativas; e ao seu redor há um castelo de argila cozida, que é a educação da alma sensível (*nafs*) em todas as ações." Conforme a palavra de Deus diz — exaltado seja Ele —: "Contra os Meus servos não terás poder" (Alcorão 15:42)\[36\]. O crente, portanto, está no interior desses castelos; e quem está no castelo de coríndon, Satanás não tem como alcançá-lo, desde que ele obedeça às regras de conduta para a alma. Mas, se parar de obedecê-las e disser "não é necessário", então Satanás obtém dele o castelo de argila cozida e almeja o próximo. Quando o crente se torna negligente na obediência aos mandamentos de Deus, positivos e negativos, Satanás conquista o castelo de alume e cobiça o terceiro. Quando o fiel abandona sua conformidade com a vontade de Deus — exaltado seja Ele —, Satanás toma dele o castelo de cobre e almeja o quarto; e assim sucessivamente, até o último castelo.\[37\] Tanto o autor anônimo do *Nawadir* (descoberto por Asín), quanto Nuri em suas *Moradas do Coração*, assim como Al-Damiri em seu *Kitab ḥayat al-ḥayawan*, constroem seus castelos utilizando materiais repletos de cores brilhantes; e, nesse aspecto, parecem diferir dos castelos translúcidos de diamante de Santa Teresa. A gradação entre materiais luxuosos (ouro, prata, pedras preciosas) e prosaicos (alume, argila cozida) estabelece, no entanto, um caminho místico ascendente (ou, melhor, interiorizante) que não está longe do caminho interior descrito pela Reformadora em suas *Moradas*. Vejamos brevemente o esquema simbólico de Al-Damiri. O autor atribui a lição espiritual dos círculos concêntricos a "um dos sábios (ʿulamaʾ) práticos"\[38\], sem, lamentavelmente, mencionar sua verdadeira fonte literária. É importante lembrar que já estamos no século XIV: provavelmente, o leitmotiv simbólico, de evidente caráter mnemônico, era tão conhecido no Islã que podia facilmente ser considerado anônimo. Al-Damiri emprega, por outro lado, o mesmo termo usado por Nuri para seus castelos fortificados (*ḥiṣn*), pelo qual, mais uma vez, os muçulmanos coincidem com Santa Teresa. (Ou, mais precisamente, ela coincide com eles: insisto nesse ponto porque, em outro lugar\[39\], já fiz ampla referência à tradição dos antigos *Hekhalot* hebraicos, nos quais se ascende ao trono de Deus por meio de sete palácios sucessivos, e não sete castelos fortificados). O texto de Al-Damiri é o mais extenso de todos, mas aqui me limitarei aos trechos mais relevantes: "Deveis saber que Deus criou sete castelos no coração do homem. O primeiro castelo é de ouro, que é o conhecimento de Deus. Ao redor dele há um castelo de prata, que é a fé n'Ele; ao redor deste há um castelo de ferro, que é a confiança n'Ele; ao redor dele há um castelo de pedra, que consiste em gratidão e conformidade com a vontade divina; ao redor deste há um castelo de argila cozida, que é a obediência aos mandamentos de Deus, tanto negativos quanto positivos; e ao redor dele há um castelo de esmeralda, que é a verdade e sinceridade para com Deus; e ao redor deste há um castelo de pérolas brilhantes\[40\], que consiste na disciplina da alma sensível em toda ação. O crente está no interior desses castelos e o demônio (Iblis) está do lado de fora, latindo como um cão. Mas o crente não tem nada a temer, pois está defendido dentro dessas fortalezas. Contudo, é necessário \[ainda assim\] que o crente nunca abandone a disciplina da alma, sob nenhuma circunstância. \[...\] Mas às vezes Satanás consegue obter alguns desses castelos e faz com que o crente retorne ao estado de pecado e descrença. \[...\] Mas enquanto os castelos da fé e da confiança estiverem íntegros, Satanás não pode conquistar o crente, porque, como Deus disse: 'Este \[Satanás\] não tem poder sobre aqueles que creem e confiam em seu Senhor' (Alcorão 16:101)."\[41\] Aqui vemos como Al-Damiri inicia sua descrição do castelo interior, que, no caso de Nuri, é feito de coríndon e, no caso de Al-Damiri, de ouro. O autor anônimo do *Nawadir*, por sua vez, inverte o esquema (como vimos) e descreve em primeiro lugar o castelo exterior de pérola, onde até mesmo a alma sensível se mortifica. O sentido espiritual dos três tratados é o mesmo: nos primeiros castelos, até os impulsos espirituais mais baixos são mortificados, e nos últimos castelos se obtém a união com Deus. Estamos, obviamente, em território teresiano. É importante insistir, por outro lado, no fato de que a Santa de Ávila utiliza o termo *morada* para descrever os espaços sucessivos do caminho interior pelo qual ela trilha em direção à sua própria alma. Sem dúvida, ela tinha em mente o versículo do Evangelho de João (14:2): "Na casa de meu Pai há muitas moradas", embora não o cite diretamente\[42\]. Contudo, como demonstrou Asín Palacios em seu *Šaḍilíes y alumbrados*, o conceito de morada, entendido como uma estação permanente da alma (em oposição a estados mais efêmeros como o *ḥal* islâmico), parece derivar do conceito — novamente islâmico — de *maqam*, que significa exatamente isso: morada ou estação permanente. O uso técnico desse conceito era desconhecido na espiritualidade europeia medieval, mas os sufis o empregavam séculos antes de se tornar corrente entre os carmelitas. Os mestres muçulmanos variaram o número de moradas ou *maqamat* que constituíam seu caminho interior ou *safar*, mas alguns deles coincidem com as sete moradas de Santa Teresa. Esse é o caso de Abu Naṣr al-Sarray (m. 378/988), que explorou as sete moradas de sua alma no *Kitab al-Lumaʿ* ou *Livro dos Esplendores*. A tradição foi mantida de forma tão consistente que Mulla Ṣadra repete o esquema em sua obra *Al-Ḥikma al-mutaʿaliya fi l-asfar al-ʿaqliyya al-arbaʿa* (Filosofia Transcendente Relativa às Quatro Viagens Intelectuais da Alma), geralmente conhecida como *Asfar* ou *Viagens*. Nesse trabalho, Mulla Ṣadra descreve sua primeira jornada espiritual, na qual a alma sensível ou carnal (*nafs*) finalmente se orienta em direção a Deus\[43\]. Essa primeira jornada, como explicam Mulla Ṣadra e um de seus eruditos comentaristas, Muḥammad Riḍa al-Isf̣ahani, consiste em diferentes *maqamat* ou estações permanentes. Seyyed Hossein Nasr resume a lição mística de Ṣadr al-Din Širazi em relação à morada do espírito ou intelecto (*al-ʿaql*), que, por sua vez, se abre para mais sete moradas interiores. \[...\] as moradas interiores são divididas em sete: a morada do *nafs* (alma sensível), do *qalb* (coração), do *'aql* (intelecto), do *ruḥ* (espírito), do *sirr* (segredo), do *jafi* (oculto) e do *ajfa* (a mais interior). Essas moradas recebem esses nomes porque essas condições se tornam permanentes para o iniciado. Se não fossem estados permanentes, não seriam chamadas de moradas (*maqam*). Estas são as moradas da devoção e da cidade do amor às quais se referiu o gnóstico, perenemente vivo entre nós, o *Mawla* ou Senhor de Rum, Yalal al-Din Rumi: "*Atṭạr cruzou as sete cidades do amor; Mal conseguimos virar a primeira esquina.*" Se o iniciado renuncia a si mesmo na Divindade, a primeira jornada alcança seu fim e seu ser é transformado em um verdadeiro Ser.\[44\] Mais uma vez nos deparamos com o esquema teresiano das sete moradas ou *maqamat*, progressivamente mais interiores. Assim como Santa Teresa, Ṣadr al-Din Širazi situa o início da vida espiritual em sua primeira *maqam*: desta morada do *nafs* ou alma sensível, o iniciado avança para o *qalb* ou coração; de lá para o *'aql* ou intelecto; depois para o *ruḥ* ou espírito; para o *sirr* ou segredo; para o *jafi* ou o que está oculto; até que finalmente alcança a vida espiritual mais recondita (*al-ajfa*). Assim, o crente, tal como na última "morada" ou *maqam* de Santa Teresa, "chega ao seu verdadeiro Ser": ou seja, une-se à Divindade. Citei extensivamente este trecho do *Asfar* não apenas pelo paralelo que oferece com as sete moradas teresianas, mas também pela referência que faz ao poema de Rumi. Mulla Ṣadra identifica, sem ambiguidades, seu esquema do caminho para Deus como moradas concêntricas, progressivamente mais interiores, com as "sete cidadelas" de amor que Farid al-Din ʿAtṭar conseguiu atravessar em sua jornada ou *safar* rumo à Divindade. Vale notar que Mulla Ṣadra pressupõe que seus leitores, sem maiores explicações, entenderão que as sete cidadelas de ʿAtṭar constituem as moradas ou esferas de seu caminho místico interior. Ao que tudo indica, estamos diante de um símile que devia ser amplamente difundido no Islã durante muitos séculos. Esses escritores espirituais persas, mas sobretudo Rumi, definitivamente nos aproximam, mais uma vez, do recalcitrante enigma teresiano: a santa compara suas sete "moradas" ou *maqamat* da alma interior não apenas com as esferas celestes, mas também precisamente com castelos fortificados ou cidadelas muradas.\[45\] Ironia do destino, a Reformadora parece estar mais próxima do persa ʿAṭṭār do que de Pseudo-Dionísio. Os muçulmanos entenderiam sem surpresa o esquema místico que causou tantas dores de cabeça no Ocidente\[46\]. Algumas passagens de São João da Cruz permitem suspeitar, por outro lado, que ele também não desconhecia o símile. Quando afirma, no *Cântico Espiritual*, que sua protagonista poética passará "as fortalezas e fronteiras", ele pode estar indicando que a alma percorre seu *safar* ou jornada mística através de cidadelas fortificadas que marcam os limites das moradas por onde ela passa. A jornada de São João é, sem dúvida, como a de Suhrawardi, uma jornada *ab intra*. Talvez por isso, a Esposa do *Cântico* peça que as distrações próprias da alma sensível, representadas por uma confusa proliferação de animais, "não toquem o muro / para que a noiva durma mais segura"\[47\]: a alma que se encontra intramuros, dentro das fortalezas, já está protegida dos ataques da concupiscência e de outras paixões. Mais uma vez, estamos próximos da jornada mística de ʿAṭṭār por cidadelas muradas. Retornemos ao caso dos autores islâmicos que descrevem o símbolo das fortalezas concêntricas em maior detalhe. As cores e os materiais simbólicos dos castelos de Nuri e Al-Damiri remetem aos símiles de outros autores muçulmanos, como Simnani e Nizami, cujas *maqamat* ou moradas da alma ainda preservam as cores e atributos das órbitas planetárias com as quais estão associadas. No entanto, nem todos os castelos simbólicos são tão coloridos na espiritualidade sufista. Documentei alguns castelos islâmicos que aparecem tão radiantes e brilhantes quanto os castelos de diamante puro daquela mulher de luz que foi Santa Teresa de Ávila. Al-Hakim al-Tirmidhi descreve, no século IX, precisamente esses castelos resplandecentes em seu *Gawr al-umur*, que é certamente o tratado mais antigo sobre os castelos que consegui documentar na literatura islâmica. Al-Tirmidhi equipara suas moradas ou *maqamat*, progressivamente mais interiores, a *medinas* (*madina*, pl. *mudun*), que significa, naturalmente, "cidadelas fortificadas", como os castelos-fortalezas de seus correligionários sufis. Elas também se assemelham às de sua sucessora, Santa Teresa, que esclarece, em seu *Caminho de perfeição*, que a alma é uma "cidade" que precisa ser "muito bem fortificada", com a qual ela simplesmente equipara ambas as estruturas arquitetônicas: "este castelo ou cidade"\[48\]. Tirmidhi, assim como a santa que era nativa da cidade murada de Ávila, ergue fortalezas resplandecentes feitas de pura luz: "O coração exterior (*fu'ād*) é a primeira das *medinas* de luz – \[em outras palavras\], a luz possui sete *medinas*. A primeira *medina* é a do coração exterior (*fu'ād*); depois vem a consciência (*ḍamīr*); em seguida, a cobertura exterior (*gilāf*); depois o coração interior (*qalb*); a cobertura interior (*šagaf*); o fundo do coração (*ḥabba*); e, finalmente, a quintessência do coração (*lubāb*). A consciência (*ḍamīr*) é o coração interior (*qalb*) do coração exterior (*fu'ād*); a cobertura exterior (*gilāf*) é o coração interior (*qalb*) da consciência (*ḍamīr*); o coração interior (*qalb*) é o coração interior (*qalb*) da cobertura exterior (*gilāf*); a cobertura interior (*šagaf*) é o coração interior (*qalb*) do coração interior (*qalb*); o fundo do coração (*ḥabba*) é o coração interior (*qalb*) da cobertura interior (*šagaf*); e a quintessência do coração (*lubāb*) é o coração interior (*qalb*) do fundo do coração (*ḥabba*), e essa é a fonte da luz. E a totalidade dessa estrutura está organizada como sete *medinas*, uma dentro da outra \[isto é, concêntricas\]."\[49\] Al-Tirmidhi parece brincar aqui com os significados da raiz *q-l-b*, que tanto pode significar "coração" quanto "mudança perpétua" ou "inversão", entre outros significados. Ele inverte cada *medina* ou "cobertura" do coração (*taqallub*), tornando-a capaz de servir como uma proteção (tanto exterior quanto interior) para o ápice profundo da alma. Curiosamente, Santa Teresa estava ciente desses "véus protetores" ou "coberturas" da alma, e suas moradas-castelos, assim como as de Al-Tirmidhi, transformam-se precisamente em "coberturas": "Não havemos de entender essas moradas como algo em sequência, uma atrás da outra, como em um fio; mas, em vez disso, coloquemos os olhos no centro, que é a peça ou o palácio onde está o rei, e consideremos como um palmito, que, para se chegar à parte boa de comer, tem muitas coberturas."\[50\] Uma imagem curiosa, sem dúvida, nas mãos espanholas: os castelos do coração de repente se transformam em um palmito com camadas brancas, progressivamente mais interiores. Contudo, não é algo estranho nas mãos árabes: um dos sentidos da raiz *q-l-b*, além de "coração", "inversão", "oscilação" e "mudança perpétua", é precisamente "palmito" (*qilb* ou *qulb*). Al-Hakim al-Tirmidhi sabia disso, sem dúvida. Confesso que não sei como Teresa de Jesus sabia disso.\[51\] À luz de tudo o que foi dito, parece óbvio que a Santa de Ávila contraiu profundas dívidas com a literatura sufi. A Reformadora, muito provavelmente, não tinha consciência de que estava instituindo para uso cristão um discurso místico elaborado há séculos na literatura islâmica. O fato de Santa Teresa ter bebido tão profundamente nas fontes literárias de escritores que ela consideraria inimigos da fé não invalida suas visões nem a inspiração divina que ela reivindicava para suas experiências místicas. Já apontei o fato, explorado por Stephen Katz, de que o contexto cultural em que o místico vive colore e até ajuda a dar forma simbólica à sua experiência transcendente, que é, por sua natureza, impossível de articular em linguagem. O visionário, mesmo quando seu êxtase é—como sempre, por definição—inexpressável, tem à disposição os símiles que constituem a moeda comum de seu ambiente cultural para explicar de alguma forma o que lhe aconteceu além de espaço, tempo, razão e linguagem. Quando consegue comunicar—mesmo que indiretamente—algo de sua visão, então ela pode ser útil para a instrução espiritual de seus correligionários. No caso de Teresa, ela confessa com sinceridade que teve uma experiência mística misteriosa que não sabia como expressar. Ela se pergunta, *ex post facto*, qual imagem seria mais apropriada para comunicar sua teopoiese. E é então (e apenas então) que se apresenta à sua imaginação o símile dos sete castelos concêntricos da alma. Exceto que esse símile, como já sabemos, não era moeda corrente nem na Europa renascentista nem na Espanha renascentista!\[52\] Se ecoarmos a hipótese de Katz, teríamos que assumir que o ambiente literário e religioso de Teresa era, em grande medida (ainda no século XVI), fortemente islamizado.\[53\] É importante levar em conta, por outro lado, o fato de que o ambiente conventual promove trocas espirituais orais nas quais se emprega uma linguagem mística técnica; talvez delas tenha derivado o símile (tão útil, pedagogicamente falando) dos sete castelos concêntricos. Certamente não parece estranho que um símile tão amplamente presente na religião islâmica pudesse ter sido introduzido na tradição popular espanhola da Idade de Ouro por meios orais, especialmente após oito séculos de intercâmbio cultural constante entre muçulmanos e cristãos. É um símile de grande beleza plástica, além de ser muito fácil de lembrar. Michael Gerli\[54\] e María Mercedes Carrión\[55\] lembram que muitas metáforas espirituais—especialmente as arquitetônicas\[56\]—se tornaram populares na espiritualidade europeia precisamente por seu caráter mnemônico atraente. Esse foi o caso de algumas imagens de Santo Agostinho e Santo Inácio, que, devido à sua natureza esquemática, eram facilmente lembradas. Sabemos que exatamente o mesmo ocorreu com o símile concêntrico da Madre Reformadora, pois ela pedia a suas filhas espirituais que o trouxessem repetidamente à memória. Talvez o símile dos castelos tenha sido transmitido como um dispositivo mnemônico durante aqueles diálogos silenciosos entre cristãos e muçulmanos que nossa memória histórica coletiva, assim como Cervantes, "não deseja recordar"\[57\], mas que tiveram que ocorrer no solo peninsular. Não teria Ramón Lull, que morreu mártir nas mãos dos muçulmanos, citado com profunda admiração seus mestres literários ("unes gents qui han nom sufíes") em seu *Llibre del amic e amat*?\[58\] Esses sufis precederam não apenas Lull, mas também Santa Teresa de Jesus, por pelo menos sete séculos. É emocionante pensar que, quando Al-Hakim al-Tirmidhi e Nuri instruíam seus correligionários com o mandala dos sete castelos da alma, tanto em Khorasan quanto nas margens do Tigre, o espanhol com o qual a Reformadora reescreveria tão brilhantemente seu símile concêntrico ainda estava nascendo. A cultura castelhana, já em seu pleno esplendor no século XVI, permaneceria impregnada com um misterioso perfume islâmico, que faria das *Moradas* teresianas um dos discursos espirituais mais complexos da espiritualidade ocidental e, sem dúvida, um dos mais ricamente sintéticos. \[1\] "L'amor che move il sole e l'altre stelle" (Dante Alighieri, *Comedia: Paraíso*, edição bilíngue, trad. e ed. Ángel Crespo \[Barcelona, 2004\], p. 398). \[2\] "\[E\]ntenderlo para sí, y gozarlo y sentirlo, y callarlo el que lo tiene" (São João da Cruz, *Llama de amor viva* 2.21, em Luce López-Baralt e Eulogio Pacho, eds., *San Juan de la Cruz: obra completa* \[Madrid, 1991\], 2: 284). \[3\] "Estando hoje suplicando a nosso Senhor falasse por mim—porque eu não atinava coisa que dizer nem como começar a cumprir com esta obediência \[escrever o livro do *Castelo Interior*\] com algum fundamento, que é considerar nossa alma como um castelo todo de diamante ou muito claro cristal, onde há muitos aposentos, assim como no céu há muitas moradas" (Santa Teresa de Ávila, *Moradas del castillo interior* 1, em *Obras completas* \[Madrid, 1970\], p. 365). \[4\] Barbara Kurtz, "The Small Castle of the Soul: Mysticism and Metaphor in the European Middle Ages," *Studia Mystica* 15 (1992): 28–35, p. 32. \[5\] Stephen Katz, "Language, Epistemology, and Mysticism," em *Mysticism and Philosophical Analysis*, ed. Stephen Katz (Oxford, 1978), p. 24. \[6\] Cf. sobretudo Luce López-Baralt, "El símbolo de los siete castillos concéntricos del alma en Santa Teresa y en el Islam," em *Huellas del Islam en la literatura española: de Juan Ruiz a Juan Goytisolo* (Madrid, 1985–89), pp. 73–97. A versão em inglês foi publicada pela Brill, em Leiden, em 1992, sob o título *Islam in Spanish Scholarship: From the Middle Ages to the Present*. Uma versão preliminar deste ensaio, que atualizei para o presente volume, aparece nas pp. 91–142. \[7\] *Psicología y alquimia*, trad. A. L. Bixio (Buenos Aires, 1957); ver também C. G. Jung, *Obras completas*, 4 vols. (Madrid, 1999–2001). \[8\] Gaston Etchegoyen, *L'amour divin: essai sur les sources de Sainte-Thérèse* (1923). \[9\] "\[Q\]ue se guarde el corazón con toda diligencia, como se guarda el castillo que está cercado, poniendo contra los tres cercadores tres lámparas: contra la carne, que nos cerca con deleites, poned la castidad; contra el mundo, que nos rodea con riquezas, poned la liberalidad y limosna; contra el demonio, que nos persigue con rencores y envidia, poned la caridad" (Francisco de Osuna, *Tercer abecedario espiritual* \[Madrid, 1971\], p. 198). \[10\] "\[P\]ertenecen a la misma tribu, aunque de familia más humilde" (Mario Martins, *Alegorias, símbolos e exemplos morais da literatura medieval portuguesa* \[Lisboa, 1975\], p. 233). \[11\] Unamuno parece ter brincado com a ideia muitos anos antes, já que a menciona em uma carta a Francisco Giner de los Ríos em 1899. Ver R. Ricard, "La symbolisme du 'Château intérieur' chez Sainte-Thérèse," *Bulletin hispanique* 67.9 (1965): 27–41. \[12\] Trueman Dicken, "The Imagery of the Interior Castle and its Implications," *Ephemerides Carmeliticae* 21 (1970): 198–218. \[13\] E. Allison Peers, *Study of the Spanish Mystics* (Nova York, 1951), 1: 17. \[14\] Seyyed Hossein Nasr, *Islamic Studies: Essays on Law and Society, the Sciences, and Philosophy and Sufism* (Beirute, 1967), pp. 50–51. \[15\] No ensaio citado, "El símbolo de los siete castillos concéntricos," refiro-me extensivamente à tradição hebraica dos *Hejalot*, que contrastei com os castelos fortificados islâmicos e teresianos. \[16\] Miguel Asín Palacios, *La escatología musulmana de la "Divina Comedia"* (Madrid, 1961). \[17\] Cf. F. Rico, *El pequeño mundo del hombre: varia fortuna de una idea en las letras españolas* (Madrid, 1970); e A. Egido, "La configuración alegórica del Castillo interior," *Boletín del Museo e Instituto "Camón Aznar"* 10 (1982): 69–93. \[18\]Henry Corbin, *L'homme de lumière dans le soufisme iranien* (Paris, 1961).. \[19\] Michael Sells, *Early Islamic Mysticism* (Nova York, 1996). \[20\] "\[C\]uriosa compilación de relatos y pensamientos religiosos \[...\] redactada a fines del siglo XVI" (Miguel Asín, "El símil de los siete castillos del alma en la mística islámica y en santa Teresa," *Al-Andalus* 2 \[1946\]: 267–68). O ensaio está incluído em um livro póstumo de Miguel Asín que editei com um estudo introdutório: Miguel Asín Palacios, *Šadīlīes y alumbrados*, ed. Luce López-Baralt (Madrid, 1990), pp. 349–450. \[21\] "Puso Dios para todo hijo de Adán siete castillos, dentro de los cuales está Él y fuera de los cuales está Satanás ladrando como el perro \[...\]" (Asín Palacios, *Šadīlīes y alumbrados*, pp. 267–268). \[22\] Luce López-Baralt, "Simbología mística musulmana en San Juan de la Cruz y en Santa Teresa de Jesús," *Nueva Revista de Filología Hispánica* 30 (1981): 21–91. \[23\] Abu-l-Ḥasan al-Nūrī, *Moradas de los corazones*, trad. Luce López-Baralt (Madrid, 1999). \[24\] José Antonio Antón Pacheco, "El símbolo del castillo interior en Suhrawardi y en Santa Teresa," em *Mujeres de luz: la mística femenina, lo femenino en la mística*, ed. Pablo Beneito (Madrid, 2001), pp. 7–24. \[25\] "\[U\]na experiencia espiritual originaria" (Antón Pacheco, "El símbolo del castillo interior," p. 23). \[26\] Sou grata à autora, que me forneceu uma cópia de sua palestra. Ainda não publicada quando escrevi estas páginas. \[27\] "Cántico espiritual," versão A, estrofe 13. \[28\] O livro foi publicado em Beirute (1970). \[29\] Cf. A. Schimmel, "Abu'l-Ḥusayn al-Nuri: 'Qibla of the Lights' ", em *Classical Persian Sufism: From its Origins to Rumi*, ed. L. Lewisohn (Londres, 1993), p. 64. \[30\] O termo *ḥiṣn* é significativo, já que em árabe alude a um castelo cujo centro ou torre interior se torna inatacável graças a várias estruturas ou cercas protetoras, progressivamente mais interiores, que o cercam. Dessa forma, distingue-se da cidadela ou fortaleza (*qalʿa*), que não possui essas proteções concêntricas e, portanto, é mais acessível. \[31\]Assim como em muitas outras religiões, o Islã atribui ao número sete a perfeição máxima. Peter Chelkowski explica: "No Islã, o número sete é considerado o número perfeito. Os sete mares e os sete climas são uma combinação dos números três e quatro. Cada clima possui sua própria luz astral. Essas cores também são expressas geometricamente. O triângulo simboliza o corpo, o espírito e a alma. As quatro cores restantes — vermelho, amarelo, verde e azul — constituem um quadrado e representam as qualidades ativas da natureza, como calor, frio, secura e umidade; as quatro direções; as quatro estações do ano; e o ciclo da vida, da infância à morte" (Peter Chelkowski, *Mirror of the Invisible World: Tales from the Kamseh of Nezami* \[Nova York, 1975\], p. 113). Nwyia argumenta, por sua vez, que "o número sete é corânico. Há sete céus (2:29), sete portas de acesso ao inferno (15:44), sete *aleyas* \[versos do Corão\] (*mathānī*), sete oceanos (31:27), etc." (Nwyia, *Exégèse coranique et langage mystique*, p. 332). De fato, o número sete é tão sagrado para o Islã que ʿAbd al-Raḥmān al-Ḥamadānī dedicou um tratado inteiro a esse número. O cristianismo também considera o número sete como uma figura sagrada. Para São Gregório, o número setenário implicava perfeição consumada porque é composto por um primeiro número par e um primeiro número ímpar, e por um par que pode ser dividido e um ímpar que não pode ser dividido. Soma-se a isso o fato de que as Escrituras Sagradas o tomam como um número de perfeição, e que no sétimo dia Deus descansou. Santo Agostinho chama essa figura de o número da lei da graça. Ele é formado por quatro e três: o quatro simboliza a terra, formada por quatro elementos; enquanto o três, por outro lado, é o paradigma da Trindade. Para os místicos, o sete representa, então, a união do terreno com o divino, além do mistério da redenção. A consagração universal recebida pelo número sete é evidente. O misticismo judaico tampouco o ignorou em sua tradição de discursos espirituais, como lembramos em tratados como os *Sete Hekhalot* ou os *Sete Palácios*, pelos quais o visionário israelita passava simbolicamente até alcançar o trono de Deus. \[32\] Traduzo *ḥuṣūn* como "castelos", entendendo o termo em seu sentido original de "fortaleza" ou "cidadela fortificada". Como era de se esperar, Nuri refere-se, em seu tratado, a um castelo fortificado, com o qual simboliza a autodefesa da alma contra os ataques do diabo. \[33\] Nosso escritor constrói uma imagem plástica muito bela, na qual os metais parecem embelezar a pedra preciosa do *yaqūt* (rubi, como alguns traduzem a partir do árabe o termo para coríndon). Por ser um alumínio cristalizado, a pedra pode ter cores distintas, incluindo o branco ou o diamante. Ithamar Gruenwald (*Apocalyptic and Merkabah Mysticism* \[Leiden, 1980\]) e Catherine Swietlicki (*Spanish Christian Cabala: The Works of Luis de León, Santa Teresa de Jesús and San Juan de la Cruz* \[Columbia, Missouri, 1986\]) lembram que a tradição cabalística, por sua vez, usava coríndon ou safira transparente para a construção de seus palácios simbólicos. Estamos, provavelmente, diante de uma tradição consistente e compartilhada. \[34\] Todos os castelos encontram-se protegidos por cercas e muros que os circundam, embora devamos admitir que a exposição de Nuri é um pouco ambígua nesse trecho. Traduzo simplesmente como "castelo" para tornar o significado mais claro. \[35\] Todas as prescrições de Deus encontram-se defendidas por cercas e muros que as cercam, embora devamos admitir que a exposição de Nuri é um pouco ambígua nesse trecho. Traduzo simplesmente como "castelo" para tornar o significado mais claro. \[36\] Para esta e outras referências, cito a versão espanhola do Alcorão de Juan Vernet (Barcelona, 1967). \[37\] A versão espanhola da Vignette 8 das *Moradas do Coração* faz parte de minha tradução de todo o texto árabe (*Madrid, 1999*). Usei como base a edição de Paul Nwyia, que se baseia em quatro manuscritos de Istambul. Cf. Paul Nwyia, "Textes mystiques inédites d'Abu-l-Ḥasan al-Nuri (*Maqamat al-qulub*)", *Mélange de l'Université Saint-Joseph* 44 (1968): 119–54, além de sua já citada *Exégèse coranique et langage mystique*. \[38\] O autor distingue entre o sábio contemplativo, que geralmente se retira do mundo, e o sábio "prático", que ensina espiritualmente no contexto do mundo. \[39\] Veja López-Baralt, "El símbolo de los siete castillos concéntricos", parte do livro *Huellas del Islam en la literatura española*. \[40\] Literalmente, "úmidas"; ou seja, recém-retiradas do mar. \[41\] Al-Damiri, *Kitab ḥayat al-ḥayawan* (Cairo, 1906), 1: 210–12. \[42\] As citações bíblicas são da versão Douay (*The Holy Bible, Translated from the Latin Vulgate*, ed. Richard Challoner \[Nova York, 1941\]). \[43\] Mulla Ṣadra, *Al-Ḥikma al-mutaʿaliya fi l-asfar al-ʿaqliyya al-arbaʿa* (Filosofia Transcendente Relativa às Quatro Viagens Intelectuais da Alma), ed. Muḥammad Riḍa al-Muẓạfar (Teerã, 1958), 1: 13. \[44\] Seyyed Hossein Nasr, *Ṣadr al-Din Shirazi and His Transcendent Theosophy* (Teerã, 1978), p. 58. \[45\] Como lembra Asín em sua obra já citada *Šaḍilíes y alumbrados*, há outras variantes que a Santa de Ávila compartilha com os castelos islâmicos: a oração é a porta de entrada para o castelo fortificado da alma, que é habitado, em ambos os casos, pelos sentinelas e guardiões dos sentidos e poderes espirituais. \[46\] Para mais detalhes sobre o caso de ʿAṭṭār e Mulla Ṣadra, remeto o leitor ao meu ensaio "Spanish Mysticism's Debt to Islam: the Spiritual Symbology of St. Teresa of Ávila", em andamento, tanto em persa quanto em inglês, nos anais de uma conferência sobre Mulla Ṣadra realizada em Teerã em 1999. \[47\] São João da Cruz, *Cântico espiritual*, in López-Baralt e Pacho, eds, *San Juan de la Cruz: obra completa*, 1:64. \[48\] "\[E\]ste castillo o ciudad" (Santa Teresa, *Caminho de perfeição* 3.2, in *Obras completas*, p. 203). \[49\] *Gawr al-umur*, Ms. Esat Efendi 1312, Biblioteca Suleymaniye Cami, Istambul, Turquia, fol. 121. \[50\] "No havéis de entender estas moradas una en pos de otra como cosa en hilado, sino poned los ojos en el centro, que es la pieza o palacio adonde está el rey, y considerad como un palmito, que para llegar a lo que es de comer tiene muchas coberturas" (Santa Teresa, *Moradas del castillo interior* 1.2.8, in *Obras completas*, ed. Efrén de la Madre de Dios e Otger Steggink, Biblioteca de Autores Cristianos 212 \[Madrid, 1976\], p. 415). \[51\] Curiosamente, São João da Cruz também conhecia as variantes da raiz de três letras *q-l-b* ("coração"). Ele compara seu coração profundo, sete vezes concêntrico, a um "poço". Al-Kubra havia feito o mesmo ao equiparar sua alma concêntrica a um poço de águas vivas—exceto que o mestre sufi estava perfeitamente consciente de que a raiz *q-l-b* também incluía a variante *qalib* ou "poço". \[52\] Sobre os problemas iconográficos do castelo concêntrico, ver Catherine Swietlicki, "The Problematic Iconography of Teresa of Avila's Interior Castle," *Studia mystica* 11.3 (1988): 37–47. \[53\] Ver o importante estudo de María Jesús Rubiera Mata, *La arquitectura en la literatura árabe* (Madrid, 1981). \[54\] Ramón Lull, *Llibre d'amic e amat*, em *Blanquerna: obres originals* (Palma de Mallorca, 1914), p. 378. \[55\] Michael Gerli, "El Castillo interior y el arte de la memoria," *Bulletin hispanique* 86.1–2 (1982): 154–63. \[56\] María Mercedes Carrión, *Arquitectura y cuerpo en la figura autorial de Teresa de Jesús* (Barcelona, 1994). \[57\] Ver Kurtz, "The Small Castle of the Soul," p. 33. \[58\] A referência é à famosa frase inicial da obra-prima de Miguel de Cervantes, *Don Quijote*, que começa: "En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme" (Miguel de Cervantes, *El ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha*, ed. Luis Andrés Murillo \[Madrid, 1987\], 1: 69). # O CARMELO DESCALÇO E O ESOTERISMO: PARTE 5 - A simbologia mística muçulmana em São João da Cruz e Santa Teresa de Jesus 10/01/2025 *Giovanni Maria Bertini – Universidade de Turim (Itália)* Tradução: Prof. Gabriel Sapucaia ![](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000206-6354763548/cropped-RosaNQSHaltadefini%C3%A7%C3%A3o.jpeg?ph=4df81238fe) ##### **A simbologia mística muçulmana em São João da Cruz e Santa Teresa de Jesus** O fascinante tema da influência exercida pelos místicos orientais, em sua maioria árabes e persas, sobre os escritores espirituais espanhóis foi apresentado e estudado pela professora porto-riquenha Luce López Baralt em um extenso ensaio publicado na *Nueva Revista de Filología Hispánica* da Cidade do México (tomo XXX, número 1, 1981, pp. 21-91). De fato, muitos pesquisadores dedicaram-se ao estudo do mundo místico muçulmano em sua relação com os místicos ibéricos. Na própria Espanha, o precursor dos arabistas interessados pelo aspecto místico foi Pascual Gayangos (1809-1897), que publicou *Las dinastías musulmanas en España*. Seu exemplo foi seguido por Francisco Codera y Zaidín, autor de obras como *Estudios críticos de historia árabe* (1933), *Decadencia y desesperación de los almorávides en España* (1899) e *Tratado de numismática arábigo-española* (1882-1893). Outros nomes de destaque incluem Julián Ribera Tarango, com obras como *Los libros sobre la enseñanza entre los musulmanes españoles* (1893), *Bibliófilos y bibliotecas de la España musulmana* (1896) e *Orígenes de la filosofía de Raimundo Lulio* (1899), além de Miguel Asín Palacios (1871-1944), cuja produção acadêmica é fundamental nesse campo. Entre seus trabalhos mais importantes estão *Algazel, dogmática, moral, ascética* (1901), sua tese doutoral, *La espiritualidad de Algazel y su sentido cristiano* (1934) e *Averroísmo teológico de Santo Tomás de Aquino* (1904). No último estudo, Asín Palacios esclarece a dívida dos filósofos escolásticos para com o pensamento árabe. Sua obra *La escatología musulmana en la «Divina Comedia»* (1919 e 1944) gerou acaloradas polêmicas ao argumentar, de seu ponto de vista, a influência da filosofia árabe na *Divina Comédia* de Dante Alighieri. Outro trabalho relevante é *El Islam cristianizado*, que abriu caminho para *La espiritualidad de Algazel y su sentido cristiano*. Por fim, não podemos deixar de mencionar outros arabistas espanhóis de destaque, como Maximiliano Alarcón, Millás Vallicrosa, Gómez García, Seco de Lucena e Oliver Asín. Também em outros países, a atenção voltada para a espiritualidade oriental no Ocidente suscitou diversos estudos que revelaram as raízes árabes presentes na própria cultura europeia. Entre muitos, podemos destacar obras como *Essai sur les origines du lexique technique de la mystique musulmane* (Paris, 1914 e 1922) de Louis Massignon; *Poetas y místicos del Islam* (México, 1945) de Reinhold A. Nicholson; *The Oldest Persian Treatise on Sufism* (Londres, 1976, tradução de *Kashf al-Mahjub* de Al-Hujwiri); e *Trilogie islamienne* (Teerã-Paris, 1961) de Henri Corbin, entre outras. Sem dúvida, a doutora López Baralt apresenta um panorama detalhado sobre a influência que, ao longo dos séculos (os primeiros registros remontam ao século IX), ocorreu nas relações espirituais entre Oriente e Ocidente. Após longa experiência neste campo específico da ascese e da mística, culminando na publicação de *San Juan y el Islam* (pela Editorial do Colégio