ABREVIADO DE DEMONOLOGIA

Aplicação da Demonologia Cristã à crise da Sociedade Contemporânea.

INTRODUÇÃO

Qual pode ser, em nossa época, a utilidade de um estudo sobre a demonologia cristã? Um exame, mesmo superficial, do estado do mundo em suas relações com o Criador, nos persuade facilmente de que as forças do mal estão no auge de seu poder: elas nunca foram tão grandes nem tão universalmente organizadas.

Ora, a sociedade humana está submetida a uma evolução cujos órgãos motores residem nas altas instâncias das congregações iniciáticas. Mas é evidente que os membros dessas altas instâncias buscam sua inspiração na mística luciferiana. Para conhecer, tanto quanto possível, a estratégia mundial que está sendo assim aplicada, é preciso escrutinar, da melhor forma possível, as ambições do espírito maligno que é, em última análise, o inspirador dessa falsa mística.

Portanto, se quisermos entender o funcionamento e a ideia de manobra política e religiosa das confrarias iniciáticas, tornou-se necessário conhecer o comportamento habitual dos espíritos decaídos. Isso é o que tentamos fazer no trabalho que se segue.

 

Essa tradução foi feita a partir do livro em francês dispoinível aqui

I. A CIÊNCIA DO BEM E A CIÊNCIA DO MAL

A Sagrada Escritura dá aos demônios denominações muito diversas. Vamos tentar ter uma ideia da frequência com que são mencionados. Isso nos dará uma primeira opinião sobre a importância que lhes é atribuída no ensinamento divino.

Um instrumento de trabalho valioso nos permitirá realizar esse levantamento: é o Dicionário das Concordâncias. Todas as palavras encontradas no texto da Escritura foram contadas com rigor. Cada palavra da Bíblia é um artigo neste curioso dicionário, com referências aos trechos em que é utilizada. Será fácil para nós totalizar os trechos escriturísticos nos quais os demônios aparecem, seja qual for a denominação pela qual são designados.

Diversas denominações dos demônios Antigo Testamento Novo Testamento
Diabolus 6 34
Satanas 13 33
Draco 36 12
Serpens 26 16
Leviathan 6 0
Béhémoth 1 0
Belial 12 1
Baal 46 1
Beelzebuth 4 7
Beelphegor 6 0
Mammon 0 4
Malus-Malum 651 44
Bestia 0 33 (Apocalipse)
Infernum 58 11
Géhenne 1 10
Tartare 0 1
Total: 1073 866 207

Este total de 1.073 menções nas Escrituras não inclui os versículos em que os demônios são designados por locuções compostas, pois essas locuções não estão nos dicionários de concordância. Exemplos disso são: os espíritos de malícia, as legiões do orgulho, as potestades das trevas, os espíritos de rebelião, os filhos da ira, os filhos da perdição, o Príncipe deste mundo, o adversário.

No entanto, essas expressões ocorrem com frequência no texto sagrado. Se pudéssemos contá-las também, elas aumentariam significativamente o total que acabamos de encontrar.

Para ser completo, seria necessário ainda listar, o que é impossível, todas as alegorias e parábolas em que os demônios são mencionados por imagens, como a do semeador do joio ou a do ladrão que entra na casa. É concebível que haja muitas delas.

Portanto, as Sagradas Escrituras nos trazem uma revelação abundante sobre os espíritos malignos. Este ensinamento é precioso, pois esses espíritos pertencem ao mundo invisível. Não podemos observá-los através da experiência sensorial e só podemos conhecê-los através da revelação.

Assim, as Escrituras contêm não apenas a ciência do bem, ou seja, a ciência de Deus, mas também a ciência do mal, ou seja, a ciência do inimigo de Deus, que é também o inimigo da humanidade. E esta ciência do mal é tão necessária quanto a ciência do bem, pois nos ensina a natureza e as obras dos inimigos invisíveis contra os quais devemos lutar durante nossa perigosa jornada na terra.

As Escrituras, transmitidas pelos Padres, pela Liturgia e pelo Magistério, não revelam apenas o Verbo Encarnado, mas também seu adversário; uma revelação que é absolutamente indispensável para nós. Se tudo o que se refere ao demônio fosse removido dela, metade de seu conteúdo seria retirado. Portanto, é surpreendente o pouco destaque dado ao "Adversário" nos discursos da Igreja conciliar.

A presença espiritual dos demônios na Terra constitui o que São Paulo chama de "mistério da iniquidade". Este mistério tem sido, desde sempre, o terrível problema do mal para os seres humanos. Esse problema imemorial tem sido a pedra de tropeço para muitos filósofos e fundadores de religiões que não souberam resolvê-lo corretamente, privados que estavam da verdadeira e autêntica Revelação divina.

II. OS ANJOS E OS HOMENS NO PENSAMENTO DIVINO

O homem tem três inimigos a temer: o demônio, o mundo e ele mesmo. É sobre o primeiro desses três inimigos, o demônio, que vamos focar nossa investigação. Vamos estudar o confronto entre homens e demônios. Esse é o tema deste estudo.

Os demônios são anjos expulsos do céu. Eles mantiveram, em grande parte, sua natureza angelical. Para conhecer nossos inimigos, precisamos primeiro compreender a natureza angelical. Mas para estudar a natureza angelical, precisamos remontar ao início da criação.

"No princípio, Deus criou o céu e a terra" (Gên. I, 1).

Neste texto, de acordo com a maioria dos comentaristas, a palavra "Céu" refere-se ao conjunto dos espíritos celestiais; refere-se ao mundo dos espíritos invisíveis, ou seja, os anjos. E a "Terra" refere-se ao conjunto do mundo material, incluindo o homem, que faz parte dele, uma vez que o Criador formou o corpo humano a partir da terra.

Todas as criaturas pertencem ou ao mundo dos espíritos, ou ao mundo dos corpos. Do texto do Gênesis fica claro que Deus não criou um mundo intermediário. No entanto, a maioria dos gnósticos hoje ensina, mais ou menos abertamente, a existência de um mundo intermediário. Os cristãos devem estar alertas contra essa noção equivocada de "mundo intermediário".

Esses dois mundos, o mundo invisível dos anjos e o mundo visível dos humanos, Deus os criou ao mesmo tempo. "Aquele que vive na eternidade criou todas as coisas simultaneamente" (Eclesiástico XVIII, 1).

Ele criou de uma vez todos os anjos, e ao mesmo tempo fez surgir do nada, igualmente de uma vez, toda a substância de que ele precisaria, e formou o que é chamado de caos. Esse caos, que não era desordem, mas apenas a matéria informe do universo, ele organizou ao longo de seis intervenções divinas, onde ainda exercia seu poder criativo. Essas seis operações divinas sucessivas são os seis dias da criação. Os seis dias criativos são chamados de "Hexameron".

Portanto, foi "no princípio" que os anjos foram criados. Para corroborar essa crença totalmente universal na Igreja, invoca-se especialmente estes três versículos do livro de Jó:

"Quem fixou as dimensões da Terra? Você sabe? Quem estendeu sobre ela o cordel? Sobre o que estão fundadas suas bases, ou quem colocou sua pedra angular, quando as estrelas da manhã cantavam juntas e todos os filhos de Deus davam gritos de alegria." (Jó XXXVIII, 5-7)

Os "filhos de Deus" e os "astros da manhã" são os anjos. Eles são chamados "da manhã" precisamente porque foram criados no início.

