ANGLICANISMO E IGREJA ROMANA

A SUBVERSÃO DA IGREJA CATÓLICA PELO ANGLICANISMO

PÈRE VAN DE POLE N°2 EM 1967

Um importante estudo de 1967, por um professor da Universidade Católica de Nimègue

Sexta-feira, 25 de maio de 2007

INTRODUÇÃO

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O Motu Proprio Tridentino antes do Indulto Anglicano para « D. » Hepworth?
Ratzinger, o homem do Motu Proprio anunciado é o executor do Plano Anglicano-Rosacruz
De Roma a Canterbury passando por Chartres?

Confirmando a ‘falsa’ confidência (suprimida) do padre de Tanoüarn no Forum Catholique, Le Figaro de 25 de maio de 2007 cita o mesmo padre Pozetto, ao qual se referia com constrangimento o padre do Centro Saint-Paul, e revela que um comunicado está pronto para uma possível publicação do Motu Proprio no Pentecostes. O Figaro confirma assim nossas informações, onde o considerávamos ao retomar, nomeadamente, as informações do Times Anglican.

UMA IGNORÂNCIA ESTONTEANTE DA QUESTÃO ANGLICANA POR PARTE DO PADRE LORANS

Começamos a publicação dos trechos importantes do livro fundamental « A Comunhão Anglicana e o Ecumenismo de acordo com os documentos oficiais » do Père Van de Pole em 1967 sobre o ecumenismo e o papel chave que o Anglicanismo desempenhou (remetemos às seções[1] muito documentadas que o CIRS dedicou ao Anglicanismo na biblioteca digital de seu site. Os documentos ali presentes são muito frequentemente difíceis de encontrar).

Após publicar o capítulo 1 que trata da importância ecumênica do Anglicanismo, agora compartilhamos o capítulo 2 que expõe as relações entre o Anglicanismo e a Igreja Romana.

Este texto é muito importante para compreender a ação do padre Ratzinger à frente da Igreja conciliar que agora se pode qualificar de Igreja neo-Anglicana.


[1] e também http://www.rore-sanctifica.org/biblio-num-14.html

O SIGNIFICADO DO MOTU PROPRIO TRIDENTINO À LUZ DO ANGLICANISMO. DE ROMA A CANTERBURY PASSANDO POR CHARTRES?

A próxima publicação anunciada do Motu Proprio (Pentecostes 2007? Le Figaro de 25 de maio[2] parece anunciá-la. Em nossa mensagem VM de 24 de maio de 2007, já havíamos mencionado[3] isso e agora somos convidados a aprofundar este estudo das redes Anglicanas e de sua ação determinante sobre o Vaticano ocupado por um usurpador apóstata anticristo.

E isso ainda mais porque os círculos Anglicanos estão muito ligados às altas lojas maçônicas britânicas do iluminismo Rosacruz.

É à luz desses elementos que se pode compreender melhor a subversão do Motu Proprio e o projeto de « reforma da reforma » que visa capturar a FSSPX, a obra de D. Lefebvre de Salvaguarda do verdadeiro Sacerdócio sacrificial católico sacramentalmente válido, em uma armadilha digna da sutileza da subversão anglicana.

Lembramos que mencionamos em nossa mensagem VM[4] de 24 de maio de 2007 a qualidade da informação do Times e a minuciosidade com a qual esse órgão do Anglicanismo acompanha de perto a questão do Motu Proprio e as tentativas de Ratzinger de tomar o controle da FSSPX dirigida por D. Fellay.

Em 3 de janeiro de 2007, também escrevemos:

« Um estudo de 1967, elaborado por um professor da Universidade Católica de Nimègue

« A Comunhão anglicana como protótipo da ‘Igreja futura’

É absolutamente aterrador que textos como os do Padre Van de Pol nunca (até onde sabemos) tenham sido objeto de estudos e comentários pelos monges e teólogos da Tradição desde sua publicação em 1967, ou seja, há já 40 anos!

Este documento oferece uma perspectiva sobre o ecumenismo e apresenta as consequências inevitáveis que decorrem da praxis ecumênica. Ele destaca toda a importância do papel do anglicanismo na criação da reunião das Igrejas que dará origem a uma « Comunhão » denominada « Igreja futura ».

Trata-se, na realidade, da realização concreta da estrutura que será o vetor da religião universal tão preparada pelas lojas maçônicas.

Como é possível que a revista Le Sel de la terre, dirigida pelo Padre Pierre-Marie (Geoffroy de Kergorlay), nunca tenha publicado estudos sobre o papel fundamentalmente subversivo desempenhado pelo modelo da Comunhão anglicana para o projeto ecumênico como tem sido incansavelmente perseguido há mais de 50 anos pelo que se tornou a Igreja conciliar?

Este documento é assinado pelo Padre Van de Pol, doutor em teologia, professor na Universidade Católica de Nimègue. Intitulado « A Comunhão Anglicana e o Ecumenismo de acordo com os documentos oficiais », é prefaciado por D. Willebrands e traduzido do neerlandês por um Padre beneditino. » Mensagem VM de 3 de janeiro de 2007


[2] http://www.lefigaro.fr/france/20070525.FIG000000219_messe_en_latin_les_pelerins_de_pentecote_dans_l_attente.html

« À vésperas dos peregrinares de Pentecostes, os "tradis" esperam ansiosamente a liberalização do rito tridentino (…)

ALLELUIA ou « digitus in oculo usque ad cudam » ? À vésperas dos peregrinares tradicionalistas de Pentecostes entre Paris e Chartres, os católicos ligados à missa tridentina em latim dividem-se entre a esperança, o fatalismo e a ironia. O motu proprio, esse texto de Bento XVI que virá liberalizar o rito antigo, já deveria ter sido publicado há mais de um ano. Ele ainda é esperado hoje. No site leforumcatholique.org, destinado ao "tradiland", um certo Corvex não sabe mais « se deve rir, chorar ou bater a cabeça nas paredes ».

Nos últimos dias, porém, apoiando-se em declarações recentes do cardeal Castrillon Hoyos - encarregado do relacionamento com os tradicionalistas - os rumores voltaram a correr. O texto de algumas páginas, acompanhado para os bispos de uma carta explicativa, seria publicado antes do final de maio. Bento XVI daria aos apenas párocos a responsabilidade de aceitar ou não uma missa tridentina em sua paróquia, e o texto não diria nada sobre os lefebvristas.

Dessa forma, alguns se permitem sonhar novamente. Capelão da peregrinação da Cristandade que celebra este ano seus vinte e cinco anos (Paris-Chartres, em comunhão com Roma), o padre François Pozetto se alegra. Um comunicado está até pronto, caso seja necessário. « Seria formidável! A expectativa é tão grande do lado de nossos peregrinos... »

Se o texto for publicado como esperam, a atmosfera deverá estar bem positiva. Tanto mais que os organizadores esperam uma forte participação. Olivier de Durat, presidente de Notre-Dame de Chrétienté, anuncia cerca de 7.000 peregrinos, uma centena de seminaristas e tantos padres. O bispo de Chartres, Michel Pansard, os acolherá na segunda-feira para uma missa solene. » Sophie de Ravinel, Le Figaro, 25 de maio de 2007

[3] http://www.virgo-maria.org/articles/2007/VM-2007-05-24-A-00-Rumeurs_Motu_Pentecote.pdf

[4] http://www.virgo-maria.org/articles/2007/VM-2007-01-03-D-00-Van_de_Pole_1_c.pdf

APARENTEMENTE, NINGUÉM NOTOU DESDE HÁ MESES UMA IGNORÂNCIA ESTONTEANTE DA QUESTÃO ANGLICANA POR PARTE DO PADRE LORANS

Não só a revista Le Sel de la terre, sob a direção do antigo Anglicano (variante metodista) D. Williamson, nunca estuda o Anglicanismo, como também descobrimos com espanto uma ignorância incrível sobre esses círculos por parte do padre Lorans.

Cada um pode constatar a ignorância total do padre Lorans nas questões anglicanas.

O Diretor de Comunicação da FSSPX afirma que as cinco conversas de Malines, iniciadas por Lord Halifax e o Cardeal Mercier (1923-1925), teriam parado devido à condenação das ordenações anglicanas, enquanto tal condenação foi pronunciada em 1896 por Leão XIII na sua Bula Apostolicae Curae.

« Padre Lorans – Houve aproximações no início do século XX, o que se chamou de conferências de Malines entre Lord Halifax e o Cardeal Mercier, e depois o movimento de Newman, e quando houve a declaração de que as ordenações não eram válidas entre os anglicanos, isso marcou, as conversas tiveram que parar… Os suecos seguiram esses movimentos? »[5] Padre Lorans, 29 de julho de 2006

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De fato, a condenação das Ordens Anglicanas ocorreu em 1896 sob o Papa Leão XIII, enquanto as conversas de Malines ocorreram entre 1923 e 1925 sob o Papa Pio XI.

Portanto, não foi a notícia da condenação das Ordenações Anglicanas que, como sugere o padre Lorans, teria ocorrido em 1925 e encerrado as conversas de Malines. O antigo diretor do Instituto Universitário São Pio X e do seminário internacional de Ecône comete um anacronismo de 30 anos em uma questão crucial para a compreensão da situação atual!

No entanto, essa grave questão foi amplamente debatida e exposta, especialmente pelos trabalhos do Comitê Internacional Rore Sanctifica desde há quase 12 meses antes da entrevista do padre Lorans.

Desde o início de 2005, o site CSI-Diffusion, tanto criticado pelos padres de Suresnes, já havia destacado e enfatizado o papel fundamental dos Anglicanos na Revolução dentro da Igreja.


[5] – Rubrica ‘Documentos’ e depois entrevista com o Pastor Sandmark de julho de 2006.

O ANGLICANISMO: UM LABORATÓRIO TRABALHANDO NA SUBVERSÃO DA IGREJA CATÓLICA DESDE O SÉCULO XIX

Portanto, compartilhamos com vocês este capítulo n°2 do livro do Padre Van de Pole que expõe as relações entre o Anglicanismo e a Igreja Romana. A leitura desses relatórios é essencial para compreender a subversão da Igreja Católica pelo Anglicanismo.

Esse histórico das conferências de Lambeth revela como, nos círculos Anglicanos, são elaborados os princípios que depois subverterão a Igreja Católica durante o Concílio Vaticano II.

Um ponto importante:

« A posição anglicana resulta mais da aceitação dos princípios fundamentais da Reforma. No entanto, esses princípios foram conscientemente aliados à abertura, tipicamente anglicana, a todas as contribuições, antigas ou modernas, do humanismo e do estudo científico das fontes. Estas incluem, em primeiro lugar, a Sagrada Escritura, mas também os escritos dos Pais da Igreja, os decretos dos Concílios da Igreja indivisa, os livros litúrgicos e todas as outras fontes onde podem ser aprendidos « os verdadeiros fundamentos da Igreja de Deus ». 

Resulta que a Igreja anglicana nunca se deu ao trabalho de precisar bem o conteúdo da fé. Ela sempre manteve uma distinção muito clara entre o conteúdo central e essencial da fé apostólica e a elaboração teológica detalhada, entre os dados imutáveis e permanentes e a interpretação teológica de seu valor passageiro, insuficiente e transitório. Ela sempre manifestou aversão às especulações abstratas distantes dos fatos solidamente estabelecidos » Padre Van de Pol, 1967

Nesta descrição da Igreja Anglicana, vemos o retrato da Igreja conciliar sob o governo do padre Ratzinger. O « conteúdo da fé » desse apóstata é, no mínimo, vago, o que permite todas as ambiguidades e o reinado do erro.

Continuemos a boa luta

Padre Michel Marchiset

CAPÍTULO II - O ANGLICANISMO E A IGREJA ROMANA

A COMUNHÃO ANGLICANA E O ECUMENISMO: SEGUNDO DOCUMENTOS OFICIAIS  

W. H. VAN DE POL
Doutor em teologia, professor na universidade católica de Nimègue
Prefácio por D. Willebrands
Tradução do neerlandês por Dom André Renard, O.S.B.
Editora du Cerf, 29, bd Latour-Maubourg, Paris 1967

N.T.: Discordamos do autor do texto em muitos pontos, porém muitas informações fornecidas no documento são fundamentais para entender o problema.

CAPÍTULO II - O ANGLICANISMO E A IGREJA ROMANA

INTRODUÇÃO

Nossa análise do anglicanismo contemporâneo se concentrará, em primeiro lugar, em sua atitude em relação a Roma, conforme expressa nos relatórios das Conferências de Lambeth.

A escolha deste ponto de partida justifica-se pelo fato de que o anglicanismo só começou a se desenvolver em uma forma particular de cristianismo, com uma fisionomia própria, a partir da ruptura entre Roma e Canterbury[6].

O observador imparcial dificilmente pode decidir qual das duas partes rompeu com a outra: foi Canterbury? Foi Roma? É provável que ele pense que ambas as partes tiveram sua cota de responsabilidade na ruptura. O mesmo se aplica a outras rupturas: a de Roma e Constantinopla, a de Roma e a Reforma, e também a de Roma e a comunidade velho-católica. Em todos esses casos, as Igrejas separadas culpam Roma pelo peso total da responsabilidade por ter lançado a excomunhão, enquanto Roma, por sua vez, está convencida de que a excomunhão foi provocada pelas outras partes e que era plenamente justificada.