do México), a estudiosa porto-riquenha reuniu, com rigor bibliográfico exemplar e séria documentação, as evidências textuais dos intercâmbios entre místicos espanhóis e orientais. Entre os símbolos encontrados nos escritos de São João da Cruz, que a pesquisadora identificou com possíveis antecedentes muçulmanos, destacam-se nove símbolos, enquanto seis são os encontrados nas obras de Santa Teresa de Jesus. É importante reconhecer que a doutora López Baralt utilizou todo o material previamente conhecido sobre o tema, mas o mérito de seu ensaio reside principalmente na síntese e nas conclusões obtidas a partir de um vasto material reunido com inteligência e dedicação, com o intuito de elucidar as influências das supostas fontes orientais nos místicos espanhóis. Ao abordar o primeiro símbolo de possível influência oriental em São João da Cruz, "O vinho e a embriaguez mística", nota-se o método eficaz empregado pela pesquisadora. Esse símbolo deriva, primeiramente, do *Cântico dos Cânticos* e, possivelmente, de textos sufis, nos quais, assim como nos escritos do místico espanhol, a imagem do vinho representa o êxtase. Segundo López Baralt, escritores orientais como Burini e Nabulusi comentaram um verso do místico Ibn al-Farid: "Bebemos em memória do Amado um vinho que nos embriagou antes mesmo da criação da vinha...". No vocabulário técnico dos sufis, "o vinho, com seus nomes e atributos, simboliza o que Deus infundiu na alma em termos de conhecimento, desejo e amor". Além disso, afirma-se: "O vinho significa a bebida do amor de Deus, produzida pela contemplação dos belos nomes de Deus. Este amor gera embriaguez e esquecimento de tudo o que existe no mundo." Por outro lado, poetas persas como Jalaluddin Rumi, Saadi e Hafiz dedicaram inteiros poemas ao louvor dessa bebida. O segundo símbolo analisado, "A noite escura da alma", remete a fontes como Sebastián de Córdoba, Garcilaso de la Vega e, de modo mais direto, à "treva luminosa" do Pseudo-Dionísio, que descreve uma experiência íntima e pessoal composta por fatores metafisicamente divididos entre o humano e o divino. Para outros críticos, a "noite escura" refere-se à purificação da alma, mas também é reconhecido que a "escuridão divina" é uma categoria distinta. Essa escuridão, provocada pelo excesso de luz, implica um conhecimento transcendental de Deus, que não pode ser alcançado pela razão discursiva. O arabista Asín Palacios já havia considerado a possibilidade de uma fonte comum para explicar as coincidências entre a mística cristã e muçulmana. No entanto, a hipótese de que São João e Santa Teresa tenham sido influenciados por figuras como o Mancebo de Arévalo ou a Moura de Granada, residentes na Andaluzia durante o período dos dois carmelitas, carece de evidências documentais e testemunhais. Para a professora López Baralt, é mais provável que ambos tenham tido acesso às traduções de textos dos primeiros místicos orientais, o que explicaria a origem dos símbolos muçulmanos em seus escritos. Outro símbolo relevante é "A chama de amor viva e as lâmpadas de fogo", que encontra precedentes no livro *Hierarquias Celestes* do Pseudo-Dionísio. Esse símbolo aparece em diversas culturas, como o judaísmo, o helenismo, o gnosticismo, o sincretismo e o cristianismo. No contexto da espiritualidade muçulmana, destaca-se Shihab al-Din Suhrawardi (†1191), conhecido por sua *Filosofia da Iluminação*. Suhrawardi e outros místicos, como Al-Ghazali, enfatizam que a iluminação interior permite à alma contemplar a unidade de Deus. Avicena, filósofo e asceta persa, também reconhece o êxtase gerado pelas "chamas brilhantes do conhecimento direto de Alá", consolidando a luz como símbolo central na mística oriental e ocidental. Segundo o místico Ibn Arabi, de Múrcia (século X), o coração é o tabernáculo de Deus. Se aceitarmos a conclusão do processo de iluminação da alma descrito pela estudiosa porto-riquenha, podemos afirmar que ele culmina, em São João da Cruz, na transformação da alma em Deus. A literatura mística muçulmana parece ajudar, como sugere o artigo em questão, a desvendar o mistério da composição de São João. A contribuição apresentada por López Baralt não se limita à comparação entre mística oriental e ocidental, mas busca identificar as origens e o desenvolvimento da obra sublime do místico espanhol. Contudo, isso não diminui a originalidade de sua obra, que depende principalmente de sua inspiração pessoal, mesmo que tenha assimilado indiretamente algum influxo cultural dos místicos orientais. O símbolo da água ou da fonte mística interior também possui antecedentes muçulmanos. Em Ibn Arabi e Al-Ghazali, encontramos referências semelhantes às de São João, associadas ao esforço da oração, representado pelo árduo transporte de água espiritual por meio de canais e arcaduces, em contraste com a fonte espontânea da contemplação. López Baralt menciona ainda Raimundo Lúlio e sua obra *Libro de caballerías de Platir*, dirigida a Nuri de Bagdá (século IX), que enfatiza a imagem da água mística da alma. Segundo este místico muçulmano, quando a água flui no coração do gnóstico, revela os segredos de um Deus eterno. O símbolo da "Subida do Monte", amplamente explorado por escritores espirituais espanhóis como Diego de Estella, Francisco de Osuna e Bernardino de Laredo, apresenta similaridades com os orientais. Shihab al-Din Suhrawardi, em *El relato del exilio*, examinado por Corbin, descreve uma "geografia visionária" relacionada ao tema. Na literatura árabe, *O Livro da Escada de Maomé* é outro exemplo que desenvolve a teoria da montanha espiritual, um tema conhecido e tratado muito antes de Bernardino de Laredo, autor de *La subida del Monte Sión*. Raimundo Lúlio, profundamente influenciado pela cultura árabe, pode ser considerado um elo entre os sufis e os cristãos. Tanto para cristãos quanto para muçulmanos, a subida do monte está associada à autoaniquilação, revelando um ponto de comunhão universal entre os dois mundos. O símbolo do "Pássaro Solitário", que representa a alma apaixonada por Deus, também possui antecedentes orientais. Embora o símbolo completo, como apresentado nos *Dichos de Luz y Amor* e no *Cântico Espiritual* de São João, não seja encontrado na literatura mística cristã ocidental, há coincidências com a simbologia oriental. O místico persa Al-Bistami (século IX) descreve um pássaro cujas asas são de eternidade, enquanto Jalaluddin Rumi afirma que o pássaro "voa afastando-se de tudo o que é material e perecível". Para São João e os místicos muçulmanos, esse pássaro simboliza um conhecimento que transcende a razão. Kubra louva a Deus pelo "dom da linguagem dos pássaros". Subrawardi escreveu o *Tratado do Pássaro*, interpretado por Avicena e Al-Ghazali. No entanto, há uma diferença significativa: enquanto para os orientais o pássaro navega no mar do conhecimento, para São João ele conhece apenas a Deus. O motivo do "Combate Ascético", central em São João da Cruz e Santa Teresa, também encontra precedentes no Pseudo-Dionísio e, séculos depois, nos *Exercícios Espirituais* de Santo Inácio de Loyola. Entre os sufis, o tema aparece na "aleya", termo que significa luta. O cavaleiro espiritual, o "javanmardi", enfrenta esse combate ascético com coragem, partindo do castelo de sua alma. Ibn Abbad de Ronda menciona o que um mestre contemplativo, Nuri de Bagdá, diz: "Quão feliz é a alma que souber combater aquela besta", referindo-se à figura do Apocalipse, mencionada também por São João. A "Alma como Jardim Místico" é outro símbolo presente em São João e entre os sufis. Ambos consideram a alma um jardim místico, estado de união descrito por Ibn Arabi e Nuri de Bagdá. Este último, em *Maqamat al-Qulub*, descreve as maravilhas desse jardim ou alma em união mística, dizendo: "Seja louvado Deus, pois na face da Terra há um jardim". Ele acrescenta: "Quem cheirar seu aroma não desejará o Paraíso. Esse jardim é o coração do místico." Outros escritores orientais também mencionam detalhes sobre o jardim. Saadi descreve o vento que se espalha pela alma, simbolizando os sopros divinos que vivificam. Em São João da Cruz, essa imagem reaparece quando ele afirma: "A alma exala o perfume de suavidade ao Amado, que nela habita". Enquanto para os sufis os lírios são a flor do desapego, para São João da Cruz as rosas revelam as misteriosas notícias de Deus. Isso demonstra quão próximos estão os sufis dos místicos espanhóis, tornando a hipótese de Asín Palacios sobre uma fonte comum entre orientais e ocidentais ainda mais plausível. No estudo da doutora López Baralt, encontramos o símbolo de "As raposas da sensualidade e o cabelo como gancho espiritual". O último, em São João, apresenta reflexos da literatura sufista, embora seja evidente que a principal inspiração tenha sido o *Cântico dos Cânticos*. Para São João, as raposas representam os apetites sensuais da alma, uma interpretação que coincide com os sufis, que associam as raposinhas aos desejos carnais do espírito. O motivo do cabelo como "gancho" espiritual também provém do *Cântico dos Cânticos* e é retomado por autores como Luís de León, que reconhece os cabelos como "um laço e cadeia que prendem o próprio rei Salomão". Na literatura oriental, o cacho de cabelo é descrito como um gancho, conforme afirmam os místicos Ibn Arabi e Sabastari. Passando a Santa Teresa de Jesus, López Baralt identifica seis símbolos que apresentam afinidades com a imaginação muçulmana. Dentre eles, destacam-se "O bicho-da-seda" e "Os sete castelos concêntricos da alma". O primeiro símbolo pode ter origem no mundo oriental, considerando que os árabes introduziram o bicho-da-seda na Andaluzia. O artigo menciona o místico persa Rumi (século XIII) como um dos grandes elaboradores dessa metáfora. É provável que Santa Teresa tenha conhecido esse símbolo oralmente, em conversas com pessoas que trabalhavam com seda, um produto comum na sociedade do século XVI. O segundo símbolo, que compara a alma a um castelo a ser defendido contra os inimigos, pertence a uma tradição cristã anterior a Santa Teresa, como nas obras de São Bernardo de Claraval, Ludolfo da Saxônia, Raimundo Lúlio, Bernardino de Laredo e Francisco de Osuna. Contudo, no contexto do possível influxo muçulmano na simbologia mística cristã, Asín Palacios aponta para Ahmad Al-Ghazali e sua obra *Sobre a Desnudação Espiritual*, que menciona "círculos concêntricos". Trata-se de uma compilação anônima de pensamentos religiosos, destacando os sete castelos: "Dentro deles está Deus, e fora, Satanás, que ladra como um cão". López Baralt encontrou um esquema simbólico semelhante aos sete castelos concêntricos da alma descritos por Santa Teresa em *As Moradas*. Esse esquema aparece na obra *Moradas dos Corações*, de Abul-Hasan al-Nuri de Bagdá (século IX). Tal obra pode ter iniciado uma tradição que se desenvolveu do século IX ao XVII. Teria Santa Teresa conhecido essa fonte? Não há provas conclusivas, mas os indícios apresentados são consistentes e dignos de consideração. # O CARMELO DESCALÇO E O ESOTERISMO: PARTE 6 - AS FONTES MÍSTICAS E COSMOLÓGICAS DO “CASTELO INTERIOR” DE TERESA D’ÁVILA 22/01/2025 Autor: Profa. Dra. Ir. Aíla Luzia Pinheiro de Andrade, NJ ![](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000209-bc453bc455/sta-teresa-castelo.jpeg?ph=4df81238fe) **1. Introdução** Santa Teresa de Jesus, ou simplesmente Teresa D'Ávila (1515–1582), foi uma mística carmelita e escritora de destaque no Renascimento espanhol. Reconhecida como uma das mais eminentes contemplativas de sua época, Teresa enfrentou, por obediência à autoridade eclesiástica, a tarefa de registrar por escrito suas experiências extáticas. O objetivo era instruir as monjas sob sua tutela no caminho espiritual para alcançar a união mística. Ela mesma reconheceu a dificuldade de tal empreendimento, considerando-o quase impossível, pois as operações íntimas da alma aderem à "linguagem de Deus", um código secreto e inefável. Sem saber como iniciar essa jornada literária, Teresa acreditou ter recebido inspiração divina para conceber a alma como um castelo de cristal ou diamante, repleto de aposentos. Assim como no céu existem muitas moradas, a alma também contém sete moradas ou globos concêntricos de cristal fino, representando as etapas progressivas do desenvolvimento espiritual (*1M 1,1*). O progresso espiritual descrito por Teresa nas sete moradas resume as três etapas principais da vida interior e da oração: - **As moradas iniciais** enfatizam ações concretas para avançar espiritualmente, como o amor ao próximo, a renúncia ao julgamento alheio, o autoconhecimento, a humildade, o processo de interiorização e o desejo ardente por Deus. - **A quarta morada** marca uma transição, na qual o indivíduo começa a responder ao chamado divino, permitindo que Deus assuma gradativamente o controle da jornada espiritual. - **As moradas interiores** destacam a purificação progressiva da alma por Deus, tornando-a cada vez mais semelhante a Ele, culminando no matrimônio espiritual. Na **quinta morada**, conhecida como a morada da santidade, Teresa dedica grande parte de sua obra. Essas etapas profundas requerem orientação cuidadosa, pois a transformação interior torna-se mais intensa e sólida, e o coração é inundado pela luz divina. Na **sexta morada**, Teresa aborda os desafios, tanto internos quanto externos, enfrentados no caminho da santificação. Obstáculos, adversidades e provas tornam-se mais numerosos, complexos e sutis, exigindo maior discernimento espiritual. Por fim, a **sétima morada**, a mais interior, é o estado da união mística. Nesse estágio, a alma encontra Deus e se une plenamente a Ele, preenchida por Sua luz. Aqui, Teresa descreve a fusão da alma com a luz divina como inseparável, semelhante à água da chuva que se mistura a um rio, tornando-se indistinguível (*7M 2,4*). Essa união culmina no matrimônio místico, onde a alma, completamente purificada, alcança sua plena realização espiritual. > \[...\] é como se a água caindo do céu em um rio ou fonte, onde estiver toda a água, já não se pode separar nem distinguir qual é a água, a do rio ou a que caiu do céu. (7M 2,4) **Os limites da linguagem humana** Michael Gerli observa que muitas metáforas espirituais, especialmente as de caráter arquitetônico, tornaram-se populares na espiritualidade europeia devido ao seu valor mnemotécnico, que as tornava particularmente atrativas (GERLI, 1982, p. 154-163). Esse fenômeno também é evidente na metáfora utilizada por Teresa de Jesus, que pedia às suas filhas espirituais que a mantivessem constantemente na memória (*1M 2,6; 7M 3,9*). Embora o esquema simbólico de Teresa pareça, à primeira vista, original, é praticamente impossível descrever uma experiência mística sem recorrer a símbolos oriundos do contexto cultural e religioso do místico. Como afirma Barbara Kurtz, a linguagem mística não consegue transcrever uma experiência sem interpretá-la ou mediatizá-la, já que a linguagem humana é limitada e incapaz de abordar diretamente a transcendência (KURTZ, 1992, p. 32). Nesse contexto, Teresa confessa a dificuldade de expressar a vivência mística que experimentou, o que a levou a utilizar metáforas. O *castelo interior*, conforme descrito por Teresa, é simultaneamente uma figura de grande beleza plástica e um recurso fácil de memorizar, o que demonstra seu vínculo com o contexto cultural da autora. Apesar disso, por ser uma metáfora pouco usual, torna-se desafiador rastrear suas possíveis origens simbólicas. O ambiente cultural no qual o místico está inserido molda a forma simbólica de sua experiência transcendente, que, em essência, é supralinguística. O êxtase, por definição, é inefável; por isso, o místico recorre a metáforas comuns em seu meio cultural para tentar descrever o que vivenciou, mesmo que seja algo que ultrapassa as fronteiras da razão e da linguagem. Dessa forma, surge uma questão central: de onde Teresa extraiu o simbolismo que utilizou para descrever sua experiência mística? Seus castelos concêntricos, de aspecto peculiar, não encontram paralelo na tradição cristã ocidental. Ainda que muitos textos espirituais apresentem o progresso místico da alma de forma estruturada em sete moradas (ou castelos) cada vez mais interiores, a metáfora de Teresa se destaca por sua singularidade. **A busca das fontes teresianas** A busca mística da união com Deus tem sido tradicionalmente simbolizada como uma viagem, um trajeto percorrido pela alma. Esse simbolismo integra um conjunto de representações religiosas compartilhadas por cristãos, judeus e muçulmanos ao longo da história. Muitas tradições relatam um itinerário e um desejo intenso da alma por Deus, enfatizando aspectos como entrega, purificação, renúncia e abandono, que culminam na união mística. Gaston Etchegoyen sugere que Bernardino de Laredo e Francisco de Osuna, ambos autores estimados por Teresa de Jesus, podem ser as principais fontes de inspiração para o *Castelo Interior* (ETCHEGOYEN, 1923, p. 15). No entanto, o próprio Etchegoyen reconhece que os esquemas propostos por esses autores não explicam os detalhes específicos do símbolo utilizado por Teresa. Francisco de Osuna, por exemplo, limita-se a alegorias medievais convencionais, nas quais os inimigos tradicionais da alma (a carne, o mundo e o demônio) tentam invadir o castelo interior. Já Bernardino de Laredo apresenta uma visão mais distante do esquema teresiano, descrevendo uma *civitas sancta* assentada em um campo quadrado, com fundamentos de cristal, muros de pedras preciosas e um círio pascal ao centro simbolizando Cristo. Outros estudiosos apontam os romances de cavalaria do Renascimento espanhol como possíveis influências para Teresa. A própria santa admitiu ter lido esses romances com grande entusiasmo na juventude. No entanto, ao examinar esses textos, percebe-se que eles não oferecem a chave para compreender o símbolo dos castelos descrito por Teresa. Em nenhum romance da época, os castelos são representados como sete estruturas concêntricas nem celebram a união teopática em seu recinto mais interior. Além disso, mesmo na arquitetura dos castelos espanhóis, ainda hoje visitáveis, não se encontra a configuração de sete moradas cada vez mais interiores, como descrito por Teresa de Jesus (PEERS, 1951, p. 17). Esse panorama reforça a singularidade do simbolismo teresiano, cuja origem parece não se limitar a influências literárias ou arquitetônicas conhecidas, mas sim à profunda experiência espiritual vivida pela mística de Ávila. **4. Recurso à mística judaica** A fase primitiva da mística judaica, que antecede a consolidação da Cabala medieval, abrange o período entre o século I a.C. e o século X. Essa tradição é amplamente conhecida como *Merkavah* ou a mística da Carruagem ou do Trono de Deus. A literatura da *Merkavah* fundamenta-se em especulações sobre as visões proféticas do Antigo Testamento, particularmente na visão do trono-carruagem de Deus descrita em *Ezequiel 1*. O termo hebraico *merkabah* refere-se ao trono-carruagem de Deus, sustentado em um firmamento de cristal e rodeado por raios, querubins e quatro seres vivos. O principal corpus da literatura *Merkavah* foi composto entre 200 e 700 d.C. Nos primeiros relatos, o místico ou visionário era arrebatado às esferas celestes, onde contemplava Deus como um rei sentado em Seu trono. A primeira descrição completa da *Merkavah* aparece nos escritos visionários conhecidos como os livros de *Hechalot*. Esses textos retratam os *Hechalot* (salas ou palácios celestiais) e detalham o desejo do místico de alcançar a sala do trono durante sua ascensão aos céus, onde poderia contemplar o esplendor da majestade divina. A literatura *Hechalot* explora minuciosamente as características desses céus e, em alguns casos, estabelece conexões com tradições apocalípticas encontradas nos círculos de Enoque (SCHOLEM, 1965, p. 9-13). Para alguns estudiosos, a literatura *Hechalot* é um gênero de textos esotéricos e apocalípticos judaicos que perduraram até o início da Idade Média. A cosmologia religiosa apresentada nesses textos — que inclui os sete *Hechalot* ou sete céus — também se encontra em outras grandes religiões, como o hinduísmo e o islamismo, além de sistemas menores, como o hermetismo e o gnosticismo. Segundo essa cosmologia, o trono de Deus situa-se acima do sétimo céu. O número sete, frequentemente associado à perfeição, desempenha papel significativo na mística judaica. Esse simbolismo é evidente em obras como os *Sete Hechalot* ou *Sete Palácios*, que descrevem o arrebatamento do vidente até o Trono de Deus. Um exemplo notável é o *Sefer Hechalot* (ou Terceiro Livro de Enoque), uma obra muito valorizada pela Cabala judaica. O *Sefer Hechalot*, possivelmente escrito no século II d.C., mas com origens traçadas ao século V, apresenta-se como um texto esotérico atribuído ao Rabi Ismael. Este, segundo o relato, teria se tornado um "sumo sacerdote" após visões arrebatadoras que o levaram aos céus. Os principais temas do *Sefer Hechalot* incluem a ascensão de Enoque aos céus e sua transformação no anjo Metatron (DAN, 1993, p. 7-24). No final do século XIII, Moisés de León compilou uma obra atribuída ao rabino Simeon ben Yohai, que teria vivido na Palestina durante o século II. Nesse texto, relata-se uma experiência visionária do rabino, na qual sua alma se liberta momentaneamente do corpo e vivencia uma revelação extraordinária. Durante essa experiência, ele contempla os sete palácios do paraíso e, em contrapartida, os sete palácios do inferno. Esse relato reflete um sistema de símbolos essenciais extraídos dos ensinamentos dos *Hechalot*, mas também incorpora novas ideias baseadas nas especulações sobre a *merkavah* ou carruagem do Senhor. A obra compilada por Moisés de León foi intitulada *Zohar*, ou *Livro do Esplendor*. Este grande comentário místico judaico tornou-se um compêndio da Cabala. No *Zohar*, os sete palácios são habitados por anjos que irradiam luz. Diferentemente do objetivo dos primeiros místicos da *merkavah*, que buscavam contemplar a sala do trono de Deus, o *Zohar* apresenta o desejo do místico como sendo a comunhão com Deus, ou seja, a fusão entre as vontades divina e humana. Esse estado de união mística é realizado no êxtase e simbolizado pelo "beijo do Amor". De acordo com o *Zohar*, o beijo que une a alma a Deus ocorre no sétimo palácio e é de tal intensidade que pode extrair a alma do corpo, levando-a a Deus e provocando, em alguns casos, a morte física. Santa Teresa de Jesus também menciona, de forma semelhante ao *Zohar*, o beijo divino com o qual o Rei celestial consuma o matrimônio espiritual na sétima morada de seu *Castelo Interior*. Ela descreve experiências extáticas intensas, nas quais a alma parece ser arrebatada do corpo e elevada a uma comunhão plena com Deus. Teresa caracteriza essas vivências como tão poderosas que poderiam levar o místico à morte (*7M 2,5; 3,6*). **5. Influências da cosmologia aristotélica** Além das fontes judaicas, é possível identificar outras influências no simbolismo de Teresa de Jesus. As versões latinas das obras de Aristóteles eram amplamente difundidas no contexto em que Teresa viveu. No livro *De Caelo*, Aristóteles concebe o universo como esferas concêntricas que giram em movimento circular. Esse esquema cósmico transformou-se em um símbolo que servia de pano de fundo para representar o caminho espiritual do ser humano (LÓPEZ-BARALT, 2010, p. 180). É plausível sugerir que, ao descrever a alma em forma de sete círculos ou castelos concêntricos, Santa Teresa faça uma alusão indireta às sete esferas planetárias da cosmovisão medieval, derivadas do pensamento aristotélico e da literatura *Hechalot*. A Carmelita parece visualizar a alma como um reflexo microcósmico do macrocosmo celestial. Nesse sentido, as moradas espirituais não seriam apenas comparadas a castelos, mas também às esferas celestes. Assim, Teresa propõe uma analogia em que o ser humano carrega, em sua própria interioridade, todas as esferas do céu, unindo o microcosmo humano ao macrocosmo divino. Essa visão reforça a dimensão cósmica de seu simbolismo espiritual, conectando o percurso místico individual às estruturas universais. **6. Conclusão** Conclui-se que Santa Teresa de Jesus não criou a bela imagem dos castelos interiores de forma original. Apesar de parecer surpreendente à sensibilidade do cristão ocidental, Teresa aprimorou essa imagem com detalhes geniais, cristianizando-a e adaptando-a aos seus propósitos espirituais. Assim como muitos filósofos, poetas e humanistas do Renascimento, os místicos cristãos foram profundamente influenciados pela literatura cabalística do século XIII. Na mística judaica, reconheceram um caminho seguro para compreender melhor suas próprias experiências, que estavam enraizadas em tradições espirituais mais antigas. No entanto, Swietlicki alerta para não presumir que a influência da Cabala judaica sobre os místicos cristãos se deu diretamente por meio de textos literários. É mais plausível que os traços da Cabala tenham persistido em círculos populares, mesmo após a expulsão dos judeus da Espanha em 1492 (SWIETLICKI, 1986, p. 28). Dessa maneira, a mística cristã tornou-se um importante veículo para a transmissão de ideias cabalísticas, mesmo no século XVI. Apesar das diferenças culturais e temporais, é inegável a influência da Cabala sobre figuras importantes como Santa Teresa de Jesus. Essa influência revela como as tradições místicas transcendem barreiras religiosas, encontrando pontos de convergência nas buscas espirituais universais. **Referências Bibliográficas** - BENSION, Ariel. *O Zohar: o livro do esplendor*. São Paulo: Polar Editorial, 2006. - DAN, Joseph. *The Ancient Jewish Mysticism*. Tel Aviv: Mod Books, 1993. - ETCHEGOYEN, Gaston. *L'amour divin: Essai sur les sources de Sainte-Thérèse*. Bordeaux: Feret, 1923. - GERLI, Michael. "El castillo interior y el arte de la memoria." *Bulletin Hispanique*, 86/1-2 (1982), 154-163. - KURTZ, Barbara. "The Small Castle of the Soul: Mysticism and Metaphor in the European Middle Ages." *Studia Mystica*, XV (1992), 28-35. - LÓPEZ-BARALT, Luce. "Teresa of Jesus and Islam: The Simile of the Seven Concentric Castles of the Soul." In: Hilaire KALLENDORF (ed.), *A New Companion to Hispanic Mysticism*. Danvers: BRILL, 2010, p. 175-199. - PEERS, Edgar Allison. *Study of the Spanish Mystics*. London: S.P.C.K, 1951. - SCHOLEM, Gershom. *Jewish Gnosticism, Merkabah Mysticism, and the Talmudic Tradition*. New York: Jewish Theological Seminary of America, 1965. - SWIETLICKI, Catherine. *Spanish Christian Cabala: The Works of Luis de León, Santa Teresa de Jesús, and San Juan de la Cruz*. Columbia, Missouri: University of Missouri Press, 1986. - TERESA DE JESÚS, Santa. *Moradas del Castillo Interior*, in *Obras Completas*. Madrid: Editorial Católica, 1951. # O CARMELO DESCALÇO E O ESOTERISMO: PARTE 7 - Hekhalot: A Origem da Teoria do Castelo Interior de Teresa de Ávila 22/01/2025 Autor: **Bakhshali Ghanbari** 1\. Professor Associado, Departamento de Filosofia, Religiões e Misticismo, Universidade Islâmica Azad, Filial Central de Teerã, Teerã, Irã. E-mail: **Tradução:** Prof. Gabriel Sapucaia ![](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000211-dd7eedd7f0/merkava.jpeg?ph=4df81238fe) ##### **Místicos no contexto das religiões e escolas de pensamento** Místicos de diversas religiões e escolas de pensamento apresentaram teorias sobre o coração humano e sua relação com Deus, cada um expressando suas ideias de maneiras distintas. Nesse contexto, Teresa de Ávila (1515–1582) desenvolveu a teoria do "Castelo Interior". Em suas obras, especialmente no livro *Castelo Interior*, Teresa explorou essa teoria, mas nunca fez referência direta às fontes dessa concepção. Talvez isso se deva ao fato de que, ao contrário de outros místicos como Agostinho, Dionísio, Mestre Eckhart e Boaventura, ela não era essencialmente uma teórica. Essa lacuna desperta um interesse para investigar as bases intelectuais de sua teoria, algo que será abordado neste artigo. A hipótese apresentada é que, considerando o contato de Teresa com a tradição religiosa e mística judaica e sua vivência em Ávila, uma área habitada por judeus, ela pode ter sido influenciada pelo *Hekhalot*, desenvolvido no misticismo *Merkavah*, reinterpretando-o sob a perspectiva da tradição religiosa e mística cristã. ##### **Antecedentes** Muito já foi escrito sobre o misticismo judaico, incluindo o misticismo do *Hekhalot*. Entre esses trabalhos está o artigo de Abolfazl Mahmoudi, publicado na revista *Sete Céus*, que aborda o tema do misticismo judaico e discute brevemente o *Hekhalot*. Além disso, Tahereh Haj Ebrahimi, também na mesma revista, comparou o misticismo judaico com o gnosticismo. Outros estudos, como os de Mohammad Reza Abedi e seus colaboradores, realizaram uma análise comparativa entre as etapas do caminho místico no sufismo islâmico e no misticismo judaico (Merkavah e Cabala). Esses estudos apresentaram relatos gerais sobre o misticismo judaico e estabeleceram comparações com o misticismo islâmico. Entretanto, nenhum desses textos examinou as raízes da teoria do *Castelo Interior* no contexto do *Hekhalot*. ##### **Metodologia** Este artigo utiliza uma abordagem descritiva para relatar opiniões e uma abordagem comparativa, fazendo uso de diversas notas e fontes relevantes. Sempre que necessário, realiza análises críticas para explorar as questões levantadas. ##### **Questão Central** Não há dúvidas de que Teresa de Ávila apresentou a teoria do *Castelo Interior* ou das sete moradas. O título *Castelo Interior* indica que, no livro, Teresa descreveu as sete moradas, organizadas de maneira progressiva. No entanto, a questão que surge é: até que ponto Teresa foi influenciada pelo *Hekhalot* na formulação de sua teoria? ##### **Hekhalot: Uma Introdução** Os textos *Hekhalot* (Palácios Maiores e Menores) são tratados curtos ou fragmentos dispersos de tamanhos variados, que originalmente podem ter sido mais extensos. Esses textos, que permaneceram sem edições definitivas por muito tempo, não foram amplamente divulgados, e suas datas exatas de composição não são conhecidas (Scholem, p. 78). Nos *Hekhalot*, são descritas as etapas da ascensão espiritual do místico aos céus e sua visão de Deus. Em outras palavras, *Hekhalot* consiste em descrições dos palácios e corredores celestiais pelos quais o místico deve passar para alcançar, no sétimo e último palácio, o trono divino de glória e majestade. Essencialmente, *Hekhalot* é um conjunto de textos nos quais os místicos explicam suas experiências espirituais, culminando na visão do trono divino no sétimo palácio. Embora esses textos tenham sido organizados entre os séculos V e VI, acredita-se que foram originalmente escritos em períodos muito anteriores (Spencer, p. 178). O *Hekhalot Rabbati* (Palácio Maior) é atribuído ao Rabino Ishmael, enquanto o *Hekhalot Zutarti* (Palácio Menor) é associado ao Rabino Akiva. No entanto, o *Hekhalot Zutarti* foi escrito antes do *Hekhalot Rabbati*. No *Hekhalot Rabbati*, menciona-se a ascensão da alma da Terra, passando pelas esferas dos anjos guerreiros e governantes cósmicos, até alcançar a suprema luz divina, simbolizando a salvação gnóstica (Haj Ebrahimi, p. 191). Apesar disso, os textos *Hekhalot* não detalham as etapas da ascensão nos sete céus, mencionando apenas de forma breve que os sete palácios estão situados nas alturas do céu. A forma atual desses textos, que também inclui visões e inspirações místicas, não poderia ter sido finalizada antes do século VI. Em geral, pode-se afirmar que a composição desses textos foi concluída em diferentes épocas. Infelizmente, os manuscritos hebraicos desses textos estão disponíveis apenas em edições impressas com muitos erros e distorções (idem, comparado com Scholem, p. 79). ##### Estrutura dos Textos Hekhalot: 1. **Hekhalot Zutarti** (*Palácio Menor*): Descreve em detalhes a ascensão do Rabino Akiva. 2. **Hekhalot Rabbati** (*Palácio Maior*): Também conhecido como os Palácios de Rabino Ishmael O *Hekhalot* descreve sete palácios celestiais que representam diferentes estágios de progresso espiritual. O místico passa por esses palácios para alcançar o sétimo, onde experimenta a visão do trono divino e a união com Deus. Esses palácios correspondem a graus específicos de perfeição moral e espiritual, sendo assim descritos: 1. No **primeiro palácio**, o místico é chamado de *Hasid* (Piedoso); 2. No **segundo palácio**, é *Taher* (Puro); 3. No **terceiro palácio**, é *Yashar* (Justo); 4. No **quarto palácio**, é *Tamim* (Inteiramente devoto a Deus); 5. No **quinto palácio**, expressa santidade perante Deus; 6. No **sexto palácio**, fala a linguagem da *Kedusha* (Santidade), a mesma linguagem com a qual Deus criou o mundo; 7. No **sétimo palácio**, o místico experimenta a revelação plena da divindade. Essa progressão levanta a questão de se o próprio *Merkavah* (Carruagem Divina) não pode ser interpretado simbolicamente como a alma humana representando a divindade e seu trono sendo o ápice espiritual da jornada. No entanto, é importante observar que essas interpretações simbólicas são estranhas ao espírito original do *Hekhalot*, sendo mais associadas às reinterpretações posteriores pela Cabala (Haj Ebrahimi, p. 197-198). ##### **Comparação com os Sete Céus** Nos textos de Enoque, em vez de sete palácios, são mencionados os sete ou dez céus pelos quais o místico deve passar para encontrar Deus. Cada céu possui características únicas: 1. **Primeiro céu**: Um mar, possivelmente a origem da chuva. Contém armazéns de neve e orvalho, guardados por anjos. 2. **Segundo céu**: Um lugar de trevas profundas, onde habitam anjos caídos que, liderados por Satanás, desobedeceram a Deus. 3. **Terceiro céu**: Contém o Paraíso e o Inferno. No Paraíso está a Árvore da Vida, guardada por 300 anjos, enquanto no Inferno há rios de fogo incessantes. 4. **Quarto céu**: Abriga o Sol e a Lua, que atravessam portões ao leste e oeste, guiados por anjos. 5. **Quinto céu**: Habitado pelos *Grigori*, anjos gigantes de aparência severa, liderados por Satanás, que rejeitaram a soberania divina. 6. **Sexto céu**: Lar de anjos principais que são extremamente luminosos e responsáveis por executar ordens divinas. 7. **Sétimo céu**: Contém o zodíaco e marca a transição para os céus superiores, onde estão os anjos maiores e o domínio da divindade (Mahmoudi, p. 214-215). ##### **Os Sete Palácios no Zohar** Nos textos do *Zohar*, os sete palácios possuem características específicas: 1. O **primeiro palácio** é descrito como pavimentado com "pedra de safira". 2. O **segundo palácio** é associado ao "tesouro de joias espirituais". 3. O **terceiro palácio** brilha mais do que os outros, sendo chamado "Palácio da Felicidade". 4. O **quarto palácio** é o "Palácio de Luz", que transcende os anteriores. 5. O **quinto palácio** é descrito como o "Palácio do Amor", com uma essência eterna. 