Com este ponto bem estabelecido, avancemos em nosso raciocínio. Os meios pelos quais Deus realiza Suas obras exteriores são chamados de Seus caminhos. O que nos revela a Escritura sobre os caminhos de Deus?

"Universæ viæ Dornini rnisericordia et veritas. Todos os caminhos do Senhor são misericórdia e verdade" (Salmo XXIV, 10 Vulgata).

Esta ideia de que existe uma dualidade e um equilíbrio entre misericórdia e verdade é repetida nas Sagradas Escrituras com uma insistência que não pode passar despercebida e que certamente tem um significado.

Apenas para observar adequadamente essa insistência, é necessário recorrer à versão latina da Vulgata, pois traduções francesas, provavelmente para evitar monotonia na expressão, traduzem 'misericordia' e 'veritas' por uma série de termos aproximativos, o que impede de notar a repetição presente no próprio texto. Aqui estão alguns dos trechos mais notáveis:

I. "Que a Vossa misericórdia e a Vossa verdade me sustentem sempre" (Salmo XXXIX, 12).

II. "Carregue a Vossa misericórdia e a Vossa verdade para guardá-lo" (Salmo LX, 8).

III. "A misericórdia e a verdade se encontraram" (Salmo LXXXIV, 11).

IV. "A misericórdia e a verdade preparam o bem" (Provérbios XIV, 22).

V. "A misericórdia e a verdade redimem as iniquidades" (Provérbios XVI, 6).

VI. "A misericórdia e a verdade vigiam sobre o rei" (Provérbios XX, 28).

Todos esses trechos são resumidos pelo verso que citamos primeiro. Vamos revisá-lo agora, pois é importante mantê-lo em mente:

"Todos os caminhos do Senhor são misericórdia e verdade" (Salmo XXIV, 10).

Isso significa que, entre as obras de Deus, algumas são especialmente relacionadas à Sua misericórdia, enquanto outras são destinadas a manifestar mais especificamente Sua verdade.

Agora, vamos definir o que são a verdade e a misericórdia de Deus. A verdade de Deus é sua rigorosidade. Os comentaristas equiparam a verdade de Deus à sua justiça. Frequentemente, os termos verdade e justiça são usados de forma intercambiável. A justiça de Deus é rigorosa, exata, ou seja, verdadeira. Ela retribui a cada um conforme o que é devido e "não faz acepção de pessoas". Ela demanda ser satisfeita com rigor.

Por outro lado, a misericórdia divina inclui tudo que está relacionado à Sua bondade, benignidade, condescendência, afeição e predileção. Enquanto a justiça (ou verdade) de Deus define a regra, a misericórdia governa a exceção. É a misericórdia que inspira todas as ternuras do coração divino. Ela preside as preferências. Há uma criatura que personifica de maneira eminente a misericórdia divina, e essa é a Virgem Maria. Deus a encheu da "plenitude de Suas graças". Ela é a criatura de predileção por excelência.

Mas então, como Deus, que "não faz acepção de pessoas" segundo Sua justiça, pode ter preferências segundo Sua misericórdia? Estamos definindo misericórdia como injustiça? Como a misericórdia e a verdade de Deus são compatíveis? Certamente, isso é muito misterioso. A este mistério se aplica a famosa sentença das Escrituras:

« Meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos são os Meus caminhos. Tão altos quanto os céus são superiores à terra são os Meus pensamentos superiores aos vossos pensamentos e os Meus caminhos aos vossos caminhos. » (Isaías LV, 8).

E ainda assim, não devemos interpretar este mistério como se houvesse em Deus o menor vestígio de injustiça, isto é, de mal. São Paulo, antecipando a objeção, afirma claramente:

« Há injustiça em Deus? De modo algum! Pois Ele disse a Moisés: 'Terei misericórdia de quem eu quiser ter misericórdia, e terei compaixão de quem eu quiser ter compaixão.'» (Romanos IX, 15).

Deus, que é justo para com cada uma de Suas criaturas, manifesta preferências por algumas sem causar prejuízo às outras. Este é todo o sentido da parábola dos trabalhadores da última hora. Deveríamos nós, então, ter um olhar invejoso porque Deus é bom? Não há no coração de Deus o menor traço de injustiça nem o menor traço de mal.

Agora sabemos que Deus faz tudo, seja conforme Sua misericórdia, seja de acordo com Sua justiça. Com esse entendimento, vamos compreender melhor o que a natureza angélica pode representar em comparação com a natureza humana.

Os anjos têm origem em um pensamento divino de justiça (também chamada de verdade). Eles adoram especialmente a verdade de Deus, Sua justiça, ou seja, Sua rigorosidade. Em troca, Deus glorifica neles a inocência, a impecabilidade. Os anjos são colocados ao redor de Deus para serem Seus mensageiros rigorosos:

"Bendizei ao Senhor, todos vós, seus anjos, poderosos em força, que executais as suas ordens, obedecendo à voz da sua palavra" (Introito da Missa votiva dos anjos).

Por outro lado, os homens têm origem em um pensamento divino de misericórdia. O que atrai sua gratidão é a misericórdia de Deus. Em troca, Deus glorifica neles não mais a inocência como nos anjos, mas o arrependimento.

Essa aplicação da distinção entre misericórdia e verdade aos homens e aos anjos pode parecer simplista. De fato, é simplificadora. No entanto, é ela, em última análise, que explica por que os homens foram redimidos enquanto os anjos não o foram.

III. A NATUREZA ANGÉLICA DOS DEMÔNIOS

Conhecendo agora a origem dos anjos e dos homens no pensamento divino, entenderemos melhor as razões de suas diferentes naturezas.

A substância espiritual constitutiva dos anjos reflete a simplicidade da verdade de Deus. Os anjos são feitos de uma substância espiritual simples. Eles não são seres compostos como os humanos. Desta simplicidade constitutiva, a inteligência angélica retira seus dois principais traços: a prontidão e a retidão.

A inteligência angélica se exerce com prontidão. Não há partes diversas a conciliar, não há deliberação prévia, portanto não há hesitação. Anjo significa mensageiro. Os anjos são criados para serem mensageiros rápidos. Naturalmente rápidos, eles também são rápidos em suas deduções. Eles veem, com um único olhar da mente, as últimas consequências de suas decisões. Por isso, frequentemente se diz que seu pensamento não é discursivo.

A inteligência angélica também se exerce com retidão. Julga com retidão, ou seja, com uma lógica perfeita. Ela aprecia, em Deus, o que é rigoroso.

Assim, feitos de prontidão e retidão, os anjos foram criados livres. Deus quer que eles adiram livremente às leis que Ele estabeleceu para regular suas atividades.

O que acontecerá se os anjos, fazendo uso indevido dessa liberdade, vierem a transgredir a lei divina, ou seja, a prevaricar? Eles sofrerão um castigo, naturalmente, mas ainda assim manterão sua natureza angélica, que não lhes é retirada, pois "Deus não se arrepende do que fez". Eles preservarão sua prontidão e retidão constitutivas.