Não se pode negar que a ruptura entre Roma e Canterbury trouxe mudanças profundas na Igreja da Inglaterra e que, a muitos aspectos, constituiu um verdadeiro começo. Antes dessa ruptura, a Ecclesia anglicana, a Igreja da Inglaterra, estava em comunhão com a Sé de Roma, em perfeito acordo com a Igreja do Ocidente em todos os domínios da doutrina, liturgia, prática eclesiástica, espiritualidade, vida religiosa, direito canônico e língua eclesiástica.

Apesar da ênfase na continuidade com a Igreja anterior à Reforma, a Igreja da Inglaterra se desenvolveu, após a ruptura com Roma, nessa nova forma de cristianismo que se denomina anglicanismo. Isso permitiu que a Reforma desempenhasse um papel mais importante no anglicanismo e deixasse marcas incomparavelmente mais profundas do que alguns grupos, tanto dentro quanto fora do anglicanismo, pensam e reconhecem.

Uma coisa nos surpreende imediatamente ao empreendermos a análise da atitude anglicana conforme expressa nos relatórios de Lambeth. De fato, a Igreja de Roma nunca é chamada de Igreja Católica. Isso não deve nos surpreender. A Igreja da Inglaterra e as outras Igrejas da Comunhão Anglicana se renunciariam, se identificassem a Igreja de Roma com a Igreja Católica, colocando-se assim fora dela. Elas concordam nesse ponto com todas as outras Igrejas, tanto do Oriente quanto do Ocidente, que não estão em comunhão com a Sé Apostólica, pois não acham que devem aceitar as pretensões particulares dessa Sé.

Nos rapports de Lambeth, a Igreja em comunhão com Roma é geralmente designada pelas expressões « Igreja romana » ou « Igreja de Roma ». Os Relatórios de 1897, 1908 e 1920 preferem o título de « Comunhão latina »; os de 1930, 1948 e 1958, a denominação « Igreja católica romana ».

Essa incerteza na terminologia revela uma busca e um gropamento para encontrar o lugar que, segundo a concepção anglicana, pode ser atribuído sem inconveniente à Igreja de Roma entre as outras Igrejas.

É importante para a compreensão exata do anglicanismo observar que essa questão terminológica não se cruza com a que divide Constantinopla e Roma, ou seja, qual das duas é a autêntica Igreja, isto é, qual é a única Igreja católica. Uma questão semelhante não pode ser levantada no anglicanismo. De fato, segundo a eclesiologia anglicana, nenhuma Igreja particular tem o direito de se considerar a única Igreja autêntica, pois todas as comunidades de batizados são verdadeiras Igrejas, desde que a Palavra de Deus seja anunciada e que os sacramentos do batismo e da Ceia sejam administrados nelas. Além disso, nenhuma Igreja neste mundo pode ser chamada de « verdadeira » Igreja, no sentido de Igreja infalível, isenta de erro, e de Igreja perfeita, sem mancha ou ruga. Na terminologia anglicana, a expressão « verdadeira Igreja » designa uma Igreja « real » ou « autêntica ». A rigor, só há uma única « verdadeira » Igreja, a saber, a Igreja que está edificada sobre o fundamento lançado pelos Apóstolos. É suficiente saber que a Igreja à qual se pertence, in casu a Igreja anglicana, pertence a essa verdadeira, autêntica e real Igreja apostólica de Cristo.

O artigo 1º do direito eclesiástico anglicano, em sua revisão de 1959, declara que

a Igreja da Inglaterra (...) pertence à verdadeira Igreja apostólica de Cristo e, conforme o que exige nosso dever em relação a esta Igreja da Inglaterra, estabelecemos e ordenamos que nenhum de seus membros terá a faculdade de sustentar ou afirmar o contrário[7].

Essa declaração parece ser um aviso direcionado a certos anglo-católicos romanizantes que, às vezes, dão a impressão de ver na Igreja da Inglaterra pouco mais do que uma simples expressão ou uma ramificação da Igreja católica.

No vocabulário anglicano, as expressões « Igreja católica » ou « Igreja universal » abrangem toda a comunidade de todos os cristãos crentes e batizados. Edificada sobre Cristo, seu único fundamento, ela é, devido ao pecado e à inclinação ao erro dos homens, by schisms rent asunder, by heresies distrest, como canta um hino (« dilacerada pelos cismas, afligida pelas heresias »). É por isso que ela sempre precisa de reforma e renovação, segundo o adágio dos reformadores: ecclesia reformata semper reformanda, uma Igreja reformada sempre precisa de uma nova reforma.


[6] Veja acima p. 35.

[7] «A Igreja da Inglaterra ... pertence à verdadeira e apostólica Igreja de Cristo; e, como nosso dever para com a mencionada Igreja da Inglaterra exige, nós constituímos e ordenamos que nenhum membro dela terá liberdade para manter ou manter o contrário». (Canon Law Revision 1959, Londres, 1960, p. 2.)

CAPÍTULO II - O ANGLICANISMO E A IGREJA ROMANA

I. AS CONFERÊNCIAS DE 1867 E 1878

Em breve, um século terá se passado desde a realização da primeira Conferência de Lambeth em 1867. Cerca de uma centena de bispos anglicanos participaram. Desde o início dessa Conferência, surgiu diante dos olhos dos bispos reunidos a visão da unidade, finalmente restaurada, de todos os cristãos. As forças de coesão que haviam unido as Igrejas do anglicanismo em uma Comunhão anglicana deveriam, com o tempo, se expandir para círculos cada vez maiores, até que um dia toda a cristandade recebesse novamente o dom de Deus, « o dom rico em bênçãos da Unidade na Verdade ». Assim se expressava a primeira carta pastoral coletiva que foi dirigida pelo episcopado da Comunhão anglicana, reunido em 1867, « aos fiéis em Cristo Jesus, aos sacerdotes, diáconos e leigos da Igreja de Cristo em comunhão com a ramificação anglicana da Igreja católica ».

Já nesta primeira encíclica, discutiu-se a atitude em relação a Roma, mas de forma puramente negativa:

Nós vos exortamos instantes a vos guardardes, vós e os vossos, das superstições crescentes e das outras adições pelas quais a verdade de Deus tem sido obscurecida ultimamente. É o caso, em particular, da pretensão à soberania universal sobre a herança de Deus que o Sede de Roma reclama para si, assim como da elevação de fato da Bem-Aventurada Virgem Maria ao posto de mediadora no lugar de seu Filho divino, e a oração a ela como se fosse alguém que intercede entre Deus e os homens. Preservai-vos de tais coisas, rogamos-vos, sabendo bem que Deus ciumento não dá sua honra a ninguém mais[8].

A encíclica publicada pela segunda Conferência de Lambeth em 1878 expressa-se de maneira análoga em relação à Sé de Roma:

O fato de que em tantas Igrejas e comunidades cristãs ao redor do mundo se levanta uma protestação solene contra as usurpações da Sé de Roma, bem como contra as doutrinas novas promulgadas por sua autoridade, é um motivo de reconhecimento ao Deus todo-poderoso. A simpatia da Igreja anglicana vai para as Igrejas e os fiéis que protestam contra esses erros e que, às vezes, suportam dificuldades particulares tanto devido aos ataques da incredulidade quanto às pretensões de Roma.

Reconhecemos apenas um único Mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo, que está acima de todas as coisas, Deus eternamente. Rejeitamos como contrária às Escrituras e à verdade católica toda doutrina que pretenda subtrair à Majestade divina algo da plenitude da bondade que reside nele (Cristo) e que deu um valor infinito ao sacrifício imaculado que ele ofereceu uma vez por todas, na Cruz, pelos pecados do mundo inteiro.

Por isso, é nosso dever sinalizar aos fiéis que o ato realizado pelo bispo de Roma, no Concílio Vaticano no ano de 1870 – ato pelo qual, com base em uma pretendida infalibilidade, ele se arrogou uma supremacia sobre todos os homens em matéria de fé e moral – é uma invasão das prerrogativas do Senhor Jesus Cristo[9].

Embora a questão da união com Igrejas não anglicanas não tenha sido ainda debatida durante a segunda Conferência de Lambeth, a ideia de fixar um dia de oração pela unidade dos cristãos foi proposta. A encíclica de 1878 terminava expressando a esperança de que os cristãos do mundo inteiro tomassem conhecimento de seu conteúdo e manifestassem sua opinião sobre ele:

Não pretendemos ser os mestres da herança de Deus. No entanto, recomendamos os resultados desta Conferência à consideração de nossos irmãos, iluminados pelo Espírito Santo de Deus. E pedimos na oração que todos aqueles que, espalhados pelo mundo, invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, possam ser um em espírito, possam estar unidos em uma fellowship, possam guardar firmemente a fé que foi transmitida aos santos, e que adorem seu único Senhor em um espírito de pureza e amor[10].


[8] «Além disso, pedimos que se protejam a si mesmos e aos seus contra as crescentes superstições e adições com as quais, nestes últimos dias, a verdade de Deus foi sobreposta; como de outra forma, especialmente pela pretensão à soberania universal sobre a herança de Deus afirmada pela Sé de Roma, e pela exaltação prática da Bem-Aventurada Virgem Maria como mediadora em lugar de seu Divino Filho, e pelo endereçamento de orações a ela como intercessora entre Deus e o homem. De tais coisas, cuidem, pedimos-lhe, sabendo que o Deus ciumento não entrega Sua honra a outro” (The Six Lambeth Conferences, Londres, 1920, p. 50).

[9] «O fato de que um protesto solene seja levantado em tantas Igrejas e comunidades cristãs em todo o mundo contra as usurpações da Sé de Roma e contra as novas doutrinas promulgadas por sua autoridade é motivo de agradecimento ao Deus Todo-Poderoso. Toda simpatia é devida da Igreja Anglicana às Igrejas e indivíduos que protestam contra esses erros e que, talvez, estejam enfrentando dificuldades especiais devido aos ataques da descrença, assim como pelas pretensões de Roma.

«Reconhecemos apenas um Mediador entre Deus e o homem - o Homem Cristo Jesus, que está acima de todos, Deus bendito para sempre. Rejeitamos, como contrário às Escrituras e à verdade católica, qualquer doutrina que estabeleça outros mediadores em Seu lugar, ou que diminua a Majestade Divina da plenitude da Divindade que habita Nele, e que conferiu um valor infinito ao Sacrifício imaculado que Ele ofereceu, uma vez por todas, na Cruz pelos pecados de todo o mundo.

«Portanto, é nosso dever advertir os fiéis que o ato realizado pelo Bispo de Roma, no Concílio Vaticano, no ano de 1870 - pelo qual ele afirmou uma supremacia sobre todos os homens em questões de fé e moral, com base em uma suposta infalibilidade - foi uma invasão dos atributos do Senhor Jesus Cristo » (Ibid., p. 94).

[10] «Não afirmamos ser senhores da herança de Deus, mas recomendamos os resultados desta nossa Conferência à razão e à consciência de nossos irmãos, conforme iluminados pelo Espírito Santo de Deus, orando para que todos, em todo o mundo, que invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo possam estar unidos em um só pensamento, possam estar unidos em uma só comunhão, possam manter a Fé uma vez entregue aos santos, e adorar seu único Senhor em espírito de pureza e amor». (Ibid., p. 98).

CAPÍTULO II - O ANGLICANISMO E A IGREJA ROMANA

II. A CONFERÊNCIA DE 1888 E A INFALIBILIDADE

A atitude da Comunhão anglicana em relação à Igreja de Roma tomou uma direção mais ecumênica pela primeira vez durante a terceira Conferência de Lambeth em 1888. O contexto foi o relatório sobre a Home-reunion (reunião interna no mundo de língua inglesa). Esse relatório foi apresentado pela primeira das três comissões designadas no início da sessão para relatar as relações já existentes ou a serem estabelecidas com diversas Igrejas cristãs ao redor do mundo. Foi o primeiro verdadeiro esforço ecumênico de grande escala desde a desunião das Igrejas[11].

Com grande pesar, a comissão foi da opinião de que, nas circunstâncias atuais, é sem utilidade tratar da questão da união com nossos irmãos da Igreja romana. Ela percebe, de fato, que qualquer proposta nesse sentido não seria considerada pelas autoridades dessa Igreja sem uma submissão total da nossa parte às pretensões de autoridade absoluta, e uma aceitação dos outros erros, doutrinais e disciplinares, contra os quais fomos obrigados a protestar por três séculos por fidelidade à Palavra de Deus e aos verdadeiros princípios de Sua Igreja[12].

Essa citação fornece um ponto de partida de grande interesse. Foi redigida com termos escolhidos intencionalmente e com cuidado. Ela evoca claramente e sem rodeios o princípio e o critério que determinam a atitude em relação a Roma. Sem dúvida, os relatórios de Lambeth demonstrarão a presença, entre os bispos da Comunhão anglicana, de uma crescente atenção à possibilidade de uma aproximação entre Cantorbéry e Roma. No entanto, não se deve concluir que as Igrejas anglicanas estão, por sua parte, modificando suas posições de princípio.