6. O **sexto palácio** é o "Palácio da Benevolência", onde o fogo espiritual pode ser perigoso ou sinal de êxtase místico. 7. O **sétimo palácio** é descrito como o "Palácio da Justiça e Julgamento", representando a união final com Deus (Tishby, p. 597). ##### **Conclusão** O *Hekhalot* e os textos associados, como o *Zohar*, apresentam uma rica simbologia espiritual que influencia diversas tradições místicas, incluindo a Cabala e outras escolas de pensamento. Embora os palácios do *Hekhalot* descrevam a ascensão mística, é notável que os textos hebraicos originais estejam fragmentados e sujeitos a interpretações e adaptações ao longo dos séculos. --- ##### **O Castelo Interior e Suas Sete Moradas** Para investigar como Teresa de Ávila foi influenciada pelo *Hekhalot* em sua teoria do Castelo Interior, é necessário introduzir brevemente as características dessa obra. Assim, podemos identificar em qual das moradas ocorre a influência do *Hekhalot* e quais aspectos mostram maior ou menor influência (Ghanbari, 65-86). ##### **Primeira Morada: Meditação e Autoconhecimento** A primeira morada é destinada às etapas iniciais da atenção a Deus. Suas características incluem: 1. Ênfase em meditação, reflexão, autoconhecimento, oração e práticas ascéticas (*Frohlich, p. 180*). 2. A principal tarefa nesta morada é a oração, considerada essencial para o desenvolvimento espiritual (*Teresa, Interior Castle, p. 27*). ##### **Segunda Morada: Prática da Oração** Embora a oração comece na primeira morada, ela se torna mais completa na segunda. - O místico percebe que entrar nesta morada é necessário, mas não suficiente. - A resistência espiritual, o calor e a luz do místico aumentam, enquanto os perigos dos "animais venenosos" diminuem (*Peers, p. 190*). ##### **Terceira Morada: Vida de Louvor** Na terceira morada, o místico percebe que uma confiança absoluta em si mesmo pode levar à queda espiritual. Apesar disso, o místico também reconhece que suas boas ações são limitadas (*Peers, p. 190*). ##### **Quarta Morada: Consolação Divina** Nesta morada, o místico experimenta pela primeira vez as consolações divinas. - Deus se torna mais ativo na vida espiritual, enquanto as forças da alma desempenham um papel menor. - Essa morada pode ser comparada à "oração de silêncio" descrita por Teresa em *Livro da Vida* (*Teresa, Interior Castle, p. 40*). ##### **Quinta Morada: Noivado Espiritual** Na quinta morada, o místico alcança uma união limitada com Deus, descrita como um "noivado espiritual". - Teresa compara o "noivado espiritual" da quinta morada a um compromisso temporário, que se desenvolve em um "casamento espiritual" na sétima morada (*Frohlich, p. 176*). ##### **Sexta Morada: União Temporária** Nesta morada, o amante (o místico) e o Amado (Deus) passam longos períodos juntos. - Quanto maior a intimidade entre eles, mais graças o místico recebe (*Teresa, Interior Castle, p. 191*). - Também ocorrem experiências místicas intensas, como êxtases, visões e locuções. - Sinais típicos dessa oração incluem: 1. Perda temporária da fala. 2. Frieza corporal, como se estivesse sem vida. 3. Suspensão da faculdade de raciocínio por um ou mais dias. 4. Sofrimento de dores naturais e espirituais (*Grafe, p. 240-241*). ##### **Sétima Morada: Matrimônio Espiritual** A sétima morada, localizada no centro do Castelo Interior, é o lugar onde o místico experimenta permanentemente a presença de Deus. - As faculdades do místico são transformadas pela luz divina, perdendo sua independência e se rendendo completamente à vontade de Deus. - Aqui, o místico desfruta das bênçãos divinas em plenitude (*Teresa, Interior Castle, p. 183*). ##### **Confirmação da Hipótese** A hipótese deste estudo é que Teresa de Ávila foi influenciada pela teoria dos salões espirituais (*Hekhalot*) em sua concepção do *Castelo Interior*. Contudo, essa influência não implica que Teresa tivesse acesso direto aos textos do *Hekhalot* ou que os tivesse lido. Em vez disso, argumenta-se que ela foi impactada pelo conteúdo do *Hekhalot*, que era difundido entre os judeus. A influência de Teresa pode ser identificada em vários aspectos: ##### **1. Influência na Forma e Estrutura** Ao comparar o formato do *Castelo Interior* com o *Hekhalot*, as semelhanças são evidentes: - Ambos apresentam sete moradas/salões. - Ambos descrevem essas estruturas como sendo compostas por níveis e construídas com pedras preciosas. ##### **2. Influência em Termos e Conceitos** Embora Teresa nunca mencione diretamente o *Hekhalot* em suas obras, isso não significa que ela não tenha sido influenciada ou que não tenha utilizado conceitos derivados dessa tradição. - Teresa não escreveu como pesquisadora, mas por necessidade prática, baseando-se principalmente na Bíblia. - No entanto, seu estilo é muito próximo do utilizado no *Hekhalot*, e ela emprega termos como "castelo" e "morada", que aparecem diretamente nos textos do *Hekhalot*. Antes de Teresa, nenhum outro místico cristão usou tais termos em suas concepções espirituais. - Embora Teresa também tenha sido influenciada por Santo Inácio de Loyola, esses termos não aparecem em suas obras. - Além disso, Teresa estava profundamente envolvida com experiências místicas e a administração de 16 conventos, o que a deixava sem tempo para criar novos termos. Assim, os conceitos e termos que ela usou estavam amplamente difundidos na literatura da época, tanto na Espanha quanto em textos místicos judaicos, especialmente no *Hekhalot*. Um exemplo dessa influência é o foco na meditação, enfatizado em sua obra *Exclamações da Alma a Deus*, que descreve a busca por paz e serenidade na meditação, semelhante às práticas contemplativas dos salões do *Hekhalot*. O termo "Castelo Interior" é, por si só, uma indicação direta dessa influência, já que descreve as sete moradas do castelo. ##### **3. Referências Frequentes ao Antigo Testamento** Embora Teresa não mencione explicitamente o *Hekhalot*, ela recorre ao Antigo Testamento de forma consistente, interpretando partes dele, como o *Cântico dos Cânticos*. - Um dos principais indícios da influência do *Hekhalot* sobre Teresa é sua repetida referência e domínio do Antigo Testamento, especialmente o Livro de Ezequiel, que é uma das fontes do *Hekhalot*. - A família de Teresa era profundamente religiosa e lia frequentemente a Bíblia, o que indica que Teresa provavelmente estava familiarizada com as visões de Ezequiel e, possivelmente, com o misticismo da *Merkavah*. - Além disso, Teresa viveu em Ávila, uma área com grande presença judaica, o que sugere que sua espiritualidade pode ter sido influenciada pelo misticismo judaico, especialmente o da *Merkavah*. - Termos como "morada", "castelo", "palácio" e "cripta" aparecem repetidamente nas obras de Teresa, refletindo a terminologia do *Hekhalot*. Teresa também compara os dons espirituais às moradas do Templo de Salomão, onde "nenhum som era ouvido". Esses dons são concedidos ao místico que alcança a sétima morada de maneira semelhante aos que residiam no Templo de Salomão (*Teresa, Interior Castle, p. 183*). Pode-se argumentar que o conceito do *Castelo Interior* de Teresa foi inspirado no Templo de Salomão, o que reforça a ligação entre sua teoria e a literatura judaica. ##### **4. Enfoque na Oração e Práticas Ascéticas** No *Hekhalot*, o místico deve passar por diferentes práticas ascéticas e orações para alcançar a visão divina e superar obstáculos espirituais. - Teresa também enfatiza constantemente a oração em suas obras, sendo este um dos temas centrais de sua espiritualidade. Sua obra *Livro da Vida* destaca a oração como um caminho essencial para a união com Deus (*Teresa, Life, p. 154, 168*). - A oração, em Teresa, tem o mesmo papel atribuído a ela no *Hekhalot*: um meio de alcançar a união divina e superar os obstáculos espirituais. - Além disso, Teresa menciona frequentemente termos relacionados à ascese, reforçando a semelhança com as práticas descritas no *Hekhalot*. ##### **Análise Comparativa** Talvez a evidência mais clara da influência do *Hekhalot* sobre Teresa de Ávila seja a semelhança inegável entre o *Castelo Interior* e o *Hekhalot*. Por meio de uma análise comparativa, é possível determinar a origem e a extensão da influência do *Hekhalot* na teoria de Teresa. Para isso, compararemos os salões (*Hekhalot*) com as moradas (*Castelo Interior*) de forma detalhada. ##### **1. Primeiro Salão/Morada: Renúncia e Meditação** No primeiro estágio, o místico do *Hekhalot* deve alcançar o nível de renúncia (*zuhd*), enquanto o místico do *Castelo Interior* é chamado à meditação. Ambos têm o mesmo objetivo: preparar-se para o próximo estágio. - A oração, uma prática essencial no primeiro salão do *Hekhalot*, também é central na primeira morada do *Castelo Interior*, pois sem ela não é possível alcançar a renúncia. ##### **2. Segundo Salão/Morada: Pureza** O segundo salão exige que o místico alcance a pureza (*tahor*), o que se assemelha à continuidade do esforço iniciado na primeira morada. - Tanto no *Hekhalot* quanto no *Castelo Interior*, há um foco na oração, e é enfatizado que a progressão para os níveis mais elevados só é possível por meio da continuidade na prática espiritual. ##### **3. Terceiro Salão/Morada: Sinceridade** O terceiro salão é caracterizado pela prática da sinceridade (*sidq*). - No *Castelo Interior*, a terceira morada enfatiza o reconhecimento das próprias limitações, o que reflete a honestidade consigo mesmo, essencial para o progresso espiritual. ##### **4. Quarto Salão/Morada: Reclusão com Deus** O quarto salão é um lugar de reclusão com Deus, onde o místico renuncia ao mundo exterior. - De forma semelhante, na quarta morada do *Castelo Interior*, o místico experimenta as consolações divinas como resultado da reclusão espiritual. Essa é a primeira etapa em que o místico começa a receber graças especiais de Deus. ##### **5. Quinto Salão/Morada: Amor e Santidade** No quinto salão, o místico entra no domínio da santidade divina. - Teresa descreve essa etapa como um "noivado espiritual", que, embora use uma terminologia diferente, está intimamente relacionado ao conceito do amor divino presente no *Hekhalot*. - Ambos os textos descrevem essa etapa como uma relação de amor entre o místico e Deus. ##### **6. Sexto Salão/Morada: União Temporária com Deus** No sexto salão, o místico dialoga com Deus e percebe Sua presença. - Teresa chama essa etapa de "união temporária", onde o místico desfruta de um estado de proximidade com Deus, o que está alinhado com o diálogo místico descrito no sexto salão do *Hekhalot*. - Ambos os textos mencionam a ascensão do místico nesta etapa. ##### **7. Sétimo Salão/Morada: Visão Divina e União Plena** No sétimo salão, o místico concentra todo o seu ser para contemplar o *Shi'ur Qomah* (medida da glória divina). - Durante essa visão, o místico do *Hekhalot* experimenta tremores e exclama constantemente: "Santo! Santo!" (*Kadosh*). Essa intensa experiência pode levar à perda de consciência devido ao temor e à grandiosidade da visão divina. - Teresa descreve essa experiência na sétima morada como o "matrimônio espiritual", onde o místico alcança a visão plena de Deus. - A principal diferença entre os dois textos é que, enquanto o místico do *Hekhalot* é dominado pelo temor, o místico de Teresa é tomado por uma alegria profunda, levando à perda de si mesmo em Deus. No entanto, ambos compartilham o objetivo da união com o divino. ##### **8. Ênfase na Unidade da Visão** Ambas as teorias enfatizam a unidade da visão como um objetivo final. - A diferença é que, para Teresa, a visão está ligada à união com Deus, enquanto no *Hekhalot* ela está associada à contemplação do trono divino. ##### **Resultados** Este artigo confirma a hipótese de que Teresa de Ávila foi influenciada pelo *Hekhalot* ao desenvolver sua teoria do *Castelo Interior*. Na concepção do *Castelo Interior*, Teresa seguiu uma abordagem semelhante àquela apresentada no *Hekhalot*, com diferenças apenas na nomenclatura, não nos objetivos ou no conteúdo. Além disso, Teresa utilizou termos populares no *Hekhalot* para descrever as etapas do caminho espiritual, como "castelo", "cripta" e "morada", que possuem correspondência direta com os conceitos de "salões" e "corredores" no *Hekhalot*. Tanto no *Hekhalot* quanto nos textos de Teresa, há uma referência frequente ao Antigo Testamento, especialmente ao Livro de Ezequiel e ao *Cântico dos Cânticos*. Teresa chegou até a escrever comentários sobre algumas partes do Antigo Testamento. Em ambas as teorias, há um foco nas dificuldades e na necessidade de seguir um caminho espiritual para superar esses obstáculos, utilizando a ascese e a oração como ferramentas principais. É importante notar que em várias passagens das obras de Teresa, o termo "ascese" aparece explicitamente. A comparação entre as sete etapas descritas em ambas as teorias confirma a influência do *Hekhalot* na obra de Teresa. O conteúdo dessas etapas é relativamente compatível, e foi possível estabelecer uma correspondência direta entre cada salão do *Hekhalot* e as moradas do *Castelo Interior*. Por fim, ambas as teorias enfatizam a unidade da visão espiritual. A diferença principal está no objetivo final: enquanto Teresa busca a união com Deus, o *Hekhalot* foca na contemplação do trono divino. ##### **Fontes** 1. Ávila, Teresa. *Caminho da Perfeição*. Trad. Bakhshali Ghanbari. Qom: Editora da Universidade de Religiões e Denominações, 2017. 2. Toufiqi, Hossein. *Os Segredos de Enoque*. Site dos Antigos Alienígenas, 2015. 3. Toufiqi, Hossein. *O Livro dos Segredos de Enoque*. Revista *Sete Céus*, nº 3 e 4, 1999. 4. Haj Ebrahimi, Tahereh. *Misticismo Judaico e a Escola Gnóstica*. Revista *Sete Céus*, nº 17, 2003. 5. Daqiqian, Shirindokht. *Uma Escada para o Céu: História e Filosofia no Judaísmo*. Teerã: Vida, 2000. 6. Scholem, Gershom. *Tendências e Escolas do Misticismo Judaico*. Trad. Alireza Fahim. Qom: Universidade de Religiões e Denominações, 2013. 7. Ghanbari, Bakhshali. *O Castelo Interior: As Sete Moradas*. Revista *Sete Céus*, nº 38, 2009. 8. Mahmoudi, Abolfazl. *Merkavah e o Antigo Testamento*. Revista *Sete Céus*, nº 15, 2002. 9. Simeon Ben Jochai. *O Sepher Ha-Zohar: O Livro do Esplendor*. San Diego: Wizard's Bookshelf e Nova York: Theosophical Publishing Company, 1980. 10. Frohlich, Mary. *A Intersubjetividade do Místico: Um Estudo do Castelo Interior de Teresa de Ávila*. Atlanta e Geórgia: Scholars Press, 1993. 11. Grafe, Hilda. *A História do Misticismo*. Guildford e Londres, 1966. 12. Marcoulesco, Ilena. "União Mística", na *Enciclopédia das Religiões*. (Ed.) Mircea Eliade, Vol. 5. Nova York: McMillan, 1987. 13. Gruenwald. *Apocalipsismo Judaico até o Período Rabínico*. Nova York: Macmillan Publishing Company, 1987. 14. Peers, Allison. "Introdução ao Castelo Interior". *Obras Completas*. Londres e Nova York: Sheed & Ward, 1957. 15. Spencer, Sidney. *Misticismo nas Religiões do Mundo*. Penguin Books, 1963. 16. Scholem, Gershom. *Misticismo Merkabah*. *Enciclopédia Judaica de Jerusalém*. Keter Press, 1996. 17. Teresa de Ávila. *Castelo Interior*. (Ed.) Robert Van de Weyer. Londres: Fount, 1995. 18. Teresa de Ávila. *Vida*. Trad. E. Allison Peers. Nova York: Image Books Doubleday, 1991. 19. Teresa de Ávila. *Exclamações da Alma a Deus*. *Obras Completas*. Londres e Nova York: Sheed & Ward. Trad. Allison Peers, 1957. 20. Tishby, Isaiah. *A Sabedoria do Zohar: Uma Antologia de Textos*. Oxford: Oxford University Press, 1989. # O CARMELO DESCALÇO E O ESOTERISMO: PARTE 8 - O Matrimônio Divino como União Cabalística: Santa Teresa de Ávila e o Zohar 22/01/2025 Fonte: [https://everything2.com/title/The+Divine+Marriage+as+Kabbalistic+Union%253A+St.Teresa+of+Avila+and+the+Zohar ](https://everything2.com/title/The+Divine+Marriage+as+Kabbalistic+Union%253A+St.Teresa+of+Avila+and+the+Zohar) ![](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000213-a7440a7444/O%20Extase%20de%20Santa%20Tereza%20D%C2%B4Avila.jpeg?ph=4df81238fe) "Como uma rosa entre os espinhos, assim é minha amada entre as donzelas" – Rabino Hizkiyah, citando o *Cântico dos Cânticos* no primeiro capítulo do *Zohar*. O *Castelo Interior* de Teresa de Ávila, um texto clássico do misticismo cristão, foi escrito como um guia para suas irmãs carmelitas, oferecendo um caminho de purificação espiritual que culmina em uma espécie de "matrimônio", uma união com a majestade divina. A alma é imaginada como um castelo, com o matrimônio divino no centro. Os capítulos do texto são divididos em "Moradas", cada uma representando um novo estágio de evolução espiritual e um novo nível da relação entre a alma e Deus. Passar pelo castelo é um processo de aprimoramento espiritual. Para atravessar os "muros" e chegar às "moradas interiores" do castelo, é necessário escalar as paredes e enfrentar os "animais" ferozes, que simbolizam os pecados e as distrações. À medida que se avança de morada em morada, a alma do praticante se desenvolve, gradualmente se libertando de estados mentais supérfluos e impuros, de desejos pessoais e do orgulho. O praticante embarca em um processo de transformação; como o bicho-da-seda, a alma deve ser transmutada, em termos alquímicos, de sua natureza básica e mundana para um estado puro e espiritualmente elevado. Teresa usa o bicho-da-seda como uma analogia simbólica para o praticante, construindo para si uma espécie de "abrigo" no qual suporta sua própria transmutação – no caso de Teresa, os diferentes estágios de desenvolvimento pessoal e evolução espiritual. O uso do bicho-da-seda também reflete as dificuldades inerentes ao processo de transformação espiritual: o bicho-da-seda deve morrer para que a alma pura possa surgir. Para que a alma se una a Deus no matrimônio divino, a velha alma deve morrer, a vida anterior deve ser abandonada em favor de um novo ser espiritual que emerge da "casca" da vida anterior. O objetivo final é o matrimônio espiritual com Deus. Na sexta morada, ocorre uma espécie de "noivado", mas a alma ainda não está preparada para se abandonar completamente à vontade divina e ao êxtase do amor divino abrangente. O "eu" deve ser entregue, e a antiga vida da alma deve ser perdida, sendo substituída por uma essência espiritual purificada, preparada para abandonar as preocupações mundanas e abraçar o amor total e abrangente de Deus. Abandonar-se à vontade divina é um componente vital do processo. É necessário, gradualmente, abandonar a percepção egocêntrica de si mesmo como alguém que pratica essas disciplinas espirituais devido à própria santidade, e aceitar a vontade divina como o único pré-requisito para o sucesso neste caminho. "Eu só os advertirei que, ao saberem ou ouvirem que Deus está concedendo essas graças às almas, nunca O roguem ou desejem que os conduza por este caminho." O capítulo nove da sexta morada enfatiza este ponto, explicando a natureza do ceticismo em relação à própria alma: "A alma, então, sente esses anseios, lágrimas e suspiros, juntamente com os fortes impulsos que já foram descritos." Sem a vontade de Deus, esse processo é impossível; não se pode progredir nesse caminho espiritual sem ela: "…deve ficar claro que não se podem impor limites aos atos de Deus e que Ele pode elevar uma alma ao ponto mais alto…." Analisar mais profundamente a filosofia de Teresa é enriquecido por uma breve explicação das interpretações cabalísticas e zoháricas do amor e da união divina. Embora contrastem marcadamente com o guia de Teresa para o avanço espiritual e a união divina, essas interpretações mostram a variedade de visões sobre os temas do amor divino e do matrimônio. Esses temas estão presentes não apenas na liturgia judaico-cristã, mas também nas variadas tradições esotéricas e místicas da Espanha dos séculos XIV a XVI. A Espanha foi um centro de evolução religiosa, especialmente mística, nos anos que precederam e sucederam a vida de Teresa de Ávila. O misticismo judaico, em particular, passou por algumas de suas transformações mais notáveis e radicais, culminando na composição de um dos textos cabalísticos mais famosos e reverenciados pelos judeus: o *Zohar*. Surgido no século XIII, o *Zohar* introduziu e consolidou muitos conceitos que logo passaram a proliferar nos textos cabalísticos, especialmente a atribuição de feminilidade a aspectos do Divino (a *Shechinah*) e as alegorias poéticas de encontros eróticos. No misticismo espanhol, esse erotismo divino tem importância, mas é fácil exagerar as semelhanças aparentes entre as tradições. A relação "sexual" descrita no *Zohar* não é meramente entre Deus e a Nação de Israel, apesar do uso de alegorias cortesãs para descrever o amor apaixonado e consumado dos judeus por Deus. Na verdade, a imagem sexual no *Zohar* refere-se a um ato de procriação e emanação dentro do próprio Divino. Com exceção de Moisés, que é entendido esotericamente na literatura zohárica como alguém que encerrou suas relações físicas com a esposa ao iniciar "relações" espirituais com Deus, não é a relação entre o Homem e Deus que é sexualizada, mas sim entre as "partes" (*Sephirot*) do Divino. Dessas interações flui a criação. Do vazio divino acima da "Coroa" emanam aspectos variados da divindade, e das "interações" desses elementos surgem novos aspectos, que finalmente se coalescem e iniciam a criação do mundo. A imagem de Deus e da Nação (ou Assembleia) de Israel como amantes é, no entanto, muito mais antiga que o *Zohar*. Mais intrigante ainda é a associação clara entre a *Shechinah*, tradicionalmente entendida como a presença divina e feminilizada no *Zohar*, e a própria Nação de Israel. Independentemente do significado esotérico da imagem sexual no *Zohar*, as associações simbólicas de um erotismo divino entre Deus e o povo judeu devem ter feito parte da imaginação popular. A evidência mais antiga e canônica disso é o *Shir Hashirim* (*Cântico dos Cânticos*), em que a relação entre Deus e os judeus é simbolicamente representada como um diálogo entre amantes. Embora seja improvável que Teresa tivesse acesso ao *Zohar*, ou sequer conhecimento dele, é difícil acreditar que essas ideias e temas esotéricos gerais não a tenham inspirado de alguma forma. O *Cântico dos Cânticos* também tem uma longa história no cristianismo, sendo frequentemente interpretado como a relação amorosa entre Deus e a alma. A Espanha de Teresa ainda era marcada por grandes convulsões religiosas, não apenas devido à influência óbvia da Contrarreforma e ao declínio da literatura mística judaica e muçulmana (dada a recente expulsão desses grupos), mas também pelos frequentes confrontos de Teresa com a Inquisição Espanhola, refletindo, de certa forma, as atitudes cismáticas que frequentemente acompanham o desenvolvimento de doutrinas místicas e esotéricas. Esse certamente foi o caso da Cabala Espanhola, considerada heterodoxa tanto pela Igreja quanto por algumas autoridades talmúdicas contemporâneas. Foi durante seu período de reclusão que Teresa escreveu o *Castelo Interior*, um guia, ostensivamente destinado às irmãs da Ordem das Carmelitas Descalças, sobre suas práticas místicas e sua filosofia da alma. A partir do *Castelo*, podemos compreender profundamente sua visão sobre o estado da alma, os métodos para engajar-se em uma jornada espiritual interior em direção ao matrimônio espiritual com Deus e sua própria compreensão da relação entre Cristo e o Homem, simbolizada pelo matrimônio espiritual mencionado. A jornada mística de Teresa, dividida em estágios progressivos, não é a união do "eu" com o "um", como muitas vezes se generaliza o misticismo, nem a dissolução do "eu", como visto no budismo. Em vez disso, é um gradual desprendimento das distrações da condição humana, que tornam o abandono apaixonado a Cristo impossível em nossas vidas diárias. Essa preocupação é tão evidente que cada morada começa com uma breve nota descrevendo o que segue e, como ocorre na Quarta Morada, ocasionalmente oferecendo orientações com base nas próprias dificuldades de Teresa: "Este capítulo é muito útil para aqueles que sofrem muito com distrações durante a oração." Esse pragmatismo é interessante e bastante distinto da natureza especulativa e abstrata da literatura zohárica. O foco de Teresa em conselhos práticos para aqueles na meditação cristã é, nesse aspecto, um tanto budista. É um guia de meditação, elaborando os diferentes métodos de prática e elucidando os estágios. A oração ativa é o primeiro estágio do processo, descrito nas três primeiras moradas. A oração contemplativa ou mística é mais avançada e transcendente e (em mais uma semelhança budista) inicia o processo de desprendimento dos desejos da alma, removendo os obstáculos mentais para alcançar a união total com Deus. A vontade divina, sendo um aspecto central da teologia de Teresa, é o único caminho real para alcançar a união. Todos os esforços e desejos da alma são, na melhor das hipóteses, supérfluos e, na pior, distrações que devem ser eliminadas. A vontade de Deus é totalmente abraçada, enquanto os desejos humanos são suprimidos por serem aflitivos e encorajarem uma falsa sensação de independência da vontade divina. Somente então, quando alguém se abandona completamente à vontade e ao amor de Deus, o *Castelo Interior* pode ser atravessado e o matrimônio divino consumado. \*\*REFERÊNCIAS: \*\* 1 Matt, Daniel C. *The Zohar*. Vol. 1. Stanford, CA: Stanford UP, 2004. Print. 1:1 a 2 Teresa, and E. Allison Peers. *Interior Castle*. Mineola, NY: Dover Publications, 2007. Print. 136 3 Teresa, 141 4 Teresa, 141 5 Scholem, Gershom. *Major Trends in Jewish Mysticism*. New York: Schocken, 1961 6 Teresa,, 44 # O CARMELO DESCALÇO E O ESOTERISMO: PARTE 9 - SIMBOLISMO MÍSTICO EM TERESA DE ÁVILA E NA CABALA CLÁSSICA 22/01/2025 Autor: Sujan Jane Burgeson Tradução: Prof. Gabriel Sapucaia ![](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000215-7e53d7e540/mandala_do_emblema_do_cabala-r9eed19d6e36447ef8a71eef64eb7dd89_agtk1_8byvr_644.jpeg?ph=4df81238fe) **CAPÍTULO 1: INTRODUÇÃO** Místicos de várias culturas usaram símbolos e imagens para descrever a experiência direta do divino. Um dos mais ricos exemplos de imagens e simbolismo está presente nos escritos da freira do século XVI, Santa Teresa de Ávila. Seu uso poético e artístico de símbolos reflete a profundidade de sua inspiração e o alcance de sua visão espiritual. Sua obra *Moradas do Castelo Interior* é uma das mais notáveis e ricamente simbólicas do misticismo espanhol. Teresa retrata a alma como "um único diamante com muitas moradas", descrevendo estágios de transformação espiritual como uma jornada por sete moradas dentro de um castelo interior, até o palácio mais interno e elevado do Amado. Teresa utiliza um caleidoscópio de imagens brilhantes de maneiras surpreendentes e únicas para simbolizar essa jornada, desde a escuridão fora dos muros do castelo até o esplendor da sétima morada, criando um universo de maravilhas para a alma, entrelaçado com referências às suas próprias experiências místicas. Embora *Castelo Interior* seja uma das obras mais significativas do misticismo cristão espanhol, a própria Teresa tinha ascendência judaica/conversa, e seus escritos, que descrevem o caminho místico da alma, compartilham algumas das imagens ricas e características encontradas na Cabala espanhola clássica. Alguns estudiosos questionam se é possível concluir que as experiências místicas por trás dos símbolos em culturas diversas são idênticas ou determinadas social e culturalmente. Essa é uma das questões que examinarei neste estudo comparativo do simbolismo e das imagens em Teresa de Ávila e na Cabala. Teresa transitava entre dois mundos: sua herança converso, que ela tentava esconder por medo de perseguição e preconceito, e sua profunda devoção ao catolicismo. Acredito que as imagens de sua herança judaica familiar brilham em seus escritos como raios de luz por entre as frestas de uma parede. Suas imagens, frequentemente provenientes de visões ou meditações, possuem uma qualidade quase onírica. Sob a perspectiva junguiana, que utilizarei para analisar seus símbolos, essas imagens emergem das profundezas de seu inconsciente pessoal e refletem a totalidade de sua herança e psique, fundindo elementos judaicos e cristãos. O *Castelo Interior* também reflete o inconsciente coletivo de sua época: uma Espanha onde parte da população era composta por judeus forçados a "converter-se" ao catolicismo. As imagens de Teresa refletem arquétipos tanto do cristianismo quanto do judaísmo. Ela viveu e escreveu durante o Século de Ouro da Espanha, um período em que a literatura e o misticismo floresceram, e os âmbitos físicos, criativos e místicos se expandiram. Meu estudo proposto explorará a linguagem simbólica da experiência mística em Santa Teresa de Ávila e na Cabala clássica espanhola. Focando principalmente na obra mais simbólica de Teresa, *Castelo Interior*, analisarei os paralelos e os contrastes com as principais obras da Cabala clássica. Este trabalho investigará a evolução histórica da Cabala na Espanha, buscando identificar possíveis influências sobre as múltiplas camadas de imagens e vozes presentes no simbolismo de Teresa. Essa análise incluirá uma comparação entre o *Castelo Interior* e suas sete moradas ou palácios com a tradição primitiva da *Merkavah*, que descreve sete palácios pelos quais um visionário ascende antes de alcançar o Trono Celestial com todas as suas maravilhas. Assim como no *Castelo Interior*, a *Merkavah* descreve tanto a glória dos palácios quanto os perigos e obstáculos encontrados ao longo do caminho. Embora os sete palácios da *Merkavah* apresentem paralelos com a estrutura do *Castelo Interior*, o desejo de Teresa pela união divina encontra ressonâncias no misticismo extático de Abraham Abulafia. Abulafia escreve sobre a quebra de selos para atingir níveis cada vez mais profundos de experiência mística e descreve sete caminhos de conhecimento pelos quais os mistérios são revelados. Um dos discípulos de Abulafia, Joseph Gikatilla, também teve grande influência na Cabala espanhola primitiva. Pretendo explorar as imagens presentes em sua obra-prima, *Sha'are Orah* (As Portas da Luz), que podem estar refletidas no simbolismo místico de Teresa, no desenvolvimento de sua oração interior e no uso de correspondências simbólicas. Por fim, examinarei os paralelos e contrastes entre o *Castelo Interior* e o *Zohar*, a obra mais importante da tradição cabalística. Composto por Moisés de León e reivindicado como os ensinamentos perdidos do lendário Rabino Shim'on, o *Zohar* é um comentário místico sobre a Torá. O simbolismo do *Zohar* é estruturado por um padrão de dez *sefirot*, que simbolizam as emanações de Deus e o caminho de ascensão de volta a Ele. Muitas das imagens que Teresa usou posteriormente, como o espelho, a árvore da vida, o bicho-da-seda, a pomba e o palácio, também aparecem no *Zohar*. Pretendo examinar o uso dessas imagens em cada texto. Além disso, explorarei os temas ricos e sensuais da metáfora nupcial e das etapas de cortejo nas duas obras, bem como os obstáculos e desafios psicológicos decorrentes das ideias de pecado e mal. Este estudo estará limitado às principais e mais influentes obras da Cabala clássica na Espanha e ao *Castelo Interior* de Teresa. Além disso, o foco será nos símbolos e nas imagens, e não na teologia, analisando como os símbolos da Cabala clássica são refletidos na obra de Teresa. Aspectos autobiográficos da vida de Teresa serão abordados apenas quando forem relevantes para o tema. O *Castelo Interior* de Santa Teresa reflete muitas imagens semelhantes às encontradas na Cabala clássica. Esses símbolos semelhantes oferecem insights sobre o processo de ascensão e desenvolvimento espiritual. Embora as duas tradições místicas sejam distintas, os pontos de convergência simbólica criam pontes de compreensão e fornecem chaves para uma comparação intercultural, ampliando o conceito de simbiose judaico-cristã. Uma análise dos símbolos correspondentes no *Castelo Interior* e na Cabala clássica, à luz das teorias de Jung sobre a natureza arquetípica da busca espiritual, leva a compreensões mais profundas. Meu objetivo principal não é provar influência, mas explorar os paralelos e os contrastes entre Santa Teresa de Ávila e a Cabala clássica e demonstrar a ressonância e o contraponto entre esses dois tipos de misticismo espanhol. Embora Santa Teresa de Ávila seja uma das figuras mais importantes do misticismo cristão, poucas pesquisas foram realizadas comparando sua obra com o misticismo judaico em análises simbólicas interculturais. Existem paralelos significativos que podem mostrar correspondências entre a estrutura e o simbolismo de *Castelo Interior* e as imagens da Cabala clássica. Um estudo desses paralelos, bem como de suas diferenças, será uma valiosa contribuição para o simbolismo místico comparativo intercultural e abrirá novos caminhos para o diálogo judaico-cristão. Uma análise dos fluxos místicos em ambas as tradições, considerando uma simbiose e dialética judaico-cristã, explora um campo pouco pesquisado e chega ao âmago da espiritualidade comparativa. Esse estudo também será uma adição valiosa às pesquisas sobre místicos conversos e abrirá novas possibilidades para explorar a possível influência da Cabala nas obras de outros místicos espanhóis. No que diz respeito a Teresa, investigarei as etapas de transformação experimentadas pelo místico em sua busca por Deus, por meio de uma interpretação dos símbolos, que representam a linguagem interna dessa jornada. Este estudo contribuirá para o corpo de conhecimento que explora os desenvolvimentos espirituais e psicológicos nos estágios de consciência vivenciados na oração e meditação interior. O objetivo de Santa Teresa de Ávila ao descrever o *Castelo Interior* era oferecer um guia para aqueles que praticavam seus métodos de oração interior. Um dos meus objetivos é proporcionar um espaço para uma análise mais detalhada de sua obra, sua relevância no presente e sua relação com as imagens encontradas na Cabala clássica. Tanto a obra de Teresa de Ávila quanto a dos cabalistas espanhóis oferecem percepções únicas para a compreensão do misticismo na Espanha do século XVI. A convergência do simbolismo místico cristão e judaico em *Castelo Interior* é uma chave importante para honrar tanto a singularidade quanto as correspondências entre as duas tradições. **Capítulo 2: Comparando Tradições Místicas** Em sua obra, Teresa escreve: "Ó Deus, como deve ser aquela alma quando está nesse estado! Ela desejaria ser toda língua para louvar ao Senhor. Proferiria mil desatinos santos, buscando sempre agradar Àquele que a possui desse modo" (*Vida*, 16.4). Ao longo de seus escritos, Teresa esforça-se para comunicar sua experiência da imensidão e do maravilhamento de Deus, mas frequentemente lamenta sua incapacidade de fazê-lo. Em tom diferente, o cabalista Joseph Gikatilla também afirma que Deus está além de qualquer concepção: "A profundidade do ser primordial é chamada de Infinito. Por estar oculto de todas as criaturas, acima e abaixo, também