No entanto, essa prontidão e retidão serão desviadas de seu propósito. Elas serão distorcidas. Elas serão usadas de maneira contrária à sua atividade normal. A natureza angélica permanecerá, mas sofrerá uma distorção.

Vimos que, devido à prontidão de sua inteligência, não há hesitação nos anjos. Da mesma forma, não haverá arrependimento nos demônios. Eles verão, com um único olhar, as consequências de sua decisão. E se eles prevaricarem, é porque preferem a si mesmos a Deus com uma vontade obstinada. A penetração de sua inteligência deveria precisamente evitar qualquer movimento de revolta ao mostrar-lhes o resultado final.

Aqui temos um dos traços essenciais da "mentalidade" demoníaca: a obstinação. Tudo o que os demônios fazem volta-se contra eles; eles sabem disso e mesmo assim o fazem. Eles não querem retroceder nem mesmo parar no caminho. Lembremos aqui o provérbio cristão bem conhecido: "errare humanum est, perseverare diabolicum".

A obstinação é, de fato, diabólica. É assim nos demônios, mas também o é nos homens.

Sobre este assunto, citemos um trecho de São Basílio:

"Os anjos receberam sua natureza pelo Verbo; sua santidade lhes foi adicionada pelo Espírito Santo. Não foi pelo exercício progressivo das virtudes que os anjos se tornaram dignos de receber o Espírito Santo, mas sim por um dom gratuito que receberam a santidade, um dom adicionado à sua natureza no momento da criação e penetrando seu ser; por isso, eles só podem pecar com dificuldade."

Que vai acontecer com a retidão da inteligência angélica nos demônios? Ela permanecerá neles, mas será agora usada de maneira distorcida. Tornar-se-á a lógica intempestiva tão característica das decisões demoníacas. O demônio continua sendo um lógico com deduções rigorosas porque essa é sua natureza de anjo. No entanto, devido à prevaricação, não há mais verdade nele. O mecanismo de seu raciocínio permanecerá o mesmo, mas o conteúdo de seu pensamento será alterado. Ele aplicará um raciocínio lógico a pensamentos falsos.

Quando raciocina, o demônio já sabe de antemão a qual conclusão deseja chegar. E esta conclusão é obviamente falsa, uma vez que não há mais verdade nele. Assim, há duas possibilidades:

É preciso ter cuidado ao iniciar uma conversa com um lógico assim, pois já se está derrotado de antemão. A lógica do demônio é a lógica da revolta, uma revolta que ele vai prolongar até suas últimas consequências, até suas extremidades mais loucas.

A escuridão dos demônios invadiu toda a sua substância espiritual porque é homogênea e não apresenta nenhuma ruptura capaz de limitar a invasão. Os anjos não são seres frágeis e quebradiços. Deus lhes deu uma solidez que os protegia de qualquer perturbação, se sua livre vontade tivesse permanecido boa. Aos anjos revoltados foi necessário um alto grau de malícia e uma vontade prodigiosa para preferir as trevas à luz. Compreende-se que Deus não esteja obrigado a lhes mostrar misericórdia.

A "mentalidade" demoníaca possui, por sua natureza angélica, dois traços essenciais: a obstinação e a lógica. Devemos esperar encontrar esses dois traços nos hábitos mentais daqueles humanos que se tornam imitadores dos demônios. Todos aqueles que Lúcifer arrasta se tornarão obstinados e raciocinadores.

IV. AS HIERARQUIAS ANGÉLICAS

Não podemos avançar mais sem expor a doutrina da Igreja sobre a estrutura das hierarquias angélicas, conforme se apresentava antes da reprovação de uma parte dos anjos. Pois é essa estrutura inicial que nos iluminará sobre a composição da massa dos demônios.

A descrição das hierarquias celestes gerou algumas hesitações, como muitas outras noções religiosas. Foi necessário que o Magistério interviesse para distinguir o verdadeiro do falso no meio das diversas opiniões.

Finalmente, é a doutrina de São Dionísio Areopagita, aquela que foi primeiramente expressa, que acaba por triunfar. São Dionísio afirmava que sua doutrina sobre os anjos se baseava nos ensinamentos de São Paulo. Mais tarde, ela recebeu o apoio de Santo Agostinho e, de forma decisiva, do Papa São Gregório Magno.

Segundo São Dionísio, os anjos são divididos em três hierarquias.

A primeira hierarquia é a mais próxima de Deus. Ela inclui, por sua vez, três coros: o coro dos serafins, o dos querubins e o dos tronos.

A segunda hierarquia, que vem abaixo, inclui os três coros das dominações, das virtudes e das potestades.

A terceira hierarquia é a mais distante de Deus. Ela inclui, como as duas anteriores, três coros: o coro das principados, o dos arcanjos e o dos anjos.

Por que esse hábito de linguagem? Provavelmente porque ficamos muito tempo na incerteza quanto à verdadeira composição das hierarquias celestiais. Por muito tempo, os confundimos sob a mesma denominação, o que não é substancialmente incorreto, uma vez que todos têm a mesma natureza espiritual.

Vamos agora colocar outra questão. De onde vêm os nomes dos coros angelicais? Todos eles vêm das Escrituras Sagradas. Anjos e arcanjos são mencionados em cada página do Antigo e do Novo Testamento. Serafins e querubins são assim nomeados pelos livros proféticos. Quanto aos outros cinco nomes, são encontrados nas Epístolas de São Paulo aos Efésios e aos Colossenses:

« ...Ele que é o cabeça de todo Principado e de toda Potestade » (Colossenses 2:10).

« ...acima de todo Principado, e Potestade, e Virtude, e Dominação... » (Efésios 1:21).

Poderíamos, evidentemente, entrar em muitos outros detalhes interessantes. No entanto, quisemos apenas expor o necessário para compreender a composição do colégio dos demônios. Pois veremos mais adiante que no inferno encontramos anjos de todos os nove coros. Assim, a população do inferno é composta por elementos muito diversos entre si. Encontramos grandes serafins caídos, assim como simples anjos que seguiram na rebelião. Essa ampla escala de capacidades espirituais não deixa de influenciar, primeiro, o comportamento dos demônios entre si e, depois, o comportamento deles em relação aos humanos. Portanto, a digressão que fizemos foi indispensável.

É necessário fazer uma precisão aqui. Os demônios mantêm entre si as diferenças hierárquicas que tinham no Céu. No entanto, todos, independentemente de seu posto, sofrem de uma degradação geral em relação aos espíritos que permaneceram fiéis. Um anjo mal, hierarquicamente superior por natureza a um bom anjo, está sujeito ao poder deste último.

V. AS CIRCUNSTÂNCIAS DA PROVA

É uma verdade de fé que: uma parte dos anjos se afastou de Deus e mantém uma hostilidade eterna em relação a Ele. Surge então uma pergunta inevitável: em que circunstâncias esses anjos se afastaram de Deus? Qual foi a prova que levou a essa prevaricação dos anjos? A prevaricação é a recusa de cumprir suas obrigações.

A natureza dessa prova não é claramente conhecida. Estamos reduzidos a hipóteses. Escolhemos aquela das hipóteses que melhor coordena os conhecimentos certos sobre os anjos e sobre o Verbo Encarnado. É bem evidente que os anjos sabiam, desde o início, da precariedade de sua situação e de seu status. Eles sabiam que tinham sido tirados do nada por Deus e que, portanto, de certa maneira, se encontravam suspensos entre Deus e o nada, enquanto não fossem, de uma forma ou de outra, integrados a Deus. A estabilização de seu estado bem-aventurado só poderia resultar de sua participação na vida divina.