Tanto dentro das Igrejas anglicanas quanto fora delas, há uma opinião de que não haveria nada em comum entre as duas rupturas: aquela que separou Cantorbéry e Roma, e aquela que dividiu a Reforma e a Igreja de Roma. Essas duas rupturas seriam de natureza totalmente diferente e, portanto, seria necessário descobrir entre elas apenas uma coincidência mais ou menos acidental. Tal visão tem o duplo defeito de contrariar a realidade histórica e de impossibilitar a compreensão dos motivos profundos e das intenções reais que inspiram as declarações e propostas anglicanas. É verdade que, devido ao seu maior respeito pela realidade histórica, as Igrejas anglicanas apresentam uma semelhança exterior mais marcante com a Igreja de Roma do que outras Igrejas da Reforma. Não se segue, como o próximo capítulo mostrará, que elas devem ser classificadas entre as Igrejas de «tipo católico».

Pode-se observar a presença, nas Igrejas anglicanas, de vários pontos externos que, ausentes nas outras Igrejas da Reforma, aparentam uma semelhança com a Igreja de Roma. No entanto, uma investigação teológica mais atenta revela que esses pontos de semelhança recebem das autoridades oficiais do anglicanismo uma interpretação que se baseia em uma concepção das Escrituras, do Evangelho e da fé cristã (conscientemente ou não) em perfeita harmonia com os princípios fundamentais da Reforma.

Isso não é bem compreendido sem um conhecimento suficiente da natureza, da mentalidade, da atitude interior e da espiritualidade da Reforma. Sem uma certa familiaridade com o protestantismo continental, os anglicanos nem sempre percebem o quanto eles são «protestantes».

A interpretação evangélica e reformada dos pontos de semelhança com as Igrejas "católicas" se impõe especialmente a quem negligencia as opiniões particulares em favor das declarações oficiais.

Alguns observadores católicos romanos concluem, erroneamente, que os anglicanos carecem de princípios, lógica e até mesmo de boa fé. Esse julgamento baseia-se em um equívoco, causado pelos defensores de posições extremas tanto dentro quanto fora do anglicanismo. De fato, os anglo-católicos mais avançados, assim como os protestantes mais radicais, negam à Igreja anglicana a sua estreita relação com a Reforma.

Voltemos agora ao trecho do relatório de Lambeth de 1888 que se refere à Igreja Católica. Nele, há um duplo rejeição.

A primeira rejeição diz respeito à "pretensão romana à autoridade absoluta". O anglicanismo compartilha essa postura com todas as outras Igrejas não romanas.

O que pode não ser imediatamente aparente é que essa rejeição se dirige tanto a qualquer outra Igreja que reivindique para si mesma ou para sua confissão uma autoridade exclusiva e absoluta.

Essa rejeição anglicana deve ser compreendida à luz de uma tradição secular que começa com as duas apologias clássicas de Jewel (1562) e de Hooker (1594)[13]. Seguem-se os inúmeros tratados do século XVII, a era de ouro da teologia anglicana, onde floresceram os teólogos carolinos (Caroline Divines). Finalmente, atualmente, numerosas publicações defendem o ponto de vista anglicano autêntico contra possíveis desvios, seja no lado protestante ou católico-romano.

O recurso à tradição anglicana revela que o motivo principal para a rejeição de qualquer pretensão à autoridade absoluta reside na convicção firme de que a autoridade absoluta pertence exclusivamente à "santa Palavra de Deus" que fala nas Escrituras Sagradas.

O anglicanismo não nega que, iluminada pelo Espírito Santo, a Igreja tenha, na prática e em termos essenciais, desfrutado de uma certa "infallibilidade" na pregação da Palavra de Deus e na proclamação do testemunho dado a Cristo pelas Escrituras. O que nega é que essa infalibilidade exista sempre per se, ou que as autoridades eclesiásticas possam reivindicar essa infalibilidade como uma qualidade que lhes pertence por si mesmas. A infalibilidade reside sempre na Palavra de Deus e deve sempre ser referida a ela.

A concepção dos reformadores sobre o lugar e o papel da Palavra de Deus, viva, criadora e em todas as coisas exclusivamente determinante, era compartilhada pelos teólogos anglicanos clássicos[14]. Nesse aspecto, a teologia anglicana também parte do princípio da sola Scriptura, entendido em seu sentido original e positivo.

Consequentemente, o anglicanismo não reconhece a nenhuma hierarquia eclesiástica, nem a uma declaração oficial, o direito de pretender uma autoridade infalível e absoluta. Nesse ponto crucial, o anglicanismo não se alinha definitivamente com as Igrejas de tipo "católico": nem com a de Constantinopla, nem com a de Roma.

A posição anglicana resulta mais da aceitação dos princípios fundamentais da Reforma. No entanto, esses princípios foram aliardos conscientemente à abertura, tipicamente anglicana, a todas as contribuições, antigas ou modernas, do humanismo e do estudo científico das fontes. Essas incluem, em primeiro lugar, as Sagradas Escrituras, mas também os escritos dos Pais da Igreja, os decretos dos Conselhos da Igreja indivisa, os livros litúrgicos e todas as outras fontes onde se pode aprender "os verdadeiros fundamentos da Igreja de Deus".

Resulta daí que a Igreja anglicana nunca se deu ao trabalho de precisar bem o conteúdo da fé. Ela sempre manteve uma distinção muito clara entre o conteúdo central e essencial da fé apostólica e a elaboração teológica avançada em seus detalhes, entre os dados imutáveis e permanentes e a interpretação teológica de seu valor passageiro, insuficiente e transitório. Ela sempre manifestou repugnância a especulações abstratas distantes dos fatos solidamente estabelecidos.

O anglicanismo sempre manteve sua abertura a correções e novos pontos de vista. Ele vive de uma série de legados acumulados: o legado da Igreja indivisa, o legado do humanismo, o legado da Reforma do século XVI, e aquele que é constituído por tudo o que os séculos posteriores transmitiram de experiências inéditas e de noções renovadas.

O apelo à tradição não significa que esta seja, no anglicanismo, uma fonte distinta, igual ou superior à Escritura. No entanto, para quem deseja formar uma opinião bem fundamentada sobre o que a Escritura quer dizer quando fala das formas que a vida cristã assumiu progressivamente ao longo dos primeiros séculos, somente a tradição permite ver qual foi o papel da Palavra de Deus desde as origens na disciplina da Igreja.

Semelhante respeito pela antiguidade e mesmo apreciação dos "verdadeiros princípios da Igreja de Deus" também se encontram nos escritos dos Reformadores do século XVI, notadamente em Melanchton, Bucer e Calvino, e, nos séculos posteriores, em Hugo de Groot (Grotius), por exemplo, e em todos os teólogos que possuem uma vasta erudição teológica e um conhecimento das fontes da antiguidade cristã.

Desde seus primórdios, a Reforma lidou com uma tensão entre os líderes e o povo. Movimentos fanáticos e outros correntes extremistas surgiram do povo que se deixava levar pelo desgosto por tudo o que podia lembrar o papismo abominável. Instintos populares desse tipo continuam sua ação oculta e se expressam a todo momento na Inglaterra no slogan No popery. Diante de tais formas de extremismo, os reformadores anglicanos, assim como os do continente, sempre se reivindicaram da tradição da Igreja antiga e do sentimento comum dos Pais.

O que se ouve frequentemente afirmar, hoje em dia, é que o anglicanismo se distingue do cristianismo proveniente da Reforma por seu recurso à autoridade normativa da antiguidade na interpretação da Escritura em questões relacionadas à organização eclesiástica, aos ministérios e à liturgia. Em realidade, o recurso à autoridade normativa da antiguidade não é de forma alguma característico do anglicanismo. Não pode ser usado para distingui-lo das Igrejas oriundas da Reforma. Não permite classificá-lo entre as Igrejas que, por sua concepção de autoridade e por sua atitude em relação à Escritura e à tradição, são completamente estranhas ao anglicanismo autêntico dos documentos oficiais.

O texto de 1888, citado acima, expressava também uma segunda recusa. Além das pretensões a uma autoridade absoluta, rejeitava ainda "outras erros tanto teóricos quanto práticos". Esses erros não são citados nominalmente no texto. No entanto, é importante que nos representemos claramente a natureza e a importância dos erros aqui mencionados.

Os bispos reunidos certamente tiveram em mente, em prioridade, os erros romanos que são condenados pelos 39 Artigos da Igreja da Inglaterra. Esses Artigos da religião, às vezes ironicamente chamados de artigos de divisão, são considerados por alguns anglicanos como um documento obsoleto, vestígio de uma época passada. Não obstante, o direito eclesiástico anglicano, revisado em 1959, considera-os uma fonte autorizada da doutrina professada pela Igreja da Inglaterra:

Artigo A, 5: A doutrina da Igreja da Inglaterra baseia-se nas Sagradas Escrituras e nos ensinamentos dos antigos Pais e dos Concílios da Igreja que estão de acordo com essas Escrituras. Esta doutrina se expressa particularmente nos 39 Artigos de religião*, no* Livro de Oração Comum* e no Ordinal[15].

Perguntemo-nos quais são os ensinamentos e as práticas que são rejeitados pelos 39 Artigos como erros da Igreja romana.

Os artigos 9 a 21, inclusivamente, condenam de forma indireta diversos ensinamentos relacionados ao pecado original, ao livre-arbítrio, à justificação, às boas obras, ao pecado cometido após o batismo, à eleição e à predestinação, à obtenção da salvação eterna, à Igreja e à autoridade na Igreja. Todas essas doutrinas são consideradas como erros romanos. Sobre todos esses pontos, o anglicanismo se posicionou, com plena convicção e perfeita consciência, ao lado da Reforma, contra a Igreja de Roma. Sem dúvida, às vezes se buscou mostrar que esses artigos fundamentais podem ser interpretados de uma maneira que se conforma às declarações e ao ensino do Concílio de Trento. Mas se essa interpretação fosse válida, se concluiria que a doutrina da Reforma também se alinharia, nesses pontos fundamentais, com a da Igreja de Roma. Não se deve, no entanto, concluir que as Igrejas anglicanas se posicionam ao lado da Igreja de Roma, pois a doutrina dos artigos 9 a 21 é uma doutrina puramente reformada. Retornaremos a esse ponto no próximo capítulo.

É a partir do artigo 22 que os erros romanos aparecem claramente designados. Este artigo é intitulado "do Purgatório". Aqui está a tradução:

A doutrina romana sobre o purgatório, as indulgências, o culto e a adoração tanto das imagens quanto das relíquias, e também a invocação dos santos, é algo frívolo, uma ideia quimérica e desprovida de fundamento nas Escrituras e que é, na verdade, contrária à Palavra de Deus[16].

A devoção ao sacramento da Eucaristia que se desenvolveu na Idade Média é rejeitada no final do artigo 25:

Os sacramentos não foram instituídos por Cristo para serem contemplados e transportados, mas para que os utilizemos como convém[17].

A doutrina da transubstanciação é rejeitada no artigo 28: "Da Ceia do Senhor":

A transubstanciação (ou a mudança da substância do pão e do vinho) na Ceia do Senhor não pode ser provada pela Sagrada Escritura. Ela é contrária às claras expressões da Escritura, destrói a essência do sacramento e gerou muitas superstições[18].

O mesmo artigo termina declarando mais uma vez que "o sacramento da Ceia do Senhor não foi destinado, pela instituição de Cristo, a ser reservado, transportado, elevado ou adorado"[19].

Por fim, o artigo 31, em termos contundentes, se posiciona de maneira clara com a Reforma continental contra a doutrina romana do sacrifício da missa:

A oferta de Cristo feita uma única vez é essa perfeita redenção, propiciação e satisfação por todos os pecados do mundo, originais e atuais. E não há outra satisfação para o pecado que não seja essa. É por isso que os sacrifícios das missas, nos quais se dizia comumente que o sacerdote oferecia Cristo pelos vivos e pelos mortos, para obter a remissão da pena ou da culpa, eram fábulas blasfematórias e enganosas perigosas[20].

A semelhança da Reforma continental, o anglicanismo viu na celebração da "Ceia do Senhor" um ofício de comunhão (the Holy Communion). A Ceia é o memorial da morte na Cruz do Filho único de Deus, Jesus Cristo, que, como diz o Cânon anglicano, por meio da oferta de si mesmo feita uma única vez, ali (na Cruz) cumpriu um sacrifício, uma oblação e uma satisfação plenas, perfeitas e suficientes, pelos pecados do mundo inteiro, e que instituiu, e recomendou em seu santo Evangelho que continuássemos, um memorial perpétuo dessa preciosa morte até que ele retorne[21].

Frequentemente, recorre-se a esse texto litúrgico para provar o caráter sacrificial do ofício anglicano de comunhão. Isso nos obriga a perceber que é a noção reformada de sacrifício que predomina aqui. De fato, o sacrifício consiste, nesta liturgia, principalmente, em louvor e ações de graças, e secundariamente, em uma consagração geral de si mesmo a Deus. A oração anglicana após a comunhão pede, de fato, a Deus para "aceitar este sacrifício de louvor e ações de graças" e, mais adiante: "Oferecemos e apresentamos, Senhor, a nós mesmos, nossa alma e nosso corpo, em um sacrifício razoável, santo e vivo"[22].

O anglicanismo opôs à doutrina e à prática da Igreja romana uma nova concepção do caráter sacrificial da Ceia. Essa nova concepção destaca a suficiência do sacrifício de Cristo, no sentido de que a Missa não pode, em hipótese alguma, ter um caráter propiciatório e que, muito menos, pode ser considerada um sacrifício no sentido verdadeiro e próprio da palavra[23].