é chamado de Nada. Se alguém perguntar: 'O que é isso?', a resposta será: 'Nada', significando que ninguém pode compreender nada a respeito disso." Essas declarações diversas sobre a inefabilidade de Deus levantam uma questão importante: esses dois místicos falam de uma experiência semelhante ou diferente? Temos base para comparar experiências místicas ou mesmo audácia para começar tal tarefa? Teresa declara que pronunciaria "mil desatinos santos" para tentar descrever Deus, enquanto Gikatilla alerta para o silêncio. Para Gikatilla, a descrição definitiva de Deus é o "Nada". Daniel Matt escreve: > "A palavra 'nada', é claro, conota negatividade e inexistência, mas o que o místico quer dizer com nada divino é que Deus é maior do que qualquer coisa que alguém possa imaginar, um nada. Sendo o ser de Deus incompreensível e inefável, a descrição mais precisa que se pode oferecer é, paradoxalmente, nada." A imensidão e a incompreensibilidade de Deus descritas por Gikatilla correspondem ao Deus que Teresa encontra impossível de descrever? A experiência mística transcende barreiras religiosas ou é determinada por elas? Os símbolos podem nos ajudar a atravessar esses abismos? De que maneira os símbolos são determinados social e culturalmente, e como podem construir pontes de entendimento entre religiões diversas? Antes de começarmos a comparar o simbolismo místico em tradições distintas, é útil perguntar se temos uma base para comparar as experiências místicas subjacentes que elas expressam. Como os próprios místicos enfrentam o desafio de descrever o inefável, e considerando que as experiências místicas podem variar tanto dentro da obra de Teresa quanto entre os diversos cabalistas, essa tarefa não é fácil. Um cabalista sábio escreveu: "Quem se aprofunda no misticismo não pode evitar tropeçar, como está escrito: 'Este tropeço está em sua mão'. Você não pode compreender essas coisas sem tropeçar nelas." Embora "tropeçar" seja inevitável, especialmente ao fazer comparações, começo introduzindo algumas das principais pesquisas na área que podem lançar luz sobre como formular correspondências entre místicos de tradições diversas. **Rudolf Otto (1869-1937)**, um dos autores mais importantes nesse campo, expressa a ideia da "natureza uniforme do misticismo". Ele teoriza a existência de um "Deus transcendente", que conecta experiências místicas de diferentes culturas. Otto acredita que o transcendente pode ser experimentado tanto ao olhar para dentro, para as "profundezas do eu", quanto ao olhar para fora, para a "imanência vital do Um em tudo". Em *A Ideia do Sagrado*, Otto discute a natureza "numinosa" da experiência mística na presença do *mysterium tremendum*, ou o "Totalmente Outro". Ele descreve as profundezas numinosas como um chamado mútuo entre o eterno e a alma: > "Abyssus invocat abyssum. O abismo chama o abismo, dizem nossos místicos com os Salmistas. Aqui também o abismo chama o abismo: a profundidade numinosa do Eterno em todas as coisas (inclusive no observador) chama as profundezas numinosas da alma no seu ser mais íntimo – onde está o mistério de Deus unido à alma. Liberando-se de todos os eventos exteriores, em uma reunião interior, rompe no místico, das profundezas interiores, uma experiência secreta e maravilhosa, um prenúncio de coisas maiores que não podem ser compreendidas pelo pensamento." Para Otto, o mais importante é a incomensurabilidade da experiência mística, mais do que o contexto social ou cultural do indivíduo que a vivencia. Otto e outros "perennialistas" acreditam que as experiências místicas transcendem culturas, sendo um contato do místico com uma realidade última que não pode ser descrita adequadamente em nenhuma linguagem ou sistema religioso estruturado. **Evelyn Underhill (1875-1941)**, uma escritora amplamente lida, aponta as semelhanças das experiências místicas em várias culturas: > "Não podemos dizer honestamente que há qualquer diferença ampla entre os místicos brâmanes, sufis ou cristãos em seu auge. Eles são muito mais parecidos entre si do que com o crente médio em suas respectivas crenças. O essencial é como o místico sente em relação à sua Divindade e à sua relação com ela... uma sublimação do eu, na qual somos perfeitamente unidos a ela, pode ser considerada um elemento necessário de toda vida mística." Underhill afirma que o objetivo da experiência mística é o "contato intuitivo com a realidade última". A visão ou experiência é sempre a de uma Unidade que reconcilia todos os opostos e cumpre as intuições mais elevadas da realidade. **William James (1842-1910)**, em sua obra clássica *As Variedades da Experiência Religiosa*, define a experiência religiosa tanto em termos filosóficos quanto psicológicos. Ele classifica diferentes efeitos da experiência religiosa, vendo-a como uma vivência direta. Para James, a experiência mística transcende diferenças individuais de religião e é marcada por uma "sensação de ampliação, união e emancipação", sem conteúdo intelectual específico. Ele escreve: > "A mística quase não é alterada por diferenças de clima ou credo. Ela representa um sentimento de algo maior, uma união que ultrapassa os limites do eu e se conecta com o universo." Embora as tradições religiosas e os contextos culturais influenciem os símbolos usados, Otto, Underhill e James apontam que a essência da experiência mística é transcultural e universal. Joseph Maréchal (1878-1944) considera "a sensação de presença" como o aspecto mais importante do misticismo. Essa sensação afirma o Absoluto: "A afirmação da realidade, então, nada mais é do que a expressão da tendência fundamental da mente à unificação no e com o Absoluto." Ele também fala da "revelação transcendente de Deus à alma" e da "intuição de Deus como presente, a sensação da presença imediata de um Ser Transcendente." Para Maréchal, uma síntese entre a experiência psicológica e a doutrina é o aspecto mais importante em um estudo comparativo do misticismo. O renomado historiador das religiões Mircea Eliade (1907-1986) aponta comparações entre as religiões orientais e ocidentais com base no estudo do mito e do símbolo. Ele destaca o poder dos símbolos nas religiões antigas e primordiais em moldar tradições, afirmando que motivos e padrões similares "são encontrados repetidamente em qualquer situação existencial do ser humano no cosmos." Em *Xamanismo: Técnicas Arcaicas de Êxtase* e *Yoga: Imortalidade e Liberdade*, Eliade elucida muitas áreas do misticismo não ocidental e, em diversos artigos, trata de estudos comparativos. W. T. Stace (1886-1967) descreve um núcleo comum em todas as experiências místicas e define sete características comuns que demonstram sua universalidade. Ele vê a "essência interna" de toda experiência mística como um "sentimento de unidade." Stace ressalta que é "importante e possível distinguir entre a experiência mística em si e as interpretações conceituais que podem ser atribuídas a ela." A experiência mística, em si, pode ser diferente de sua interpretação. Ele escreve: "Não pode haver lógica em uma experiência em que não há multiplicidade." Stace chama a experiência mística de "transsubjetiva", definindo-a como algo além do sujeito e do objeto. Ele acredita que o estado de "unidade transsubjetiva" não pode ser expresso em palavras durante a experiência mística, mas apenas lembrado posteriormente. Assim, as descrições das experiências místicas podem diferir das experiências em si, que são inefáveis. Robert Charles Zaehner (1913-1974) é conhecido por suas valiosas contribuições ao estudo das tradições comparativas no livro *Misticismo Sagrado e Profano*, onde define três tipos diferentes de experiência mística. O primeiro é o misticismo da natureza, que ele chama de "pan-en-henismo": "Primeiro é a experiência que diz que você é tudo e que tudo é você." O segundo tipo descreve a experiência da "alma como sendo o Absoluto, sem experimentar o mundo fenomênico." O terceiro tipo ele chama de "o tipo normal de experiência mística cristã, na qual a alma sente-se unida a Deus pelo amor." Embora Zaehner acredite que o tipo mais elevado de misticismo seja a experiência teística, ele é mais conhecido por suas descrições do misticismo da natureza. Zaehner também argumenta que descrições diferentes podem indicar experiências diferentes. Uma reação moderna às afirmações abrangentes dos perennialistas, como Stace, Underhill, Otto, Maréchal, James e Eliade, que defendem que as experiências místicas transcendem contextos culturais e religiosos, foi liderada por Stephen Katz em seu livro *Mysticism and Philosophical Analysis*. Suas teorias sobre o "construtivismo místico" expressam a ideia de que "há uma conexão causal clara entre a estrutura religiosa e social que alguém leva para a experiência e a natureza de sua experiência religiosa real." Katz rejeita vigorosamente as ideias perennialistas, afirmando que são ingênuas, não comprovadas e frequentemente desconsideram uma leitura cuidadosa dos textos. Para ele, budistas terão experiências místicas budistas, cristãos terão experiências místicas cristãs, judeus terão experiências místicas judaicas e assim por diante. Segundo Katz, as experiências religiosas são diretamente baseadas em contextos linguísticos, culturais e sociais, e as experiências místicas correspondem às expectativas desses contextos. Por exemplo, ele contrasta a experiência mística judaica do *devekut* com a *unio mystica* cristã: > "Na tradição mística judaica, o estado supremo de experiência mística é chamado *devekut*, que literalmente significa 'adesão' ou 'apego' a Deus... *Ein Sof*, literalmente 'sem fim'... refere-se à absoluta alteridade e incognoscibilidade de Deus, tanto epistemológica quanto ontologicamente. Consequentemente, os místicos judeus visualizaram o objetivo final da relação mística, o *devekut*, não como absorção em Deus ou como unidade com o divino, mas como uma intimidade amorosa, um 'apego' a Deus... uma experiência de Deus como Outro e não como Eu." Katz contrasta isso com a experiência mística cristã, que busca a absorção em Deus: > "Assim, um elemento essencial do modelo de espiritualidade cristã é a interpenetração divina-humana em nível ontológico, permitindo uma unidade entre o divino e o humano, algo que o judaísmo descarta." A tese central de Katz é que não existe uma experiência mística universal: > "Não há experiências puras (ou seja, não mediadas). Nem as experiências místicas, nem formas mais comuns de experiência indicam, ou oferecem fundamentos para acreditar, que sejam não mediadas... A noção de experiência não mediada parece, se não autocontraditória, no mínimo vazia. Esse fato epistemológico parece verdadeiro, por causa do tipo de seres que somos, mesmo em relação às experiências dos objetos últimos de preocupação com os quais os místicos interagem, como Deus, Ser, nirvana, etc." Em apoio a essa visão, Peter Moore afirma que "o contexto doutrinário de um místico deve ser visto como uma chave para a experiência, e não como uma barreira que nos afasta dela." Frederich Streng argumenta que diferentes expectativas soteriológicas condicionam epistemologias místicas. Anthony Perovich ajusta a visão de Katz ao escrever que "algumas (não todas) crenças moldam a experiência." Embora Katz e outros construtivistas modernos enfatizem a necessidade de leituras mais detalhadas dos textos e maior escrutínio das diferenças ao analisar o misticismo comparativo, críticos apontam que a visão construtivista, quando levada ao extremo, pode ser autolimitante. Quantos fatores devem ser considerados ao examinar as influências que afetam a experiência mística individual? Quantas diferenciações existem dentro de uma mesma religião e cultura? Todo conceito realmente afeta toda experiência? Phillip Almond argumenta que, como os misticismos judaico, cristão e sufista foram todos influenciados pelo neoplatonismo, há mais semelhanças e paralelos do que diferenças nessas tradições. Almond também afirma que existem experiências místicas que transcendem quaisquer interpretações incorporadas; essas experiências místicas mais elevadas são "isentas de conteúdo". Wayne Proudfoot discorda de Katz, afirmando que as qualidades noéticas e inefáveis de uma experiência mística são seus "marcadores" e essenciais para que sejam designadas como experiências místicas. Muitos estudiosos combinam uma análise detalhada de textos religiosos com várias teorias sobre a natureza inefável da experiência mística. Ninian Smart acredita que a doutrina religiosa ajuda a moldar e comunicar a experiência, mas que o caráter noético do misticismo não é completamente compreensível. Por outro lado, Ewert Cousins destaca tanto a importância da experiência mística quanto o estudo cuidadoso dos textos místicos. Cousins defende que apenas por meio da empatia é possível saber se as experiências místicas são semelhantes. Ele argumenta que a consciência do místico é revelada através dos textos religiosos e escreve: "Podemos expandir nossa consciência para que ela entre na consciência de outra pessoa e perceba a realidade a partir da perspectiva da experiência do outro." A controvérsia moderna sobre se a natureza de uma experiência mística é determinada por crenças religiosas ou se há um núcleo central em todo misticismo continua sendo uma questão central no estudo da religião comparada. Immanuel Kant escreve: "A razão humana tem este destino peculiar: em uma espécie de seu conhecimento, ela é sobrecarregada por questões que, como prescrito pela própria natureza da razão, não pode ignorar, mas que, ao transcender todos os seus poderes, também não pode responder." # O CARMELO DESCALÇO E O ESOTERISMO: PARTE 10 - O SÍMBOLO DO CASTELO INTERIOR EM SOHRAVARDI E SANTA TERESA 22/01/2025 Autor: José Antonio Antón Pacheco - Universidade de Sevilha Tradução: Prof. Gabriel Sapucaia ![](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000217-8bb5f8bb61/jambet-sohravardi-anges-169.jpeg?ph=4df81238fe) ##### **O SÍMBOLO DO CASTELO INTERIOR EM SOHRAVARDI E SANTA TERESA** **José Antonio Antón Pacheco - Universidade de Sevilha** **RESUMO:** Além dos exemplos mencionados por Miguel Asín Palacios e Luce López-Baralt, onde se observa a presença do símbolo do castelo interior no misticismo islâmico, o símbolo dos sete castelos da alma também pode ser encontrado no filósofo persa Shihaboddin Yahya Sohravardi (século XII). Assim, este é um antecedente de Santa Teresa de Ávila no uso desse símbolo. **PALAVRAS-CHAVE:** Sohravardi, Santa Teresa, misticismo islâmico e cristão, misticismo comparado. O castelo interior como representação da alma é um dos símbolos mais profundos da literatura e da experiência mística, exemplificado de forma notável em *As Moradas* de Santa Teresa de Jesus. A presença dessa imagem, que representa as diferentes etapas da realização espiritual, já é, por si só, suficientemente atraente para justificar inúmeros estudos dedicados ao tema. No entanto, dentro do âmbito da simbologia tradicional, e em particular no misticismo, há outra área de grande importância: a comparação das diferentes variações dessa imagem nas diversas literaturas e experiências místicas. Referimo-nos, naturalmente, aos símbolos semelhantes ao que estamos tratando, encontrados pelo ilustre arabista espanhol Miguel Asín Palacios na rica literatura mística hispano-muçulmana\[1\]. No caso específico de Santa Teresa e do símbolo dos sete castelos interiores, temos um referencial clássico estabelecido pelos escritos de Asín Palacios. Seu estudo seminal sobre o tema do castelo interior em Santa Teresa e nos espirituais muçulmanos é o artigo póstumo *O Símile dos Castelos e Moradas da Alma no Misticismo Islâmico e em Santa Teresa\*\*\[2\]\*\**. Esse trabalho insere-se na obra geral de Asín Palacios, que buscava demonstrar a influência da mística e da simbologia muçulmanas sobre as tradições cristãs. Nesse artigo, Asín Palacios destacou a presença do símbolo do castelo interior no místico sadi Ata' Allah de Alexandria, para descrever o mais profundo da alma. Contudo, como ele mesmo observa, esse símbolo pode ser rastreado em outros autores, como Ahmad al-Gazali (irmão do filósofo Al-Ghazali), que descreve a alma cercada por três círculos de muralhas protegendo o mais íntimo dela, onde reside o próprio Deus. Há também outro documento onde o símbolo dos sete castelos interiores aparece de forma mais clara. Trata-se do livro anônimo intitulado *Nawadir*, uma antologia de relatos religiosos compilada por Ahmad al-Qalyubi no século XVI. Nesse texto, vemos explicitamente a imagem dos sete castelos interiores e tudo o que esse simbolismo implica: uma progressão em direção ao mais íntimo de si mesmo (o fundo da alma), onde a união com Deus ocorre. As matérias preciosas com as quais são construídas as muralhas circulares dos castelos interiores apresentam uma grande semelhança entre os *Nawadir* e o exemplo teresiano\[3\]. Essa é a tese fundamental do artigo de Miguel Asín Palacios. A semelhança do símbolo dos castelos interiores e sua utilização como metáfora da vida mística nos *Nawadir* e em Santa Teresa levanta muitas questões, sendo a principal: como explicar essa surpreendente coincidência? É pura casualidade ou podemos falar de uma transmissão oral ou escrita das fontes islâmicas para a santa abulense e, por extensão, para a espiritualidade espanhola em geral? Sabemos qual foi a resposta de Asín Palacios: de fato, ele defende uma via de transmissão oral pela qual esse símbolo chegou até Santa Teresa, assim como outras imagens – como o pássaro solitário, a noite escura e a lâmpada de fogo – também influenciaram os *alumbrados* ou São João da Cruz\[4\]. Nossa interpretação, porém, segue outro caminho: sem descartar uma possível influência literária da espiritualidade muçulmana (árabe e persa) sobre o misticismo hispânico, acreditamos que não é necessário recorrer a empréstimos diretos ou indiretos. A unidade universal da experiência mística por si só explicaria a semelhança das imagens\[5\]. Os exemplos citados por Asín Palacios como antecedentes da metáfora dos sete castelos interiores em Santa Teresa não são os únicos; pelo contrário, há abundância deles, com variações, no contexto islâmico. Por exemplo, no século XIII encontramos o testemunho de Al-Faz ibn Yahya, que relata a visão de Ali ibn Fazel Mazandarani\[6\] em *Relato das coisas estranhas e maravilhosas que contemplou e viu com seus próprios olhos na Ilha Verde, situada no Mar Branco*. Essa experiência visionária tem como objeto a *Ilha Verde* (*al-Yazirat al-Jazra*), um lugar alcançado por meio de uma jornada iniciática. A ilha é cercada e protegida por quatro muralhas, com uma montanha ou templo no interior e, no centro, a Fonte da Vida e a Árvore do Ser. Quem acessa essa Ilha Verde murada e chega ao seu núcleo mais íntimo alcança a plenitude existencial e metafísica. A ilha simboliza o espaço onde se preservam todas as esperanças existenciais; é o horizonte distante, desconhecido, para onde direcionamos nossos anseios metafísicos. Como símbolo, a essência da ilha depende de uma experiência interior; ela representa, portanto, uma geografia da alma. Resumidamente, a ilha é nossa verdadeira realidade espiritual. A *Ilha Verde* se torna um símbolo que define toda nossa experiência ontológica e esquematiza nosso campo metafísico. Quando associamos a Ilha Verde às metáforas das muralhas e do templo interior, adicionamos esses conteúdos simbólicos à imagem da ilha. Assim, a Ilha Verde\[7\], conforme descrita nesse relato e em outros, deve ser considerada uma variante da imagem dos castelos interiores. Islas, castelos, templos, fortalezas: todos compartilham o significado de nossa verdadeira realidade, destino e essência, além de simbolizarem a jornada arriscada para sua descoberta. Conforme mencionado, as variantes do símbolo do castelo interior são múltiplas, tanto em sua morfologia quanto em seu uso. Luce López-Baralt destacou a abundante literatura mística árabe, persa e judaica na qual aparece o símbolo dos sete castelos, representando tanto a alma do místico quanto o processo de mergulho profundo em si mesmo, culminando na união com Deus\[8\]. Muitas variações dessa imagem são naturais em qualquer simbolismo. Distinguem-se dois aspectos principais: a representação do castelo (como morada, palácio ou templo) e o número sete, prototípico das etapas da iniciação mística. A imagem dos sete castelos concêntricos, segundo López-Baralt, surge de forma evidente em Abul-Hasan al-Nuri de Bagdá, místico muçulmano do século IX, muito anterior a Algacel e aos *Nawadir*. Em sua obra *Maqamat al-qulub\*\*\[9\]\*\** (*As Moradas dos Corações*), encontramos um dos precedentes mais remotos de *As Moradas* de Santa Teresa. O próprio termo árabe *maqam* (lugar, morada) é uma palavra técnica em Nuri para designar o estado ou condição da alma. Em hebraico, o termo *macom* possui um significado similar, referindo-se ao lugar epifânico onde Yahweh se revela, uma associação espiritual e linguística que não é trivial do ponto de vista fenomenológico. Além disso, López-Baralt cita outros precedentes muçulmanos do símbolo utilizado por Santa Teresa. Entre os mencionados na literatura islamo-persa estão Nezami, Semnani, Naym-din al-Kubra, Ruzbahan de Shiraz e outros grandes místicos do Islã, como Hallay e Ibn-Arabí. Na recente tradução das *Moradas dos Corações*, López-Baralt inclui ainda nomes como Al-Hakim al-Tirmidi, anterior ao próprio Nuri, e Musa al-Damiri. A lista seria extensa e os detalhes inumeráveis. Contudo, o importante é notar a presença do símbolo do castelo interior na mística islâmica, que mais tarde seria consagrado por Santa Teresa no cristianismo. Outra possível fonte do símbolo, segundo López-Baralt, encontra-se na tradição hebraica, especificamente no *Zohar*, onde aparece a imagem dos sete palácios celestiais (*hecalot*), cujo percurso leva à visão do Trono (*Merkabah*), ou à presença de Deus. Os sete palácios estão relacionados aos sete planetas do sistema cosmológico antigo. Na verdade, os símbolos das *hecalot* no *Zohar* derivam da literatura hebraica pseudoepigráfica conhecida como "dos palácios", a qual inclui, por exemplo, o ciclo de Enoque, arquétipo do visionário que realiza a jornada celestial\[10\]. Embora não haja uma conexão direta entre os sete *hecalot* do *Zohar* e os sete castelos de Santa Teresa, é relevante mencionar o contexto hispano-judaico do *Zohar*, escrito por Moisés de León em Guadalajara, Espanha. A interiorização das sete órbitas planetárias, convertendo o "viaje ad extra" em um "viaje ab intra", parece ser uma explicação plausível para a origem dos sete castelos ou moradas. Esse exemplo hebraico pode ser entendido como uma variante simbólica comum a árabes e judeus. Por fim, a presença do símbolo do palácio-castelo na cabala evidencia a riqueza de significado dessa imagem e a complexidade dos antecedentes simbólicos de Teresa. Contudo, no cristianismo medieval, também existem alusões ao castelo ou cidadela como representação da alma. Mestre Eckhart, por exemplo, fala de *bürgelin* e *stelin\*\*\[11\]\*\**, embora essas semelhanças sejam vagas e possivelmente explicadas pela universalidade da imagem. Dessa forma, os possíveis antecedentes do símbolo dos sete castelos devem ser principalmente buscados no mundo da mística muçulmana. Entre os marcos que delineiam a história do símbolo dos sete castelos interiores, parece que a figura eminente de Shihaboddin Yahya Sohravardi (1155-1191) passou despercebida à ilustre estudiosa porto-riquenha Luce López-Baralt. Isso é ainda mais curioso, considerando que López-Baralt já havia demonstrado brilhantemente a similitude entre a imagem do pássaro solitário em São João da Cruz e no grande filósofo islâmico-persa (o pássaro Simorgh). No entanto, neste caso, abordaremos a relação de Sohravardi com Santa Teresa em sua obra *Kitab hayakil al-Nur* (*O Livro dos Templos das Luzes\*\*\[12\]\*\**). O mais interessante é que, em Sohravardi, encontramos o uso do símbolo em um contexto estritamente metafísico. Sohravardi utiliza o termo *haykal* (templo ou palácio, relacionado ao hebraico *hecal*, remetendo novamente à *Maase Merkabah*, a literatura hebraica que especula sobre o Trono de Deus\[13\]) para designar as moradas ou estados que a alma atravessa em sua jornada espiritual e metafísica. Essa terminologia está intimamente ligada à aquisição do conhecimento transcendente do Ser. Essa abordagem conecta Sohravardi à tradição hebraica das *hecalot*, e sua interpretação é legitimada pelo fato de que, em Sohravardi, cada palácio ou templo é uma esfera planetária, ou seja, um estágio ontológico. Assim, Sohravardi exemplifica de maneira paradigmática a utilização do símbolo do palácio-templo como um processo em sete fases em direção ao conhecimento contemplativo, interiorizando a imagem cosmológica exterior. A representação da hebdômada (de raízes profundamente tradicionais) torna-se um veículo para expressar um evento espiritual e metafísico. Não se pode dizer que o modelo do mundo celeste apresentado em seus relatos visionários esteja "superado", assim como as experiências que esses relatos expressam também não o estão. A figura de Sohravardi é especialmente interessante porque este pensador assumia conscientemente tradições de diversas origens: aristotélica, neoplatônica, mazdeísta (com forte influência zoroastriana) e cristã (especialmente joanina). Esses componentes foram magistralmente sintetizados com a espiritualidade islâmica, permitindo que o pensamento de Sohravardi atuasse como um crisol para o refinamento do símbolo do castelo-palácio interior. Se tentarmos resumir *O Livro dos Templos das Luzes*, podemos dizer que ele trata tanto de um conhecimento místico quanto de um conhecimento metafísico, sem contradição entre esses dois aspectos. As visões de Sohravardi expressam o processo místico-filosófico de forma narrativa, transformando um relato épico ou descrição cosmológica em uma narrativa espiritual. Nesse sentido, o relato de Sohravardi se insere na tradição aviceniana da *Risala de Hayy ben Yaqzán\*\*\[14\]\*\**. Cada templo que o místico-filósofo penetra representa um grau tanto na ordem do Ser quanto na ordem da experiência interior. O primeiro templo apresenta uma introdução aos princípios metafísicos que serão utilizados. O segundo templo aborda a descrição das faculdades da alma em termos aristotélico-avicenianos, destacando a imaginação ativa como a categoria mais relevante para o conhecimento unitivo. Diferente da imaginação sensorial ou representativa, a imaginação ativa é capaz de criar suas próprias imagens contemplando diretamente o Intelecto Agente, que no contexto islâmico equivale ao Espírito Santo ou ao Anjo Gabriel. Para Sohravardi, a experiência mística identifica-se com a conversão do entendimento passivo em ativo, consolidando o segundo templo como uma verdadeira doutrina da alma. Nos templos terceiro e quarto, os temas giram em torno da metafísica geral, analisados sob uma perspectiva aviceniana, abordando a relação entre o Ser Necessário e o ser contingente. Também se introduz a metafísica da Luz imaterial, conferindo à reflexão experimental um tom espiritual e emanatista característico do pensamento de Sohravardi. No centro desse emanatismo está o Intelecto Agente (ou Espírito Santo), que representa a décima das Inteligências emanadas e atua como a entidade pessoal com quem o místico estabelece uma relação contemplativa. Assim, o caminho espiritual coincide com a aquisição do conhecimento teórico proporcionado pelo Intelecto Agente, indicando que a experiência mística e a realização cognitiva são essencialmente uma só. O quinto templo mantém essa inter-relação entre conhecimento e progresso místico. Aqui, os Entendimentos Agentes são também descritos como anjos, estabelecendo que a relação cognitiva é equivalente a uma união mística pessoal entre o sujeito e seu anjo. Sohravardi ainda adota o esquema triádico emanativo neoplatônico-aviceniano, em que cada Inteligência gera um Mundo Celeste, movido por uma Alma. Este modelo reflete a espiritualidade de Sohravardi, caracterizando as experiências místicas como uma relação amorosa entre o Amante (o Intelecto Agente) e o Amado (o sujeito que alcança o ato de entendimento). Nesse contexto, o *Malacut* (ou *Mundus Imaginalis*) se torna o local onde ocorrem os eventos da alma, em um mundo intermediário irreducível ao historicismo ou sociologismo. O sexto templo narra os sofrimentos daqueles que permanecem nas trevas e as alegrias dos que alcançam o estado angélico, experimentando a Luz do Espírito Santo ou do Anjo da Humanidade. Para Sohravardi, a antropologia culmina na angelologia, em consonância com a tradição mazdeísta. Assim, as almas virtuosas são contempladas diretamente pelas Luzes Divinas, experimentando uma felicidade infinita no estado angélico (*malakiyya*)\[15\]. O sétimo templo representa a culminação do processo de divinização da alma e da obtenção do conhecimento metafísico. Nesse templo, a alma contempla aspectos do mundo das puras Inteligências, configurando imagens na imaginação ativa que refletem no sensorium, permitindo ao visionário dialogar com figuras maravilhosas. Esses acontecimentos têm implicações hermenêuticas, desvelando o sentido profundo das Escrituras. A revelação literal (*tanzil*) é confiada aos profetas, enquanto a hermenêutica espiritual (*ta'wil*) e a explicação (*bayan*) são confiadas à Suprema Epifania, identificada como o Paracleto e o Cristo anunciado. O sétimo templo, portanto, simboliza a plenitude da alma em santidade e sabedoria. Essa consideração sobre o Intelecto Agente conecta Sohravardi a pensadores como Avicena, Maimônides e Santo Tomás, destacando que a questão do Intelecto Agente transcende uma mera teoria cognitiva ou psicológica, envolvendo o destino transcendente da humanidade e sua conexão com a esfera da transcendência. As coincidências entre a simbologia mística de Sohravardi e a de Santa Teresa não se limitam ao *Livro dos Templos das Luzes*. Outro relato visionário do pensador oriental, *O Relato do Anjo das Asas de Arrebol\*\*\[16\]\*\** (*Aql-e Sorkh* no original persa), também descreve o percurso iniciático da alma rumo à sua libertação, atravessando sete provas ou "maravilhas" reveladas pelo Anjo, que representa inseparavelmente o Entendimento Agente e o Espírito Santo\[17\]. As sete etapas são as seguintes: 1. **O Monte Caf**, símbolo axial do Irã; 2. **A Lua**, que, assim como no caso anterior, pertence a uma cosmologia e geografia interiores, espirituais e esotéricas; 3. **O Árbol Tuba** (árvore do paraíso celestial) e o **pássaro Simorgh**, símbolo recorrente na tradição persa que representa tanto o Anjo-Espírito Santo quanto a alma buscando unir-se a ele; 4. **Os doze ateliês ou signos do zodíaco**, em que a cosmologia é usada para expor modos de ser; 5. **A cota de malha de Davi**, simbolizando o corpo carnal; 6. **A espada do Anjo da Morte**, que rompe a cota de malha anterior, simbolizando a superação da carnalidade; 7. **A Fonte da Vida**, culminação e meta do percurso da alma, acompanhada pelo Anjo-Espírito Santo, que se traduz em uma união final e plena: *"Ante mim fogem as letras das palavras. Junto a mim brota, como espiga, o sentido oculto\*\*\[18\]\*\*."* Os símbolos da **fonte de água viva** e da **árvore** também aparecem em *Las Moradas* de Santa Teresa, ampliando as semelhanças entre os relatos de Sohravardi e a mística teresiana. Esses elementos, como símbolos axiais, indicam centralidade e eixo ontológico, um tema essencial em Santa Teresa. É impossível fornecer uma explicação completa da profundidade simbólica dessas imagens, pois cada uma representa um universo de significados que sintetiza conhecimentos metafísicos e vivências da alma, integrando tradições de origens variadas: avéstica, bíblica e corânica. Contudo, todas essas imagens convergem para um mesmo tema: o exílio da alma no Ocidente (o mundo sensível, histórico, a "terra de penumbra") e sua jornada, guiada pelo Anjo, rumo à sua verdadeira pátria, o *Malacut* ou *Mundus Imaginalis* — a essência da experiência mística. Outra similaridade significativa é encontrada no texto de Sohravardi intitulado *A Epístola do Castelo de Altas Torres* (*Risalat al-Abrāj*). Nele, o símbolo do castelo novamente aparece representando tanto a região espiritual alcançada quanto o mais íntimo do ser. Assim como nos relatos anteriores, a união mística é explicada como o acesso do entendimento paciente ao Entendimento Agente (Espírito Santo, Anjo Gabriel), tornando-se um símbolo da experiência unitiva do homem. As etapas desse processo incluem os sentidos, a imaginação passiva ou *sensorium* e a imaginação ativa iluminada pelo Entendimento Agente. Por isso, na mística sohravardiana, que é simultaneamente metafísica, não há apofatismo nem dissolução da consciência. A figura do Anjo protege a alma desse risco, pois a relação com o Anjo é sempre pessoal e personalizadora, libertando a consciência da história cronológica e inserindo-a no plano do eterno. Assim, *A Epístola do Castelo das Altas Torres* volta a mostrar o símbolo do castelo para se referir ao que há de mais profundo em cada pessoa, ao *apex mentis*, ao âmbito espiritual onde ocorre a plena realização da alma, a unidade com Deus (por meio de sua determinação essencial: o Anjo-Espírito Santo). A jornada que atravessa os castelos (neste caso, dez torres de vigia) simboliza, portanto, o trajeto repleto de perigos que vai da aparência ao Ser, do material ao espiritual, do sensível ao inteligível: *"Ensuíte franchis trois cent soixante mers, ensuite deux cent quarante-huit montagnes reliées à quatre hautes montagnes, elles-mêmes disposées dans six directions. Après cela, tu parviens à une citadelle fortifiée, pourvue de dix hautes tours, logée sur le sommet des montagnes, se mouvant en raison du mouvement de l'ombre de la cime suprême"* (III,18).\[19\] Em outro relato visionário de Sohravardi, também encontramos a imagem do castelo interior e da peregrinação da alma até o lugar espiritual que representa seu eu mais profundo, mais uma vez simbolizado pelas etapas que conduzem do conhecimento passivo ao conhecimento ativo. Trata-se do *Vademecum dos Fiéis do Amor*.