Os anjos se encontravam, era evidente, em uma situação transitória e preparatória. Os teólogos dizem, com muita razão, que eles estavam em estado de via e acrescentam que tinham consciência disso.

Os comentaristas concordam que os anjos já possuíam uma profunda ciência de Deus. Assim, distinguiam as Três Pessoas da Santíssima Trindade. Conheciam o Logos como agente do poder exterior de Deus. Mas até onde ia essa ciência? E, em particular, poderiam eles conhecer antecipadamente a misteriosa Encarnação do Logos?

Foi nesse "estado de via", nessa situação de expectativa, que os anjos assistiram à "Obra dos seis dias", ou seja, à Criação do universo material e à criação do homem. Foi então que veio a sua prova. Eis em que consistiu.

Para provar os anjos, Deus lhes mostra, por antecipação, a imagem do Verbo Encarnado, que deveria ser, quando a plenitude dos tempos estivesse cumprida, o Adorador supremo de Deus e o Mediador universal entre Ele e a Criação, em suma, o Pontífice e o Rei do Universo visível e invisível. E Ele lhes mostrou também a mulher privilegiada que deveria ser a Mãe desse Homem-Deus.

Pode-se pensar que, diante desse espetáculo, um imenso estremecimento percorreu as hierarquias celestes e que uma prodigiosa emoção as paralisou. Assim, o Homem-Deus que lhes era mostrado se interporia um dia entre a Criação e a Divindade. Seria Ele quem asseguraria a mediação. Seria Ele quem transmitiria a Deus a adoração das criaturas celestes e terrestres. Seria Ele também quem dispensaria a ajuda sobrenatural sem a qual a participação na vida divina não é realizável. Diante Dele, todas as hierarquias angélicas deveriam se inclinar como sendo a principal figura do universo.

Os anjos, que nunca haviam conhecido ninguém entre eles e o Todo-Poderoso, e que já lhe dirigiam diretamente suas adorações, teriam que se inclinar diante do trono universal do Verbo Encarnado, não apenas para lhe confiar suas adorações, mas também para receber Dele, em seu "estado de via", a graça necessária para sua santificação.

Seria necessário ser um anjo para medir a tensão e a efervescência que percorreu a corte celestial ao anúncio de um decreto tão misterioso e diante de uma mutação tão grande.

Lúcifer recusou a soberania do Verbo Encarnado. Sua lógica implacável ditou-lhe uma decisão aterradora. Ele recusou sua submissão ao "Adorador Supremo" porque, estando ele próprio colocado no topo das hierarquias espirituais, queria transmitir diretamente a Deus, como sempre havia feito, sua própria adoração, que era exemplar.

E ele recusou receber, do "Mediador Universal", a ajuda graciosa necessária para sua adoção divina porque se considerava capaz de alcançar a santificação apenas pelas virtudes naturais com as quais estava abundantemente dotado.

Além disso, ele não queria depender de um Homem-Deus que não seria um puro espírito, pois tiraria da terra a substância de seu corpo. Mais radical ainda foi sua recusa em se inclinar diante da "Mãe de Deus", que seria uma criatura meramente humana e que se pretendia lhe impor como Rainha dos Anjos.

Alguns comentaristas e alguns místicos pensam até que Lúcifer pecou venialmente ao recusar a supremacia do Verbo Encarnado, mas mortalmente ao recusar a da Mãe de Deus. Ele, Lúcifer, estimava que, logicamente e, portanto, justamente, era ele quem deveria ser designado para se tornar o adorador supremo e o mediador universal por meio de quem a participação na vida divina deveria ocorrer. Em suma, o Homem-Deus lhe tomava o lugar que ele, Lúcifer, acreditava ser seu por direito. Tais foram seus pensamentos nesta prova crucial.

Compreende-se que essa prova tenha implicado, para um anjo, uma certa dificuldade. Mas não era impossível de superar. Não era mais difícil, para um anjo, inclinar-se diante de um Homem-Deus do que é difícil para um homem inclinar-se diante de uma hóstia que, em suas aparências, é apenas um produto vegetal. Além disso, a inteligência angélica foi feita para perceber, num instante, as consequências a longo prazo da revolta.

É ao Verbo Encarnado que se dirige o famoso "non serviam" de Lúcifer. Esse "non serviam" repercutiu, de eco em eco, entre os anjos e os homens. Nosso Senhor o ouviu ao seu redor quando veio à terra, como Ele mesmo disse nesta parábola:

"Um homem de alta nobreza foi para um país distante para tomar posse do reino e depois voltar... Mas os cidadãos daquele país o odiavam e enviaram uma delegação atrás dele para dizer: 'Não queremos que este homem reine sobre nós.'"

"Não queremos que este homem reine sobre nós." (Lucas XIX, 12-14).

VI. O RECRUTAMENTO DOS REVOLTADOS

E então, Lúcifer percorreu os nove coros dos anjos para constituir um partido, a fim de fazer pressão sobre Deus pelo número. Que discurso fez a todos esses espíritos? Conhecemos os dois grandes temas que ele desenvolvia: "Eu serei como Deus" e "vocês serão como deuses".

Recusando a supremacia universal do Homem-Deus, Lúcifer é levado pela fatalidade de sua insubmissão e se comporta como se fosse o Anjo-Deus. Sua lógica implacável lhe inspira uma audácia implacável: ele exige poder e culto. Ele percorre os nove coros pregando sua revolta e ao mesmo tempo sua supremacia. E os nove coros são tocados pela efervescência e pela contaminação; nenhum coro é poupado, nem o mais elevado, dos serafins, nem o mais baixo, dos anjos. Lúcifer fez adeptos em todos os lugares. Mas nenhum coro também sucumbiu por completo.

Qual é a proporção dos anjos que tomaram o partido de Lúcifer revoltado? Alguns comentaristas das Escrituras pensam que um terço dos anjos se deixou levar à prevaricação; eles se baseiam na seguinte passagem do Apocalipse:

"...de repente viu-se um grande dragão vermelho, com sete cabeças e dez chifres, e sobre suas cabeças sete diademas; com sua cauda ele arrastou um terço das estrelas do céu e as lançou sobre a terra." (Apoc. XXII, 3-4).

Contrariamente ao partido luciferiano, encontraram-se anjos dos nove coros para manter a consciência de seu nada original e para aceitar a graça necessária para sua santificação, daquele Homem-Deus cuja corte celestial acabara de receber a Revelação.

Sabe-se que um herói se destacou entre todos, São Miguel, chamado de 'arcanjo', mas que certamente era muito mais que um arcanjo. À divisa do herói do orgulho, 'serei como Deus', ele opôs a divisa da humildade, 'Quis ut Deus? Quem é como Deus?'.

Isso se tornou um lema e circulou nos nove coros. Os anjos fiéis não apenas reconheceram o Verbo Encarnado como seu mestre, mas também começaram a desejar ardentemente a sua vinda com o zelo fervoroso que os anjos podem demonstrar. E é por isso que o Ungido do Senhor, esse primeiro personagem da Criação, é chamado na Sagrada Escritura de 'o desejado das colinas eternas' (Gên. XLIX, 26).