O Dr. Carpenter, atualmente bispo de Oxford, publicou em 1955 uma nova edição revisada do excelente comentário de Bicknell sobre os 39 Artigos. De acordo com este comentário, o artigo 31 não rejeitaria a doutrina do sacrifício eucarístico, mas condenaria apenas os abusos populares comuns nesse domínio[24]. O mesmo se aplicaria aos abusos condenados nos outros artigos mencionados anteriormente.

O comentário trata de cada um dos artigos, fazendo esforços meritórios, por um lado, para absolver a Igreja católica dos erros que lhe foram imputados erroneamente, e por outro lado, para enfatizar que o sentido original dos 39 Artigos é católico. Assim, faz-se anteceder do título “o sacrifício eucarístico” o sexto parágrafo do capítulo que trata dos Artigos relacionados à sagrada comunhão. O caráter sacrificial da sagrada Eucaristia é literalmente mantido e é concebido de uma forma mais "católica" do que os autores dos 39 Artigos teriam desejado. Pode-se ver aí a marca de uma evolução progressiva da teologia anglicana na direção do catolicismo. Considerando-se, além disso, o desenvolvimento recente da teologia sacramental dentro da Igreja católica, pode-se falar de uma aproximação.

Não obstante, o comentário de Bicknell e Carpenter continua a ser adversário das declarações do Concílio de Trento sobre a missa, embora não pareça ignorar as divergências que existem nesse campo entre os teólogos católicos. Carpenter não tem objeções a fazer à concepção que vê na missa uma representação do sacrifício da Cruz até o retorno de Cristo. No entanto, ele nega explicitamente que o sacrifício da missa seja "vere propitiatorium" e um "verum et proprium sacrificium". O autor também reconhece que deve-se buscar na diferença das interpretações do caráter sacrificial da missa uma das principais razões que motivaram a declaração de 1896 sobre a invalidez das ordenações anglicanas:

O recente rejeição por Roma de nossas ordenações (orders) baseia-se na nossa recusa em aceitar uma doutrina que vê na Eucaristia um sacrifício que se acrescenta àquele do Calvário. A protestação levantada pelo nosso artigo manterá toda a sua atualidade enquanto essa doutrina continuar a ser ensinada, por mais refinada que seja a sua forma[25].

Sairia do escopo deste capítulo aprofundar a diferença que, segundo os artigos citados, separa Roma e Canterbury. O objetivo do presente capítulo se limita, de fato, a expor a atitude oficial da Comunhão anglicana em relação à Igreja de Roma.

Quanto ao relatório de 1888, é útil indicar para finalizar que a encíclica de introdução estabelece uma comparação entre a Igreja do Oriente e a Igreja latina:

Constatamos com gratidão que (do lado do Oriente) não se ergue nenhum dos obstáculos que bloqueiam o caminho para a comunhão com os latinos: nem a promulgação do dogma segundo o qual a infalibilidade da Igreja se concentra na pessoa do Sumo Pontífice, nem a doutrina da Imaculada Conceição, nem qualquer outro dos dogmas impostos por decreto de concílios papais. A Igreja de Roma sempre tratou sua irmã do Oriente de forma injusta. Ela envia seus bispos como intrusos nos antigos dioceses e continua a aplicar um método de proselitismo ativo[26].


[11] O relatório da comissão tem o título: «Relatório do Comitê nomeado para considerar quais passos (se houver) podem ser tomados corretamente em Nome da Comunhão Anglicana em direção à Reunião dos Vários Corpos nos quais o Cristianismo das raças de língua inglesa está dividido» (Cf. Ibid., pp. 156 e ss).

[12] «O Comitê, com profundo pesar, sentiu que, nas circunstâncias atuais, era inútil considerar a questão da Reunião com nossos irmãos da Igreja Romana, estando dolorosamente ciente de que qualquer proposta de reunião seria considerada pelas autoridades daquela Igreja apenas com a condição de uma completa submissão de nossa parte a essas reivindicações de autoridade absoluta e à aceitação de outros erros, tanto na doutrina quanto na disciplina, contra os quais, em fidelidade à Santa Palavra de Deus e aos verdadeiros princípios de Sua Igreja, temos estado obrigados a protestar por trezentos anos » (Ibid., p. 159).

[13] J. Jewel, Uma Apologia da Igreja da Inglaterra, 1562; As Obras de John Jewel, ed. pela Parker Society, Cambridge, 1848, vol. I, pp. 81-552. R. Hooker, Tratado sobre as Leis da Polidade Eclesiástica, livros I-IV, 1594; livro V, 1597; livros VI-VIII, póstumos 1648, 1662 e 1648 (edição moderna em 2 vol., Biblioteca Everyman's, Dent and Sons, Londres, 1907). Sobre Jewel, veja também J.E. Booty, John Jewel como Apologista da Igreja da Inglaterra, Londres, 1903.

[14] Sobre a natureza e o conteúdo deste testemunho fundamental, tesouro comum a todas as Igrejas da Reforma, veja: W.H. VAN DE POL, Het Getuigenis van de Reformatie, Roermond, 1960 (tradução alemã: Das Zeugnis der Reformation, Essen, 1963).

[15] «A doutrina da Igreja da Inglaterra está fundamentada nas Santas Escrituras e nos ensinamentos dos antigos Pais e Conselhos da Igreja que são concordes com as referidas Escrituras. Em particular, tal doutrina pode ser encontrada nos Trinta e Nove Artigos da Religião, no Livro de Oração Comum e no Ordinal» (Canon Law Revision 1959, p. 10).

[16] «A Doutrina Romana a respeito do Purgatório, Perdões, Adoração e Veneração, tanto de Imagens quanto de Relíquias, e também a invocação dos Santos, é uma coisa vã, inventada em vão e sem garantia nas Escrituras, mas que, pelo contrário, é repugnante à Palavra de Deus». Os Artigos da Religião estão impressos nas edições correntes do Livro de Oração da Igreja da Inglaterra. Tradução francesa parcial de G. Coolen, História da Igreja da Inglaterra, Paris, 1932, pp. 182-191. O art. 22 está na página 186 e ss.

[17] «Os Sacramentos não foram instituídos por Cristo para serem apenas contemplados ou carregados, mas para que os utilizemos devidamente», art. 25 (Coolen, p. 187).

[18] «A transubstanciação (ou a mudança da substância do Pão e do Vinho) na Ceia do Senhor não pode ser provada pelas sagradas Escrituras; mas é repugnante às palavras claras das Escrituras, subverte a natureza de um Sacramento e deu ocasião a muitas superstições», art. 28 (Coolen, p. 188).

[19] «O Sacramento da Ceia do Senhor não foi, por ordenação de Cristo, reservado, carregado, levantado ou adorado»; art. 28 (Coolen, p. 188).

[20] «A Oferta de Cristo, feita uma vez, é a perfeita redenção, propiciação e satisfação por todos os pecados de todo o mundo, tanto os originais quanto os atuais; e não há outra satisfação pelo pecado, senão essa única. Por isso, os sacrifícios das Missas, nos quais se dizia comumente que o Sacerdote oferecia Cristo pelos vivos e pelos mortos, para ter remissão da pena ou da culpa, eram fábulas blasfemas e enganos perigosos»; art. 31 (Coolen, p. 189).

[21] «(Jesus Cristo) que fez ali (na sua Cruz), pela sua única oblação de si mesmo uma vez oferecida, um sacrifício pleno, perfeito e suficiente, oblação e satisfação, pelos pecados de todo o mundo; e instituiu, e em seu santo Evangelho nos ordenou, que continuemos uma memória perpétua de sua preciosa morte até sua vinda novamente» (Livro de Oração Comum, A Ordem para a Administração da Ceia do Senhor ou da Santa Comunhão).

[22] «...aceitavelmente, para aceitar este nosso sacrifício de louvor e ação de graças... E aqui oferecemos e apresentamos a Ti, ó Senhor, a nós mesmos, nossas almas e corpos, para ser um sacrifício razoável, santo e vivo para Ti» (Ibid.).

[23] O Concílio de Trento, sessão XXII (17 set. 1562), trata da doutrina do Santo Sacrifício da Missa (Denzinger 937a - 956). Cap. 2 «Sacrificium visibile esse propitiatorium pro vivis et defunctis». Can. I «Se alguém disser que na Missa não é oferecido a Deus um verdadeiro e próprio sacrifício, ou que a oferta não é outra coisa senão dar-nos Cristo para se comer A.S.» (anátama seja).

[24] E.J. BICKNELL-H.J. CARPENTER, Os Trinta e Nove Artigos da Igreja da Inglaterra, Londres, 3ª ed., 1953, p. 417: «Assim, este Artigo tem seu olhar em toda parte sobre os abusos medievais e sobre a tentativa do Concílio de Trento de protegê-los tanto quanto possível».

[25] «Como vimos, a mais recente negação romana de nossas ordens baseia-se em nossa rejeição de qualquer visão que considere o sacrifício da Eucaristia adicional ao de Calvário. Enquanto tal ensino for promovido, por mais refinada que seja a forma, o protesto de nosso Artigo não ficará ultrapassado» (Ibid., p. 418).

[26] «Refletimos com gratidão que não existem barreiras, como as apresentadas à comunhão com os latinos pela sanção formulada da Infallibilidade da Igreja residindo na pessoa do supremo pontífice, pela doutrina da Imaculada Conceição e outros dogmas impostos pelos decretos dos Conselhos Papais. A Igreja de Roma sempre tratou sua irmã Oriental injustamente. Ela intromete seus Bispos nas antigas Dioceses e mantém um sistema de proselitismo ativo». (The Six Lambeth Conferences, p. 115).

CAPÍTULO II - O ANGLICANISMO E A IGREJA ROMANA

III. A CONFERÊNCIA DE 1897 E AS ORDENAÇÕES ANGLICANAS

A Conferência de Lambeth de 1897 não delegou mais a questão da unidade cristã a três comissões distintas como anteriormente. Daqui em diante, há apenas uma única comissão, e essa maneira de proceder tornou-se a norma nas Conferências subsequentes, embora uma maioria, ao que parece, desejasse ver a comissão ecumênica dividida em várias subcomissões.

A comissão ecumênica de 1897 tinha a tarefa de "estudar e relatar sobre a questão da unidade cristã, tocando: a) as Igrejas do Oriente; b) a Comunhão latina; c) os outros grupos (Bodies) cristãos"[27]. Um parágrafo separado foi, portanto, dedicado à Igreja católica, como se tornou habitual até os dias de hoje.

Esse parágrafo, em 1897, dizia respeito exclusivamente à questão das ordenações anglicanas (ordinations). Sabe-se que essas ordenações foram declaradas inválidas por Leão XIII, no ano anterior, na Bula Apostolicae curæ de 13 de setembro de 1896.

Conformando-se a todos os decretos de seus predecessores sobre a mesma causa, confirmando-os plenamente e renovando-os por sua autoridade, o papa declarou:

"Por nosso próprio movimento e por ciência certa, pronunciamos e declaramos que as ordenações conferidas segundo o rito anglicano foram e são absolutamente vãs e inteiramente nulas, irritas prorsus fuisse et esse omninoque nullas"[28].

A possibilidade de uma aproximação e união entre Roma e Canterbury foi considerada pela primeira vez. Este início, no entanto, não foi feliz e promissor. Do ponto de vista ecumênico, há aqui um problema extremamente delicado, e por várias razões.

É claro, em particular, que a questão não é de natureza puramente jurídico-canônica. A declaração pontifical não tinha apenas o objetivo de recordar que a ordenação recebida na Igreja anglicana não era suficiente para conferir o poder de exercer o ministério na Igreja católica.

Uma exclusividade desse tipo também existe na Igreja anglicana, como pode ser visto no Ordinal de 1549. A prefa do Ordinal afirma, de fato, que "ninguém pode ser considerado legítimo bispo, sacerdote ou diácono na Igreja da Inglaterra se não tiver recebido o poder e não tiver sido ordenado de acordo com o rito do Ordinal, e se não tiver recebido anteriormente uma ordenação por um bispo"[29]. A prática da Igreja da Inglaterra demonstra que essa regra tem valor jurídico apenas dentro da referida Igreja e não pretende fazer nenhum julgamento sobre a validade dos ministérios e das ordenações das outras Igrejas[30].

As palavras "irritas prorsus fuisse et esse omninoque nullas" deixam claro que não se trata de ilicitude, mas de nulidade. A palavra irritas significa inválido no sentido de desprovido de efeito, sem propósito e vão; assim, as expressões omninoque nullas repetem de forma redundante que as ordenações são, em si mesmas, totalmente nulas e sem qualquer valor (em inglês: totally nul and void). Portanto, a declaração pontifical não tem um caráter histórico ou canônico, mas ontológico. O papa quer dizer com isso que as ordenações em questão não produzem, em nenhum aspecto, na ordem sobrenatural, os efeitos que pretendem produzir.

Isso não é pouca coisa. Compreendemos muito melhor o que isso implica, agora que ultrapassamos o estágio polêmico e apologético e que buscamos uma abordagem ecumênica. Isso significa que uma Igreja existiu durante vários séculos, que possui milhões de membros, que, em seu seio, dia após dia, uma multitude de ministros ordenados pensa estar cumprindo a tarefa que Cristo lhes confiou, mas que, segundo o julgamento de outra Igreja, não é realmente uma Igreja, e mais, que está em ilusão ao imaginar que seus ministros falam e agem pela autoridade de Cristo e que seus sacramentos têm a significação e a eficácia que ela lhes atribui e que ela, de boa fé, espera deles.