\[20\] Neste relato, os símbolos representam o microcosmo humano. Assim, se em outras narrativas as etapas da iniciação representam o sistema cosmológico interiorizado, desta vez se referem à fisiologia e à psicologia humanas como passos preliminares para penetrar no âmbito da Imaginação criadora ou transcendental. A alma (aqui representada como um cavaleiro) atravessa pisos, celas, desfiladeiros, portas e tronos, enfrentando um leão e um javali. Todas essas imagens representam aspectos antropológicos do microcosmo, do conhecimento sensível, das faculdades da alma e dos perigos que esta encontra. Finalmente, o cavaleiro chega ao castelo interior,\[21\] onde reside o Anjo-Espírito Santo ou Entendimento Agente (neste caso, representado como um Sábio), a fonte de Água Viva, que interpreta para ele o Livro revelado (ou seja, onde reside o verdadeiro sentido do Livro): *"Que le cavalier lâche alors les rênes de sa monture, qu'il l'excite de la voix, et que d'un seul élan il s'enlève hors des neuf défilés. Il atteint cette fois au grand portail du Château-fort de l'Âme. À ce moment il voit un Sage qui le salue, et qui d'un geste courtois l'invite à s'approcher. Là-même il est une source que l'on appelle l'Eau de la Vie (Ab-e zendegani). Qu'il y fasse ses ablutions. Lorsqu'il a trouvé (la source de) la Vie éternelle (zendegani-e abad), il peut apprendre et comprendre le Livre divin"* (VI,11). Esse é o mundo espiritual intermediário (*Mundus Imaginalis* ou *'alam al-mizal*),\[22\] pois a Inteligência que informa a humanidade está situada entre as Inteligências superiores emanadas (o âmbito puramente inteligível) e o mundo material. O relato continua: *"Au-dessus de ce Château-fort s'élèvent plusieurs autres Châteaux-forts. Le Sage montre au cavalier la voie qui mène à tous, et il l'initie à leur connaissance"* (VI,12). Ou seja, as Inteligências superiores (o mundo noético pertencente ao *Nous*) também são representadas como castelos interiores ou moradas. Por exemplo, menciona-se o Castelo de Adão (*Shahrestán-e Adam*), o que demonstra mais uma vez a pluralidade de sentidos que esses símbolos encerram. Talvez alguém argumente, contra a aproximação entre Sohravardi e Santa Teresa, que a mística do oriental é intelectualmente orientada, enquanto a da espanhola é eminentemente emotiva e apaixonada. Contudo, como já discutimos, não é possível separar em Sohravardi os motivos metafísicos dos motivos emocionais. Veja-se, por exemplo, a interpretação sohravardiana da procissão triádica em Avicena. Como se sabe, para Avicena, o triplo movimento hipostático é descrito da seguinte forma: a Primeira Inteligência emanada contempla seu Princípio, o Uno inefável, e, como fruto dessa contemplação, gera a Segunda Inteligência. A Primeira Inteligência se contempla como contingente (pois apenas o Uno é absolutamente necessário) e produz a matéria sutil de seu céu. Por fim, a Primeira Inteligência se contempla como necessária (na medida em que depende de um Princípio necessário) e gera a Alma de seu mundo celeste. Esse processo continua até a Décima Inteligência. Pois bem, Sohravardi interpreta a Inteligência como Beleza, a Alma como Amor e a Esfera como Nostalgia: *"E esses três seres – Beleza, Amor, Nostalgia –, nascidos de uma mesma fonte original, são irmãos uns dos outros. Beleza, que é o irmão mais velho, contemplou a si mesma. Ela teve a visão de si como sendo o Bem supremo (…). Amor, o irmão do meio, era o companheiro familiar de Beleza (…). Quando o sorriso de Beleza lhe apareceu, ele foi tomado por um vertigem de loucura: ficou transtornado. Quis mover-se, ir embora. Mas Nostalgia, o irmão mais jovem, o abraçou. E foi desse abraço de Nostalgia envolvendo o Amor que nasceram o céu e a terra"* (I). Dessa maneira, a tríade Beleza, Amor e Nostalgia se torna o modelo arquetípico de toda relação mística e metafísica. É o Amor pela Beleza, impulsionado pela Nostalgia da separação, que leva toda alma a seguir o caminho em direção ao seu castelo interior, ou, o que é o mesmo, ao seu Anjo-Entendimento. Pois, digamos mais uma vez, Beleza-Amor-Nostalgia, enquanto transcendentais, tipificam tanto a vinculação emotiva do homem com Deus quanto o processo de conhecimento que conduz às realidades noéticas: *"Assim como o mundo do amor apaixonado é o cume do mundo do conhecimento e do mundo do amor, aquele que o atinge é o cume dos filósofos enraizados e dos teósofos místicos"* (X). Beleza é, portanto, nossa meta transcendente; Amor representa a força que nos impulsiona; e Nostalgia, a distância entre o Ser necessário e a contingência, consiste em nossa deficiência radical\[23\]. Portanto, se entendermos que, para Sohravardi, o processo de compreensão metafísica e o processo de experimentação da alma coincidem, o ordenamento dos conceitos e o ordenamento das vivências espirituais se identificam. Assim, os relatos do sábio oriental são tão místicos, espirituais e interiores quanto o percurso para dentro de si mesma em Santa Teresa, sendo os castelos, palácios, árvores e fontes de Sohravardi homologáveis aos símbolos correspondentes da santa espanhola. Voltemos novamente à questão da possível influência, direta ou indireta, da imagem islâmica do castelo interior (com todas as suas variantes) em Santa Teresa. Embora seja evidente que Sohravardi não poderia ter exercido uma influência direta sobre a mística de Ávila, é inevitável pensar que o simbolismo dos sete castelos da alma na espiritualidade islâmica deve ter moldado sua utilização em *Las Moradas*, tantas são as semelhanças entre ambas as simbologias. Nesse sentido, Sohravardi surge como um elo dessa profunda cadeia de transmissão pela qual o símbolo dos castelos interiores (como tantos outros) pode ter chegado até os místicos espanhóis. Em relação ao simbolismo específico do número sete em Sohravardi e nos demais espirituais muçulmanos, é claro para nós que se trata de uma interiorização do esquema cósmico das sete esferas planetárias: o percurso iniciático pelas esferas celestes se transforma em um percurso iniciático pela interioridade do místico. Considerando que ambos os âmbitos não são materiais nem profanos, ocorre o salto do percurso *ad extra* para o percurso *ab intra*. A literatura henóquica talvez tenha desempenhado um papel notável nesse processo de transformação. Contudo, nesse simbolismo hebdomadário, também acreditamos ser clara a influência dos sete dias da criação, imagem prototípica de toda ação espiritual e metafísica do ser humano\[24\]. Devemos considerar que uma das causas da semelhança dos símbolos entre os espirituais judeus, muçulmanos e cristãos tem origem no pano de fundo bíblico comum a todos eles. Toda essa simbologia, com suas lógicas metamorfoses, pode muito bem ter confluído na obra de Santa Teresa, assim como na de São João da Cruz e de outros místicos espanhóis. Entretanto, em relação a esse tema tão debatido das influências, acreditamos que (sem descartar possíveis relações mais ou menos diretas) deve prevalecer a tese da universalidade do fenômeno místico e dos símbolos que servem como veículo narrativo. Um pensador, um espiritual ou uma corrente especulativa podem acessar uma imagem ou uma ideia por meio de meditações e interiorizações, sem que precisemos recorrer a explicações baseadas em influências. No caso concreto que estamos tratando, nem a espiritualidade islâmica precisou das influências grega, hebraica ou cristã para se constituir como tal, nem a mística espanhola precisou da simbologia muçulmana para criar suas imagens. Pode ser que tenham existido relações, mas tais eventos não as exigem. Como já mencionamos anteriormente, nesta questão estamos mais próximos de Louis Massignon e Henry Corbin do que de Miguel Asín Palacios. Com os mestres franceses, acreditamos que as origens do sufismo e da própria teologia islâmica estão na espontaneidade da consciência, que, ao refletir sobre versículos do Alcorão, encontra sua vitalidade espiritual motivada. Assim, gera-se o vocabulário místico sufista, que mais do que uma consequência, representa a emergência fundadora da vida interior (daí o desconforto de Massignon com qualquer estilização literária da mística)\[25\]. Da mesma forma, os símbolos da mística espanhola em geral, e de Santa Teresa em particular, podem ser entendidos como frutos de uma experiência espiritual originária. Sob toda mística pulsa sempre a unidade da consciência humana e a universalidade dos arquétipos que regulam sua própria atividade. Isso não impede, no entanto, que possam existir empréstimos e influências mútuas, como defendem Miguel Asín Palacios e Luce López-Baralt. A conclusão final que extraímos de tudo o que foi dito é, portanto, a adequação fenomenológica entre os símbolos do dinamismo espiritual de Sohravardi e os símbolos do dinamismo espiritual de Santa Teresa. Entre esses símbolos, a imagem dos sete castelos interiores desempenha um papel arquetípico tanto na narrativa quanto no estímulo à vida mística. \[1\] A contribuição decisiva de Asín Palacios para os estudos de mística comparada está na demonstração da influência (não entraremos aqui no grau exato) da espiritualidade hispano-muçulmana sobre a cristã, especialmente no contexto da grande mística espanhola do Século de Ouro. Suas obras fundamentais incluem *La escatología musulmana en la Divina Comedia* (Madrid-Granada, 1919), *La espiritualidad de Algacel y su sentido cristiano* (Madrid, 1934-41) e *El Islam cristianizado: Estudio del "sufismo" a través de las obras de Abenarabi de Murcia* (Madrid, 1931). Todas essas obras tiveram edições posteriores. Esses estudos provocaram intensas discussões entre especialistas, especialmente *La escatología musulmana en la Divina Comedia*. Ao final desse livro, há um relato detalhado das controvérsias geradas. Entre os principais críticos das teses de Asín Palacios estão Marcel Bataillon, Jean Baruzi, Louis Massignon e Henry Corbin. Os dois primeiros discutem a possível influência muçulmana na mística espanhola; os outros dois rejeitam a ideia de que o sufismo tenha origem em fontes cristãs, outra tese central de Asín Palacios. \[2\] O artigo mencionado foi publicado pela primeira vez em *Al-Andalus* (X, 1945, pp. 34-37) e posteriormente integrado, junto com outros textos inéditos de Asín Palacios, no livro *Sadilies y Alumbrados* (com um estudo introdutório de Luce López-Baralt), Madrid, 1990. \[3\] A imagem das muralhas edificadas com pedras preciosas pode ter origem na Jerusalém Celestial do Apocalipse de São João. \[4\] Cf. Luce López-Baralt, *Huellas del Islam en la literatura española*, Madrid, 1985; *San Juan de la Cruz y el Islam*, México, 1985; *Asedios a lo Indecible*, Madrid, 1998 \[5\] Em consonância com Massignon e Corbin, defendemos que a espiritualidade muçulmana pode ser explicada de forma autônoma, com base em meditações sobre o Corão. Contudo, reconhecemos o fundo bíblico comum como explicação para algumas semelhanças literárias. \[6\] Cf. Henry Corbin, *En Islam Iranien. Aspects spirituels et philosophiques*, vol. IV, Paris, 1975. \[7\] Cf. São João da Cruz, *Cântico Espiritual* 14,15: "As ilhas estranhas estão cercadas pelo mar e além dos mares, muito distantes e separadas da comunicação com os homens... nelas crescem e nascem coisas muito diferentes das de cá." \[8\] Cf. *El símbolo de los siete castillos concéntricos del alma en Santa Teresa y en el Islam*, em *Huellas del Islam*. \[9\] A própria Luce López-Baralt publicou uma tradução das *Maqamat* com o título *Las Moradas de los Corazones* (Madrid, 1999). \[10\] Cf. Alejandro Díez Macho et alii, *Apócrifos del Antiguo Testamento*, 4 vols., Madrid, 1984. Esses textos incluem versões hebraica, aramaica, grega, eslava, etíope e copta dos relatos de Enoque, destacando sua importância no desenvolvimento do léxico e da simbologia da jornada visionária. Para literatura cabalística, cf. *Le Zohar (suivi du Midrach haNéélam)*, 4 vols., tradução e edição de Charles Mopsik, Paris, 1981; *El Zohar*, 5 vols., versão de León Dujovne, Buenos Aires, 1977. Gershom G. Scholem, *Les grands courants de la mystique juive*, Paris, 1977. \[11\]Mestre Eckhart, *El fruto de la nada*, edição e tradução de Amador Vega Esquerra, Madrid, 1998. Outros autores relevantes mencionados incluem Dom Duarte, Grosseteste, Hugo de San Victor e Ludolfo de Saxônia. Entre os espirituais espanhóis, destacam-se Francisco de Osuna, Bernardino de Laredo e Diego de Estella. Prieto García também propõe Fray Ambrosio de Montesino como antecedente possível (*Un precedente de Las Moradas de St. Teresa*, *La Ciudad de Dios*, 1994). \[12\]Toda essa literatura está inspirada nas visões do profeta Ezequiel, fonte da mística judaica. Junto à *Maase Merkabah* (especulações sobre o Trono de Deus), encontra-se a *Maase Berechit* (especulações sobre o Gênesis), formando os dois grandes pilares literários que estruturam a Cabala. \[14\] Cf. Henry Corbin, *Avicenne et le récit visionnaire* (2 vols., Paris-Teerã, 1952-54). Corbin conecta as tradições visionárias de Avicena aos relatos místico-filosóficos que influenciaram Sohravardi. Outros estudos incluem: A.M. Goichon, *Le récit de Hayy ibn Yaqzán commenté par les textes d'Avicenne* (Paris, 1959) e Miguel Cruz Hernández, *Avicena. Tres escritos esotéricos* (Madrid, 1998), contendo traduções e análises dos relatos visionários. \[15\] Sohravardi apresenta uma hermenêutica mística que está em total consonância com a essência de sua filosofia e com o caráter escritural do Islã espiritual. Para Sohravardi, o verdadeiro sentido do Livro não está no literal ou no histórico, mas na alma que o vivencia. Esse desvelamento coincide com a experiência mística, unificando modos de ser, de conhecer e de interpretar (*modi essendi, modi cognoscendi e modi interpretandi*), conforme destacado por Henry Corbin. Essa abordagem também apresenta paralelos significativos com o pensamento de Swedenborg. \[16\] Henry Corbin traduziu *Le récit de l'Archange empourpré*. \[17\]De fato, a literatura persa está repleta de referências ao Simorgh. O próprio Sohravardi possui outro escrito intitulado *O Encanto de Simorgh*, e Avicena escreveu uma *Risala do Pássaro*. No entanto, talvez seja a epopeia mística *A Linguagem dos Pássaros*, de Farid Uddin Attar, o relato que teve maior repercussão literária (Jorge Luis Borges a comenta em várias ocasiões). Parece que o termo *Simorgh* já aparece no *Avesta* na forma *Saena meregha*. \[18\] Não resistimos à tentação de verter para o espanhol a tradução de Corbin, pois esta frase resume magistralmente a hermenêutica espiritual: o sentido não ocorre na história, mas se revela em um âmbito de transcendência supratemporal (*mundus imaginalis* ou *'alam al-mizal*). Justamente, isso é o que significam os dois termos técnicos tanto da exegese espiritual muçulmana quanto da cristã: *ta'wil* e *anagogia*, que remetem à ideia de elevação e ascensão. Apenas assim o texto sagrado é preservado da imanentização desacralizadora do historicismo. Entretanto, soubemos recentemente, por meio de González Faus, que a Bíblia não é um livro revelado, mas inspirado. Essa distinção tão sutil não tem outro objetivo senão propor a história como o marco significativo do sentido bíblico; ou seja, imanentizar, desacralizar e "diluir" o cristianismo. Sob essa perspectiva, é bastante coerente afirmar que a Bíblia não é um livro revelado, pois justamente a Revelação implica romper todas as leis da história. Referimo-nos aqui à apresentação de González Faus em *A Bíblia Contada a Todas as Gentes*. \[19\]A palavra que Corbin traduz como *tour* é *abraj*, derivada de *borj*, que por sua vez procede do grego *pyrgos* (torre, castelo, fortaleza, muralha com torres). Esse termo, com o mesmo significado, aparece na forma do francês medieval *burg*, como em alemão; em espanhol dá *burgo*, e em sueco *borg*. \[20\]*Mu'nis al-'oshhaq* (original em persa). Na primeira tradução publicada em 1933 em *Recherches Philosophiques*, Corbin traduziu o relato como *Le Vademecum des Amants*. \[21\]O Castelo da Alma é *Shahrestán-e Jan*, que Corbin traduz como *Château-fort de l'Âme*. Na versão de 1933, traduziu como *Burg*. \[22\]Corbin criou o neologismo *imaginal* para se referir às realidades da Imaginação transcendental, que, sendo inteligíveis, aparecem como representativas, justamente por adunarem o âmbito do puramente inteligível com o do puramente sensível. O conceito de *imaginal* pode ser relacionado à noção de Alma do Mundo. \[23\] É possível negar essa dimensão metafísica da Nostalgia sem cair no pelagianismo? Tememos que não. Essa caracterização da Nostalgia como diferença e separação de sua Origem está no mesmo plano que o éon lapsário dos gnósticos ou o que Corbin chamou de "queda no céu" e Hugo Bianchi de "culpa antecedente". Tudo isso demonstra que a teologia não pode renunciar ao pensamento mítico-simbólico sem se negar a si mesma. \[24\] Filon de Alexandria, em *De Opificio Mundi*, inicia as reflexões sobre o número sete baseando-se nos sete dias da criação. No cristianismo, as meditações sobre a hebdômada terão grande importância em figuras como Santo Agostinho, São Gregório e São Boaventura. Santa Teresa converte os dias da criação em estados da alma em *Las Moradas*, similar à interpretação de Swedenborg em *Arcana Caelestia*. \[25\] Cf. *Essai sur les origines du lexique technique de la mystique musulmane*, Paris, 1968 (a primeira edição data de 1914). Massignon escreveu um grande número de artigos sobre esses temas, compilados em *Opera Minora*, 3 volumes, Paris, 1969. Sobre Massignon, pode-se consultar minha nota *O existencialismo abraâmico de Louis Massignon*, *Scripta Fulgentina*, nº 13 (1997), pp. 141-145. Também sobre Massignon e sobre Corbin, remeto ao meu próximo livro *Os Testemunhos do Instante*. **Recordemos, no entanto, que Asín Palacios sustentava a autenticidade da experiência sobrenatural na mística muçulmana, baseando-se nas teses de Garrigou-Lagrange.** # O CARMELO DESCALÇO E O ESOTERISMO: PARTE 11 - A mística judaica e a Madre Teresa de Jesus 26/01/2025 **Autor:** Leandro Rodriguez Ginebra **Tradução:** Prof. Gabriel Sapucaia ![](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000220-b08c7b08c9/images-7.jpeg?ph=4df81238fe) ##### História Em 22 de junho de 1485, a Inquisição de Toledo condena por "heresia e apostasia contra a nossa fé católica" Juan Sánchez, um "judaizante" casado com Inés de Cepeda, natural de Tordesillas. Seu filho mais velho, Hernando, não se "reconcilia" com a Igreja, enquanto Alfonso se estabelece em Ávila. Não se sabe quais documentos ele entregou à paróquia de San Juan. Em segundas núpcias, Alfonso casa-se com Beatriz de Ahumada, e nasce Teresa em 28 de março de 1515. Ser identificado como "novo cristão" em Ávila não era motivo de orgulho, mas de suspeita. Para evitar comentários, mantinham discrição, ocultavam suas origens e submetiam suas filhas à educação religiosa mais respeitada. Teresa ingressa no convento das Agostinianas de Gracia, onde tem a sorte de ouvir os ensinamentos da madre Briceño. Após a morte de sua mãe, Beatriz, o pai acompanha com preocupação a formação da filha. Apesar disso, a família não é alvo de apontamentos, e Teresa mantém laços com os parentes maternos. O mosteiro da Encarnação torna-se um refúgio, onde ela busca aliviar as inquietações internas. Embora seu pai silencie, sabe que Teresa não possui vocação religiosa, e a repressão de suas energias resulta em doenças. A Madre Teresa de Jesus, em suas atividades de atuação, construção, discussão, escrita e aconselhamento, resolve parte do mistério que inconscientemente marcava sua alma. Ela falece em Alba de Tormes, em 4 de outubro de 1582. O Papa Gregório XV a canoniza em 1622, e Paulo VI a proclama Doutora da Igreja em 1970. ##### A chama dos conversos Uma plêiade de "sábios", teólogos e confessores, como Baltasar Álvarez S.J., Francisco de Borja S.J., Gaspar de Salazar S.J., García de Toledo O.P., Ibáñez O.P., Báñez O.P., Pedro de Alcântara, João da Cruz, Gracián, Juan de Ávila e outros, contribuem para obscurecer as verdadeiras fontes da espiritualidade de Teresa, apresentando interpretações que mascaram seu sentido autêntico. A busca intensa, o desejo de união, o amor desinteressado e o aprendizado guiado pelo Mestre Interior, que conduz ao sobrenatural, são marcas de sua espiritualidade. A obediência ao Padre Gracián e o respeito a João de Ávila refletem um conflito interno que requer certa rebeldia. Apesar disso, Teresa submete-se, entrega suas ideias e escritos, ajoelha-se diante dos representantes da Igreja e aconselha a submissão às doutrinas. Essa insistência na conformidade intelectual e volitiva sugere algo profundo. A chama dos conversos arde em Teresa e a acompanha, embora o Padre Báñez O.P. não o reconheça. Ela vive num ambiente permeado pela mística judaica. Erasmo já havia afirmado isso, embora muitos não acreditassem. O mestre de Basileia, ao suspeitar dos místicos e teólogos espiritualistas espanhóis, comentou que quase todos têm algo de judaísmo, uma percepção fundamentada em seu conhecimento dos textos dos séculos XIV e XV e dos comentários às Escrituras Sagradas. A base da espiritualidade teresiana não surge dos confessores "letrados" ou "demoníacos", mas deve ser buscada no sangue, na herança, no ambiente cultural e educativo, nas memórias familiares e nos impulsos instintivos. Teresa de Jesus é filha de Alonso Sánchez, descendente de um converso de Toledo. A perseguição da Inquisição aos "judaizantes" gera estratégias defensivas para provar a linhagem de "cristãos velhos" por parte dos Ahumada. As obras de Moisés de León, Maimônides, Judas Halevi, Abraão Ibn Ezra, e outros pensadores judeus influenciam o panorama cultural e espiritual em que Teresa cresce. Em 1492, enquanto Cristóvão Colombo descobre novas terras, os judeus choram pela expulsão imposta pelos Reis Católicos. Teresa, talvez, tivesse algum conhecimento das dores do descobridor e de seus familiares nas "Índias". Muitos "novos cristãos" que emigraram para a América sentiram-se livres das imposições inquisitoriais e consolidaram suas vidas como "cristãos velhos". Talvez algo semelhante tenha ocorrido com os familiares de Teresa. Se assim for, é útil reconhecer tal influência em sua formação e obra. ##### Inquietação A alma batizada uma ou mil vezes nas águas dos ensinamentos católicos descobre a vontade amorosa que une paixão e cálculo do Povo de Deus. Declarações de fé, afirmando a disposição de entregar tudo para praticar as cerimônias e seguir os mandamentos das Escrituras, remetem aos que foram educados na sinagoga e discípulos de José Caro, autor do *Shulchan Aruch* (séc. XIV). O cuidado com o rito, o desejo de aprender normas bíblicas, a tenacidade, a constância, a sede de justiça e autonomia, a crítica e a sinceridade são marcas familiares. Com perseverança e enfrentando perseguições, Teresa consegue fundar o mosteiro de São José e chega a fazer voto de seguir as instruções do Padre Gracián. Ainda assim, sua natureza não permite que ignore os mínimos detalhes. Em Pastrana, toma precauções para lidar com a princesa de Éboli. Cada passo e movimento são guiados por objetivos concretos. Se não enxergasse utilidade para os mosteiros, para as religiosas ou para o serviço de Deus, ela não teria percorrido tantos caminhos. Os cálculos por trás da fundação de conventos, embora pareçam ousados, baseavam-se em promessas reais de doadores e na confiança na Providência. Essa confiança também inspirava outros a contribuir. Apesar de confiar em Deus, Teresa seguia o provérbio: "Com o maço dando e a Deus rogando." A oposição estava sempre à espreita – nas ações, palavras e intenções. A vida de Teresa foi marcada por constantes precauções contra a Inquisição, bispos, confessores, superiores e súditos. O Padre Gracián ajudou-a, mas também enfrentou dificuldades. Apesar dos obstáculos, Teresa usava estratégias eficazes, convencida da legitimidade de sua obra, sem recorrer a meios indignos. Às vezes, nem ela previa os avanços que alcançaria. Atribuía os benefícios a Deus e recuperava forças para continuar. Sem sua atividade incessante – viagens constantes, interações com pessoas diversas, liderança em conventos, percepção espiritual e visão dos corações e das coisas –, os sofrimentos teriam sido tão intensos que ela desejaria a morte. As compensações, porém, foram tão significativas que contribuíram para que hoje ela seja reconhecida como Doutora da Igreja. A inquietação que a consumia era equilibrada por uma sinceridade cativante e uma abertura genuína. Embora seus confessores acreditassem ter maior controle, no fim, era Teresa quem conduzia. Ao obedecer escrevendo sua *Vida*, manuais de oração e outros textos, ela os convencida, tornava-os discípulos e demonstrava a verdade, mesmo em aparentes imprudências. Conseguia conquistar até o dominicano Báñez e membros da Santa Inquisição. Sua estratégia era bem calculada, baseada em profundo conhecimento espiritual e humano. Teresa reconhecia a importância de guias espirituais, como os padres da Companhia de Jesus, muitos deles de origem judaica ou "marrana". Esses mestres eram fundamentais, assim como os autores judeus defendiam a orientação no estudo e prática da Cabala. A autoridade de um guia conduzia o noviço ou religioso através de símbolos e imagens tradicionais, protegendo-o das críticas dos "sábios" que muitas vezes acusavam místicos de heresia. Teresa sofreu com isso, enfrentando ignorantes que não toleravam revolucionários ou críticos. Poucos entendiam o valor de sua experiência, que ela sabia ser impossível transmitir aos soberbos. Alguns diziam que suas vivências eram demoníacas; outros suspeitavam de iluminismo. Paroxismos e talvez epilepsia podiam afetá-la, mas isso não invalidava a autenticidade do que vivia. Sua experiência mística era uma realidade e sustentava suas doutrinas. Embora algumas ideias fossem influenciadas por conceitos conhecidos, a espiritualidade teresiana possuía direção própria, combinando iluminação, visão, ensino e autenticidade. Teresa sabia que, independentemente do que os outros dissessem, ninguém poderia tirar o que ela havia experimentado. Seu contato direto com o divino era uma prova superior. Ela vivia e conhecia realidades que transcendem este mundo. ##### O mestre interior "Porque buscar a Deus no interior (onde Ele se encontra de forma mais plena e proveitosa do que nas criaturas, como afirma Santo Agostinho, que O encontrou após procurá-Lo em muitos lugares)", exclama: "Beleza da minha vida, tarde Te amei! Vivias em minhas entranhas enquanto loucamente Te buscava fora." Um sábio agostiniano, Lope Cilleruelo, desenvolveu o tema da *Memoria Dei* baseado nos escritos desse Padre da Igreja. Esse tema é de suma importância, pois ajuda a desvendar uma série de mistérios, aspectos subconscientes e inconscientes, sonhos e aspirações. A madre Teresa de Jesus, em sua prática e experiência espiritual, dedicou-se a experimentar, praticar, estudar, descobrir, analisar, criticar e reconhecer as forças interiores. Assim, ela concretizava a fé, transformando-a em músculo, assimilando-a, compreendendo-a, amando-a e descrevendo-a. O "mestre interior" é uma consciência que ensina, guia e valida. Alguns o chamaram de "idoneidade", aptidão, potência ou disposição, mas ele é muito mais que isso. Ele chama para algo conhecido, mas ainda não vivido; um amor inconsciente impulsiona o que a vontade ainda não compreende; forças revigoram como uma fonte que não se revela, e apoios surgem inexplicavelmente. Percepções, assimilação, concordâncias, analogias, afirmações e impulsos agitam as profundezas do ser. Ao tentar guardar algo dessa força, percebe-se que as mãos permanecem vazias. Mandatos e compromissos gravam-se no interior, impossíveis de abandonar, e, ao meditar, uma vida de alegrias inesperadas renasce. Os platônicos propuseram a explicação do Demiurgo, os neoplatônicos falaram do Verbo e do Logos, alguns gregos aceitaram Hermes, Atena e Prometeu. Muitos tentam explicar tudo pela química ou física, pelas estrelas e pela atmosfera, pela tradição e ascendência, pelas circunstâncias e graças. A Madre Teresa segue um método agostiniano e cabalístico, ou seja, o conhecimento das coisas conduz a Deus. As coisas não são Deus, mas sim obras de Suas mãos. A vivificação do criado e sua transcendência, o olhar crítico sobre tudo o que existe – seja para afirmar ou negar –, revelam algo diferente que orienta e age como mestre interior. YHWH, enquanto impronunciável e indefinível, ama, mas não se divide em partículas, eões, gênios ou forças. O ser humano não possui uma parte de Deus, mas vive em Deus e é responsável por cada ato e pensamento. Deus se relaciona com o criado, e a alma, inclinada ao sobrenatural, descobre disposições e capacidades. Santo Agostinho, ao falar da *Memoria Dei*, quase escreve a verdade nas coisas. Em Teresa, há experiência e conhecimento concretos. Poder-se-ia dizer que Deus a tocou e imprimiu Sua imagem nela. Ela caminha em direção à divindade guiada por alguém, dando a impressão de possuir uma alma especial. De fato, ao ler o Salmo 118: 'Senhor, Tu és justo, e retos são os Teus juízos', Teresa pergunta: 'Como, em justiça, permitias que tantas, como já disse, Teus servos fiéis, que não tinham os dons e favores que me davas, eu sendo quem sou?' E responde: 'Servi-Me e não te metas nisso.' Essa foi a primeira palavra que entendi que Tu me falaste.' O rabino Moisés de León (séc. XIII), no *Zohar*, fala da perfeição das almas conforme sua procedência. Nenhuma é inferior à outra nem deve desejar algo além de suas possibilidades. As aspirações variam, e ninguém deve pedir algo sem ter a capacidade para tanto. O homem digno recebe uma alma do lugar onde está o Filho do Santo; outros, mais perfeitos, provêm diretamente do Pai e da Mãe, enquanto os perfeitíssimos são Imagem do Mestre do céu. A alma que provém do mundo da emanação tem a idoneidade para se revelar e conhecer o criado. O exterior existe por si, mas a alma o percebe como uma pintura que ela mesma compõe. A vida é a realização de uma obra em que todo ser humano está comprometido. A convivência com as probabilidades de ação recebe diferentes nomes conforme a filosofia adotada. O ser humano tem o dever de abrir caminhos, aperfeiçoar e vitalizar, capitalizar e valorizar suas forças internas. O Mestre ou guia não nasce, mas é no Eterno; não é o princípio, mas, por Ele, as coisas têm princípio; não é uma coisa, mas dá força e autenticidade ao criado. É a *Sékina* dos cabalistas, ou a 'filha única' que o Talmude chama de Glória divina. Esse Mestre é feminino como a verdade e a justiça, e, segundo os cabalistas, é a 'Mãe de tudo o que vive'. Ela confere segurança e é a verdade. João Halevi e Maimônides falaram de uma aparição luminosa que dá ao profeta a certeza autêntica da revelação. Essa clareza é superior a tudo, o valor mais importante, a verdade dita a qualquer custo, no momento oportuno ou inoportuno. O profeta, em união com a *Sékina*, fala sem referência a outras verdades, pois expressa a verdade mais alinhada à *midda* – preceito, medida, norma ou cânone que se aplica àquela circunstância. O profeta se refere à verdade, e não à lei. O corpo, às vezes, como o de Jonas, exigirá fuga, mas o compromisso o persegue, e ele cumpre sua missão mesmo sendo maltratado, como Dom Quixote. O profeta de Israel defende a Aliança com base nos critérios da *Sékina*. Amós a chamou de: "Virgem de Israel", noiva, mãe, esposa, porta, abertura... Representa o feminino, ou seja, aquilo que participa e onde a vida se forma. Não existe vida sem o feminino. Mesmo que os cientistas alcancem a menor fração da força que compõe a matéria, ainda não estarão nem no início da animação feminina que a *Sékina* proporciona. Sem o feminino, o propósito da criação e da formação não faria sentido e seria absurdo. A força ativa do Eterno ou Dia é iluminada pela *Sékina*. O místico Isac Luria, de Safed, fala do *Zimzum*, ou retirada, que seria, se assim se pode dizer, a parte divina que possibilita a criação, sem que esta seja perfeita, como uma luz ativa do Sublime. Por meio dela, todos os caminhos conduzem ao Absoluto. Na Bíblia, ela é chamada de "Torre de Davi", "Esposa", "Caminho", "Vento do Paraíso", "Matrona", "Pedra Preciosa", "Amiga", "Mãe"... É buscada porque é essencial, e é essencial porque existe, convive e manifesta a verdade. Está no centro da alma e a anima como redentora. Sendo filha única, deseja conceder favores. O Pai ou Rei nada lhe nega, e as pessoas a ela recorrem, confiantes de receber mais do que pedem. O Rei, ao delegar responsabilidades, confirma tudo o que ela apresenta. Não há outro caminho para chegar a Ele. Jesus declarou ser o Caminho, a Verdade e a Vida. Os cabalistas dizem que a *Sékina* já veio ao mundo cerca de dez vezes. Santo Agostinho afirma que toda verdade, justiça e ordem está em Cristo. A Madre Teresa de Jesus relata: "Estando certa vez nas Horas com todas, de repente minha alma se recolheu, e pareceu-me ser como um espelho claro, completo, sem costas, lados, nem alto ou baixo que não estivesse todo claro. No centro dele me apareceu Cristo Nosso Senhor, como costumo vê-Lo. Parecia-me que, em todas as partes de minha alma, via-O claramente, como em um espelho. E esse espelho, eu não sei dizer como, era todo esculpido no próprio Senhor, por uma comunicação que eu não saberia explicar, muito amorosa... Penso que esta visão é útil para pessoas que buscam recolhimento, para aprenderem a considerar o Senhor no mais íntimo de suas almas. Essa consideração é muito mais profunda e proveitosa do que buscá-Lo fora de si – como já disse outras vezes e como está escrito em alguns livros de oração, que indicam onde se deve buscar a Deus. Em especial, o glorioso Santo Agostinho afirma que, nem nas praças, nem nos conventos, nem em qualquer outro lugar em que O procurava, O encontrava como dentro de si mesmo. Isso é muito claro: é melhor buscá-Lo dentro de nós, sem necessidade de ir ao céu ou a qualquer lugar distante, porque buscar fora de si cansa o espírito, distrai a alma e não traz tanto fruto." A realidade da comunicação com o Mestre interior, que guia como um lampejo de luz, não causa inquietação aos místicos espanhóis. A plenitude divina, na qual a alma encontra seu nome, constantemente acaricia essas relações, e quem experimenta tais dons anseia permanecer em tão jubilosa companhia. "Estava, certa vez, recolhida com essa companhia que trago sempre na alma, e pareceu-me que Deus estava tão presente nela que me lembrei do que São Pedro disse: 'Tu és Cristo, o Filho do Deus vivo', pois assim estava Deus vivo em minha alma. Isso não é como outras visões, pois vem com tal força de fé que não se pode duvidar que a Trindade está presente, por poder e essência, em nossas almas. É de imenso proveito compreender essa verdade. E, enquanto eu estava espantada com tanta majestade em algo tão humilde como minha alma, entendi: 'Não é humilde, filha, pois foi criada à minha imagem.'" A experiência mística é difícil de descrever. O corpo reage convidando ao silêncio, e qualquer psiquiatra precisaria mudar de perspectiva para compreender tais pessoas. Os critérios se transformam, e o sobrenatural não pode ser captado por meio de instrumentos ou pelo raciocínio humano. A Madre Teresa de Jesus fala como uma "letrada" ao explicar a presença de Deus. O que ela realmente sabe e compreende é a realidade dessa presença. Isso não significa que todas as almas sintam o mesmo, pois cada uma precisa de uma participação diferente. Pouco importa que aqui ela fale da Trindade, enquanto os judeus expliquem o Tetragrama. A fé molda a consciência. O que verdadeiramente fundamenta o saber é o retorno ao interior de si mesma, onde se encontra uma vida repleta de valores que ensinam e guiam. A *Sékina* ou Cristo, como ela diz, é o Mestre interior, e Deus se revela dentro, como se a alma estivesse imersa em Deus. ##### A relação com o profeta Elias As monjas do Carmelo acreditam ter uma conexão especial com a montanha que dá nome à ordem. "Nosso pai Elias" é visto como guia, mestre, exemplo e modelo. Os cabalistas acreditam no *Gilluj Elijahu*, que significa "revelação do profeta Elias". Elias fala, e sua voz mensageira é ouvida. Em cada casa dos Filhos de Israel há um pequeno espaço com um copo, simbolizando a espera do profeta que anunciará o Messias. Todo israelita deve estar preparado para recebê-lo e para que sua chegada ocorra em circunstâncias propícias. Nos Evangelhos, menciona-se que Jesus conversava com Elias e dele recebia mensagens. A madre Teresa cantava com suas monjas: *"Seguindo o pai Elias Avançamos em contradições Com sua fortaleza e zelo, Monjas do Carmelo."