Quem são as 'colinas eternas'? São os anjos fiéis que a humildade elevou e que se tornaram 'eminências'. Quanto ao 'desejado' em si, é o Ungido do Senhor.

E por que os anjos O desejaram? É porque Deus não deseja descer se permanecermos indiferentes a Ele. Ele deseja ser desejado, pois Ele não quer forçar ninguém. Ele revela Seus planos para que ansiemos pela sua realização. É uma lei misteriosa da ação divina à qual o Ungido mesmo se submete, já que o Pai O invoca nestes termos:

"Pedes-me, e eu te darei as nações por herança e os confins da terra por tua posse." (Salmo II, 8)

Assim, o Verbo Encarnado Ele mesmo é obrigado a pedir (postular) uma herança que lhe é destinada. Os anjos foram submetidos à mesma lei, e é por isso que o Ungido do Senhor é chamado de "o desejado das colinas eternas".

VII. O ABANDONO DAS MORADIAS

Conhecemos, pela Epístola de São Judas, uma das formas da revolta dos anjos. É importante notar cuidadosamente porque suas consequências são vistas na terra e em todos os tempos, nos comportamentos dos homens e nos agrupamentos humanos que o demônio inspira.

Ao falar dos anjos caídos que Jesus mantém acorrentados para o dia do Julgamento, São Judas faz referência a uma circunstância particularmente importante de sua rebelião. Ele menciona:

"esses anjos que não conservaram a sua posição original, mas abandonaram a sua própria morada" (Judas,V-6).

São Judas expressa aqui duas ideias, ligadas mas distintas: pelo termo "posição original", ele indica a deserção de sua função; e pelo termo "morada", a ideia de abandonar sua residência. Os anjos revoltados não se contentaram mais com os principados que Deus lhes confiou; eles ambicionaram mais alto. Então, abandonaram sua morada, ou seja, se excluíram da hierarquia angelical e formaram um partido que contestava os poderes do Verbo Encarnado, exigindo substituí-lo por um espírito puro que não tivesse nada a ver com a matéria.

No linguajar humano, poderíamos dizer que os maus anjos, no início de sua revolta, "saíram às ruas". Eles invadiram os pátios do céu para se engajar numa verdadeira manifestação de desobediência e reivindicação.

Por que esse abandono dos principados e moradas pode nos interessar hoje? Porque marcou permanentemente a psicologia demoníaca. O demônio agora persistirá na lógica desse abandono primordial. Ele se encontra sem função e sem um lugar designado. Com ele, todos os anjos revoltados se tornaram estrelas errantes. Esta forma de rebelião se tornou para eles uma característica adquirida e definitiva:

"Estrelas errantes, para as quais estão reservadas as densas trevas da escuridão para a eternidade" (Jude, XIII).

Eles praticam o errar como seu modo de exercer poder: estar presente em todos os lugares "procurando a quem devorar". Um dos primeiros versículos do livro de Jó descreve este comportamento errante em termos concretos:

"Então Yahweh disse a Satanás: De onde vens? Satanás respondeu a Yahweh, dizendo: De percorrer a terra e de andar por ela." (Jó I, 7)

Os espíritos caídos são seres errantes. A peregrinação é o destino dos inquietos. Após o assassinato de Abel, Caim foi condenado por Deus à errância:

"…serás errante e fugitivo sobre a terra." (Gênesis IV, 12)

Os demônios, de idade em idade, vão comunicar esse gosto pela ubiquidade aos homens que têm sob sua influência. O espírito gyrovague denota uma influência maligna; não é outra coisa senão o horror e o medo de se confrontar consigo mesmo. É o sintoma das consciências que não estão em paz. É uma forma dessa inquietação indelével que atormenta os espíritos rebeldes, sejam anjos ou homens.

Muitas vezes, os problemas começam pela falta de residência: antigamente pela ausência dos bispos em suas catedrais, hoje pela ausência das mães em seus lares.

O sábio das Escrituras, ao contrário, "permanece debaixo de sua figueira", ou seja, contenta-se com sua posição e sua morada. Não aspira a estar em todos os lugares ao mesmo tempo porque não deseja controlar tudo. Ele possui o espírito de estabilidade que favorece a contemplação e proporciona a companhia de Deus. Na cristandade da Idade Média, muitos mosteiros adicionavam ao três votos usuais o voto de estabilidade.

VIII. UMA BATALHA NOS CÉUS

Abandonando então seus principados e suas moradas, os anjos revoltados se reúnem no pátio do céu. É lá que ocorrerá a grande batalha.

"E houve uma guerra no céu: Miguel e seus anjos lutaram contra o dragão; e o dragão e seus anjos lutaram, mas não prevaleceram, nem mais o seu lugar se encontrou nos céus." (Apocalipse XII, 7-8)

Nessa época, ainda não havia inferno nem sheol. Foi no próprio céu que o combate aconteceu, no que chamamos de pátio para usar uma expressão concreta.

O dragão é Lúcifer. Ele é cheio de si mesmo, de uma inteligência prodigiosa, de uma lógica impecável, de uma vontade implacável, de uma atividade incessante, de uma habilidade manobrista temível. Ele sabe que é extremamente poderoso.

E como suas tropas são numerosas, ele pode pensar que irão dominar o partido dos humildes e dos obedientes. Eles vão vencer. E é preciso reconhecer que, conforme o estado das forças naturais que estão em jogo, talvez isso pudesse ter acontecido.

IX. O TRONO ACIMA DAS ESTRELAS

Vamos agora observar Lúcifer e seus anjos, expulsos para as trevas exteriores. Eles não vão se mover livremente dispersos por lá. Mas antes de examinarmos em que lugar e sob quais condições eles serão confinados, precisamos tentar entender quais são as disposições espirituais dos anjos caídos ao saírem do céu.

Já sabemos que sua natureza angelical não lhes foi tirada, apenas se obscureceu. Mas agora adquiriram um caráter específico. Eles vão permanecer firmemente na lógica da rebelião, levando o espírito de revolta às suas consequências mais terríveis.

Um texto crucial do profeta Isaías descreve as ambições de Lúcifer. No capítulo XIV, o profeta contempla, no futuro, a queda final do grande dragão e expressa sua perplexidade diante da queda de um espírito originalmente tão elevado:

"Como caíste do céu, ó Lúcifer, filho da aurora! Como foste lançado por terra, tu que debilitavas as nações!" (Isaías XIV, 12)

O profeta chama Lúcifer de "filho da aurora" porque ele foi criado, como todos os anjos, no começo, ou seja, no alvorecer do mundo.

E Isaías se surpreende com essa queda ao compará-la com as ambições inimagináveis que Lúcifer alimentava enquanto incitava os anjos a abandonar sua própria morada:

"Tu dizias no teu coração: 'Eu subirei ao céu; acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono e me assentarei no monte da assembleia, nas extremidades do norte; subirei acima das nuvens mais altas e serei semelhante ao Altíssimo.'" (Isaías XIV, 12-15)

Aqui não temos apenas o programa da revolta dos anjos. O texto de Isaías também revela o plano que agora será o de Lúcifer em sua ação entre os homens.