O batismo administrado por um eclesiástico anglicano constitui apenas uma exceção aparente. De fato, se a Igreja de Roma reconhece sua validade, não é porque o ministro da Igreja anglicana tenha recebido uma ordenação válida e administre o sacramento na qualidade de ministro de uma verdadeira Igreja. É unicamente porque, segundo a doutrina da Igreja romana, todo batismo é válido, independentemente do ministro, desde que seja conferido com água acompanhada da fórmula sacramental, e que a pessoa que baptiza tenha a intenção de "fazer o que faz a Igreja". A eventual reconhecimento de um batismo “não católico” não prova, portanto, nada em favor do ministério e dos sacramentos da Igreja em questão.

O que pode fazer uma Igreja que é atingida por uma declaração tão destrutiva quanto a da invalidade de suas ordenações? Sem dúvida, ignorar essa declaração e não levar em conta.

A Igreja que aceitaria tal declaração reconheceria, por esse fato, que não é uma Igreja no verdadeiro sentido da palavra e rebaixaria seu ministério sacramental ao nível de cerimônias desprovidas de conteúdo. Ela renunciaria, por esse mesmo fato, à sua própria existência. Em sua resposta detalhada de 28 de março de 1897, os arcebispos de Canterbury e de York escreveram sobre a declaração de nulidade de suas ordenações que ela era "uma carta escrita com a intenção de derrubar todo o nosso status eclesiástico"[31].

Os dois escritos, a carta do papa e a resposta dos arcebispos anglicanos, mostram que a questão pode ser abordada de diferentes ângulos. O papa examina a questão a partir da prática da Igreja e da teologia moral sobre a forma e a intenção que são exigidas para a validade das ordenações. Os arcebispos adotam um ponto de partida tipicamente reformado; eles partem, de fato, da Sagrada Escritura e da tradição da Igreja antiga. Além disso, eles acreditam que o papa não levou em conta a intenção geral, expressa na introdução ao Ordinal de 1549, que visava perpetuar os ministérios dos bispos, sacerdotes e diáconos que existem na Igreja desde a era apostólica. O papa, por sua vez, enfatiza a intenção pessoal dos compiladores do Ordinal e dos bispos que procederam às ordenações durante os reinados de Eduardo VI e Elizabeth I.

O papa fundamenta sua conclusão em dois fatos. O primeiro é que o Ordinal de 1549 omitiu intencionalmente certos trechos do rito romano, e o segundo, que o ofício eucarístico não possui mais, no Book of Common Prayer, o caráter do sacrifício da missa, mas se apresenta como um ofício de comunhão. A combinação desses dois fatos levou o papa à conclusão de que a intenção dos compiladores não se concentrou no que é necessário à validade. A fórmula: “Receba o Espírito Santo”, teria, portanto, adquirido um novo sentido que tornaria inválida a forma da ordenação.

O padre Francis Clark, S.J., tentou recentemente lançar alguma luz na discussão conduzida pelas duas partes desde 1896, focando em uma análise minuciosa da noção de intenção e dos argumentos baseados nessa noção na carta apostólica[32]. Ele também fornece uma visão abrangente dos escritos publicados de ambos os lados sobre a questão[33].

Voltaremos em nosso último capítulo para discutir o problema da validade das ordenações anglicanas, levando em conta a atual situação ecumênica. Aqui, nos limitaremos a expor a atitude adotada pela Conferência de Lambeth em 1897 em relação à declaração pontifical sobre a invalidação dessas ordenações.

A resposta conjunta dos arcebispos de Canterbury e de York é mais histórica do que dogmática. Eles viam de forma completamente diferente as consequências que resultaram da Reforma para a Igreja da Inglaterra, e estavam da opinião de que a carta apostólica apresentava uma imagem imprecisa das coisas. Além disso, acreditam que, se as objeções formuladas contra a forma e a intenção do Ordinal de 1549 fossem justificadas, também se poderia provar historicamente que a Igreja de Roma passou por períodos em que suas ordenações não satisfaziam à forma requerida (Accipe Spiritum Sanctum) nem à matéria exigida (imposição das mãos), o que deveria resultar na invalidez de suas próprias ordenações:

Assim, o papa aniquila suas próprias ordens ao remover toda validade às nossas; é assim que ele condena sua própria Igreja. Esse grande perigo de nulidade ameaçou a Igreja romana desde o dia em que o papa Eugênio IV introduziu uma nova matéria e uma nova forma de ordem sem mencionar aquelas que são a verdadeira matéria e a verdadeira forma deste sacramento. Ninguém, de fato, sabe quantas ordenações podem ter sido realizadas, conforme a doutrina deste papa, sem a imposição das mãos, e sem a forma que se adequa ao sacramento. O papa Leão XIII exige o uso de uma forma desconhecida aos bispos de Roma, seus predecessores, e a intenção que ele reclama ao mesmo tempo é defeituosa no catecismo da Igreja Oriental[34].

Ao olhar para as coisas do ponto de vista anglicano, seria precisamente a Igreja de Roma que, durante a Idade Média, caiu de uma inovação a outra, enquanto a Igreja da Inglaterra restabeleceu a ordem antiga de acordo com os requisitos da Palavra de Deus e dos princípios autênticos da Igreja de Deus. É evidente que, em tudo isso, Roma e Canterbury partiram de normas e concepções de autoridade radicalmente diferentes. Assim, nenhum dos argumentos apresentados alcançou seu objetivo junto ao partido oposto. O padre Clark já observava isso:

As mentes pouco preparadas para admitir que o magistério oficial da Igreja católica romana e o ensino reconhecido de seus teólogos fornecem um guia seguro nessas questões de teologia sacramental, não aceitarão a validade de minhas premissas (ou seja, as premissas católicas)[35].

A discussão sobre a validade das ordenações anglicanas não levará a nada enquanto se restringir estritamente ao tema das ordenações em si. Ela beneficiaria ao se situar em um nível eclesiológico tão amplo quanto possível. Será inútil reabrir o debate sobre a validade das ordenações anglicanas enquanto não se alcançar um acordo sobre a maneira de conceber a essência, a estrutura, o exercício e a autoridade da Igreja, assim como sobre a natureza e a disciplina dos sacramentos (em particular da Eucaristia) e, em estreita conexão com isso, sobre a natureza do sacerdócio.

Na realidade, nunca houve um diálogo sobre essas questões. Na época pré-ecumênica, as Igrejas se combatiam, não dialogavam. A carta apostólica Apostolicæ curæ e a resposta anglicana foram ambas monólogos, cujas conclusões estavam fixadas antes mesmo de qualquer troca de ideias com a outra parte.

Um diálogo ecumênico sobre essa matéria ainda é possível? Pode-se questionar se Leão XIII não o excluiu de antemão pela conclusão de sua carta. Ele escrevia, de fato:

Decretamos que esta carta e tudo o que ela contém não poderá jamais ser acusada de adição, supressão, falta de intenção de nossa parte ou qualquer outro defeito; mas que ela será sempre válida e em toda sua força, que deverá ser inviolavelmente observada por todos, independentemente do grau ou precedência que se tenha, seja em juízo ou fora dele; declarando vã e nula toda e qualquer adição que possa ser feita por quem quer que seja, qual seja sua autoridade e sob qualquer pretexto, conscientemente ou por ignorância, e nada contrário deverá criar obstáculo a isto[36].

Todas as possibilidades imagináveis estão aqui citadas e excluídas de forma definitiva. Uma brecha permanece: é que o texto foi redigido em um estilo curial ao qual talvez não se atribua em Roma a importância que muitas vezes se imagina em outros locais, e que essa forma de pretensão à autoridade perde seu sentido em nossa época.

De qualquer forma, não temos aqui uma definição dogmática infalível, mas uma norma disciplinar que por si só não é infalível. Essa declaração exige, enquanto permanecer em vigor, que seja observada por todos aqueles que estão sob a jurisdição do papa.

Não é impossível, no entanto, que, com a mudança das circunstâncias, as relações entre as duas Igrejas possam melhorar. Fatos e pontos de vista novos podem surgir, que tornariam desejável, ou mesmo necessário, um novo exame das ordenações anglicanas. É provável que, dada a difusão do espírito ecumênico, o papa não se sinta vinculado pelas decisões tomadas por seus predecessores em relação ao que é permitido e ao que é proibido na esfera ecumênica.

Não estamos de acordo com  o que diz o autor no parágrafo anterior.

Isso não quer dizer que a questão das ordenações anglicanas não seja um dos mais espinhosos problemas do ecumenismo. Parece-me que a declaração de invalidade se apoiou em fatos históricos realmente desfavoráveis. O principal desses fatos é que os autores do Ordinal de 1549, assim como os bispos dos reinados de Eduardo VI e Elizabeth I, reconheceram bem o fundamento escritural e a origem apostólica do triplo ministério de bispos, sacerdotes e diáconos, mas que, na verdade, tiveram uma concepção reformada do sacerdócio e das ordenações. Algumas publicações recentes, baseadas em um estudo das fontes, apenas confirmaram essa constatação. O luterano americano Cari Mayer, especialista em história eclesiástica, chega à seguinte conclusão:

Matthew Parker foi consagrado arcebispo (de Canterbury) em 17 de dezembro de 1559 na capela de Lambeth. William Barlow, John Scory, que fez o sermão de instalação, Myles Coverdale e John Hodgkins participaram do rito solene. Nem Matthew Parker, nem a rainha, nem ninguém mais se preocuparam em consagrá-lo na sucessão apostólica. Ele foi consagrado por bispos em razão da dignidade da função, não para obedecer à necessidade de manter uma continuidade ininterrupta. A sucessão apostólica só se tornou mais tarde uma preocupação dos homens da Igreja[37].

Seria possível estabelecer, com muitas provas a apoiar, que havia alguns “romanos” entre os bispos do reinado de Elizabeth. No entanto, a grande maioria deles era, em suas concepções e de fato, zwinglianos, calvinistas, puritanos ou luteranos. Parece-me excluído que esses bispos tenham podido ter, pessoalmente, durante as funções de uma consagração, a intenção “católica” de consagrar bispos ou ordenar sacerdotes e diáconos, o que é exigido pela Igreja de Roma como absolutamente necessário para a validade dessas ordenações. Portanto, é preciso perguntar-se se, e em que medida, a interpretação pessoal da intenção fixada pela Igreja tem algum efeito sobre a validade da ordenação.

O Dr. Norman Sykes, historiador da Igreja em Cambridge e depois reitor de Winchester (faleceu em 1961), reuniu inumeráveis materiais extremamente importantes destinados a esclarecer a concepção anglicana dos ministérios. Ele publicou essa documentação na obra intitulada Old Priest and New Presbyter[38]. Segundo esse autor, o anglicanismo do século XVI, ao continuar a usar a palavra "sacerdote", não a viu como sacerdos, mas como presbyter no sentido reformado da palavra.

Perguntemo-nos agora qual foi a reação da Conferência de Lambeth de 1897 à carta Apostolicæ curæ.

O parágrafo que aborda este assunto no relatório apresentado pela comissão ecumênica começa destacando que o papa Leão XIII manifestou em uma série de documentos seu desejo pela unidade cristã. "Infelizmente, ele declarou que a única base possível era o reconhecimento de sua supremacia papal como sendo de direito divino"[39]. A comissão aproveita a carta do papa sobre as ordenações anglicanas e a resposta dos arcebispos de Canterbury e de York para observar o seguinte:

Embora a controvérsia seja um método que raramente favorece a unidade, há, no entanto, razões para se mostrar grato: pelo tom cortês com que essa discussão foi conduzida; pelo fato de que o papa deixou de lado muitas coisas que eram irrelevantes para a questão e de valor duvidoso, mas que anteriormente tornavam a discussão sem saída; pela delimitação do alcance da controvérsia a alguns pontos bem definidos; pela ampla documentação que reúne os resultados de muitas pesquisas; e, finalmente, pelo desejo, manifestado de parte a parte, de buscar entender-se e evitar conscientemente os preconceitos. O desenvolvimento desse espírito dá valor mesmo a uma controvérsia; encaramos com total confiança o resultado de uma controvérsia desse tipo[40].

Esse trecho expressa bem a mentalidade ecumênica que caracteriza o anglicanismo até hoje. O ecumenismo, para os anglicanos, é mais uma atitude do que um sistema, mais uma intuição do que um plano preestabelecido. Ele avança buscando e tateando. Espera pouco, senão nada, da polêmica e da teologia da controvérsia. A tarefa da Igreja anglicana é descobrir novas possibilidades, estabelecer novas relações amistosas que possam gerar resultados práticos sem se esgotar em considerações teóricas sem fim. Sempre que surgem dificuldades insuperáveis, as Igrejas anglicanas esforçam-se para tirar o bem do mal; nunca fecham a porta ao sair, esperam pacientemente que uma oportunidade mais favorável se apresente e olham para o futuro com esperança.