* A autoridade do profeta Elias na tradição rabínica é fundamental, pois ele será o responsável por coordenar as opiniões de todos os judeus, uma tarefa de enorme importância. A vida espiritual e mística, a tradição e a herança de Israel são defendidas por Elias, e chegará o dia em que sua palavra será tão clara que ninguém proporá teorias diferentes. A experiência mística da presença e revelação é tão relevante quanto a visão profética. Elias prova e convence, manifesta-se e guia os Filhos de Israel em todas as dificuldades. Ele surge nos momentos críticos e, por meio dele, alcança-se a paz. Teresa de Jesus, em meio a fortes dores de cabeça, disse: *"Vendo-me assim, lembrei-me de nosso pai Elias, quando fugia de Jezabel, e pensei: Senhor, como posso eu suportar isto?"* As analogias são evidentes. Elias, tanto na tradição judaica quanto na espiritualidade do Carmelo, é o modelo de força e orientação em tempos de provação. ##### Caminhos de perfeição "É muito importante compreender que Deus não leva a todos pelo mesmo caminho." Alguns místicos judeus explicam os caminhos conforme a procedência da alma e sua relação com a *Sékina*: *Ebed* (servo ou discípulo), *Hima* (mãe) e *Shefa* (abundância). A aproximação com a *Sékina* ocorre por meio dos Sefirots inferiores. A Madre Teresa de Jesus fala das proximidades do Castelo Interior. A penitência, ou *He*, é um período que organiza tudo em direção à perfeição suprema: o amor a Deus e ao próximo. O mundo é uma ferramenta para descobrir e retornar, amar e conhecer a obra da criação. A pessoa se compromete, por meio de suas obras, a edificar o Reino dos Céus mesmo diante das desgraças e injustiças. A Madre Teresa descobre esse céu dentro do castelo, onde penetra guiada pelo Mestre. O essencial é alcançar o "matrimônio espiritual" no "centro de nossa alma", onde ouve estas palavras: "Veja este cravo, que é o sinal de que você será minha esposa a partir de hoje. Até agora você não era; daqui em diante, não apenas como Criador, Rei e seu Deus você verá minha honra, mas como minha verdadeira esposa. Minha honra é sua e a sua é minha." Os seis anos ou períodos exigidos a todo escravo para alcançar a liberdade são mencionados no *Zohar* como necessários para se tornar Justo. O Justo realiza o "matrimônio espiritual". Moisés, sendo Justo, é o Pastor fiel, redentor por meio da penitência ou do "cravo", conduzindo o Povo à salvação e à Promessa ou esperança. Ele conheceu o passado e o futuro do mundo ao entrar na *Sékina*, que lhe revelou o segredo. O Justo, unido à Árvore da Vida, ouve as palavras do *Zohar*: "E você não é mais servo (da Árvore do Bem e do Mal), mas filho de Deus." A Madre Teresa de Jesus acrescenta: "Unimo-nos a Deus em espírito se O amamos. Não é que nos juntemos a Ele como em Sua própria união, mas que nos tornamos um espírito com Ele." Os revisores que eliminaram tal frase não compreenderam seu significado. O percurso pelas Moradas do Castelo Interior equivale à entrada no Santuário e à ligação com o Sábado. No Santuário ou Templo, a *Sékina* está presente, e para penetrá-lo é necessário limpeza e purificação. O Sumo Sacerdote consulta, ouve, lê e explica. A *Sékina* permanece no muro ocidental do Templo, onde os judeus e os Filhos de Israel oram, pedem conselhos e apresentam suas petições. A presença divina exige certas cerimônias purificadoras, e nem todos estão preparados para ouvir a inspiração ativa que persiste na "nuvem". Aproximar-se do Santuário significa estar próximo da presença divina. Os profetas ensinam constantemente que é necessário ter vontade de perdão, amor ao próximo, retorno a Deus e serviço à Aliança com um coração puro. Nada está mais próximo da *Sékina* do que a alma. O Sábado chega após o cumprimento da finalidade dos seis dias. Cada dia tem seu *Logos*, e no sétimo todos se regozijam. Os sábios judeus ilustram essa realidade mística com uma imagem: uma fonte enche seis recipientes, de onde flui um canal – o Justo – que leva a água ao mar, simbolizando o Sábado, a paz, o equilíbrio e o descanso. No *Midrash* e no *Bereshit*, o Sábado é identificado com o homem; porém, na *Aggada*, representa o feminino. Todos concordam que o casamento espiritual ocorre entre o masculino e a Comunidade de Israel. Esse "matrimônio espiritual" da Comunidade surge após um deserto de provações, holocaustos, guetos e martírios. "Certo dia, o Senhor me disse: 'Pensas, filha, que o mérito está em gozar? Não está, senão em agir, em padecer e em amar... Este é o caminho da verdade.'" Na sétima Morada, a alma percebe que "há uma morada para Deus... (e eu bem acredito que Ele a une consigo então)... mas, quando a junta a Si, nada entende, pois todas as potências se perdem." É amplamente reconhecida a importância que a mística judaica atribui ao número sete. Os Sefirots convergem em direção à *Sékina*, e os dependentes são sete. Cada um constitui um ciclo autônomo, mas interligado aos demais. Diz-se que cada dia da semana possui seu anjo, gênio ou força atrativa, e no sábado essas forças se reúnem para comungar, dialogar, compartilhar a bondade acumulada durante a semana e celebrar em comum. As horas parecem inclinadas para o sábado, que possui uma força especial, quase mágica, culminando em um "matrimônio" ou união de amores que traz felicidade. A pessoa, como indicava o Rei Salomão no *Cântico dos Cânticos*, anseia entrar no "jardim de nogueiras". Esse paraíso é o local onde a *Sékina* está em exílio. O aspecto feminino de Deus foi exilado quando o *Adam Kadmon* (ou Deus primordial) constatou a falta de *Adam* ou *Adama* (que significa "terra"). Agora, existe o dever de romper a casca da noz e alcançar o interior, para deleitar-se nesse paraíso ou *pardes*. Ninguém chega ao núcleo sem antes suportar a dureza do mistério, confiar e trabalhar incansavelmente em busca desse alimento interior, protegido e profundo. A Madre Teresa menciona diferentes caminhos, e o sábio rabino Moisés de León, em 1290, explica as dificuldades que conduzem ao *Pardes* ou Paraíso. Existem quatro caminhos: *Peschat*, *Remes*, *Derascha* e *Sod*. *Peschat* é simples, como a interpretação literal da Torá; *Remes*, segundo o sábio Bachja ben Ascher de Zaragoza (1291), é alegórico, assim como *Derascha*. *Sod* é traduzido como mistério. Não se exige exclusividade em um único caminho; o místico tem acesso a todos. O importante é alcançar a Torá, ou seja, o conhecimento e o amor com o Amado, que está no "centro da alma" ou Paraíso. Aqueles que mergulham nesse mar de amor, entrega, música celestial, sensibilidade e confiança necessitam da segurança e da firmeza de que estão em boas mãos. Não se deve esquecer a recomendação do mestre Maimônides: "Ninguém é digno de entrar no Paraíso (mística) sem levar consigo pão e carne" – ou seja, o alimento da erudição e sabedoria. ##### O "Cântico dos Cânticos" e "Minhas Meditações" "Porque – como disse – ela compreendeu que é possível a alma apaixonada pelo Esposo passar por todos os dons, desmaios, mortes, aflições, deleites e alegrias com Ele, depois de ter deixado tudo do mundo por amor. A alma se entrega completamente em Suas mãos, não apenas em palavras – como ocorre com alguns – mas com total verdade, confirmada por ações." Sendo a palavra bíblica inspirada, a Madre Teresa de Jesus a recebe como algo sagrado e benéfico para a alma. O Amado está sempre à espera, fiel, atento, solícito, e ama as religiosas. A alma que caminha em sua direção descobre o "Mestre que a ensina, embora entenda que está com ela". A confiança de encontrá-Lo deve ser absoluta, e ao vê-Lo, percebe-se "a santa paz que faz a alma se aventurar em guerra com todos os do mundo", pois vive-se "com uma espécie de embriaguez divina", um "arrebatamento santo" em que "a alma se desfaz de tal forma que já não parece haver condições para viver." Os versos do *Cântico dos Cânticos*: *"Beije-me com o beijo de sua boca, pois teus carinhos são melhores que o vinho... Sentei-me à sombra do que desejava... O Rei levou-me à sua adega de vinho... Desmaio pela dor do amor"*, são pulsos e lampejos de luz na noite escura do mundo. A entrega nos braços do Amado, os suspiros pelo encontro, o chamado e a alegria, o descanso e a serenidade, a carícia e os efeitos do vinho, a experiência do amor e a união no ato amoroso exigem uma base sólida na alma. A Madre Teresa de Jesus fala porque sabe, explica porque experimentou e escreve o que viu. Deixa aos sábios "homens" o estudo e a interpretação do *Cântico dos Cânticos*, enquanto ela espera pelo Amado, segue-O, penetra em Seu mundo e se apaixona de maneira real. Ela é a "esposa" e, como tal, lê o livro de Salomão. Muitos ficavam quase envergonhados ao ler o livro santo, mas Teresa o recomendava às suas religiosas. Os teólogos não receberam com entusiasmo as inspirações de Teresa. A Inquisição confiscou o livro e até mandou queimá-lo. Alguns exemplares sobreviveram. Por que aqueles homens "sábios" ou "pretensamente sábios" não permitiam falar de amor? Que maior consolo poderia haver para religiosas de boa vontade, dedicadas e solícitas em amar? Não necessita a alma de alguém com quem se recolher e viver em silêncio? A alma criada à imagem divina anseia pelo concreto: a experiência, o toque, o alívio, a familiaridade, o repouso, alguém com quem falar e compartilhar alegrias e tristezas, um receptáculo para seus instintos e forças, um meio de captar consolos, palavras tranquilizantes e estímulos, e a alegria consumada no amor experimentado – seja em êxtase ou na consumação do amor. A religiosa, sem qualquer relação sensível ou sexual com homens ou mulheres, constrói um equilíbrio psíquico, físico, químico e espiritual, dialogando confiantemente com o Amado. A mística judaica reconhece a *Sékina* como a mãe que ama ternamente o povo de Israel, cuidando dele, e que, mesmo quando esquecida, envia profetas apaixonados pela Aliança. Ela é sempre fiel. A maioria dos autores judeus interpreta o *Cântico dos Cânticos* como um texto que retrata a *Knesset Israel* (a Comunidade ou Igreja de Israel) como a Esposa, que age como intercessora e mediadora para realizar a vontade do Eterno. No *Zohar*, a relação amorosa entre Deus e a *Sékina* é descrita como ocorrendo em um campo sagrado com macieiras. No sábado, ambos se encontram e têm a união mística, um "matrimônio espiritual" que traz alegria aos justos. Os místicos judeus também falam sobre a Árvore Sagrada que irriga a Sabedoria, fonte das almas dos justos, que continuamente retornam a ela. A *Sékina* habita nesses justos, e suas obras são fecundas, pois provêm da mesma água e seguem pelo mesmo canal. A alma apaixonada vive em comunhão com o Esposo, e é isso que a Madre Teresa busca expressar: essa relação constante com Aquele que ela sabe estar ao seu lado e a quem beija o coração. *(Leandro Rodríguez Ginebra)* --- ##### ***Fontes bibliográficas:*** - **San Agustín** - Com foco na *Memoria Dei* e outras obras que influenciaram a espiritualidade de Teresa. - **Zohar** - Texto fundamental do misticismo judaico, mencionando o conceito de *Sékina* e outras doutrinas cabalísticas. - **Rabino Moisés de León** - Autor medieval, relevante por suas contribuições ao *Zohar* e à interpretação mística. - **Bachja ben Ascher de Zaragoza (1291)** - Um sábio judeu, relacionado à interpretação alegórica (*Remes* e *Derascha*) da Torá. - **Cantar dos Cânticos** - Livro bíblico frequentemente utilizado para expressar a união espiritual no texto. - **Maimônides** - Mencionado em relação ao aprendizado e à entrada no Paraíso (*mística*). - **Isaac Luria (Isac Lauria de Safed)** - Cabalista que elaborou o conceito de *Zimzum*. - **Erasmo de Roterdã** - Referenciado por sua crítica aos místicos e à influência judaica nos espiritualistas espanhóis. - **Obras da Madre Teresa de Jesus** - Citadas diretamente, como *Libro de la Vida*, *Meditaciones sobre los Cantares*, *Moradas del Castillo Interior* e *Cuentas de Conciencia*. - **Teólogos e figuras da espiritualidade cristã mencionados**: - Baltasar Álvarez, S.J. - Francisco de Borja, S.J. - Pedro de Alcántara - Juan de la Cruz - Juan de Ávila # O CARMELO DESCALÇO E O ESOTERISMO: PARTE 12 - A Cabala Cristã 26/01/2025 Autor: FEDERICO GONZALEZ - MIREIA VALLS **Tradução:** Prof. Gabriel Sapucaia ![Juan Rojas y Ausa, Representações da Verdade Vestida, Místicas, Morais e Alegóricas sobre as Sete Moradas de Santa Teresa. Madri, 1679.](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000223-b2182b2183/1.jpeg?ph=4df81238fe) Juan Rojas y Ausa, **Representações da Verdade Vestida, Místicas, Morais e Alegóricas sobre as Sete Moradas de Santa Teresa**. Madri, 1679. ##### **Presença Viva da Cabala II: A Cabala Cristã** **Capítulo VIII: A Cabala na Espanha** **Teresa de Ávila** Nesta seção, é necessário enfrentar desafios, e queremos compartilhar isso com nossos leitores, especialmente leitoras. É sabido que a Madre Teresa de Jesus, de Ávila, escreveu quase toda a sua obra direcionada às monjas das casas e mosteiros que fundou. O simples fato de incluir as mulheres em sua vida mística, compartilhando com elas seu "matrimônio" com Cristo, é extraordinário do ponto de vista da transmissão do sagrado e da participação feminina nesse processo. Tal entrega pode ser reproduzida na alma de cada pessoa, pois o Amado está sempre disposto a se dar nessa relação de entrega. Apenas isso já é espetacular, assim como tudo o que compõe sua personalidade. Consideramos Teresa uma das figuras mais elevadas da humanidade e uma extraordinária protagonista da religião mais ortodoxa, apesar de seus conflitos com as autoridades eclesiásticas, que chegaram a proibir alguns de seus livros, inspecionar seus mosteiros e persegui-la constantemente – talvez pelo simples fato de ser mulher –, enfrentando um ambiente que, por sua mediocridade, odeia e rejeita aquilo que não compreende. Em quase toda sua obra, está presente a necessidade do amor por Deus, que se manifesta no estado de êxtase e arrebatamento provocado por sua união mística com o enviado e intermediário. Essa união, simbolizada pelo "beijo da morte", é uma figura também presente na Cabala, como muitas outras que coexistem em Teresa, onde a antiga tradição hebraica representada pelo Antigo Testamento e o Novo Testamento se unem sem contradições. Para Teresa, o Novo Testamento traz a Boa Nova da Salvação, complementando o legado do Antigo. Qualquer elogio humanista a Teresa é desnecessário, dada a profundidade de sua pregação e os altos níveis de conhecimento que ela alcançou e transmitiu. Teresa reconhece constantemente o dom de ter sido escolhida, um presente que mantém sua alma unida ao "Rei", como o *Cântico dos Cânticos* o chama. Esse vínculo acontece especialmente através da oração mental ou contemplativa – um método que ela ensina e que também está presente na Cabala –, aguardando os lampejos (*gilgulim*) que a levam ao Ser. Trata-se de uma união intelectual e mística com o Amado, que se apodera dela de forma fugaz, para depois deixá-la. Seu motor é o desejo incessante, nunca completamente satisfeito, tal como o temor e respeito ao sagrado e a insegurança contínua que permeiam a experiência cabalística como expressão da ignorância humana. É fácil segui-la, pois Teresa é franca e verdadeira, narrando sua vida, seu percurso espiritual, seu fervor e sua piedade. O Amor que a guia é evidente, mas escapa de seu lado, somente para atraí-la novamente das profundezas da penúria espiritual. Essas provações, que ela acredita serem necessárias, devem ser superadas para alcançar a presença do Amado, que parece bloquear seu caminho, não para afastá-la, mas para testar seu Amor. Toda sua existência é marcada por esse "jogo", que pode ser considerado o melhor exemplo de vida religiosa, na qual um Deus externo e uma personalidade individualizada lutam para alcançar a identidade no fervor, na oração silenciosa e no desejo intenso de chegar ao Ser. Essa busca pela união com o divino é acompanhada de sinais de dedicação, como a pobreza, jejuns, privações e sofrimentos – embora Teresa aconselhe moderação, pois a vida já traz dificuldades suficientes. A obediência e o esforço para unir-se a Sua Majestade tornam-se uma obsessão, mas também o meio pelo qual Teresa emerge triunfante, uma figura forte e capaz em um mundo complexo e competitivo. Embora seja possível traçar paralelos entre a obra de Teresa de Ávila e a Cabala, há um limite claro: a Cabala situa-se no campo metafísico, enquanto a pregação de Teresa é essencialmente religiosa. Em algumas ocasiões, no entanto, Teresa, como doutora da Igreja, deixa a porta aberta para estados mais misteriosos do que a união da alma com um rei, na qual esta experimenta todos os gozos. Ainda assim, em toda a sua literatura, prevalece a visão de um "eu" individualizado que ascende pelas moradas do castelo interior até encontrar o Ser. Não há espaço para a concepção do "Não-Ser" ou das formas negativas do Nome Divino. O foco permanece no que é experimentado como realidade, como se fosse a única possibilidade, em função da visão totalizadora do Ser. A ascensão pelas esferas, comum aos sistemas gnósticos, também ocorre no contexto cabalístico no Árbol Sefirótico. Isso inspira Teresa em sua compreensão de um sistema prático de ascensão intelectual e cósmica (não supracósmica), chegando às portas do Ser Universal. Nesse processo, ela eleva seu conhecimento ao Uno, ao Deus do mundo, e, no melhor dos casos, à Trindade dos Princípios Ontológicos – um feito raro e alcançado pela graça de Deus. Um ponto importante é a semelhança entre a figura de Teresa, como amante sempre disposta ao serviço, e a *Sékina*, a presença ou imanência divina no mundo, representada no nível de *Malkhuth*. Este é um espaço suscetível de ser fecundado por *Tiferet*, o esplendor divino e *Metatron*, o nome mais elevado, onde a graça desce e o amor sobe, conjugando-se na Beleza e no Mistério. O *Árbol de la Vida* contém diferentes níveis, que são mundos dentro da alma. Não se sabe ao certo onde as orações de Teresa poderiam ter sido ouvidas no âmbito do Ser Universal, mas é evidente que seu discurso permanece exterior, ligado à "personalidade" e à busca de recompensas após a morte, enfatizando obras mais do que a graça. Isso reflete uma tendência semelhante à dos cristãos de hoje, embora sem a hipocrisia muitas vezes associada. A religião é o plano onde Teresa se move e entrega sua vida, assim como fazem rabinos e suas esposas. A distinção entre metafísica e religião é válida tanto no judaísmo quanto no cristianismo. Essa separação já era evidente no período da Inquisição e continua presente em muitas comunidades judaicas e cristãs, onde as estruturas religiosas, por vezes, se tornam um obstáculo à realização espiritual mais elevada, um fenômeno observado também no cristianismo, com a hierarquia eclesiástica se opondo ao verdadeiro conhecimento. Não é possível determinar até que nível de conhecimento Teresa de Ávila chegou, nem seria justo julgar. Porém, é possível identificar traços em sua obra que a conectam tanto à herança judaica, presente em sua ascendência, quanto a elementos cabalísticos, algo compreensível considerando o florescimento da Cabala na Espanha (Sefarad) séculos antes. Esse legado, mantido e renovado, continua a fecundar novas tradições e religiões, servindo como um elo entre céu e terra. Ninguém mais humano do que Teresa de Ávila. Seu desejo pelo supra-humano reflete uma busca que transcende luz e som, entrando na "noite profunda" ou no estado pre-larval da Possibilidade Universal. Esse estado se aproxima do *En Sof* cabalístico, uma presença inalterável e infinita que rompe com a perspectiva religiosa afirmativa, focando no aspecto não criado da deidade. No entanto, o conceito de virtudes não é irrelevante. Muitas vezes, virtudes podem ser envoltas em aparências, gerando engano e autoilusão. Teresa valoriza a pobreza como um passaporte para o além, mas alerta que a maior pobreza é abandonar crenças e identidades, e não apenas renunciar a bens materiais. O sacrifício, para Teresa, significa "tornar sagrado" em todos os níveis, e não apenas abdicar de prazeres materiais menores. A vida conventual, apesar de seu potencial, pode ser insalubre quando a "competição" por virtudes se torna excessiva. No entanto, se bem conduzida, pode alcançar níveis espirituais elevados, desde que se evite a superficialidade e a ostentação. A castidade não é o maior problema nos conventos, mas a homossexualidade e as mais complexas perversões visitam frequentemente esses espaços, transformando-os em um laboratório experimental para o demônio que tanto temem. Será que o claustro é garantia de algo? Talvez apenas de não lidar com assaltantes nas estradas, o que já é considerável. Também não acreditamos na busca intencional pelo sofrimento como meio de purificação, nem na ingenuidade das "promessas" feitas aos "santos". Nem sequer confiamos na força da vontade, mas sim na entrega. Cremos que o Deus único possui diversos nomes e habita diferentes dimensões, muitas vezes contraditórias. O Deus Rei inclina-se para o combate e o fanatismo, fazendo muito barulho e ofendendo o silêncio e a paz. Essa forma de divindade, que caracteriza o catolicismo mais ortodoxo e sua contraparte judaica, é pouco compatível com o reconhecimento do Não-Ser e da Triunidade Ontológica – o nível mais elevado do Ser. Por isso, pode-se considerar que todo o esforço dos conventos é desnecessário no caminho para o Conhecimento, ou pelo menos uma via que pode ser evitada, apesar da carga "oficial" e supostamente moral dessas "virtudes", que frequentemente são contraproducentes e insalubres, como tudo que se esgota em si mesmo: virtude pela virtude, arte pela arte, ciência apenas pela ciência. Do mesmo modo, o cumprimento de normas não é uma rede suficiente para capturar o Amado. Essas são apenas algumas diferenças entre o enfoque religioso, neste caso judaico-cristão, e a perspectiva metafísica – ou seja, cabalística e hermética. Poderíamos enumerar muitas outras distinções que separam esses critérios, frequentemente unificados pela visão popular, mas quase impossíveis de serem compreendidos em profundidade na cultura vigente. Ao longo de sua vida, a santa sofreu intensamente com a estupidez humana – inclusive a própria – da qual frequentemente se tornava vítima ao descer de suas utopias e enfrentar os conflitos da vida mundana, sentindo a culpa das pecadoras. Essas imagens sombrias são totalmente opostas às que alcançava em seus momentos de liberdade espiritual, mas, ao descer, era consumida pela dualidade, pela dicotomia, crucificada entre o bem e o mal, e forçada a destacar apenas a unidade religiosa por ela escolhida, simplificando questões complexas. Sua obra completa dá testemunho disso e se ergue como um castelo no árido panorama da região castelhana. Comecemos com sua *Vida*, escrita em 1574, de forma manuscrita, quando Teresa tinha quase sessenta anos. O livro foi imediatamente retirado de circulação pela Inquisição, que havia recebido denúncias contra ele. No entanto, cópias manuscritas se multiplicaram rapidamente, e uma delas chegou às mãos de Fray Luis de León, que editou a obra em 1588, junto com o restante de sua produção, em Salamanca. Este livro foi escrito a pedido de seu confessor, e Felipe II teria colocado um exemplar na biblioteca do Escorial, onde a obra passou a ser venerada. Desde o início, a obra reflete a sensação de culpa de Teresa por não ser uma boa serva de Sua Majestade – não Felipe de Habsburgo, mas Deus – e por se sentir "obrigada a servir ainda mais". Desde menina, como muitas outras, ela sonhava com o martírio, vendo nele uma forma de devoção e entrega total. No capítulo 1, Teresa de Ávila relata sua infância, destacando seu desejo de servir a Deus desde cedo: *"Desde que percebi que era impossível ir aonde pudesse morrer por Deus, decidimos ser eremitas. No jardim de casa, tentávamos, como podíamos, construir eremitérios com pequenas pedras, que logo desmoronavam, e assim não encontrávamos solução para nosso desejo. Agora, me comove ver como Deus rapidamente me deu o que perdi por minha culpa. Fazia caridade como podia, embora pouco pudesse. Buscava a solidão para rezar minhas devoções, especialmente o rosário, que minha mãe, muito devota, nos ensinou a amar. Gostava muito de brincar com outras meninas de construir mosteiros, como se fôssemos monjas, e parece que eu já desejava ser uma, embora não tanto quanto outras coisas que mencionei."* Ela recorda a morte da mãe, quando tinha apenas doze anos: *"Lembro-me de que, ao entender a perda que sofrera, aflita, fui até uma imagem de Nossa Senhora e implorei, com muitas lágrimas, que fosse minha mãe. Acredito que, embora tenha feito isso com simplicidade, me foi de grande valor, pois sempre encontrei essa Virgem soberana quando a invoquei e, no final, ela me trouxe de volta a si. Hoje, me entristece ver em que ponto perdi os bons desejos que comecei a nutrir."* No capítulo 10, Teresa descreve as graças que o Senhor lhe concedia na oração: *"Às vezes, como mencionei, por breves momentos, sentia algo que agora posso descrever. Quando me colocava diante de Cristo, ou mesmo ao ler, sentia inesperadamente a presença de Deus dentro de mim, de forma tão evidente que não podia duvidar. Não era uma visão; creio que chamam isso de 'teologia mística'. Minha alma ficava suspensa, como fora de si: minha vontade amava, minha memória parecia perdida, e meu entendimento não trabalhava, mas não estava ausente; apenas permanecia admirado pelo que compreendia. Deus queria que eu entendesse que, do que Sua Majestade me revelava, nada eu compreendia por completo."* Ela reflete sobre a relação entre o bem supremo e os sofrimentos corporais: *"Sua Majestade conhece melhor que nós nossa miséria e natureza frágil, sabendo que essas almas desejam apenas pensar Nele e amá-Lo. Essa determinação é o que Ele quer. Mas o afligimento adicional que nos impomos só serve para inquietar a alma e a torna incapaz de se aproveitar espiritualmente. Muitas vezes, isso é resultado de indisposições corporais; o corpo participa das misérias da alma. Mudanças no tempo e nos humores podem impedir-nos de agir conforme desejamos, e, quanto mais forçamos nesses momentos, pior será. É preciso discernir essas situações e não esmagar ainda mais a pobre alma."* Teresa alerta contra o excesso de preocupação com secura espiritual: *"Importa muito não se oprimir com secura, inquietações ou distrações nos pensamentos. Se quer liberdade de espírito, aprenda a não temer a cruz, e verá que o Senhor o ajudará a carregá-la com alegria e proveito."* Seu discurso, apaixonado e envolvente, é mais extrovertido do que introspectivo. Em muitos momentos, Teresa se apresenta como uma mendiga espiritual, aceitando as "migalhas" de seu Senhor, embora seja uma mulher clara e orgulhosa. Ela destaca a importância da humildade e da entrega, sempre confiante de que o Senhor guiará aqueles que sinceramente buscam a Ele. A partir dos 26 anos, Teresa relata experiências místicas mais frequentes, como visões e vozes. Inicialmente temerosa de que fossem ilusões demoníacas, ela encontrou orientação em confessores e diretores espirituais, que reconheceram suas experiências como autênticas graças divinas. Consciente de seu talento literário, Teresa permitiu que fluísse, tornando suas obras não apenas espiritualmente ricas, mas também cativantes e acessíveis. Seu estilo autobiográfico, raro no contexto judaico-cristão, revela uma profundidade que encanta e inspira leitores até hoje. Um dos aspectos mais singulares do talento de Teresa de Ávila encontra-se em suas visões, que ela detalha em vários de seus escritos. Essas visões, por vezes, parecem configurar um sistema análogo a outros, como a relação frequentemente feita entre o hinduísmo e seu método. Não é arbitrária a comparação entre as sete moradas descritas por Teresa e os sete chakras do yoga, que se abrem ao longo de um caminho ascendente de conhecimento. Não há dúvida de que as monjas descalças do Carmelo seguiram – e continuam seguindo – os ensinamentos de Teresa sobre como receber essas visões, cuja porta de entrada é a oração. Em algumas ocasiões, suas visões têm como origem uma imagem concreta, como o quadro de Cristo ensanguentado que inspirou sua primeira visão, ou sua entrega diante de uma pintura da Virgem, aos doze anos, após a morte de sua mãe. Esse ato, embora simples, foi marcante e a amparou ao longo de sua vida. Não nos aprofundaremos nas aparições divinas na vida de Teresa, pois este livro não busca análises psicológicas de categorias ou condições específicas, mas apresentar um perfil claro de cada autor espanhol renascentista em cujas obras detectamos rastros do pensamento cabalístico após a expulsão dos judeus. Nesse contexto, a oração, tanto no pensamento religioso quanto no metafísico, desempenha um papel central. Em *Moradas do Castelo Interior*, Teresa descreve suas visões usando a linguagem dos teólogos e eclesiásticos que a orientavam. No capítulo 8, ela aborda a visão espiritual e intelectual: *"Quando Sua Majestade quer, não podemos senão andar sempre com Ele, como fica evidente pelos modos com que Sua Majestade se comunica conosco e nos mostra o amor que nos tem, com algumas aparições e visões tão admiráveis que, se Ele vos conceder alguma dessas graças, não vos espanteis..."* Teresa explica como, sem estar esperando tal graça ou pensar ser digna dela, às vezes percebia a presença de Jesus Cristo ao seu lado, embora não o visse com os olhos do corpo ou da alma. Essa experiência, chamada de "visão intelectual", causava-lhe inicialmente grande confusão, pois ela não sabia explicar o que estava acontecendo, mas tinha certeza de que era Cristo quem se manifestava. *"Se era de Deus ou não, embora viesse com grandes sinais para compreender que era, ainda assim sentia medo. Nunca havia ouvido falar de visão intelectual, mas entendia claramente que era o Senhor quem lhe falava muitas vezes. Quando Ele dizia: 'Não temas, sou Eu', essas palavras tinham tanta força que, naquele momento, não conseguia duvidar e se sentia fortalecida e feliz com Sua presença."* Mesmo sem ver um rosto ou uma figura, Teresa descrevia essa experiência com convicção, dizendo ao confessor que sentia Cristo próximo, especialmente no lado direito, mas não com os sentidos comuns, e sim de uma forma mais delicada, impossível de descrever. Essa certeza vinha acompanhada de grandes efeitos interiores: paz, desejo de agradar a Deus e desprezo por tudo que não levasse a Ele. Essas visões, longe de serem fruto de melancolia ou engano demoníaco, traziam ganhos espirituais profundos e contínuos, reforçando sua comunhão com Deus. Teresa experimentava uma paz e um desejo incessante de alcançar o divino, vivendo com a constante sensação de estar sendo observada por Ele. Suas descrições mostram não apenas a força de sua experiência mística, mas também a profundidade e o impacto duradouro que essas manifestações tiveram em sua vida espiritual. Agora, abordemos as visões imaginárias, que, dizem, são aquelas em que o demônio pode se infiltrar com mais facilidade do que nas outras – e parece ser assim. No entanto, quando são do Senhor, de certa forma, parecem mais proveitosas, pois estão mais alinhadas com nossa natureza. Exceto pelas que o Senhor concede na última morada, que são incomparáveis. Embora use a palavra "imagem", deve-se entender que não é algo pintado, mas verdadeiramente vivo. Às vezes, essas imagens falam com a alma e até revelam grandes segredos. Acontece que algumas pessoas (e sei que é verdade, pois muitas já trataram disso comigo) têm imaginação tão frágil ou um entendimento tão vívido, que se envolvem profundamente na imaginação, acreditando ver claramente tudo o que pensam. Mas, se tivessem visto uma visão verdadeira, entenderiam sem dúvida alguma o engano, pois essas imagens são fruto de sua própria imaginação e não produzem efeitos duradouros, deixando-as mais frias do que ao contemplar uma imagem devota. Assim como, ao cair São Paulo, uma tempestade se formou e o céu se agitou, no mundo interior há grande movimento, que, em um instante, se torna tranquilo. A alma é então ensinada por verdades grandiosas e não precisa de outro mestre, pois a verdadeira sabedoria a liberta de sua ignorância sem esforço. Durante algum tempo, essa certeza de que a graça veio de Deus permanece, e, por mais que outros digam o contrário, não se pode duvidar. Por isso, não se deixem perturbar ou inquietar. Mesmo que não seja de Deus, se houver humildade e boa consciência, não trará dano, pois Sua Majestade sabe transformar o mal em bem, e o caminho pelo qual o demônio tenta nos perder pode se tornar um meio de ganho ainda maior. **Capítulo 11: Sobre os impulsos da alma e a experiência do amor divino** Às vezes, essas ânsias, lágrimas, suspiros e grandes ímpetos – que parecem originar-se de nosso amor e de sentimentos profundos – tornam-se pequenos diante de outra experiência. É como um fogo que apenas fumaça e pode ser suportado, embora com dor. Contudo, enquanto a alma queima dentro de si mesma, um pensamento leve ou uma palavra sobre o adiamento da morte pode desencadear algo súbito, como se viesse de outro lugar – um golpe ou uma seta de fogo (não digo que seja literalmente uma seta, mas parece algo semelhante). Essa experiência, claramente não natural, atinge o mais íntimo da alma, onde se sente como se todo o natural fosse reduzido a pó. Por um momento, as potências da alma são amarradas, incapazes de se ocupar com qualquer coisa além de intensificar essa dor. Durante esse breve instante, é impossível lembrar-se de si mesmo, pois a presença divina toma conta de tudo. **Reflexões sobre o "Cântico dos Cânticos"** Teresa comenta o versículo: *"Beije-me com o beijo de sua boca."* Ela reflete: *"Ó Senhor meu e Deus meu, que palavra é essa para que um verme a diga a seu Criador! Bendito sejais, Senhor, por tantas maneiras com que nos ensinastes! Mas quem ousaria, meu Rei, dizer essas palavras, se não fosse com vossa permissão? É algo que espanta, e muitos dirão que sou tola por afirmar isso. Dirão que essas palavras têm muitos significados e que é claro que não deveríamos dizer isso a Deus. Por isso, talvez não seja adequado que pessoas simples leiam estas coisas."