Seria necessário contar com a assistência do Espírito Santo para compreender o significado de imagens como "acima das estrelas de Deus", "a montanha do testamento", "os flancos do Aquilão", "acima das altas nuvens".

Mesmo não as compreendendo perfeitamente, devemos manter essas expressões proféticas em mente. Elas certamente tiveram ou terão sua aplicação ao longo da história humana, pois nenhuma palavra de Deus retorna a Ele sem ter sido executada.

Como o grande dragão pode nutrir ambições tão grandiosas? Como pode escalar a montanha do testamento? Como pode estabelecer seu trono acima das nuvens? Como pode sair como conquistador dos flancos do Aquilão? Por quem pode ser adorado como semelhante ao Altíssimo? Sobre quem pode exercer essa supremacia na qual ele acredita estar destinado?

Essas pretensões são ainda mais impossíveis de serem realizadas neste momento, pois o séquito dos réprobos agora serpenteia nas trevas exteriores em direção ao abismo que lhes está destinado.

X. OS DOIS INFERNOS DA ANTIGA LEI

Qual é a condição dos demônios no abismo para onde foram lançados?

Este abismo ocupa uma posição inferior. Para acessá-lo, conforme todos os textos das Escrituras, é necessário descer. É o abismo inferior. São João fala do "poço do abismo" e de sua chave:

"E viu-se descer do céu um anjo, que tinha a chave do abismo" (Apocalipse XX, 1).

Este local inferior é chamado de inferno. Mas também recebe outros nomes. São Pedro o chama de Tartaro:

"Pois Deus não poupou os anjos que pecaram, mas, havendo-os lançado no Tartaro, os entregou às cadeias da escuridão, ficando reservados para o juízo" (II Pedro II:4).

Podemos entender mais precisamente a situação deste Tartaro? Falando de Sua Ressurreição que Ele anunciava para o terceiro dia após Sua morte, Nosso Senhor se expressou da seguinte maneira:

"Esta geração perversa e adúltera pede um sinal, mas nenhum sinal lhe será dado, senão o sinal do profeta Jonas. Pois, assim como Jonas esteve três dias e três noites no ventre do grande peixe, assim o Filho do Homem estará três dias e três noites no coração da terra." (Mateus XII, 39-40)

Os comentaristas entendem que a expressão "no coração da terra" não se refere apenas ao Seu túmulo, mas também, e principalmente, ao inferno nas profundezas do qual a alma de Nosso Senhor permaneceu por três dias.

Por que os textos sagrados frequentemente mencionam os infernos no plural? Porque, sob o regime da Antiga Lei, existiam dois infernos: o inferior e o superior.

O inferno inferior é o abismo que recebe os demônios e as almas dos criminosos. É um lugar onde se suporta a pena do dano, que consiste em não ver a Deus e, portanto, viver sem sol, nas trevas. Lá também se sofre a pena do fogo.

O inferno superior é aquele que recebe as almas dos justos. Nas Escrituras, ele é chamado em hebraico de Sheol e em grego de Hades. Os escolásticos mais tarde o chamaram de limbus patrum ou "limbo dos patriarcas". É esse mesmo Sheol que é designado pela expressão figurativa "o seio de Abraão". Poderíamos dizer "o colo de Abraão", onde os justos falecidos eram supostamente recebidos para se sentarem no colo do Pai dos crentes, ou se refugiarem sob seu manto.

Os habitantes do Sheol também são privados da visão de Deus. No entanto, eles são iluminados pela esperança de um dia desfrutá-la quando os tempos estiverem cumpridos. Assim, eles não vivem nas trevas como os condenados, mas na penumbra. O Sheol não é um lugar de infelicidade. A alma lá vegeta em um sono pacífico. A antiga liturgia romana, no momento do "memento" pelos mortos, ainda fala daqueles que dormem no sono da paz: "qui dormiunt in somno pacis".

O que sabemos do Sheol pelas Escrituras nos permite defini-lo como um antessala do Céu. As almas dos justos lá aguardam a abertura do céu. No entanto, não há dúvida de que pertence aos infernos. É uma morada inferior, não se sobe ao Sheol, mas desce-se até ele. Ele é vizinho do abismo dos demônios. O homem santo Jó, por exemplo, lamenta-se por sua alma desafortunada e diz:

"que ela desceu às portas do Sheol" (Jó XVII, 16).

Os Provérbios falam das "...profundezas do Sheol" (Provérbios XIX, 18).

O profeta Isaías também menciona o "Sheol e suas profundezas" (Isaías XIV, 9). É certo que o Sheol é próximo ao abismo.

Aprendemos isso diretamente da boca de Nosso Senhor:

"Ora, aconteceu que o pobre Lázaro morreu e foi levado pelos anjos ao seio de Abraão. O rico também morreu e foi sepultado. No inferno, ele levantou os olhos, estando em tormentos, e viu de longe Abraão e Lázaro no seu seio." (Lucas XVI, 22-24).

Tudo está bem ponderado neste texto de São Lucas. O pobre Lázaro está de fato "no seio de Abraão", ou seja, no Sheol, enquanto o rico está realmente no inferno. O rico "levanta os olhos" porque o inferno está mais abaixo do que o Sheol. No entanto, ele consegue avistá-lo de longe porque o Sheol é, se não próximo, pelo menos vizinho ao abismo onde ele se encontra.

E por que o Sheol e o abismo são vizinhos? Porque o Sheol é a antecâmara do céu e logicamente deveria estar próximo ao céu. No entanto, está precisamente ao lado do abismo. Por quê? Porque ainda não há Céu para as almas dos justos falecidos. E se não há Céu para os humanos, é porque o Verbo Encarnado ainda não veio "preparar-lhes um lugar junto do Pai". Este é o que Ele deve fazer durante o tempo entre a Ressurreição e a Ascensão.

"Não se turbe o vosso coração. Credes em Deus, crede também em mim. Na casa de meu Pai há muitas moradas; se assim não fora, eu vo-lo teria dito, pois vou preparar-vos lugar. E quando eu for e vos preparar lugar, virei outra vez e vos levarei para mim mesmo..." (João XIV, 1-3).

E ainda estaríamos sob o regime do Sheol da antiga lei se o Salvador não tivesse vindo. Pois afinal, de que o Salvador nos salvou? Ele nos salvou do inferno. Se Ele não nos tivesse resgatado, os justos entre nós estariam destinados ao sono e à penumbra do Sheol, privados da visão beatífica.

Foi a visita de Jesus Cristo aos infernos que pôs fim ao regime de espera que era o Sheol. Como dizem os Padres da Igreja, Ele desceu aos infernos para evangelizar os justos, ou seja, para "anunciar-lhes a boa nova do Reino". Ele lhes anunciou que um lugar havia sido preparado para eles, que o reino eterno estava prestes a se abrir para eles e que em breve entrariam com Ele no dia da Ascensão.

XI. A INFESTAÇÃO DA TERRA

São Pedro nos ensina que os demônios, no inferno, são guardados em reserva para o julgamento (II Pedro II, 4). São Judas retoma a mesma ideia em um texto que já citamos por outro motivo:

"Jesus retém para o julgamento do grande dia, presos com cadeias eternas, os anjos que não conservaram a sua posição original, mas abandonaram a sua própria morada" (Judas VI).