A atitude ecumênica adotada pela Conferência de Lambeth em 1897 em relação à Igreja católica não a impediu de demonstrar sua simpatia pelas minorias protestantes que precisam lutar pela liberdade nos países católicos, nem por certos grupos dentro da Igreja de Roma, que "se esforçam para se libertar da autoridade usurpada da Sé de Roma, assim como nós que, há três séculos, reconquistamos nossa liberdade"[41]. A Conferência de Lambeth expressou particular simpatia pelos esforços realizados, então, no México e em outros lugares, para estabelecer uma hierarquia nacional e autônoma, "e também pelos homens sérios e corajosos da França, da Itália, da Espanha e de Portugal que foram levados a se libertar do fardo das condições ilegais exigidas pela Igreja de Roma para a recepção dos sacramentos"[42]. Essas palavras da encíclica de introdução são extraídas de uma das resoluções adotadas pela Conferência. A mesma resolução termina com as seguintes palavras:

Continuamos a observar esses movimentos com profundo e inquieto interesse, e oramos para que sejam abençoados e guiados pelo Deus todo-poderoso[43].

O princípio fundamental da atitude em relação à Igreja de Roma é estabelecido no parágrafo referente à comunidade latina por meio de uma reprise quase textual do trecho de 1888 já citado anteriormente[44].

Assim, chegamos às Conferências de Lambeth mais recentes. Observe-se que a atitude da Comunhão anglicana em relação à Igreja de Roma segue uma melhora lenta e contínua. É importante notar, no entanto, que os bispos anglicanos atribuem essa melhoria principalmente a mudanças encorajadoras que, para sua alegria, acreditam poder constatar na Igreja de Roma. Em sua opinião, a fonte da desavença não está de seu lado.

As Igrejas anglicanas, em conformidade com todas as outras Igrejas, veem na Igreja de Roma a única que merece severas críticas do ponto de vista cristão comum. Todas as Igrejas atribuem as divisões exclusivamente a Roma. A esperança que têm de restaurar a unidade é alimentada principalmente pela expectativa de ver a Igreja de Roma finalmente compreender que precisa, em muitos pontos, de uma revisão e renovação, para que, no que diz respeito a ela, possibilite a reconciliação, o aproximamento e a reunião que há tanto tempo desejam as outras Igrejas. Aos olhos do anglicanismo, assim como de todas as Igrejas surgidas da Reforma, a união com a Igreja de Roma está subordinada à vontade desta última de se submeter à Palavra de Deus não adulterada. Sempre que se consultam sobre o estado da questão, os bispos anglicanos observam no céu ecumênico os sinais preditivos de um novo dia. Eles os esperam "mais do que um vigia espera a aurora" (Salmo 130:6).


[27] «Relatório do Comitê nomeado para considerar e reportar sobre o assunto da Unidade da Igreja em sua relação: (a) às Igrejas do Oriente; (b) à Comunhão Latina; (c) a outros corpos cristãos» (Ibid., p. 243 et ss).

[28] «Portanto, concordando inteiramente com os decretos dos Pontífices predecessores nesta mesma causa, e confirmando e renovando plenamente com nossa autoridade, motu proprio, por ciência certa, proclamamos e declaramos que as ordenações realizadas pelo rito anglicano, foram e são totalmente nulas... » (Dz, 1966; trad. francesa: Cartas apostólicas de Leão XIII, Ed. Bonne Presse, tomo V, p. 75).

[29] «E, portanto, na medida em que essas ordens devam ser continuadas, e respeitosamente usadas e reconhecidas nesta Igreja da Inglaterra, é necessário que nenhum homem (não sendo neste momento Bispo, Sacerdote ou Diácono) execute qualquer uma delas, exceto se for chamado, testado, examinado e admitido, de acordo com a forma a seguir» (Os Primeiros e Segundos Livros de Oração do Rei Eduardo VI, Ed. Everyman's Library, Londres, reimpressão 1927, p. 292).

[30] Veja, por exemplo, N. Sykes, Antigo Sacerdote e Novo Presbítero, Cambridge, 1956, cap. II: «Uma paridade de ministros afirmada», p. 30 e ss, e cap. III: «Uma imparidade de ministros defendida», p. 58 e ss. Cf. C. Meyer, Elizabeth I e o assentamento religioso de 1559, St. Louis, EUA, 1960, pp. 75 e ss.

[31] «Que visava derrubar nossa posição total como Igreja» (Ordens Anglicanas, reimpressão 1957, p. 23). Na edição em latim, p. 21: «Quae totum nostrum statum ecclesiasticum subvertere conarentur». O texto da edição francesa (1897) foi utilizado aqui (parágrafo I, p. 7).

[32]F. Clark, Ordens Anglicanas e Defeito de Intenção, Longmans, Londres, 1956.

[33]F. Clark, obra citada, pp. 203 e ss.

[34]«Assim, ao derrubar nossas ordens, ele (o Papa) derruba todas as suas e pronuncia sentença sobre sua própria Igreja. Eugênio IV, de fato, colocou sua Igreja em grande perigo de nulidade quando ensinou um novo assunto e uma nova forma de Ordem e deixou o real sem nenhuma palavra. Pois ninguém sabe quantas ordenações podem ter sido feitas, segundo seu ensino, sem qualquer imposição de mãos ou forma apropriada. O Papa Leão exige uma forma desconhecida pelos bispos romanos anteriores e uma intenção que é defeituosa nos catecismos da Igreja Oriental» (Ordens Anglicanas, p. 60; edição francesa 1897: pp. 43-44).

[35] «Aqueles que não estão preparados para admitir que o magistério oficial da Igreja Católica Romana e o ensino aprovado de seus teólogos fornecem orientação segura nessas questões de teologia sacramental, não aceitarão a validade das minhas premissas» (Clark, obra citada, p. 202).

[36] «As presentes letras e tudo o que nelas está contido não poderão em nenhum momento ser notados ou impugnados por defeito de subreptício ou obreptício ou de nossa intenção, ou por qualquer outro defeito; mas sempre serão válidas e estarão em sua força e devem ser observadas por todos de qualquer grau e preeminência, inviolavelmente em juízo e fora dele; também declaramos nulo e sem efeito se, em contrariedade a isto, por qualquer um, de qualquer autoridade ou pretexto, deliberadamente ou ignorando, ocorrer tentar» (ASS, 29, 1896-1897, p. 203, e Ordens Anglicanas, p. 31; trad. francesa: Cartas Apostólicas de Leão XIII, Ed. Bonne Presse, tomo V, pp. 75 e 77).

[37] «No dia 17 de dezembro, Matthew Parker foi consagrado na Capela de Lambeth. William Barlow, John Scory, que também pregou o sermão de instalação, Myles Coverdale e John Hodgkins participaram do rito solene. Nem Matthew Parker, nem a rainha, nem outros estavam preocupados que ele fosse consagrado na «Sucedência Apostólica». Ele foi consagrado por bispos devido à dignidade do ofício, não por causa da necessidade de manter uma continuidade direta. A sucedência apostólica tornou-se a preocupação dos clérigos de uma geração posterior» (Carl MEYER, Elizabeth I e o Assentamento Religioso de 1559, St. Louis, EUA, 1960, p. 82).

[38] N. Sykes, Antigo Sacerdote e Novo Presbítero, Cambridge, University Press, 1956, 2ª edição 1957.

[39] «...mas, infelizmente, afirmando como sua única base o reconhecimento da supremacia papal como um direito divino» (The Six Lambeth Conferences, p. 246).

[40] «Embora a controvérsia raramente seja um método de promover a unidade, há motivos para agradecer pelo tom cortês com que grande parte dessa controvérsia tem sido conduzida; pelo abandono pelo Papa de muitos assuntos irrelevantes e espúrios que anteriormente tornavam a discussão desesperadora; pela limitação da esfera da controvérsia a pontos definidos; por uma grande quantidade de literatura auxiliar que incorpora os resultados de muitas pesquisas; e pelo desejo demonstrado de ambos os lados de entender e não distorcer conscientemente um ao outro. Se esse espírito aumentar, mesmo a controvérsia não terá sido em vão; e aguardamos a resultado de tal controvérsia com inteira confiança» (Ibid., p. 246).

[41] «Reconhecemos com grande simpatia os esforços que estão sendo feitos para escapar da autoridade usurpada da Sé de Roma, assim como nós mesmos recuperamos nossa liberdade há três séculos» (Ibid., p. 194).

[42] «Com os corajosos e dedicados homens da França, Itália, Espanha e Portugal que foram levados a se libertar do fardo dos termos ilegais de Comunhão impostos pela Igreja de Roma» (Ibid., p. 194).

[43] «Continuamos a observar esses movimentos com profundo e ansioso interesse, orando para que sejam abençoados e guiados pelo Deus Todo-Poderoso».

[44] Veja p. 52.

CAPÍTULO II - O ANGLICANISMO E A IGREJA ROMANA

IV. A CONFERÊNCIA DE LAMBETH DE 1908

O relatório da comissão ecumênica da Conferência de 1908 foi introduzido por uma consideração geral. Nele se recordava a 34ª resolução da Conferência anterior (1897): “Toda oportunidade deve ser aproveitada para destacar que o desígnio divino da unidade visível entre cristãos faz parte da revelação”[45].

Partindo dessa dado revelado, a comissão considerava que deveria tirar uma consequência prática sobre uma condição importante que deve ser respeitada em todo projeto de reunião futura. De fato, em todas as tentativas de união entre Igrejas particulares, estas correm o risco de restringir seu horizonte ecumênico a seus problemas limitados e de negligenciar a perspectiva do todo. É por isso que a comissão propõe à Conferência a adoção da seguinte resolução:

A Conferência reafirma a resolução da Conferência de 1897 (segue o texto da resolução 34). Além disso, deseja afirmar que em todos os projetos de união e intercomunhão, o cumprimento final do desígnio de Deus deve permanecer diante de nossos olhos como o objetivo que buscamos, e que é necessário executar o que pode avançar a reunião de toda a cristandade e abster-se de fazer qualquer coisa que possa retardá-la ou impedi-la[46].

Essa resolução é de natureza concreta e prática, não abstrata e teórica; ela está destinada a guiar a ação. Pode-se, portanto, considerar como a diretriz essencial e o princípio próprio que orientam as Igrejas anglicanas em seu pensamento e ação no plano ecumênico. Este princípio fundamental e de importância primária para qualquer trabalho ecumênico válido já era claramente percebido pelos bispos da Comunhão anglicana muito antes do início do atual movimento ecumênico.

Os anglicanos permaneceram fiéis a esse princípio. Sem uma noção exata desse princípio, muitas vezes é difícil compreender a maneira como os anglicanos abordam a problemática ecumênica, assim como sua atitude em relação às outras Igrejas. É na linha desse princípio que se devem ler as considerações expressas no relatório da comissão sobre "a Comunhão latina".

A comissão de 1908 acreditava poder constatar três mudanças importantes nas relações da Igreja latina com todo o mundo cristão:

  1. a entrada mais livre dos teólogos romanos no campo da ciência moderna...;

  2. a tendência de um grande número de cristãos, que não pertencem à Comunhão católica romana, e muitas vezes nem mesmo são membros das Igrejas episcopais, de considerar com uma esperança simpática essa grande Comunhão, como dando corpo a aquele ideal que em grande parte falta a muitas seitas cristãs hoje em dia; isso ainda mais porque um novo espírito de liberdade intelectual, reforma eclesiástica e social está agitando a Igreja romana...;

  3. ao mesmo tempo, um interesse crescente manifesta-se na literatura corrente da Igreja romana pelas práticas das outras Igrejas, a nossa em particular, interesse que às vezes é acompanhado do sentimento das deficiências da própria Igreja latina, para as quais se deve buscar um remédio fora[47].

Esses mudanças e outras desse tipo continuam a se desenvolver até hoje; tornaram-se coisa evidente para todo observador bem-disposto e imparcial. Desde 1908, os bispos anglicanos as discerniram, e desde essa data concluíram que “esses sintomas davam boas esperanças para o futuro”[48]. No entanto, mantinham a opinião já expressa nas Conferências anteriores, a saber que nas circunstâncias presentes, é inútil considerar a questão de uma intercomunhão possível com nossos irmãos da Comunhão romana; toda proposta desse tipo só seria aceita sob condições inaceitáveis para nós[49].

Isso não impediu que os bispos anglicanos desejassem insistir em sua convicção de que nenhum projeto de união poderá ser considerado satisfatório se deliberadamente deixar de fora as Igrejas da Comunhão latina. Em consequência, eles (os dirigentes da comissão) desejam, em lugar nenhum mais do que aqui, insistir junto a nossos representantes no exterior sobre a importância de, enquanto mantêm firmemente nossa própria posição, testemunhar toda a cortesia cristã às Igrejas desses países e suas autoridades eclesiásticas; eles também querem dizer o quanto é desejável que todos os capelães escolhidos para exercer um ministério na Europa ou em outros lugares recebam a instrução de manifestar essa cortesia[50].

Finalmente, os membros da comissão dedicaram uma exposição detalhada à delicada questão dos casamentos mistos celebrados no exterior. Os bispos alertam sobre as consequências decorrentes dos casamentos com católicos romanos, pois entre as garantias exigidas nesse caso pela Igreja católica romana está a promessa de que os filhos que nascerem dessa união serão educados “em uma religião que a parte anglicana não pode aceitar em consciência”[51].

A encíclica da Conferência de 1908 não menciona em momento algum a Igreja de Roma. Esta, sem dúvida, deve ter estado presente na mente dos bispos durante a redação, como atestam as declarações que parecem ser formuladas em sua direção, por exemplo, quando os bispos consideram necessário especificar: “Pertencemos a uma Igreja que (...). é a Igreja dos homens livres e que os educa na compreensão da liberdade da qual Cristo nos libertou”[52]. Ou ainda: “Não podemos pensar em alienar, em nome da paz, os bens dos quais somos feitos administradores. Menos ainda podemos desejar que os outros sejam infiéis às obrigações que consideram não menos sagradas”[53].