* Ela admite que essas palavras podem ter diferentes interpretações, mas para a alma abrasada de amor, nada mais importa do que pronunciá-las. *"Ó Deus! Por que nos espantamos? Não é ainda mais admirável o ato de nos aproximarmos do Santíssimo Sacramento? Pensei se a esposa pedia aqui a graça que Cristo nos concedeu mais tarde: aquela união profunda, onde Deus se fez homem e selou Sua amizade com a humanidade. Pois é claro que o beijo é sinal de paz e amizade entre duas pessoas."* Essas palavras, assim como outras no *Cântico dos Cânticos*, são expressão do amor. Sem amor, alguém pode lê-las todos os dias sem compreendê-las. Apenas quem vive esse amor ousará pronunciá-las, pois, ao ouvi-las, percebe-se a majestade que carregam. **No capítulo 3, tudo é amor na entrega:** *"O que fazer, filhas? Pedir junto com a esposa. Se uma camponesa se casasse com o rei e tivesse filhos, esses não seriam também de sangue real? Pois, se nosso Senhor concede a uma alma tanta graça que se una a ela de forma tão íntima, que desejos, que efeitos, que obras heroicas poderiam nascer daí, a menos que fosse por sua própria culpa!"* *"Ó Senhor do céu e da terra, como é possível que, mesmo vivendo nesta vida terrena, possamos desfrutar de Vós com tamanha amizade, e que o Espírito Santo o diga tão claramente nestas palavras, embora ainda não queiramos entender os regalos com que tratais as almas nestes Cânticos! Que galanteios, que suavidade! Bastaria uma só dessas palavras para nos dissolvermos em Vós."* *"Sede bendito, Senhor, pois, de Vossa parte, nada perderemos. Que caminhos, que formas, que meios nos mostrais o amor! Por meio de sofrimentos, de uma morte tão amarga, de tormentos, suportando diariamente injúrias e perdoando; e não apenas isso, mas com palavras tão penetrantes para a alma que Vos ama, palavras que nos ensinais a dizer, que não sei como podemos suportá-las sem a Vossa ajuda."* *"Senhor meu, não Vos peço outra coisa nesta vida senão que me 'beijeis com o beijo de Vossa boca', e que o façais de forma que, mesmo que eu deseje me afastar dessa amizade e união, minha vontade permaneça sempre sujeita à Vossa, para que nada me impeça de dizer com verdade: 'Meu Deus e minha glória, melhores são Vossos peitos e mais doces que o vinho.'"* **E tudo é embriaguez ao beber o vinho desses peitos, que nos transportam além, à nossa raiz, à essência da origem, à divindade:** *"Naquilo que já mencionei, digo o que a alma deve fazer para progredir: entregar-se inteiramente. Nesta amizade, em que o Senhor mostra tão claramente à alma que deseja essa relação particular, grandes verdades lhe são comunicadas. Essa luz, que a deslumbra e que ela não compreende, faz com que veja a vaidade do mundo. Ela não vê o Mestre que a ensina, mas entende que Ele está presente. A alma fica tão bem ensinada, fortalecida nas virtudes e tomada de grandes efeitos, que não se reconhece mais. Só deseja louvar ao Senhor e, quando está nesse gozo, parece estar fora de si, em uma embriaguez divina."* *"Mas, quando este Esposo riquíssimo deseja enriquecer e agraciar ainda mais a alma, Ele a transforma tanto em Si mesmo que, como alguém desfalecido de tanto prazer, ela se sente suspensa em Seus braços divinos, encostada em Seu lado sagrado e sustentada por aqueles peitos divinos. Não sabe mais do que desfrutar, alimentada com aquele leite celestial que o Esposo oferece, preparando-a para receber ainda mais graça."* *"Quando desperta desse sono e dessa embriaguez celestial, a alma fica assombrada e absorta, com um santo delírio. Pode então dizer estas palavras: 'Melhores são os teus peitos que o vinho.' Quando estava naquela embriaguez, parecia que nada mais havia além disso; mas, ao alcançar um grau mais elevado, empapada da grandeza infinita de Deus, percebe-se sustentada e maravilhada. Como uma criança que não entende como cresce ou mama, assim é a alma: alimentada sem esforço próprio, recebendo algo incomparável e inefável."* *"Ó cristãos e minhas filhas, despertemos deste sono, por amor ao Senhor! Lembremos que o prêmio de amá-Lo não é reservado apenas para outra vida; aqui já começamos a receber Sua paga. Ó meu Jesus, quem poderia expressar a alegria de lançar-se nos braços deste Senhor e estabelecer um pacto com Sua Majestade: que eu cuide de minhas coisas e Ele das Suas, em um mútuo amor?*" Essas palavras revelam a intensidade da entrega de Teresa ao Amado, conduzindo-nos a uma reflexão sobre o amor divino e a busca pela união com Deus, expressa em termos tão poéticos quanto profundos. **1. Meu Amado é para mim** *Já toda me entreguei e dei – E de tal forma me troquei – Que meu Amado é para mim – E eu sou para meu Amado.* *Quando o doce Caçador – Me feriu e deixou marcada – Nos braços do amor, – Minha alma ficou rendida, – E, ganhando nova vida, – De tal forma me troquei – Que meu Amado é para mim – E eu sou para meu Amado.* *Feriu-me com uma flecha – Envenenada de amor – E minha alma ficou feita – Uma só com seu Criador; – Já não quero outro amor, – Pois ao meu Deus me entreguei, – E meu Amado é para mim – E eu sou para meu Amado.* **2. Morro porque não morro** *Vivo sem viver em mim – E tão alta vida espero – Que morro porque não morro.* *Já vivo fora de mim – Desde que morri de amor, – Pois vivo no Senhor – Que me quis para Si. – Quando Lhe entreguei o coração – Ele gravou este lema: – Que morro porque não morro.* *Esta divina prisão – Do amor com que vivo – Fez de Deus meu cativo – E meu coração livre; – E causa em mim tal paixão – Ver a Deus como prisioneiro, – Que morro porque não morro.* *Ai, que longa é esta vida, – Que duros são estes exílios, – Esta prisão e estas correntes – Em que a alma está presa! – Somente esperar a saída – Me causa uma dor tão feroz – Que morro porque não morro.* *Ai, que vida tão amarga – Onde não se goza o Senhor! – Pois se o amor é doce, – Não o é a espera longa: – Tire-me Deus este fardo – Mais pesado que o aço, – Que morro porque não morro.* *Vivo somente na confiança – De que hei de morrer, – Pois morrendo, o viver – Garante minha esperança. – Ó morte, onde o viver se alcança, – Não demores, que te espero, – Que morro porque não morro.* *Veja como o amor é forte; – Vida, não sejas pesada, – Veja que para ganhar-te, – Preciso apenas perder-te; – Venha já a doce morte, – Venha o morrer ligeiro, – Que morro porque não morro.* *Aquela vida do alto, – Que é a vida verdadeira, – Enquanto esta vida não morrer – Não se pode gozar estando viva. – Ó morte, não sejas esquiva; – Viva morrendo primeiro, – Que morro porque não morro.* *Vida, o que posso eu dar – A meu Deus que vive em mim, – Se não é perder-te a ti – Para melhor gozá-Lo? – Quero alcançá-Lo morrendo, – Pois a Ele só desejo. – Que morro porque não morro.* ***24. Rumo à pátria*** *Caminhemos para o Céu, – Monjas do Carmelo. – Vamos muito mortificadas, – Humildes e desprezadas, – Deixando a honra no chão, – Monjas do Carmelo.* *Ao voto da obediência – Vamos, sem resistência, – Que é nosso alvo e consolo, – Monjas do Carmelo.* *A pobreza é o caminho, – O mesmo por onde veio, – Nosso Imperador do céu, – Monjas do Carmelo.* *Não deixa de nos amar – Nosso Deus, e nos chamar; – Sigamo-Lo sem receio, – Monjas do Carmelo.* *No amor está abrasado – Aquele que nasceu tremendo – Envolto em humano véu, – Monjas do Carmelo.* *Vamos nos enriquecer – Aonde nunca haverá – Pobreza nem desespero, – Monjas do Carmelo.* *Seguindo o pai Elias – Vamos nos contradizendo – Com sua fortaleza e zelo, – Monjas do Carmelo.* *Nosso querer renunciado, – Procuremos o dobrado – Espírito de Eliseu, – Monjas do Carmelo.* **33. Dizei, céus e terras** *Dizei, céus e terras; dizei, mares; – Dizei, montes, vales e colinas; – Dizei, vinhas, trigais e olivais; – Dizei, ervas e flores; dizei, campinas:* *Dizei-me onde está – Aquele que vos dá beleza e vida.* *Anjos, que ao contemplá-Lo vos alegrais, – Almas, que O amais e possuís, – Esposas, que este Esposo desejais – E Seus doces braços anelais:* *Dizei-me onde está – Aquele que vos dá beleza e vida.* *Ai! Nada me responde, tudo silencia; – Pois, calado estais, tudo está mudo. – Minha alma em si Vos busca e não Vos encontra, – Meu coração está vazio de tudo.* *Ai! Se se levanta em mim batalha, – Quem será minha defesa, quem meu escudo? – Ai, alegria da minha alma e minha glória! – Como poderei viver sem Vossa companhia?* *Ai! Onde fostes, Amado Esposo? – Por que deixais sozinho quem Vos ama? – Onde estão Vossos raios, Sol radiante? – Por que escondestes Vossa chama?* *Se andais atrás do pecador ansioso, – Por que não respondeis a quem Vos ama? – Por que escondeis o rosto, doce amigo? – Por que me tratais como inimigo?* *Por que quisestes partir sem falar comigo? – Por que não me falastes ao partir? – Comovam-Vos, doce Amado, os suspiros – Que envio até Vos ver voltar.* *Ou vinde ou dai-me forças para seguir-Vos. – Ou, se não, ordenai-me, Senhor, morrer. – Não me mandeis viver sem ter vida, – Não me deixeis viver sem ver Vossa vinda.* *Se estais, Amado meu, nas alturas, – Dai-me asas para subir até onde estais. – Se habitais em almas puras, – Por que não purificais esta alma tão incapaz?* *Se tendes morada nas criaturas, – Mostrai-me em quais delas repousais. – Onde está Vossa morada, amor suave, – Pois sem Vós, o mundo nada me vale.* *Aves, que entoais doces canções, – Serpentes, animais e cetáceos;* *Dizei-me se sabeis onde está – Aquele que vos dá beleza e vida.* Com todas essas belezas, lamentamos que, a partir de Santa Teresa e de seu caminho para Deus, seu sistema – seu "yoga" – baseado na devoção e exclusivamente no amor (embora já tenhamos afirmado que não exclui a Sabedoria) tenha sido uniformizado como praticamente a única via de realização espiritual, sendo denominado "misticismo". Isso ocorre tanto no cristianismo quanto no judaísmo, onde é assimilado à religião e frequentemente associado a uma vaga noção de um Deus criador e totalizante, concebido como uma entidade individual que não difere das criaturas, exceto em poder ou magnitude. Em resumo, trata-se de uma forma de conceber a divindade por meio da figura de Jesus ou, em outros casos, materializada como uma deusa virgem, sempre em formas humanas. Dissemos no início deste estudo que encontraríamos dificuldades ao tratar de Teresa, e isso se confirma aqui. Por um lado, valorizamos sua obra e sua vida; por outro, sabemos, por experiência própria, que a religião não é metafísica, sendo um nível distinto e, por vezes, oposto. Consideramos que o pensamento de Teresa apresenta um certo reducionismo na busca pelo Conhecimento. Infelizmente, a imagem do "místico" substituiu a Sabedoria atemporal, e chega-se até a julgar o Conhecimento de outras realidades com base nas práticas, "técnicas" e condutas das carmelitas descalças. Essas "virtudes" são frequentemente equiparadas às metafísicas orientais, como se fossem mais do mesmo. Isso nos coloca diante de equívocos significativos que precisam ser evitados. Ao nos aproximarmos do tema da religião judaica e do misticismo em relação à Cabala – ou seja, à tradição metafísica de Israel e sua sabedoria gravada no Árbol Sefirótico –, percebemos a necessidade de maior clareza. Prestamos toda nossa homenagem a Teresa de Ahumada, rogando ao Altíssimo que nos conceda seu zelo exemplar e que, como ela, possamos nos colocar sob a proteção do profeta Elias – incluindo Eliseu, que foi arrebatado ao céu e lá permanece vivo –, assim como faziam os alquimistas da época, que o conheciam como Elias-Artista. Por razões cíclicas, como podemos observar, o sábio foi substituído pelo santo. **NOTAS** 1. A leitura do *Ascenso al Monte Sión*, de Fray Bernardino de Laredo, serviu como um dos catalisadores de sua trajetória. Em muitos comentários e cartas, Teresa fala a favor dos intelectuais e das letras, considerando-os extremamente importantes, embora não indispensáveis em seu próprio método. 2. Não faltam aqueles que, lamentavelmente, acreditam que as mulheres, devido à sua natureza, que consideram servil e conservadora, não podem alcançar senão níveis relativos de conhecimento – o que lhes impede o sacerdócio. Alegam que elas são limitadas por suas restrições, sendo apenas capazes de acreditar no que é material, existencial, de algum modo concreto e formal – algo "mais aquém" do que "mais além". Embora essa seja a regra para alguns, objetamos que, mesmo que fosse verdade (o que parece improvável), sempre haveria exceções. 3. Isso também se aplica ao islã, ou seja, às três religiões abraâmicas, que realmente correspondem ao termo "religioso", em contraste com outras espiritualidades passadas ou presentes, como o paganismo, o hinduísmo, o budismo, as tradições do Extremo Oriente, etc., que são mais abertas ao metafísico e menos presas ao histórico, político e exclusivamente monoteísta no âmbito exterior. 4. "Na dúvida, não te abstenhas, mas busca tua segurança. O bem é tua escolha; o mal, se o negas, não existe. Opta pela unidade religiosa, pois o próprio Deus te guia." Parece ser isso o que a consciência da descalça diz a si mesma. 5. Santa Teresa de Jesus, *Obras Completas*. Transcrição, introdução e notas de Efraín de la Madre de Dios, O.C.D., e Otger Steggink, O. Carm., Biblioteca de Autores Cristianos, Madri, 1986, pág. 35. 6. Ibid., pág. 66-67. 7. Ibid., pág. 74-75. 8. Ibid., pág. 76-77. 9. Ver Morris M. Faierstein, *Jewish Mystical Autobiographies, Book of Visions and Book of Secrets*. Paulist Press, New Jersey, 1999. 10. *Obras Completas*, *Libro de Vida*, op. cit., pág. 35. 11. Ibid., pág. 552-553. 12. Ibid., pág. 556 e ss. 13. Ibid., pág. 563. 14. Ver Federico González-Mireia Valls, *Presencia Viva de la Cábala*, op. cit. 15. *Obras completas*, op. cit., pág. 448-449. 16. Ibid., capítulo 4, pág. 450-453. 17. Ibid., pág. 654. 18. Ibid., pág. 654. 19. Ibid., pág. 665. 20. Ibid., pág. 670. # O CARMELO DESCALÇO E O ESOTERISMO: PARTE 13 - A Cabala na Espanha e São João da Cruz 10/02/2025 Autor: Federico Gonzalez e Mireia Valls Tradutor: Prof. Gabriel Sapucaia ![](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000226-a5968a596c/img_7397.jpeg?ph=4df81238fe) **PRESENÇA VIVA DA CABALA II** **A CABALA CRISTÃ** **FEDERICO GONZALEZ - MIREIA VALLS** **CAPÍTULO VIII** **A CABALA NA ESPANHA** **Autores:** Federico Gonzalez e Mireia Valls Tradução: Prof. Gabriel Sapucaia **São João da Cruz** A vida e obra de Juan de Yepes devem ser vistas na mesma perspectiva que as de Teresa de Jesús, madre espiritual, ambos de Ávila e de famílias marranas consolidadas no entorno social da época, cujos membros podiam aceder ao sacerdócio, assim como a muitas outras atividades profissionais, como escrivães, licenciados, comerciantes, poetas e, sobretudo, médicos. Ou seja, formavam uma classe culta, inclusive com certo poder económico em Castela e Andaluzia, e em toda a Sefarad integrada ao catolicismo da sociedade, como é o caso, constituindo a cultura ocidental. Esta é herdeira do paganismo grego, do Hermetismo, das religiões mistéricas e gnósticas, dos neoplatónicos e dos neopitagóricos, ou seja, uma tradição esotérica unânime, com poucas variantes ou adaptações, presentes, como estamos a ver, no judeocristianismo; e especialmente nas formas da Cabala no Renascimento em geral e, em particular, no Renascimento espanhol, ao qual os sábios judeus têm atribuído tão pouca importância, no que diz respeito aos vestígios de Israel na extraordinária literatura castelhana da época, especialmente na sua linguagem religiosa e em alguns traços do pensamento cabalístico a um nível distinto do emocional; estamos a referir-nos ao plano intelectual-espiritual no qual trabalham os teurgos de todos os tempos. Mas o nosso Juan – como tantos rabinos ilustres – trabalhou no plano religioso e no sentido da piedade, da devoção da vida cristã conventual e tudo o que lhe coube na existência, incorporando os prós e contras que teve de superar ao longo da vida no âmbito da realidade do Ser Universal, na qual lhe coube existir e na qual optou pela sua noite escura da alma, vista como o grau mais elevado da Fé, conceito que a Cabala partilha na medida em que essa Fé não é cega, mas, pelo contrário, é uma realidade que se impõe como a manifestação permanente do Si mesmo e do mistério inefável que isso encerra. Espaços indefiníveis não apenas do que É, o Ser Universal, mas também de tudo o que Não é, um imenso âmbito escuro dominado pela virtualidade, embora "ali" nada se produza e a sua própria realidade seja a eterna possibilidade de não se manifestar. Mas nada de discussões sofísticas, o que falamos não é retórica, mas assegura-se (e há unanimidade entre os cabalistas) que se baseia na experiência adquirida graças ao pensamento e à atividade necessária do rito perene. Homem de letras, graduado em Salamanca, onde certamente conheceu Frei Luís de León, que ali e naquela época ensinava, e de cuja frescura está imbuída a sua própria produção, como de uma vibração benfazeja que ele mesmo, sob a sua influência, continua. A ponto de toda a literatura que estamos a ver parecer ter uma mesma voz, um mesmo tom no concerto cósmico, e ela caracteriza, a nosso ver, a poética religiosa do pensamento judeocristiano. A isto há que acrescentar que, em termos de doutrina, ele é filho da madre Teresa, com quem conviveu conventualmente durante cinco anos em Ávila, após uma primeira juventude galante e ter sentido vocação missionária no México (era também engenheiro inventor) e a obtenção dos títulos em Salamanca; pelo que tudo o que acabamos de dizer a respeito da santa lhe é igualmente aplicável. Embora seja, ao mesmo tempo, um extraordinário poeta, um pregador religioso nos conventos fundados por eles e um piedoso sacerdote, e, acima de tudo, um criador da nossa língua, que surge no seu maior esplendor neste período histórico. Por isso, utilizaremos aqui igualmente o sistema de citar as suas poesias para ilustrar o que dizemos, como fizemos com a sua mãe espiritual. Sobretudo porque alguns dos seus livros são meditações sobre as suas poesias, como é o caso da *Ascensão ao Monte Carmelo*. Ater-nos-emos ao essencial. E publicaremos em primeiro lugar os seus *Diálogos de Amor entre Esposo e Esposa*, como faz o *Cântico dos Cânticos*, do qual é de algum modo uma glosa. **Canções entre a alma e o esposo** **Esposa** Onde te escondeste, Amado, e me deixaste com gemido? Como o cervo fugiste, tendo-me ferido; saí atrás de ti clamando, e já tinhas partido. Pastores que por aí pelas majadas ao outeiro passardes, se porventura virdes aquele que mais quero, dizei-lhe que adoeço, peno e morro. Procurando meus amores, irei por esses montes e ribeiras; não colherei as flores, nem temerei as feras, e passarei os fortes e fronteiras. **Pergunta às criaturas** Ó bosques e espessuras, plantados pela mão do Amado; ó prado de verdura, de flores esmaltado, dizei se por vós ele passou! **Resposta das criaturas** Mil graças derramando, passou por esses bosques com pressa, e, ao olhá-los, com apenas a sua figura deixou-os vestidos de beleza. **Esposa** Ai, quem me curará? Acaba de te entregar verdadeiramente. Não queiras enviar-me de hoje em diante mensageiros, que não sabem dizer-me o que quero. E todos quantos vêm de ti me contam mil graças, e todos mais me ferem e deixam-me morrendo um não sei quê que balbuciam. Mas como perseveras, ó vida, não vivendo onde vives e fazendo morrer com as flechas que recebes daquilo que do Amado em ti concebes? Por que, pois feriste este coração, não o curaste? E, pois o roubaste, por que assim o deixaste e não tomas o roubo que roubaste? Apaça meus desgostos, pois ninguém basta para desfazê-los; e vejam-te meus olhos, pois és luz deles, e só para ti quero tê-los. Ó fonte cristalina, se nesses teus semblantes prateados formasses de repente os olhos desejados que tenho nas minhas entranhas desenhados! Aparta-os, Amado, que vou voando. **Esposo** Volta, pomba, que o cervo ferido pelo outeiro aparece ao ar do teu voo, e fresco toma. **Esposa** Meu Amado, as montanhas, os vales solitários e arborizados, as ilhas estranhas, os rios sonorosos, o assobio dos ares amorosos, a noite sossegada junto aos levantes da aurora, a música calada, a solidão sonora, a ceia que recreia e enamora. Nosso leito florido, de cavernas de leões entrelaçado, em púrpura estendido, de paz edificado, de mil escudos de ouro coroado. E atrás da tua pegada as jovens percorrem o caminho ao toque de centelha, ao vinho preparado; emanações de bálsamo divino. Na adega interior do meu Amado bebi, e quando saía, por toda esta vega já nada sabia e perdi o gado que antes seguia. Ali me deu seu peito, ali me ensinou ciência muito saborosa, e eu dei-lhe de facto a mim, sem deixar coisa; ali prometi ser sua esposa. Minha alma empregou-se e todo o meu caudal no seu serviço. Já não guardo gado nem tenho outro ofício, que já só em amar é o meu exercício. Pois se no ejido de hoje em diante não for vista nem achada, direis que me perdi; que, andando enamorada, me fiz perdida, e fui ganhada. De flores e esmeraldas, nas frescas manhãs escolhidas, faremos as grinaldas, no teu amor florescidas e num cabelo meu entrelaçadas. Só naquele cabelo que no meu pescoço voar consideraste, olhaste-o no meu pescoço, e nele preso ficaste, e num dos meus olhos te feriste. Quando tu me olhavas, tua graça em meus olhos imprimias; por isso me admiravas, e nisso mereciam os meus adorar o que em ti viam. Não queiras desprezar-me, que, se cor morena em mim encontraste, já bem podes olhar-me depois que me olhaste, que graça e beleza em mim deixaste. Apanhai-nos as raposas, que já está florida a nossa vinha, enquanto de rosas fazemos uma pinha, e não apareça ninguém na montanha. Detém-te, vento norte morto. Vem, austro, que recordas os amores; aspira pelo meu jardim e corram os seus odores, e pastará o Amado entre flores… Como se pode apreciar, o erotismo divino e a cópula e luxúria sagrada simbolizam e encarnam-se como formas arquetípicas da cosmogonia, carregadas de múltiplos significados teúrgicos. Poderá apreciar-se na seguinte composição a influência da sua mestra, que tem um poema com esse nome e conteúdo análogo. **Vivo sem viver em mim** Vivo sem viver em mim, e de tal maneira espero, que morro porque não morro. Em mim já não vivo, e sem Deus viver não posso; pois sem ele e sem mim fico, este viver, o que será? Mil mortes me fará, pois a minha própria vida espero, morrendo porque não morro. Esta vida que vivo é privação de viver; e assim é contínuo morrer até que viva contigo. Ouve, meu Deus, o que digo, que esta vida não a quero; que morro porque não morro. Estando ausente de ti, que vida posso ter, senão sofrer a morte, a maior que nunca vi? Tenho pena de mim, pois de tal maneira persevero, que morro porque não morro. O peixe que da água sai, ainda de alívio não carece, que na morte que padece, ao fim a morte lhe vale. Que morte haverá que se iguale ao meu viver lastimoso, pois, quanto mais vivo, mais morro? Quando penso aliviar-me de te ver no Sacramento, faz-me mais sentimento não te poder gozar; tudo é para mais pensar, por não te ver como quero, e morro porque não morro. E se me alegro, Senhor, com esperança de te ver, ao ver que posso perder-te dobra-se a minha dor; vivendo em tanto pavor e espero como espero, morrendo porque não morro. Tira-me desta morte, meu Deus, e dá-me a vida; não me tenhas impedida neste laço tão forte; olha que peno por te ver, e o meu mal é tão inteiro, que morro porque não morro. Chorarei a minha morte, e lamentarei a minha vida enquanto detida pelos meus pecados está. Ó meu Deus, quando será que eu diga verdadeiramente: vivo já porque não morro? Nestes cantares, a sua alma deleita-se em conhecer a Deus pelo que chama Fé, ainda que seja de noite. **Que bem sei eu a fonte que mana e corre** Que bem sei eu a fonte que mana e corre, ainda que seja de noite. Aquela eterna fonte está escondida, que bem sei eu onde tem a sua morada, ainda que seja de noite. \[ Nesta noite escura desta vida, que bem sei eu pela fé a fonte fria, ainda que seja de noite. \] A sua origem não sei, pois não a tem, mas sei que toda a origem dela vem, ainda que seja de noite. Sei que não pode haver coisa tão bela e que céus e terra bebem dela, ainda que seja de noite. A sua claridade nunca é obscurecida, e sei que toda a luz dela é vinda, ainda que seja de noite. Sei que são tão caudalosas as suas correntes, que infernos, céus regam, e as gentes, ainda que seja de noite. A corrente que nasce desta fonte bem sei que é tão capaz e omnipotente, ainda que seja de noite. A corrente que destas duas procede, sei que nenhuma delas a precede, ainda que seja de noite. \[ Bem sei que três numa só água viva residem, e uma da outra se deriva, ainda que seja de noite. \] Esta eterna fonte está escondida neste pão vivo para nos dar vida, ainda que seja de noite. Aqui está a chamar as criaturas, e desta água se fartam, ainda que às escuras, porque é de noite. Esta fonte viva que desejo, neste pão da vida eu a vejo, ainda que seja de noite. E continua com imagens do Amor, levadas pelo erotismo das suas letras a uma visão beatífica de todas as coisas restituídas à sua própria essência. **Monte Carmelo** A ventura ditosa que teve ao par pela NOITE ESCURA da fé à união do Amado Na noite escura, com ânsias, em amores inflamada, ó ventura ditosa!, saí sem ser notada, estando já a minha casa sossegada; às escuras e segura pela escada secreta, disfarçada, ó ventura ditosa!, às escuras e escondida, estando já a minha casa sossegada; na noite ditosa, em segredo, que ninguém me via nem eu olhava coisa, sem outra luz e guia senão a que no coração ardia. Esta me guiava mais certa que a luz do meio-dia onde me esperava aquele que eu bem sabia, em lugar onde ninguém parecia. Ó noite que guiaste!; ó noite amável mais que a alvorada!; ó noite que juntaste Amado com amada, amada no Amado transformada! No meu peito florido, que inteiro para ele só se guardava, ali ficou dormido, e eu o regalava, e o leque de cedros ar fazia. O ar da ameia, quando eu os seus cabelos espalhava, com a sua mão serena no meu pescoço fería, e todos os meus sentidos suspendía. Fiquei e esqueci-me, o rosto reclinado sobre o Amado; cessou tudo e deixei-me, deixando o meu cuidado entre os lírios esquecido. E abundando, as suas coplas feitas sobre um êxtase de muita contemplação que apontam mais para um estado apofático do que para uma experiência simplesmente religiosa. **Entrei onde não soube** Entrei onde não soube, e fiquei não sabendo, toda a ciência transcendendo. Eu não soube onde entrava, mas, quando ali me vi, sem saber onde estava, grandes coisas entendi; não direi o que senti, que fiquei não sabendo, toda a ciência transcendendo. De paz e de piedade – era a ciência perfeita, – na profunda soledade – entendida via reta, – era coisa tão secreta, – que fiquei balbuciando, – toda ciência transcendendo. Estava tão embebido, – tão absorto e alienado, – que ficou meu sentido – de todo sentir privado, – do espírito dotado – de um entender não entendido, – toda ciência transcendendo. Quem ali chega de vero – de si mesmo desfalece; – quanto sabia primeiro – muito baixo lhe parece, – e sua ciência tanto cresce, – que se queda não sabendo, – toda ciência transcendendo. Quanto mais alto se sobe, – tanto menos se entendia, – que é a tenebrosa nuvem – que à noite esclarecia; – por isso quem a sabia – fica sempre não sabendo, – toda ciência transcendendo. Este saber não sabendo – é de tão alto poder, – que os sábios arguindo – jamais o podem vencer, – pois não chega seu saber – a não entender entendendo, – toda ciência transcendendo. E é tão alta excelência – este sumo saber, – que não há faculdade ou ciência – que o possa compreender; – quem souber se vencer – com um não saber sabendo, – irá sempre transcendendo. E se o quiserdes ouvir, – consiste esta suma ciência – em sublime sentir – da divina Essência; – é obra de Sua clemência – fazer quedar não entendendo, – toda ciência transcendendo. Pode-se ver nestes textos o desenvolvimento de um esquema: o caçador que logra sua presa após suas angústias e ais e se vê diante da perspectiva de perdê-la novamente. Ou seja, deseja-se – encontra-se – perde-se – o desejo se renova. A união é sempre sucessiva e circular, não tende à saída do plano por espiral. Conforma-se com um nível elevado, como pode ser observado nestes poemas, ainda que insuficiente sob a perspectiva metafísica. Onde tudo é ainda mais sutil, translúcido, e permanece como um estado despojado, silêncio polidimensional, perpetuamente coagulado em luz pela síntese alquímica. Leão Hebreu --- **NOTAS** ⁵⁸⁴ Ver Cecil Roth, *Histoire des marranes*. "Quelques personnalités marranes". Éditions Liana Levi, Paris, 1990, p. 235. Mais uma vez, deve-se destacar a importância da Espanha judaica, ou seja, da própria Sefarad – imagem da Sefarad bíblica – como parte da identidade do país na época, e que levará dois séculos para desaparecer de sua cultura, já sob total hegemonia cristã. ⁵⁸⁵ Assim como Frei Luís, João da Cruz sofreu nove meses de prisão ordenada pelos inquisidores, os quais passou em Toledo. ⁵⁸⁶ No judaísmo, o acento recai sobre a lei e sua prática literal ao extremo. É típico o exemplo do tabu sobre a inatividade do sábado, criticado por Jesus nos evangelhos. Assim como a crueldade do Shylock shakespeariano, amparada pela legalidade. ⁵⁸⁷ São João da Cruz, Doutor da Igreja, *Obras Completas*. Poesias, (Fragmento). Editorial B.A.C., Madrid, 1982, p. 25. ⁵⁸⁸ A crítica vinculou as "ínsulas estranhas" à América. ⁵⁸⁹ *Ibid.*, p. 10. ⁵⁹⁰ *Ibid.*, p. 11. ⁵⁹¹ *Ibid.*, p. 32. ⁵⁹² *Ibid.*, p. 35-37. # O CARMELO DESCALÇO E O ESOTERISMO: PARTE 14 - A Cabala na Espanha e Frei Luís de León 10/02/2025 Autor: Federico Gonzalez e Mireia Valls Tradutor: Prof. Gabriel Sapucaia ![](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000229-2a0fb2a0fe/fray-luis-de-leon.jpeg?ph=4df81238fe) **PRESENÇA VIVA DA CABALA II** **A CABALA CRISTÃ** **FEDERICO GONZALEZ - MIREIA VALLS** **CAPÍTULO VIII** **A CABALA NA ESPANHA** **Frei Luís de León** A Cábala na Espanha teve grande influência em diversas figuras intelectuais, entre elas Fray Luis de León, um sábio e poeta que passou cinco anos preso pela Inquisição em Alcalá de Henares, enquanto aguardava o desfecho de seu processo por heresia. Ele havia sido denunciado por outro professor da universidade à qual pertencia, León de Castro, que, após uma polêmica literária com o frade, decidiu denunciá-lo. Esse tipo de comportamento, infelizmente, continua até os dias de hoje, como podemos observar em nossa própria experiência. Fray Luis também era hebraísta e um defensor da tradução literal dos livros da Bíblia, baseada na linguística. Para isso, utilizava fontes diretas e contava com vasto conhecimento da língua hebraica, além de diversos textos judaicos, que preferia aos cristãos. Ele compartilhava a crença de que o hebraico era a língua primordial, aquela na qual YHVH teria se comunicado com Adão no Paraíso. Foi justamente essa postura, distante da tradição de São Jerônimo e da Vulgata, que se voltou contra ele e levou ao famoso processo do qual, no entanto, saiu fortalecido e sem manchas. Recuperou sua cátedra e teve seu conhecimento amplamente reconhecido, demonstrando sua erudição nos tribunais que o julgaram. Esse processo ocorreu entre 1572 e 1576. Mais tarde, entre 1582 e 1584, enfrentou um segundo julgamento. As figuras que abordamos se distinguem de diferentes formas. No caso de Fray Luis e Benito Arias Montano, ambos eram sacerdotes cristãos, especialistas na língua hebraica, juristas e perseguidos pela Inquisição devido à sua ascendência judaica, que sempre foi destacada. Desde muito jovens, brilharam por seus saberes e méritos no âmbito cristão, mas mantendo um forte contato com o conhecimento cabalístico, transmitido tanto oralmente quanto por meio de livros e das reflexões que esses estudos proporcionavam. No caso de Arias Montano, ele se autodenominava "hispalense", pois se formou em Sevilha. Mais adiante, abordaremos os dois místicos que também se tornaram santos. Naquela época, o Concílio de Trento estava em vigor, e qualquer tradução bíblica que não fosse baseada na Vulgata era vista com desconfiança pelo clero, que buscava manter uma versão oficial para evitar a proliferação de traduções que o nascente protestantismo poderia fomentar. Talvez esse fosse o risco que Fray Luis e outros tentaram evitar, baseando-se não apenas no conhecimento profundo da língua hebraica, mas também em um entendimento abrangente da Bíblia, das suas diversas versões em diferentes idiomas, dos comentaristas da Torá (a Cábala) e de outros textos sagrados, tanto cristãos quanto judaicos, do Antigo e do Novo Testamento. Eles também estudavam Platão e Hermes Trismegisto, que eram amplamente conhecidos na Itália e na Europa da época e examinados por cabalistas cristãos franceses. Talvez por isso tenham decidido fixar – na medida do possível – certos conceitos que não estavam suficientemente bem expressos ou que exigiam comentários linguísticos. Apesar das dificuldades enfrentadas, publicaram suas versões dos Salmos de Davi, do Cântico dos Cânticos e do Livro de Jó, além de colaborarem na produção das Bíblias de Alcalá e Complutense, culminando na direção da Bíblia Poliglota de Antuérpia, tema que abordaremos posteriormente. Antes de analisar suas traduções e estudos, ou mesmo sua obra em latim, queremos destacar sua poesia em língua romance, cujos versos, aprendidos na escola, são lembrados ao longo da vida. Este é um momento de tributo e reconhecimento ao autor, e acreditamos que esse sentimento é compartilhado por todos que estudaram literatura espanhola em sua formação e tiveram a sorte de entrar em contato com a poesia de Fray Luis de León e seu profundo conteúdo metafísico. Além disso, é importante ressaltar que Fray Luis possuía uma dupla faceta: era um poeta popular da ode castelhana e, ao mesmo tempo, um erudito catedrático em latim. Essa condição é particularmente feliz, pois, enquanto estudava o uso metafísico da linguagem, como em sua obra *De los Nombres de Cristo*, ele também era um criador da língua espanhola, que está sempre em evolução. Como um verdadeiro bardo, ele "fija, limpia y da esplendor" ("fixa, limpa e dá esplendor"), contribuindo para a construção da literatura clássica espanhola. Outro aspecto relevante é o papel de Fray Luis como elo intelectual entre Benito Arias Montano, Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz. Já mencionamos sua amizade com Arias Montano, mas é possível que também tenha tido contato com São João em Salamanca. Além disso, editou as obras de Santa Teresa, que era um pouco mais velha que ele. Fray Luis nasceu em 1527 ou 1528, em Belmonte del Tajo, na província de Cuenca, e nunca saiu da região central da Espanha, de Castela. Em 1544, ingressou na Ordem dos Agostinianos e, aos 27 anos, conheceu Arias Montano. Seu percurso acadêmico foi notável: estudou em Alcalá com Cipriano de la Huerga entre 1557 e 1561, e logo obteve sua primeira cátedra em Salamanca, onde mais tarde se tornaria vice-reitor. Aos 47 anos, começou a enfrentar seu famoso processo inquisitorial, sendo declarado inocente quatro anos depois e retomando sua atividade como professor. Sete anos mais tarde, publicou *De los Nombres de Cristo*, considerada sua obra mais importante em castelhano, da qual selecionaremos trechos para este estudo. Fray Luis de León faleceu em 1591, em Madrigal de las Altas Torres, poucos anos antes da morte de Felipe II. Álvaro Alonso, editor da poesia de Fray Luis de León, ao descrever o contexto da época em que ele viveu, nos diz o seguinte: Filosoficamente, o esforço para harmonizar a herança pagã com a cristã encontrou um sólido ponto de apoio nas doutrinas de Platão. O platonismo renascentista não se fundamentava apenas nas obras do filósofo ateniense, mas também no neoplatonismo alexandrino dos séculos I a.C. e I d.C., de forte inclinação mística, assim como no *Corpus Hermeticum*. Este último é um conjunto de tratados atribuídos ao lendário Hermes Trismegisto, frequentemente associado à sabedoria egípcia e a uma antiguidade fabulosa. No entanto, as obras atribuídas a Hermes foram escritas nos primeiros séculos da era cristã e apresentam uma curiosa fusão de elementos filosóficos e religiosos, sobretudo de matriz neoplatônica e estóica. Em meados do século XV, na Florença dos Médici, Marsílio Ficino traduziu o *Corpus* para o latim e enxergou em seu autor o primeiro dos teólogos, um representante da *prisca theologia*, que antecipava muitas das doutrinas do cristianismo. Álvaro Alonso acrescenta um dado muito interessante: o nome do mestre de Fray Luis em hebraico e teosofia, que também foi professor de Arias Montano. Como já mencionamos, era natural que as universidades incorporassem e expressassem essas formas de espiritualidade. A Universidade de Alcalá de Henares foi a mais aberta a essas correntes. No início do século, de lá saiu a *Bíblia Poliglota*, uma das grandes obras do humanismo na Espanha. Mais tarde, na década de 1530, vários professores de prestígio da universidade foram processados pela Inquisição. Algum tempo depois, o espírito de Alcalá encontrou expressão em um dos mestres de Fray Luis, o cisterciense Fray Cipriano de la Huerga. Filósofo rigoroso, ele fundamentava suas explicações bíblicas nos textos gregos e hebraicos e, em suas interpretações, recorria frequentemente aos filósofos pagãos, especialmente Platão e o *Corpus Hermeticum*. Agora, iniciamos nossa jornada pela poesia de Fray Luis com o poema mais citado, ainda que parcialmente, cujas ressonâncias horacianas são evidentes: *"Que descansada vida / a do que foge do ruído mundano / e segue o caminho escondido / por onde foram / os poucos sábios que no mundo houveram!"