Portanto, antes que o julgamento do grande dia aconteça, os demônios são considerados "em reserva". Certamente, suas cadeias são eternas, o que significa que seu estado de condenação não será revisto. Mas seu destino final só será imposto pelo julgamento final. Eles então enfrentarão a segunda morte e serão lançados no lago de fogo:

"Então, a morte e o inferno foram lançados no lago de fogo. Esta é a segunda morte, o lago de fogo" (Apocalipse XX, 14).

Portanto, é somente após o julgamento final que os demônios terão os cadeados fechados sobre eles

"com a chave que fecha e ninguém pode abrir" (Apocalipse III, 7).

XII.O PRÍNCIPE DESTE MUNDO

Não há dúvida de que Adão foi constituído, desde o início, Rei e Pontífice: este é o ensinamento constante da Escola. E se não fosse pelo drama da queda, ele teria conservado essa dupla prerrogativa até a "plenitude dos tempos", isto é, até o dia da Vinda do Verbo Encarnado, que é o verdadeiro Rei-Pontífice da criação. O "primeiro Adão" estava destinado apenas a anunciar e preparar a vinda do "Ungido do Senhor", que também é chamado de "Novo Adão".

Vimos que Satanás recebeu o poder de vaguear na atmosfera terrestre ao redor de nossos primeiros pais para prová-los. Uma prova era necessária para que os anjos fossem confirmados em seu estado e morada celestiais. Da mesma forma, uma prova era necessária para que o homem fosse confirmado em seu estado de perfeição original.

Certas almas místicas foram privilegiadas ao ver que Adão e Eva, usando sua liberdade, inicialmente cometeram faltas veniais espontaneamente, ou seja, sem serem instigados por uma influência demoníaca. Essas faltas veniais deram a Satanás um pretexto e, como um direito, para se aproximar deles e tentá-los; elas constituíam uma abertura pela qual ele entrou.

Portanto, eis Satanás espionando Adão, que é uma préfiguração do Ungido futuro, do qual ele recebeu o anúncio e que ele odeia desde sua expulsão do céu. Ele pede a Deus permissão para colocar Adão à prova. Como muitos milênios depois ele ainda pedirá a Deus permissão para colocar os Apóstolos à prova: é este episódio que Nosso Senhor relata dizendo:

"Eis que Satanás pediu para vos peneirar como o trigo" (Lucas, XXII, 31).

Em que árvore a serpente apareceu? Ela apareceu precisamente na árvore do "conhecimento do bem e do mal", cujo fruto deveria fazer com que nossos primeiros pais compreendessem que no universo existia não apenas um Deus Bom, mas também um adversário do Deus Bom, um adversário gerador do mal. Esta árvore era boa por si mesma, como tudo o que saía das mãos de Deus. E seu fruto deveria ser consumido um dia pelo homem, quando o tempo estivesse certo. Mas o que foi nefasto foi a seu consumo prematuro.

O demônio estava ansioso para fazer o primeiro homem cair. Ele é de natureza febril, como vimos, e sempre quer antecipar os planos de Deus. Mas também, ao se apressar, ele queria surpreender o homem em um momento em que sua maturidade para consumir tal fruto ainda não estava realizada.

Os Doutores estão certos em dizer que a falta de Adão foi inconcebível. Ela constitui um verdadeiro mistério. Mas o que muitas vezes se esquece é que sua penitência também foi inconcebível. Quando nosso primeiro pai assistia ao progressivo declínio de sua família, da sociedade humana, do mundo animal, do mundo vegetal, e via em si mesmo a origem de toda essa desordem, ele sofria uma penitência de uma terrível gravidade, especialmente para ele que havia conhecido a isenção de todos esses males. Devemos lamentá-lo como se lamenta um pai infeliz, e não o oprimir como muitas vezes se faz. Pois quem entre nós poderia se vangloriar de ter feito melhor em seu lugar?

A falta agora foi cometida. Adão desceu de seu trono real e pontifical. Quem se sentará agora neste trono deixado vago?

Na ordem da natureza, é a lei do mais forte. Aquele que substitui o vencido em seus direitos é o vencedor. Portanto, é Satanás que substituirá Adão como rei e pontífice. Mas Satanás é um puro espírito: ele é invisível ao olho humano, não pode reinar abertamente; ele só pode exercer uma principado invisível. E é porque ele está muito realmente investido deste principado invisível que Nosso Senhor falará dele como sendo o Príncipe deste mundo.

Para que este principado invisível de Satanás sobre o mundo se concretize visivelmente, será necessário que ele consiga se materializar em um homem, realizando assim uma espécie de encarnação. Esta "personificação humana" de Satanás será o Anticristo. Não haverá verdadeira encarnação, é claro, mas sim uma possessão demoníaca em seu grau mais alto.

Agora sabemos que o Anticristo só deve aparecer no fim dos tempos. Durante o curso da História Humana, este Anticristo terá, no entanto, prefigurações. Haverá maus reis que se levantarão e, nas falsas religiões, maus pontífices que se comportarão, todas as proporções guardadas, como anticristos. Uma das primeiras prefigurações do Anticristo foi realizada pelo personagem Nimrod.

Na ordem da Graça, o verdadeiro titular do trono de Adão é o Verbo Encarnado. O "primeiro Adão", antes da queda, não fazia mais do que ocupar o lugar e preparar os homens para a Vinda do Novo Adão. É para ele que é feito o trono universal; o reino é feito para o rei. Esta transmissão em duas fases, uma fase preparatória e uma fase definitiva, é lembrada no seguinte trecho do Evangelho:

"Um homem de alta nascença veio a uma terra longínqua para tomar posse do reino e para lá retornar posteriormente" (Lucas XIX, 12).

Este homem de alta nascença é Nosso Senhor. Durante sua vinda de humildade, ele veio pela primeira vez para tomar posse do reino, por direito. Depois, ele subiu "à direita do Pai" para esperar "a plenitude dos tempos". Durante sua vinda de Majestade, ele retornará para exercer de fato a realeza eterna.

O principado invisível de Satanás sobre o mundo, que Nosso Senhor lhe reconhece quando lhe dá o título de "Príncipe deste mundo", não é, em definitivo, senão o de um usurpador. São Bernardo viu muito bem sua precariedade quando escreve:

"Assim, esse tipo de poder que o demônio adquiriu sem justiça, que ele mesmo usurpou com malícia, não deixa de lhe ter sido atribuído com justiça. Mas se era justo que o homem fosse escravo, a justiça não estava nem do lado do homem, nem do lado do demônio; ela estava toda do lado de Deus." (São Bernardo, Sobre os erros de Abelardo).

XIII. O DIA DO HOMEM

O sétimo dia é o dia do homem. Como assim?

Quando Deus terminou "A Obra dos Seis Dias", Ele descansou, ou seja, Ele cessou de exercer Seu poder criador:

"E Deus descansou no sétimo dia de todas as obras que Ele havia feito" (Gênesis II, 2).

Sua última obra criadora é a formação de Nossa Mãe Eva.

A partir de agora, começa o sétimo dia. A criação é provida de um dinamismo interno e de uma força de inércia inicial. Deus se retira dela como Criador e deixa apenas Sua Providência. Agora cabe ao homem fazer suas obras e suas provas. Deus vai confrontá-lo com um adversário espiritual contra o qual ele deve se defender. A prova será difícil porque a recompensa deve ser grandiosa. Nada é medíocre em Deus.