A posição da Conferência de 1908 em relação aos casamentos com católicos romanos resultou na adoção de uma resolução específica:

Desejamos dar aos membros de nossa Comunhão um severo aviso contra os casamentos celebrados com católicos romanos nas condições impostas pelo direito canônico atual de Roma, especialmente porque entre essas condições está a celebração do casamento sem nenhuma oração ou invocação das bênçãos divinas, e a promessa de que os filhos da parte anglicana serão educados em uma religião que ela mesma não pode aceitar[54].

Do lado anglicano, existem dois principais ressentimentos contra a Igreja de Roma. O primeiro diz respeito às disposições paralisantes que as minorias protestantes devem suportar em certos países católicos. O outro ressentimento refere-se à prática de casamentos mistos. A ideia que a Igreja de Roma tem de si mesma, como possuidora da verdade pura e completa, e das outras Igrejas, como estando em erro, não é, aos olhos dos anglicanos, um motivo suficientemente fundamentado para impor a alguém uma condição que, em consciência, ele não pode aceitar.

A Igreja de Roma deveria ser a primeira a condenar uma promessa contrária à convicção religiosa pessoal. O que pode resultar disso é apenas uma falta de sinceridade. Os anglicanos acreditam que, ao exigir tal promessa da parte não católica, a Igreja de Roma demonstra que não considera necessário levar em conta outra convicção religiosa, a qual não possui, aos seus olhos, valor real e positivo.


[45] «Que cada oportunidade seja aproveitada para enfatizar o propósito divino da unidade visível entre os cristãos, como um fato de revelação» (The Six Lambeth Conferences, p. 205).

[46] «Esta Conferência reafirma a resolução da Conferência de 1897 que (segue a resolução 34, 1897). Deseja ainda mais afirmar que em todos os projetos parciais de reunião e intercomunhão o objetivo final do propósito divino deve ser mantido em vista; e que deve-se ter cuidado para fazer o que avança a reunião de toda a Cristandade e abster-se de fazer qualquer coisa que atrase ou impeça isso» (Ibid., p. 331, resolução 58).

[47] «(1) Eles notam a entrada mais livre de teólogos católicos romanos no campo geral da erudição moderna...; (2) eles notam a tendência de muitos que não pertencem à Comunhão Católica Romana, ou, de fato, em muitos casos, membros de qualquer Igreja episcopal, de olharem com esperança simpática para aquela grande Comunhão como incorporando ideais que julgam ausentes em grande parte do cristianismo setorial de hoje, e isso tanto mais quando veem um novo espírito de liberdade intelectual e reforma eclesiástica e social agitando-se dentro de suas fronteiras; (3) ao mesmo tempo, percebem na literatura atual da Igreja Católica Romana um crescente interesse nas preocupações práticas de outras Igrejas, e não menos da nossa, que às vezes é acompanhada com uma sensação de deficiências na própria Igreja Latina para a qual um remédio terá que ser buscado fora» (Ibid., p. 426; trad. francesa por J. de la SERVIÈRE em Études, tomo 117, 5 out. 1908, p. 24).

[48] «Essas indicações iluminam as perspectivas para o futuro» (Ibid., p. 426).

[49] «...que nas circunstâncias atuais é inútil considerar a questão da possível intercomunhão com nossos irmãos daquela Comunhão, tendo em vista o fato de que nenhuma proposta desse tipo seria considerada, exceto sob condições que seriam impossíveis para nós aceitar» (Ibid., p. 426; trad. cite nota 43, p. 26).

[50] «No entanto, desejam registrar sua convicção de que nenhum projeto de união pode ser considerado satisfatório que deliberateiramente exclua as Igrejas da Comunhão Latina; e em nenhum lugar mais do que aqui eles enfatizariam a importância do cultivo de relações de cortesia amigável por parte de nossos representantes no exterior em relação às autoridades eclesiásticas nos países onde vivem, e a desejabilidade de que todos os capelães escolhidos para servir no continente europeu e em outros lugares sejam instruídos a mostrar essa cortesia» (Ibid., p. 426).

[51] «em um sistema religioso que o pai anglicano não pode aceitar conscientemente» (Ibid., p. 427).

[52] «Pertencemos a uma Igreja que, nas palavras de um de nossos membros que já descansou, é a Igreja dos homens livres, educando-os para o conhecimento da liberdade com que Cristo nos libertou» (Ibid., p. 295).

[53] «Não ousamos, em nome da paz, trocar essas coisas preciosas das quais fomos feitos mordomos». Cf. texto II p. 23. (Ibid., p. 315).

[54] «Desejamos ardentemente advertir os membros de nossa Comunhão contra o contrato de casamentos com católicos romanos nas condições impostas pelo moderno direito canônico romano, especialmente porque essas condições envolvem a realização da cerimônia de casamento sem qualquer oração ou invocação da bênção divina, e também uma promessa de que seus filhos sejam educados em um sistema religioso que eles mesmos não podem aceitar» (Ibid., p. 333, resolução 67; trad. citada, p. 26).

CAPÍTULO II - O ANGLICANISMO E A IGREJA ROMANA

V. A CONFERÊNCIA DE 1920 E O APELO DE LAMBETH

A Primeira Guerra Mundial retardou a convocação da sexta Conferência de Lambeth. Essa conferência se reuniu em 1920, no início de uma época marcada por condições sociais e religiosas totalmente novas. Um novo vento soprava tanto nas Igrejas cristãs quanto na vida dos povos e Estados. Um grande esforço foi feito, logo após a Primeira Guerra Mundial, para promover a fraternidade entre os povos e estabelecer uma paz duradoura, fundamentada no direito internacional. Esse esforço foi apoiado pelas Igrejas por meio da “Aliança Universal para a Amizade Internacional das Igrejas”. (Essa Aliança entrou, em Amsterdã em 1948, no Conselho Ecumênico das Igrejas, assim como o Conselho Internacional das Missões em 1961).

O ano de 1920 viu serem implementados os primeiros preparativos que deveriam inaugurar o nascimento definitivo do movimento ecumênico com a convocação de conferências internacionais, a conferência Life and Work em Estocolmo em 1925 e a conferência Faith and Order em Lausanne em 1927. O movimento ecumênico estava, assim, realmente em andamento.

Ao olharmos para o período entre as duas guerras mundiais, temos a impressão de que só conseguimos vislumbrar um primeiro começo, uma primeira tentativa de orientação, um prelúdio provisório à transformação profunda da qual participamos hoje em todos os domínios, particularmente no da vida religiosa e eclesiástica. Na história do movimento ecumênico, o ano de 1920 representa apenas um início, mas um início que teria consequências de grande alcance.

Parece que uma segunda guerra mundial foi necessária para sacudir as Igrejas e os povos e fazê-los compreender que um retorno à época anterior à guerra estava excluído, que a construção de um futuro, em muitos aspectos totalmente novo, era uma necessidade. A terceira assembleia do Conselho Ecumênico das Igrejas em Nova Délhi provou, de maneira evidente, que a concepção ecumênica ganhou quase todas as Igrejas. Esse desenvolvimento do ecumenismo suscita nossa estima e admiração pela iniciativa que foi tomada em 1920 pela Comunhão anglicana, quando lançou o Apelo de Lambeth a todos os cristãos sem distinção. (Esse apelo será objeto de um capítulo distinto.)

A Igreja de Roma não foi mencionada uma única vez, nem na encíclica, nem nas 80 resoluções adotadas pela Conferência de 1920. No entanto, no relatório da comissão ecumênica, a terceira parte, que trata da atitude em relação à união com as Igrejas episcopais, começa com uma declaração sobre a "Comunhão latina":

Sua comissão é da opinião que é impossível estabelecer um relatório sobre a união entre as Igrejas episcopais sem mencionar a Igreja de Roma, mesmo que nenhuma resolução deva ser proposta a seu respeito. Não podemos fazer melhor do que retomar para nós os termos do relatório de 1908, que nos lembra que "nenhum projeto de união poderá jamais cumprir o desígnio divino se não incluir, em última análise, a grande Igreja latina do Ocidente, à qual nossa história foi intimamente entrelaçada no passado, e à qual ainda está unida por muitos pontos de fé e tradição". Mas nos damos conta de que "toda avance nesse sentido nos é, por enquanto, interditada pelas dificuldades que não criamos nós mesmos e que não podemos dissipar por nós mesmos". Se algum dia a Igreja de Roma manifestar o desejo de discutir as condições de uma reunião, estaremos prontos para acolher favoravelmente tais discussões. Queremos ainda chamar brevemente a atenção para os movimentos que ocorrem na Igreja de Roma e que podem dar frutos no futuro[55].

O relatório menciona uma série de fatos no plano das relações humanas, dos quais se conclui que uma mudança favorável está ocorrendo em muitos católicos romanos em sua atitude, apreciação e estima em relação aos cristãos não romanos. Os contactos que remontam aos anos da guerra parecem ter contribuído amplamente para "um melhor conhecimento e uma melhor compreensão das posições recíprocas". A exposição chega à seguinte conclusão:

É claro que nenhum passo adiante pode ser dado atualmente; mas os fatos assinalados acima podem contribuir para criar no futuro uma situação totalmente diferente[56].

Essa citação fala por si mesma. A Comunhão anglicana inclui a Igreja de Roma em sua reflexão e em seus esforços ecumênicos. Ela mantém intencionalmente a porta aberta nesse sentido. Acompanha com interesse o que ocorre dentro da Igreja de Roma. Ela espera poder em breve vislumbrar sinais que tornem possível a abertura de relações oficiosas, ou mesmo oficiais. Ela permanece constantemente atenta a qualquer sinal favorável vindo de Roma, pronta para saudá-lo imediatamente com alegria.


[55] «Seu Comitê sente que é impossível fazer qualquer Relatório sobre a Reunião com Igrejas Episcopais sem alguma referência à Igreja de Roma, mesmo que não tenha resolução a propor sobre o assunto. Não podemos fazer melhor do que adotar as palavras do Relatório de 1908, que nos lembra do "fato de que não pode haver cumprimento do propósito divino em qualquer esquema de reunião que não inclua, em última análise, a grande Igreja Latina do Ocidente, com a qual nossa história esteve tão intimamente associada no passado, e à qual ainda estamos ligados por muitos laços de fé e tradição comuns". Mas nos damos conta de que - para continuar a citação - "qualquer avanço nessa direção está atualmente barrado por dificuldades que não criamos e que não podemos remover por nós mesmos". No entanto, se a Igreja de Roma em algum momento desejar discutir condições de reunião, estaremos prontos a acolher tais discussões. Além disso, desejamos indicar muito brevemente que estão ocorrendo movimentos na Igreja de Roma que podem ser frutíferos no futuro...» (A Conferência de Lambeth de 1920, p. 144).

[56] «É óbvio que nenhum passo adiante pode ser dado ainda; mas os fatos assim referidos podem ajudar a criar, no futuro, uma posição muito diferente» (Ibid., p. 144).

CAPÍTULO II - O ANGLICANISMO E A IGREJA ROMANA

VI. A CONFERÊNCIA DE 1930 E AS CONVERSAÇÕES DE MALINES

A comissão ecumênica da sétima Conferência de Lambeth reafirmou, apoiando-a, a declaração já feita em 1908 e 1920: nenhum projeto de união pode, em última análise, realizar o desígnio de Deus que, conscientemente ou não, negligencie a grande Comunhão latina. Desde as origens do movimento ecumênico, as Igrejas da Comunhão anglicana observaram bem que nenhuma unidade cristã pode ser completada se a Igreja de Roma não estiver incluída ou não se deixar incluir.

Assim, a comissão acrescenta, em 1930, à declaração das duas Conferências anteriores a seguinte precisão complementar:

Por mais fracas que possam parecer agora as chances de alcançar um tal ideal, o sentimento da comissão é que, em toda tentativa de reunião, deve-se ter em vista a unidade da Igreja inteira; e ela não abandona a esperança de que a atitude da Igreja de Roma, ao menos em algumas partes do mundo, possa mudar em um futuro relativamente próximo[57].

Além disso, o parágrafo dedicado à Igreja de Roma (denominada desta vez: Igreja católica romana, e não mais: Comunhão latina) se situa inteiramente sob o signo das Conversações de Malines, que ocorreram de 1921 a 1925 entre alguns católicos romanos e alguns anglicanos[58]. Em certo sentido, é permitido considerar essas Conversações como um resultado do Apelo de Lambeth, apesar de seu caráter estritamente privado. Os termos que introduzem o parágrafo sobre a Igreja católica parecem sugerir que uma cópia do Apelo de Lambeth foi enviada ao papa em 1920 e "que uma resposta polida foi recebida". Após essa breve alusão, o relatório trata imediatamente das Conversações de Malines: "A coisa mais importante que temos a comunicar consiste nas Conversações que ocorreram em Malines, de 1921 a 1925, sob a presidência do cardeal Mercier". O relatório insiste fortemente no fato de que tanto o arcebispo de Canterbury quanto o cardeal Mercier declararam explicitamente que os participantes dessas Conversações não receberam nenhum mandato de suas respectivas Igrejas e não podiam, portanto, ser considerados seus representantes oficiais. O objetivo dessas conversas era simplesmente um "aproximamento dos corações".