* Desde os primeiros versos, a poesia ressalta a primazia da sabedoria e o caminho estreito que conduz a ela por meio de um processo vital: *"Quero viver comigo; / gozar do bem que devo ao céu, / a sós, sem testemunha, / livre de amor, de ciúme, / de ódio, de esperanças, de receio."* *"Na encosta do monte / com minhas mãos plantei um pomar, / que com a primavera, / coberto de belas flores, / já mostra, na esperança, o fruto certo."* *"E como ansiosa / por ver e aumentar sua formosura, / desde a cume arejada / uma fonte pura / até lá corre apressada."* *"E logo, serena, / desviando seu curso entre as árvores, / vai cobrindo o chão, / com verde de passagem, / espalhando diversas flores."* *"O ar refresca o pomar / e oferece mil odores aos sentidos; / as árvores balançam / com um ruído brando, / que do ouro e do cetro faz esquecer..."* Nada poderia ser mais requintado do que este ambiente sereno, fresco e delicado, que reflete um estado de espírito onde reina a sabedoria, um verdadeiro paraíso interior renovado. *"À sombra deitado, / coroado de hera e louro eterno, / atento ao doce som / harmonioso, / da lira sabiamente tocada."* A menção ao som e à música é essencial em sua criação poética, pois segue a tradição de Pitágoras, Platão e dos neoplatônicos renascentistas, que viam na música a manifestação da *Harmonia Mundi*. Ouvimos essa perfeição em um poema dedicado a Francisco de Salinas, amigo músico e cego: *"O ar se serena / e veste-se de beleza e luz jamais vistas, / Salinas, quando soa / a música sublime, / governada por vossa sábia mão."* *"Ao som divino, / a alma, que no esquecimento estava submersa, / recobra o juízo / e a memória perdida, / esclarecida de sua origem primeira."* *"E ao se reconhecer, / melhora-se em sorte e pensamento; / desconhece o ouro / que o vulgo vil adora, / e a beleza efêmera e enganosa."* *"Atravessa o ar inteiro / até alcançar a mais alta esfera, / onde ouve outro tipo / de música imperecível, / que é a fonte e a primeira."* *"Ali, a alma navega / num mar de doçura e, finalmente, / nele se afunda / de tal maneira / que nada mais estranho sente."* *"Ó desmaio ditoso! / Ó morte que dá vida! Ó doce esquecimento! / Que dure em teu repouso, / sem ser jamais restituído / a este mundo baixo e vil!"* Essa busca existencial pelo conhecimento e a ascensão na escala da música das esferas são temas recorrentes em sua obra. O poeta expressa o desejo de transcender a existência terrena: *"Quando será que possa / livre desta prisão voar ao céu, / e, na órbita / que mais se afasta da terra, / contemplar a pura verdade, sem dor?"* Fray Luis também manifesta indignação pela orfandade do verdadeiro conhecimento, seu discurso se torna peremptório e lamentoso, como na *Ascensão*: *"E deixas, Pastor Santo, / teu rebanho neste vale fundo e escuro, / em solidão e pranto; / e tu, rompendo o ar puro, / vais ao imortal refúgio?"* *"Os antes afortunados / e agora tristes e aflitos, / criados sob teu peito, / privados de ti, / para onde voltarão seus sentidos?"* Por fim, ele retorna à vida simples, sem artifícios, onde se reencontra após sair da prisão: *"Aqui a inveja e a mentira / me tiveram encerrado. / Feliz o humilde estado / do sábio que se retira / deste mundo perverso, / e com pobre mesa e casa, / no campo aprazível, / com Deus apenas se compõe / e sozinho sua vida passa, / sem ser invejado nem invejoso."* Em um fragmento atribuído a ele, intitulado *Do Conhecimento de Si Mesmo*, reflete sobre sua própria existência e sua origem no não-ser: *"No profundo do abismo eu estava, / encerrado no nada e detido, / sem poder nem saber sair, / e tudo o que sou me faltava: / vida, alma, corpo e sentidos, / enfim, meu ser era então o não-ser."* Agora, adentramos sua obra *De los Nombres de Cristo*, na qual ele esclarece que esses nomes não são os de Deus, mas de Cristo. No entanto, sendo Cristo Deus, também lhe correspondem outros nomes da Trindade. Esses nomes, segundo ele, são dez, assim como na *tetraktys* pitagórica e nas dez sefirot da Cabala judaica. É muito provável que Fray Luis tenha tido contato com esse conhecimento tanto por sua ascendência hebraica quanto pelo fato de a Cabala ter se desenvolvido amplamente na Espanha. Ali, teve inúmeros seguidores e estudiosos, e foi transmitida por meio de textos publicados, entre eles o *Zohar*. Seus poemas e sua grande obra testemunham um profundo conhecimento de um universo esotérico e secreto, inacessível aos profanos, ao qual ele dedicou sua investigação, sempre baseada na experiência e na tradição. Para ele, seguindo Platão no *Crátilo* e os princípios do esoterismo renascentista, o nome era a própria essência da coisa nomeada. Ou seja, as coisas são criadas no momento em que são nomeadas, em plena concordância com o *Sefer Yetsirah* e toda a Cabala gnóstica medieval e renascentista. Como bem declarou Jorge Luis Borges no poema intitulado *El Golem*: *"Se (como afirma o grego no Crátilo)* *O nome é o arquétipo da coisa,* *Nas letras de rosa está a rosa* *E todo o Nilo na palavra Nilo."* Seguindo nosso raciocínio, deixemos que os protagonistas falem por si mesmos para que possamos apreciar diretamente suas ideias. *De Los Nombres de Cristo* foi escrita em forma de diálogo e, ao ler Fray Luis de León, é sempre importante considerar sua situação delicada perante a Inquisição, que já o tinha sob vigilância. Por isso, sua abordagem é literária, por vezes contraditória ou, melhor dizendo, dual e ambígua, embora nunca quando trata de um único Senhor: *"Louva, ó alma, a Deus; Senhor, tua grandeza,* *Que língua há que a conte?* *Vestido estás de glória e de beleza* *E de luz resplandecente.* *Sobre os céus estendidos* *Deste assento às águas.* *As nuvens são teu carro, teus alados* *Cavalos são o vento.* *São fogo abrasador teus mensageiros,* *E trovão e turbilhão.* *A terra sobre bases duradouras* *Manténs firmemente."* Ou quando fala sobre a criação contínua e eterna: *"Esta geração e nascimento não ocorrem separadamente nem pouco a pouco, nem são eventos que aconteceram uma única vez e ficaram concluídos. Pelo contrário, já que tudo o que tem um começo e um fim é limitado, e Deus não tem limites, desde toda a eternidade o Filho nasce do Pai e eternamente continua a nascer, sempre completo e tão grande quanto o Pai. Por isso, a Sagrada Escritura dá a este único nascimento muitos nomes."* Ele também discorre sobre o sentido iniciático da encarnação e a forma unânime como foi compreendida pelos sábios antigos: *"Aqui Juliano, segurando Marcelo (o personagem principal do diálogo) pela mão, disse-lhe:* *- Não se canse com isso, Marcelo, pois o mesmo que disseram Teodoreto e Crisóstomo, cujas palavras nos referiu, também disseram quase todos os santos antigos: Santo Irineu, São Hilário, São Cipriano, Santo Agostinho, Tertuliano, Inácio, Gregório de Nissa, Cirilo, Leão, Fócio e Teofilacto. Assim como é evidente para os fiéis que a carne de Cristo, oculta sob as aparências da hóstia recebida pelos cristãos e consumida no estômago, toca nossa carne e é por ela tocada, também não há dúvida, para quem leu os textos sagrados, de que os santos doutores falam dessa forma ao afirmarem que somos um só corpo com Cristo e que nossa carne é de sua carne e nossos ossos, de seus ossos. Não apenas em espírito, mas também em corpo, estamos todos unidos a Ele."* Assim, Fray Luis nos ensina diretamente sobre *Os Nomes em Geral* e explica: *"O nome, se quisermos resumir, é a palavra breve que substitui aquilo que nomeia e que se confunde com o próprio objeto nomeado. Não no seu ser real e verdadeiro, mas no ser que nossa boca e entendimento lhe atribuem."* *"A perfeição de todas as coisas, especialmente das que possuem entendimento e razão, consiste em que cada uma contenha em si todas as outras e, sendo uma, seja todas, tanto quanto possível. Pois nisso se assemelha a Deus, que contém tudo em si. E quanto mais cresce nessa direção, mais se aproxima Dele, tornando-se semelhante a Ele. Essa semelhança é, se podemos dizer assim, o propósito final de todas as coisas, o alvo para o qual todas as criaturas dirigem seus anseios."* *"A perfeição de todas as coisas reside no fato de que cada um de nós seja um mundo completo, de modo que, estando todos em mim e eu em todos os outros, e cada um tendo seu ser nos demais, toda a estrutura do universo se entrelace e reduza à unidade. Dessa forma, a multiplicidade de diferenças, embora distinta, se mistura sem se dissolver; e, permanecendo muitas, deixam de ser diversas. Assim, enquanto a diversidade se expande e se desdobra diante dos olhos, a unidade se estabelece sobre tudo. Isso aproxima a criatura de Deus, de quem emana, pois Ele, sendo três pessoas, é uma única essência; e, sendo infinitas excelências incompreensíveis, é uma única excelência perfeita e simples."* Um pouco mais adiante, relaciona o signo e o significado: *"Se o nome, como dissemos, substitui aquilo que nomeia, e se seu propósito é tornar presente o que está ausente e aproximar o que está distante, é essencial que, no som, na forma ou na origem e no significado de onde surge, ele se assemelhe ao que representa, tanto quanto possível."* E, para esclarecer de uma vez: *"Isso nem sempre se verifica nas línguas; é uma grande verdade. Mas, se quisermos ser honestos, na primeira língua de todas, quase sempre se verifica. Deus, pelo menos, assim o fez nos nomes que atribuiu, como se vê na Escritura. Pois, se não fosse assim, o que significa o trecho do Gênesis que diz que Adão, inspirado por Deus, nomeou cada coisa, e que o nome dado por ele é o verdadeiro nome de cada uma? Isso significa que o nome era naturalmente adequado a cada coisa e que lhe pertencia por alguma razão especial e oculta, de forma que, se fosse atribuído a outra, não lhe caberia tão bem."* Além disso, está claro que o nome *YHVH*, impronunciável e composto por quatro letras, está contido no nome de Jesus, bastando acrescentar duas letras a ele. Essa observação é notável, pois tanto Pico della Mirandola quanto Reuchlin e outros cabalistas haviam afirmado que bastava adicionar a letra *Shin* (ש) ao centro de *YHVH* (יהוה) para formar o nome de *Yehoshua* (יהשוה), ou seja, Jesus. *"Digo apenas uma coisa: o nome original de Jesus, Iehosuah, como dissemos acima, contém todas as letras do nome de Deus de quatro letras, além de outras duas. Como se sabe, o nome divino de quatro letras, que está contido nesse nome, é impronunciável – seja porque todas suas letras são vogais, seja porque não conhecemos sua pronúncia correta, ou por respeito e reverência que devemos a Deus..."* Não é fácil ler *Os Nomes Divinos* e seguir o autor em um discurso denso e estruturado. Sua devoção pode, por momentos, parecer incompreensível, a menos que se compreenda que Jesus, o Cristo, não seja apenas um personagem histórico, mas um símbolo sempre vivo e permanente – um estado ao qual Jesus teve acesso e que, por meio da encarnação de seus ensinamentos, nos permite realizar nossa plenitude como seres humanos e entidades espirituais. O Jesus histórico transforma-se em Cristo, nome grego que designa um estado do ser que implica centralidade e hierarquia. Esse conceito se equipara a *Metatron* na Cabala hebraica, associado a *Tiferet*, e também ao resplandecente Hermes Solar. Ambos são figuras vivas (como Enoque, Elias e Eliseu), embora desconhecidas pela maioria das pessoas. Merecem menção especial os escritos de Fray Luis de León sobre a descoberta da América e seu papel providencial, considerando que esse continente era, assim como os povos europeus, herdeiro da Atlântida submersa. No entanto, um acontecimento de tal magnitude, que ampliava cada vez mais as fronteiras do mundo conhecido, não poderia deixar de estar registrado nas Escrituras, especificamente nas profecias. E, de fato, Fray Luis encontra referências à América no *Livro de Isaías*, nos mesmos trechos onde Cristóvão Colombo as havia identificado em seu *Livro das Profecias*. Além disso, encontra outras menções no livro do profeta Abdias. Entretanto, seu interesse pelo tema não se alinha com sua visão dos povos indígenas, pois ele se impressiona com seus costumes considerados selvagens, especialmente o canibalismo. Os estudiosos Andrés Moreno Mengíbar e Juan Martos Fernández dedicaram um excelente estudo aos escritos de Fray Luis sobre a América. Em seu estudo preliminar, destacam que: *"Uma referência mais clara, ainda que breve, à América pode ser encontrada em Os Nomes de Cristo, publicado pela primeira vez em 1583. A crítica moderna não enfatizou suficientemente a dependência dessa obra em relação à tradição judaica sobre os nomes de Deus e o significado do Tetragrama. Essas especulações ganharam força com o desenvolvimento medieval da Cabala e sua incorporação ao pensamento cristão. Os cabalistas hebreus reconhecem dez nomes divinos, o mesmo número mencionado por Fray Luis na introdução da segunda edição (1585) de Os Nomes de Cristo. A teoria de Fray Luis sobre os nomes está intimamente ligada à Cabala hebraica e cristã (como a de Giustiniani, Reuchlin, Félix Pratensis, Egídio de Viterbo e Sebastian Münster) e corre paralela, com importantes pontos de convergência, ao tratado De Arcano Sermone (1572) de seu grande amigo Arias Montano."* Por outro lado, Fray Luis parece aceitar a hipótese de que os indígenas teriam uma ascendência judaica, assim como seu amigo e colega Arias Montano, que será tratado a seguir. Não comentaremos aqui suas traduções e comentários ao *Livro de Jó* e ao *Cântico dos Cânticos*, nem sua obra *A Esposa Perfeita* (*La Perfecta Casada*) e o restante de sua produção, pois acreditamos já ter apresentado uma visão abrangente desse grande intelectual e poeta, especialmente no que diz respeito ao seu pensamento judeocristão, neoplatônico, pitagórico, hermético e cabalístico. **Benito Arias Montano** --- **NOTAS** **523** "Os antigos biógrafos de Fray Luis, ao abordar sua figura sob perspectivas idealizadas, distorceram por muito tempo seu perfil moral, seja por desconhecimento das fontes mais fidedignas (como os processos inquisitoriais, estudados e publicados, entre outros, por L. G. Alonso Getino, já em 1907, ou mais recentemente por M. de la Pinta Llorente \[1956\]), seja pelo recurso a fontes poéticas, um método rejeitado na modernidade por A. C. Vega \[1951\]. No entanto, estudos documentais posteriores levaram a diversas correções desmistificadoras, fundamentando a grandeza de Fray Luis na sua aspiração inatingível por paz e harmonia. O pioneiro nesse caminho foi o Padre Blanco García, no final do século XIX, abrindo espaço para as grandes biografias clássicas de A. Coster \[1921\] e Aubrey F. G. Bell \[1925\], posteriormente atualizadas por F. García \[1944\] e sintetizadas por O. Macrí \[1970\]." (*Fray Luis de León*, por Cristóbal Cuevas, em *Siglos de Oro: Renacimiento*, de Francisco López Estrada. Editorial Crítica, Barcelona, 1980, pág. 382). **524** Esse método hoje é chamado de *filológico-poligráfico*. **525** Álvaro Alonso, filho de Dámaso Alonso, um dos escritores que mais estudaram Fray Luis de León, embora nem todas as suas opiniões sejam compartilhadas. **526** *Fray Luis de León, Poesía*. Edição de Álvaro Alonso, Barcelona, 2005, págs. 12-13. Para biografias e estudos críticos sobre a obra de Fray Luis, além dos já mencionados, ver: Antonio Prieto, "Fray Luis de León", em *La Poesía española del siglo XVI, II*. Cátedra, Madrid, 1987; Soledad Pérez-Abadín Barro, *La oda en la poesía española del siglo XVI*. Universidade de Santiago, 1995. **527** A coleção *Humanistas Españoles de León* está publicando as *Obras Completas* de Cipriano de la Huerga sob a direção de Gaspar Morocho Gayo, dentro das publicações da Universidade. O volume IX é um estudo monográfico coletivo. Esse sábio e sua obra merecem uma análise à parte, um estudo que, infelizmente, não podemos realizar aqui. No entanto, em um estudo de Natalio Fernández Marcos, intitulado *La Exégesis Bíblica de Cipriano de la Huerga* (volume IX, pág. 25), destaca-se o seguinte: "Afirma-se que, em todo o Antigo Testamento, até a vinda de Cristo, foram mantidas as etimologias e propriedades dos nomes em relação ao seu significado. E essa relação é conectada à Cabala, já que uma das partes principais da arte cabalística se concentra na etimologia dos nomes, sobretudo os distintos nomes de Deus. Os cabalistas transmitiram esse conhecimento aos platônicos, pitagóricos e a Dionísio Areopagita." **528** *Poesía*, "Vida retirada", *op. cit.*, págs. 47-50. **529** *Ibid.*, "A Francisco de Salinas", pág. 54. **530** *Ibid.*, "A Felipe Ruiz", pág. 80. **531** *Ibid.*, "En la Ascensión", págs. 105 e 106. **532** *Ibid.*, "A la salida de la cárcel", pág. 128. **533** *Fray Luis de León, Obras Completas castellanas II*. Ed. BAC, Madrid, 1991, págs. 822-823. **534** *Fray Luis de León, De Los Nombres de Cristo*. Eds. Cátedra, Madrid, 1986. **535** "Assim, tornam-se quase incontáveis os nomes que a Escritura divina atribui a Cristo, pois Ele é chamado de Leão e Cordeiro, e de Porta e Caminho, e de Pastor e Sacerdote, e de Sacrifício e Esposo, e de Videira e Broto, e de Rei de Deus e Sua Face, e de Pedra e Estrela, e de Oriente e Pai, e de Príncipe da Paz e Salvação, e de Vida e Verdade, e de muitos outros nomes incontáveis. No entanto, dentre esses muitos nomes, foram escolhidos apenas dez como os mais essenciais, pois, como se diz, todos os demais podem ser reduzidos ou relacionados a estes de alguma forma." (*De Los Nombres de Cristo*, *op. cit.*, págs. 169-170). **536** Na magia, apropriar-se do nome equivale a assumir sua identidade. **537** Jorge Luis Borges, *Obras Completas*. Emecé Editores, Buenos Aires, 1974. *El Golem*, pág. 885. É sabido que Borges dedicou muito tempo ao estudo da Cabala com G. Scholem e chegou a dar conferências sobre o tema. **538** *De Los Nombres de Cristo*, *op. cit.*, pág. 306. **539** *Ibid.*, pág. 515. **540** *Ibid.*, pág. 455. **541** "Mas, retomando o que dizia, que fique isso certo: todos os nomes dados por ordem de Deus trazem consigo o significado de algum segredo particular que a coisa nomeada possui em si mesma, e é por meio desse significado que os nomes se assemelham a ela..." *Ibid.*, pág. 162. **542** *Ibid.*, págs. 155-156. **543** *Ibid.*, pág. 159. **544** *Ibid.*, pág. 623. **545** Relembrando: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida." (João 14:6). **546** De sua exposição sobre o profeta Abdias: "Por fim, diz que sua terra foi arrebatada pelos rios, o que parece dissipar qualquer dúvida sobre os índios deste novo mundo, pelo menos para aqueles que leram sobre a Atlântida de Platão. Pois Platão recorda que o que agora chamamos de Novo Mundo esteve, em tempos antigos, unido ao nosso continente. No entanto, devido a uma inundação do mar, chamada Atlântica, ele foi separado do restante do mundo. Desde então, nossos navegadores não puderam mais chegar a ele devido ao risco da travessia, e, sem comunicação, essa terra foi gradualmente caindo no esquecimento." (*Fray Luis de León, Escritos Sobre América*. Estudo preliminar, tradução e notas de Andrés Moreno Mengíbar e Juan Martos Fernández. Ed. Tecnos, Madrid, 1999, pág. 62). **547** Cristóvão Colombo, *Livro das Profecias*. Introdução por Kay Brigham. Ed. Clie, Barcelona, 1992. Ver Federico González, *Las Utopías Renacentistas, Esoterismo y Símbolo*. Editorial Kier, Buenos Aires, 2004, capítulo IX. **548** Ver dados da nota **546**. **549** Assim como Diego García e vários outros cronistas. **550** Apenas reproduziremos o início do prólogo: *"Nada há mais próprio a Deus do que o amor; nem há algo mais natural ao amor do que transformar aquele que ama na mesma essência e natureza daquele que é amado. Sobre isso, temos provas claras. Certamente, Deus nos ama, e qualquer um que não esteja completamente cego pode perceber isso nos benefícios constantes que recebe Dele: o ser, a vida, a condução da existência e a proteção de Sua graça, que jamais nos abandona em tempo algum. Que Deus valoriza o amor acima de todas as coisas e que isso lhe seja mais próprio do que qualquer outra virtude, vê-se em Suas obras, pois tudo o que Ele faz visa repartir e conceder Seus bens às criaturas, fazendo com que Sua própria imagem resplandeça nelas. Ele se molda à medida de cada uma para ser contemplado e amado por todos, o que, como dissemos, é a própria obra do amor."* (*Fray Luis de León, El Cantar de los Cantares*. Espasa-Calpe, Madrid, 1944, pág. 7). # O CARMELO DESCALÇO E O ESOTERISMO: PARTE 15 - Origens Judaicas de Teresa de Ávila 10/02/2025 Autor: Mario Olivera Tradução: Prof. Gabriel Sapucaia ![](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000232-08aae08ab0/formacao_1600x1200-frases-de-santa-teresa-de-avila-1.jpeg?ph=4df81238fe) ##### **Origens Judaicas de Teresa de Ávila** **29 de abril de 2023 – [Mario Olivera](https://aprendecabala.com/origenes-judios-de-teresa-de-avila/)** A figura de Santa Teresa de Jesus é uma das mais importantes da mística espanhola e mundial. Nascida em Ávila, em 1515, sua vida, pensamento e obras têm sido objeto de estudo e análise ao longo dos séculos por teólogos, historiadores, religiosos e estudiosos. Sua profunda vocação para se aproximar do Criador e suas experiências místicas chamam a atenção, embora pouco se saiba sobre suas origens. Uma das facetas menos conhecidas de sua vida é sua possível ascendência judaica. De acordo com alguns pesquisadores, a família da mística espanhola descendia de judeus convertidos ao cristianismo (*judeoconversos*) durante o período da Inquisição, perseguidos pelo Santo Ofício. O avô paterno de Santa Teresa, Juan Sánchez de Toledo, foi processado pela Inquisição em 1485 e condenado a usar o *sambenito* por sete sextas-feiras consecutivas – um traje especial que identificava publicamente os penitentes criptojudeus. Essa punição visava humilhar e envergonhar aqueles que haviam sido forçados a abandonar sua fé judaica. Diante da perseguição, a família de Juan Sánchez de Toledo teve que abandonar um próspero negócio de tecidos em Toledo e se mudar para Ávila, uma cidade com menos oportunidades, mas onde poderiam recomeçar longe do olhar inquisitorial. Apesar das adversidades, conseguiram se estabelecer e reconstruir suas vidas. Não há evidências definitivas de que Santa Teresa tivesse plena consciência de sua ascendência judaica, mas alguns estudiosos sugerem que é provável que ela soubesse. Indícios dessa influência podem ser encontrados em sua obra, na qual aparecem símbolos e referências à cultura judaica. Por exemplo, em um de seus poemas, Santa Teresa faz menção ao candelabro de sete braços, um símbolo tradicional do judaísmo associado à festividade de Hanukkah. Em outro poema, menciona o *Shema Israel*, a mais importante oração judaica, recitada diariamente. Além disso, há registros de que, em algumas ocasiões, a mística espanhola utilizou palavras hebraicas em seus escritos, como *Jah*, que significa "Deus" em hebraico. Essas referências sugerem que, de alguma forma, a herança judaica de sua família pode ter influenciado sua espiritualidade e produção literária. Por fim, embora não exista uma prova conclusiva de que Santa Teresa de Jesus tivesse plena consciência de suas origens judaicas, a evidência sugere que sua família possivelmente era judeoconversa e que elementos do judaísmo podem ter permeado sua obra e sua espiritualidade. Essa perspectiva pouco explorada acrescenta uma nova dimensão à vida de uma das mulheres mais influentes da história religiosa e mística da Espanha e do mundo. # O CARMELO DESCALÇO E O ESOTERISMO: PARTE 16 - Teresa de Ávila e a Mística Hebreia 10/02/2025 Autor: José Verdu Tradução: Prof. Gabriel Sapucaia ![](https://4df81238fe.clvaw-cdnwnd.com/e288c4bbb1f685d2bcc856f7898709c1/200000234-8165281653/0ac7c7326e57d144cb676074e4e3219e.jpeg?ph=4df81238fe) ##### **Teresa de Ávila, o Talmude e a Mística Hebraica** *Las Moradas* (*O Castelo Interior*) é a obra mística de Santa Teresa de Jesus na qual ela descreve os estágios pelos quais a alma deve passar para alcançar a união com a divindade. Concluída em 1577, *Las Moradas* foi a última obra escrita por Santa Teresa de Jesus. O livro foi redigido a pedido de seu discípulo Jerónimo Gracián, durante o período em que ela se refugiou em Toledo, fugindo da perseguição dos Carmelitas Calçados. Baseando-se em sua própria experiência espiritual, a religiosa explica as sete etapas (*moradas*) que a alma deve atravessar para alcançar um verdadeiro encontro com a divindade. A alma é descrita como um castelo de cristal ou diamante, no qual se entra por meio da oração, passando de uma morada a outra. Teresa de Ávila, cujo nome de nascimento era Teresa Sánchez de Cepeda Dávila y Ahumada, costumava assinar apenas como Teresa de Ahumada até iniciar sua reforma religiosa, quando passou a se chamar Teresa de Jesus. Seu pai, Alonso Sánchez de Cepeda, descendia de uma família judia convertida (*judeoconversa*). Alonso teve duas esposas. Com a primeira, Catalina del Peso y Henao, teve dois filhos: María e Juan de Cepeda. Com sua segunda esposa, Beatriz Dávila y Ahumada (parenta de várias famílias nobres de Castela), que faleceu quando Teresa tinha cerca de 12 anos, teve outros dez filhos: Hernando, Rodrigo, Teresa, Juan (*de Ahumada*), Lorenzo, Antonio, Pedro, Jerónimo, Agustín e Juana. Os escritos e experiências de Santa Teresa de Ávila sobre as sete moradas da alma encontram paralelo na tradição mística judaica. No *Zohar* (*Livro do Esplendor*), essa concepção aparece como *Os Sete Recintos Celestiais*, que representam os sete estados espirituais do mundo de *Beriah do Coração*. O *Zohar* foi escrito por Moshé ben Sem Tob de León (1240-1305), rabino e filósofo, sendo uma das obras centrais da mística judaica. Moisés de León, em 1295, deixou de viajar e se estabeleceu em Ávila, residindo na casa do rico e influente Yuçaf de Ávila. Foi ali que encontrou a tranquilidade necessária para concluir a redação do *Zohar*, onde permaneceu até sua morte, ocorrida em 1305, na cidade vizinha de Arévalo, para onde havia viajado a fim de se encontrar com outro teólogo hebreu. Santa Teresa era de ascendência judaica. Seu avô foi um judeu convertido de Toledo, processado pela Inquisição e julgado por apostasia em 1485, pouco antes da expulsão dos judeus da Espanha. Essa herança judaica pode ter influenciado sua obra *Las Moradas*, uma vez que diferentes textos do Talmude mencionam ensinamentos sobre sete céus e sete terras. Essas tradições judaicas descrevem os níveis do mundo espiritual em sete estações, sete recintos ou sete moradas. Não é surpreendente que diferentes tradições místicas utilizem imagens semelhantes para descrever a jornada espiritual. A primeira morada se relaciona com a devoção e a busca da alma; a segunda, com o processo de purificação; a terceira, com a prova de sinceridade para com Deus; a quarta, com o início da presença do Espírito Santo na alma; a quinta, com a morada da santidade; a sexta, com a morada da santificação; e a sétima, com a morada da unificação. Este trabalho místico foi o mais importante de Santa Teresa, sua obra-prima escrita no fim da vida. Também conhecida como *O Castelo Interior*, a obra simboliza a alma humana e a jornada mística que percorre sete níveis do mundo espiritual, avançando da primeira à sétima morada, onde ocorre a união espiritual com Deus. ##### **A Escola Talmúdica de Ávila** Ávila abrigou uma das mais importantes academias talmúdicas dos séculos XIII e XIV, um centro de estudos que influenciou fortemente tendências messiânicas. Foi nessa cidade que Moshé ben Sem Tob de León, rabino e sábio itinerante, se estabeleceu após viver em Guadalajara. Em Ávila, ele escreveu e revisou seu *Sefer ha-Zohar* (*Livro do Esplendor*), uma das três obras fundamentais da mística cabalística, juntamente com o Talmude e a Bíblia. O primeiro manuscrito do *Zohar* foi difundido a partir de Ávila. A conexão mística entre Santa Teresa de Ávila e Moisés de León torna essa cidade um ponto de encontro entre culturas, revelando semelhanças profundas e fascinantes entre a tradição cristã e a judaica. ##### **Moisés de León** Nascido na cidade de León, de onde deriva seu sobrenome, Moisés de León dedicou-se desde muito jovem ao estudo da religião hebraica, o que o levou a viajar constantemente pelas principais *aljamas* (bairros judeus) da Península Ibérica. Além disso, exerceu a função de rabino. Sabe-se, por exemplo, que residiu por algum tempo em Guadalajara. A partir dos 30 anos, começou a publicar obras – cerca de 25 ao longo de sua vida – que se tornaram fundamentais para o judaísmo. Sua obra mais conhecida é o *Livro do Esplendor* (*Sefer ha-Zohar*), um dos textos centrais da Cabala. Trata-se de uma espécie de narrativa na qual são apresentados comentários sobre diversos trechos bíblicos. Para reforçar sua autenticidade e dar a impressão de que fora escrito por um rabino da Antiguidade, o texto foi redigido em aramaico. No entanto, a jornada de Moisés de León pelas comunidades judaicas da Espanha também tinha um caráter apostólico e de difusão de dogma. Na época, duas correntes disputavam a interpretação do judaísmo: de um lado, os ortodoxos, que defendiam uma leitura literal das Escrituras – posição amplamente apoiada pelas classes mais ricas; de outro, aqueles que promoviam a exaltação da pobreza e da natureza como meio de aproximação com Deus, ideia mais popular entre as camadas humildes da sociedade e adotada por Moisés de León, que se tornou cidadão de Ávila por adoção. Em 1295, ele deixou de viajar e se estabeleceu em Ávila, onde passou a residir na casa do rico e influente Yuçaf de Ávila. Foi nesse ambiente que encontrou a tranquilidade necessária para concluir a redação do *Zohar*. Permaneceu na cidade até sua morte, em 1305, que ocorreu circunstancialmente na cidade vizinha de Arévalo, para onde havia viajado a fim de se encontrar com outro teólogo hebreu. Sua escolha por Ávila não foi casual. A cidade possuía uma das três comunidades judaicas mais importantes do reino, com uma população hebraica numerosa e influente, o que reduziu significativamente a perseguição que judeus sofriam em outras regiões. Além disso, o ambiente de convivência entre judeus, cristãos e muçulmanos que existia em Ávila influenciou seus escritos. ##### **Ávila e sua Herança Judaica** Ainda hoje, Ávila preserva vestígios de seu passado judaico. Do ponto de vista urbanístico, as antigas *juderías* (bairros judaicos) são identificadas pelo traçado intrincado de suas ruelas estreitas. A comunidade judaica local chegou a representar cerca de 20% da população da cidade, o que fez com que se dispersassem por várias áreas. Nos últimos anos antes da expulsão, sua presença era mais concentrada ao sul, na região da Igreja de San Juan. Seus negócios, comércios e oficinas se situavam no centro da cidade, dentro das muralhas. Há registros aproximados da localização de suas sinagogas e das casas de alguns de seus rabinos. Além disso, foram preservadas inscrições judaicas e, mais recentemente, foi descoberto o cemitério judeu da cidade, que hoje é considerado a maior necrópole hebraica da Espanha. A documentação histórica revela que, em Ávila, muitas das medidas antissemitas impostas na Península Ibérica no final da Idade Média não foram aplicadas rigorosamente. A comunidade judaica era numerosa, contava com membros influentes e mantinha boas relações de convivência. Em alguns momentos, chegaram a ser promulgados decretos que protegiam os judeus da cidade. No entanto, a crescente perseguição contra os judeus em toda a Espanha culminou no infame **Edito de Expulsão de 1492**, que determinou a saída de todas as comunidades judaicas do reino. Ávila preserva até hoje a única cópia oficial da ordem enviada a partir de Granada para o Reino de Castela. Com isso, a cidade perdeu uma parte significativa de sua população e de sua dinâmica social e econômica. Como homenagem a Moisés de León, um charmoso jardim localizado junto à **Puerta de la Malaventura** – região onde grande parte da comunidade hebraica se estabeleceu antes da expulsão – recebeu seu nome.