É conhecida a amizade íntima que unia o cardeal Mercier e Lord Halifax. Mas não a eles se deve atribuir o fracasso final das Conversações, sua cessação, nem, principalmente, a profunda decepção sentida por alguns dos participantes anglicanos (notavelmente por Walter Frere, famoso liturgista anglo-católico, bispo de Truro de 1923 a 1938). Após a morte do cardeal Mercier em 1926, Roma proibiu a continuação das Conversações. Pouco depois, em 6 de janeiro de 1928, foi publicada a encíclica Mortalium animos, da qual não se pode dizer que saudou com alegria o nascimento do movimento ecumênico, nem que manifestou um verdadeiro interesse por seu desenvolvimento futuro. A esse respeito, é importante notar que Roma, posteriormente, demonstrou uma compreensão crescente e um interesse mais positivo.

A comissão ecumênica da Conferência de 1930 não se deixou, entretanto, desanimar pelos reveses sofridos. Ela manteve firmemente sua convicção de que conversas e conferências ecumênicas mantêm seu valor, quando conduzidas com lealdade, e "lamentou profundamente que, por decisão do papa, todos os encontros desse tipo fossem proibidos e que não fosse permitido aos católicos romanos participar das conferências sobre a unidade. Diversas razões nos autorizam a crer que a mesma decepção é sentida por mais de um membro da Igreja de Roma"[59].


[57] «Por menor que possa ser a perspectiva, neste momento, de se alcançar tal ideal, o Comitê sente que em qualquer tentativa de Reunião a unidade de toda a Igreja deve estar em suas mentes, e não está sem esperança de que a atitude da Igreja de Roma possa mudar em algumas partes do mundo, ao menos, no futuro não muito distante» (A Conferência de Lambeth de 1930, p. 131).

[58] Veja: As Conversas em Malines 1921-1925 (Relatório apresentado ao Arcebispo de Cantuária pelos Membros Anglicanos), Milford, Londres, 1926 (o texto inglês e a versão francesa estão dispostos lado a lado); As Conversas em Malines 1921-1925 (documentos originais publicados por Lord HALIFAX), Allan, Londres, 1930 (os textos são publicados na língua em que foram apresentados durante as Conversas); W.H. FRERE, Recordações de Malines, Centenary Press, Londres, 1930; J. DE BIVORT DE LA SAUDÉE, Anglicanos e Católicos. O problema da união anglo-romana (1833-1933), Plon, Paris, 1948.

[59] «...lamentamos muito que, pela ação do Papa, todas essas reuniões tenham sido proibidas, e os católicos romanos tenham sido proibidos de participar de conferências sobre Reunião. Esse lamento, acreditamos, é compartilhado por muitos membros da Igreja de Roma» (A Conferência de Lambeth de 1930, p. 131).

CAPÍTULO II - O ANGLICANISMO E A IGREJA ROMANA

VII. A CONFERÊNCIA DE LAMBETH DE 1948

Tal era a situação no momento em que estourou a segunda guerra mundial. Devido aos eventos, não foi possível reunir uma nova Conferência em Lambeth até 1948, ano em que foi fundado o Conselho Ecumênico das Igrejas. Pela primeira vez, percebemos um tom um tanto amargo no parágrafo dedicado à Igreja católica romana. Sem dúvida, este texto se abria mais uma vez com a declaração: nenhum projeto de reunião pode pretender realizar o desejo de unidade desejado por Deus se não incluir a Igreja de Roma. No entanto, a comissão acrescentou o seguinte:

Mas a carta encíclica sobre os meios de promover a unidade (Mortalium animos) publicada pelo papa Pio XI em 1928 mostrou uma vez mais, com toda a clareza desejável, que a única metodologia de reunião que Roma quer admitir é a submissão à papalidade. Durante os vinte anos que se passaram, não houve o menor indício de uma diminuição dessa exigência. Por outro lado, é impossível para as Igrejas da Comunhão anglicana aceitá-la. Deve-se lembrar que, além da questão da posição da papalidade, ainda existem divergências muito graves de fé e disciplina entre nós e a Igreja católica romana, que fazem com que, no momento, iniciativas visando à intercomunhão tenham poucas chances de ter sucesso[60].

A comissão então recorda as Conversações de Malines, e o monitum de 5 de junho de 1948, que proibia os católicos de realizarem reuniões ecumênicas com outros cristãos, mas também a frutífera colaboração que se estabeleceu entre católicos e protestantes durante a guerra mundial, tanto na Inglaterra quanto no continente, e ainda os apelos repetidos do papa à cooperação de todos os cristãos em nível social e internacional. A comissão então acrescenta:

Mas, para falar francamente, estamos constrangidos pela aparente contradição entre esses convites gerais à cooperação frequentemente dirigidos pelo papa, e a atitude de muitos católicos romanos em diversos países, quando se trata de estabelecer programação concreta. Também houve decepção pelo fato de que certos relatórios, algumas formas de cooperação que surgiram em vários países durante a guerra e que pareciam cheias de futuro, não tenham sido continuadas. Embora a cessação desses relatórios em determinados países possa ter sido puramente acidental, permanecemos sinceramente perplexos. De fato, podem surgir dificuldades relacionadas à interpretação e aplicação da liberdade religiosa, e outras dificuldades de toda sorte[61].

A comissão concluiu sua crítica à atitude católica destacando exceções notórias a essa recusa de cooperar: amizades pessoais, contatos em eventos sociais e filantrópicos. Também se alegrou que os católicos pudessem se unir, em certas ocasiões, a outros cristãos na recitação da oração do Senhor.

O texto da comissão terminava com a seguinte conclusão:

Temos consciência da urgente necessidade de uma cooperação entre católicos romanos e outros cristãos em uma base comum que não touche às questões fundamentais de constituição eclesiástica ou de doutrina que nos dividem. Acreditamos que ainda há um campo muito amplo fora da fé e da constituição eclesiástica. É por isso que daríamos grande importância a qualquer esclarecimento adicional da parte católica romana sobre a maneira de realizar tal cooperação, e ficaríamos gratos se pudéssemos encontrar um meio de torná-la plenamente eficaz. Acreditamos que do lado anglicano, nenhum esforço será negligenciado[62].

As Igrejas anglicanas mostrar-se-ão, durante um quarto de século, os defensores incansáveis da prioridade de Faith and Order sobre Life and Work. Estão persuadidas, de fato, de que a questão ecumênica diz respeito, em última análise, à restauração da unidade de fé e da comunhão eclesiástica. Portanto, é lamentável que, precisamente em suas relações com Roma, tenham se visto constantemente afastadas para um nível de cooperação puramente prática.

Embora a porta tenha permanecido aberta nesse sentido, pode-se dizer que a Conferência de Lambeth de 1948 marcou o ponto mais baixo nas relações entre Canterbury e Roma.


[60] «Mas a Carta Encíclica sobre o fomento da união (Mortalium Animos), emitida pelo Papa Pio XI em 1928, deixou imediatamente claro que o único método de reunião que Roma aceitará é o de submissão ao Papado. Não há sinais de qualquer diminuição dessa exigência nos últimos vinte anos. E também não há possibilidade de aceitação por parte das Igrejas da Comunhão Anglicana. Deve-se lembrar que, além da questão da posição do Papado, ainda existem divergências sérias em fé e prática entre nós e a Igreja Católica Romana, que tornam a perspectiva de abordagens esperançosas para a intercomunhão pouco promissora para o presente» (A Conferência de Lambeth de 1948, II, p. 66).

[61] «Mas estamos francamente perplexos com a aparente contradição entre esses repetidos convites gerais à cooperação que o próprio Papa emitiu e a atitude de muitos católicos romanos em países específicos quando se trata de programas definidos. Também tem sido uma decepção que certos relacionamentos cooperativos que pareciam promissores em alguns países durante a guerra não foram mantidos. O fato de não serem mantidos em países específicos pode ser puramente acidental, mas estamos genuinamente perplexos. Dificuldades ocorrem sobre o significado e a aplicação da liberdade religiosa; e há outras dificuldades de vários tipos» (Ibid., p. 67).

[62] «Estamos conscientes da urgente necessidade de cooperação entre católicos romanos e outros cristãos em um terreno comum onde as questões finais de organização da Igreja e doutrina que nos dividem não sejam levantadas. Acreditamos que a área, fora do campo da fé e da ordem, é muito grande. Portanto, valorizaríamos enormemente uma maior explicação da parte católica romana sobre a maneira de tal cooperação e ficaríamos agradecidos se pudesse ser encontrado um caminho para torná-la plenamente eficaz. Sentimos que nenhum esforço será poupado da parte dos membros da Comunhão Anglicana» (Ibid., p. 68).

CAPÍTULO II - O ANGLICANISMO E A IGREJA ROMANA

VIII. MELHORIA DAS RELAÇÕES DESDE 1949

A Conferência de 1958

A situação começou a melhorar a partir de dezembro de 1949, devido à publicação em Roma de uma instrução que exortava todos os bispos "não apenas a velar diligentemente e eficazmente sobre todo esse movimento (em vista da unidade cristã), mas também a promovê-lo e dirigi-lo com prudência"[63].

Essa instrução marca um ponto de virada decisivo na atitude do Vaticano em relação ao movimento ecumênico. Ela é a origem da melhoria lenta, mas contínua, que, desde 1950, e em particular sob o pontificado de João XXIII, tem ocorrido nas relações entre a Igreja de Roma e as outras Igrejas cristãs.

A melhoria assim inaugurada foi registrada com satisfação pelo relatório apresentado pela comissão ecumênica na Conferência de Lambeth de 1958:

Embora a Igreja católica romana mantenha sua convicção de que o único objetivo da reunião seja a submissão à papalidade, alguns sinais, que são bem-vindos, mostram que as autoridades romanas reconhecem mais a importância do movimento ecumênico[64].

O relatório, em consequência, dedicou uma breve análise à instrução do Santo Ofício sobre o diálogo ecumênico e ressaltou a participação crescente dos fiéis de todas as Igrejas na Semana Universal de Oração pela Unidade Cristã, de 18 a 25 de janeiro, “com uma ampla aprovação das autoridades católicas romanas”[65].

A comissão manifestou seu acordo com a fórmula da intenção de oração proposta pelo presbítero Couturier para a Semana da Unidade. Essa fórmula exclui qualquer a priori quanto ao caminho da unidade, uma vez que a oração pede que a unidade dos cristãos se realize “como Cristo a quer e pelos meios que Ele desejar”. A comissão é da opinião de que “a observância simultânea dessa Semana pelos católicos romanos e pelos membros de outras Igrejas é uma contribuição valiosa à busca da unidade”[66].

Esse era, portanto, em 1958, o estado das relações entre a Comunhão anglicana e a Igreja de Roma, após mais de meio século de oração, expectativa, reflexão e ação.

Os anos transcorridos desde então testemunharam profundas mudanças na situação ecumênica, graças ao interesse, à compreensão e à caridade do papa João XXIII em relação ao movimento ecumênico. O Concílio Vaticano II, que deveria abrir-se em 11 de outubro de 1962, tinha como principal objetivo o renovamento interior da Igreja de Roma. Mas sabe-se que o papa também o via como uma contribuição essencial para a promoção da unidade cristã.

Não faltam sinais que atestam que a melhoria das relações não se deve apenas à celebração do Concílio em si. Pode-se pensar também em todo o trabalho desencadeado pelas comissões pré-conciliares, que deve continuar posteriormente. Pode-se ainda considerar o Secretariado para a Unidade, presidido pelo cardeal Bea, que tem por tarefa manter relações com os representantes das outras Igrejas. Um secretariado semelhante foi, aliás, instituído na própria Inglaterra. Por fim, deve-se pensar na presença de observadores anglicanos no segundo Concílio do Vaticano como um sinal manifesto do estreitamento em curso. A história nos dirá a participação dos observadores anglicanos no trabalho conciliar.

É com uma impaciência cheia de esperança que aguardamos a próxima reunião da Conferência de Lambeth. Esta está prevista para o verão de 1968, portanto menos de três anos após a conclusão do Concílio Vaticano. A obra realizada pelo Concílio em favor da unidade, e em particular o decreto sobre o ecumenismo, com sua menção especial à Comunhão anglicana[67], não deixará de suscitar entre os bispos reunidos em Lambeth uma nova reflexão sobre o problema das relações entre o anglicanismo e a Igreja romana[68].


[63] Texto em latim: AAS. 42 (1950), pp. 142-147 (a citação está na página 143). Trad. francesa: Irénikon 23 (1950), pp. 221-228, DC, 47 (1950), col. 329-335. (A frase citada está no início do n° I: Irénikon, p. 223 e DC, col. 331.)

[64] «Embora a Igreja Católica Romana mantenha sua convicção de que o único objetivo da reunificação deve ser a submissão ao Papado, há alguns sinais bem-vindos de um reconhecimento crescente por parte das autoridades romanas da importância do Movimento Ecumênico» (A Conferência de Lambeth de 1958, II, p. 48).

[65] «Com muito aval oficial católico romano» (Ibid., p. 49).

[66] «As observâncias simultâneas desta Semana por católicos romanos e por membros de outras Igrejas são uma valiosa contribuição para os esforços em direção à unidade» (Ibid., p. 49).

[67] Concílio Vaticano II, Decreto Unitatis Redintegratio, § 13 (início do capítulo III). (Nota do tradutor.)

[68] As cinco últimas frases deste capítulo foram adaptadas à situação pós-conciliar. (Nota do tradutor.)