Não atribuamos a Deus uma doçura sem virilidade. O processo da tentação não está isento de uma certa rigidez:

"Porque você era agradável a Deus, era necessário que a tentação viesse testá-lo" (Tob. XII, 13).

E inversamente:

"O Senhor, vosso Deus, vos tenta para que apareça visivelmente se vocês O amam" (Deut. XIII, 3).

Será necessário um combate, pois, sem combate, não há recompensa:

"Aquele que luta na arena não será coroado a não ser que tenha lutado legitimamente" (Tim. II, 5).

"Bem-aventurado o homem que sofre a tentação, porque depois de ter sido testado, ele receberá a coroa de vida que Deus prometeu àqueles que O amam" (Tiago I, 12).

O agente da prova, o adversário deste combate, é Satanás:

"O demônio, vosso inimigo, ronda em volta de vocês como um leão rugindo, buscando a quem possa devorar" (I Pedro V, 8).

Temos um exemplo da mão vigorosa de Deus no caso do Rei Saul, a quem Ele deseja punir por uma falta grave:

"O Espírito do Senhor se retirou de Saul, e um espírito mau do Senhor se abateu sobre ele. Os servos de Saul disseram: Eis que um espírito mau de Deus se abate sobre você" (I Samuel XVI, 14-15).

"No dia seguinte, um espírito mau enviado por Deus se abateu sobre Saul, e ele teve convulsões em meio à sua casa" (I Samuel XVIII, 10).

Algum tempo depois ainda:

"Então o espírito mau do Senhor estava sobre Saul, enquanto ele estava em sua casa" (I Samuel XVIII, 10).

A expressão "um espírito mau de Deus" é lacônica mas clara. Os espíritos de malícia, por mais reprovados que estejam, não deixam de ser, como no tempo em que eram anjos, "obedientes à Sua voz e aos Seus mandamentos", mas agora por força.

Portanto, é dada permissão aos demônios para deixar o inferno e retornar à terra. Eles não retornarão todos ao mesmo tempo. Eles serão chamados por Deus na proporção das faltas humanas que serão cometidas, ou seja, dos direitos que os homens abandonarão sobre si mesmos aos demônios.

Portanto, é lógico pensar que o número de demônios que assombram a terra é cada vez maior. É isso que parece estar acontecendo de fato. Algumas almas místicas dizem, por terem observado em suas visões, que no fim dos tempos, quase não restarão demônios no inferno. Eles estarão, quase em sua totalidade, na terra.

Ao chegarem à terra, enquanto procurarem quem devorar, os demônios vão se afeiçoar a certos lugares específicos? Seu elemento de predileção será, sem dúvida, o elemento do ar. Quando São Paulo quer nos fornecer detalhes sobre nossos tentadores, ele nos diz:

"Vós agíeis outrora segundo o príncipe desta potência do ar, segundo o espírito que agora opera nos filhos da desobediência" (Efésios II, 2).

Compreende-se que os seres espirituais que permaneceram como demônios se afeiçoam ao elemento aéreo:

"Pois não temos de lutar apenas contra a carne e o sangue, mas contra os príncipes, contra as potestades, contra os dominadores deste mundo de trevas, contra os espíritos de malícia espalhados nos ares" (Efésios VI, 12).

A expressão de São Paulo é mesmo forte, pois ele diz "in cælestibus", ou seja, "na atmosfera". Todas as substâncias materiais, e não apenas o ar, podem servir de suporte a demônios. É por isso que é necessário exorcizar as matérias, como o sal e a água, que são usadas para os Sacramentos. Sabe-se, assim, que eles se afeiçoam a lugares áridos. Quem não guarda na memória a frase evangélica: "Quando um demônio sai de um homem, ele vai pelos lugares áridos, buscando descanso".

XIV. OS COMBATES SINGULARES

Durante toda a duração do "dia do homem", ou seja, até o fim dos tempos, o príncipe deste mundo conduzirá, contra a humanidade, uma luta tanto coletiva quanto individual.

Coletivamente, ele atacará as instituições temporais e espirituais, seja infestando aquelas que existem fora de seu domínio, seja criando organismos dos quais será o fundador e mestre. Estudaremos essa forma coletiva de luta mais adiante.

Individualmente, ele investirá contra cada homem em particular, girando ao seu redor sem lhe dar trégua. É essa forma individual de batalha que vamos observar agora.

Eis, portanto, homens e demônios frente a frente em inumeráveis combates singulares. Mas os adversários são muito diferentes. Os demônios são espíritos simples, outrora límpidos e agora perturbados. Os homens, ao contrário, são compostos de duas substâncias: uma carnal, que é apenas uma forma especial de matéria, e outra espiritual, análoga à dos anjos. Cada combate singular envolve um atacante, ou seja, um ou mais demônios, e um atacado, ou seja, um homem, esteja ele ainda intacto ou já ferido.

Vejamos primeiro o comportamento do demônio atacante. Ele atacará preferencialmente o corpo ou a alma? Deus não lhe deu poder direto sobre o corpo humano. De acordo com as leis naturais, um demônio não pode matar um homem. Mas ele pode colocá-lo progressivamente em um estado de decadência que levará à morte.

É assim, por exemplo, que ele pode sugerir ao homem que se suicide. Todos sabem que ele frequentemente consegue isso.

Quais são os poderes do demônio sobre a alma humana? Novamente, de acordo com as leis da natureza, o demônio também não tem o poder direto de matar a alma. Matar uma alma significa obter seu consentimento para uma revolta deliberada e obstinada contra Deus. Ora, existe na alma humana um foro interno no qual o demônio não pode entrar. Ele não pode adivinhar o pensamento íntimo de uma alma que se refugia "no foro interno". E, portanto, não pode obter dela, se a alma não consentir, a obstinação que a mataria.

Se o demônio não tem poderes diretos sobre o corpo ou a alma, como ele vai atacar o homem? Ele vai mirar na parte frágil, ou seja, na zona de sutura entre a alma e o corpo. Todos os mestres da vida espiritual ensinam que essa zona sensível é a imaginação. É na imaginação que as sensações, provenientes dos órgãos sensoriais, se transformam em pensamentos. Eles acrescentam que o demônio tem o poder de exacerbar a imaginação; ele pode intensificar as imagens sensoriais para intensificar os pensamentos que resultam delas e, assim, criar paixões que são forças psicológicas indisciplinadas e violentas. As paixões eróticas são as mais típicas dessas paixões, mas não são as únicas. Existem também todas as ambições, aquelas que derivam do dinheiro, do poder, das honras. Existem também os prazeres artísticos e intelectuais que podem se inflamar em paixões desordenadas. Portanto, é nessa zona da imaginação sensível que o demônio vai concentrar seus esforços. É por essa zona de fragilidade que ele vai entrar na alma.

Vejamos agora quais podem ser os comportamentos da alma assim atacada.

Em seu combate singular, a alma humana possui um refúgio interior e também recebe uma ajuda exterior.

O refúgio interior, nós o conhecemos, é o foro interno, ou seja, a parte superior da alma, aquela que é orientada para Deus. O demônio não tem acesso natural a ele. Mas a alma, porque possui livre-arbítrio, tem o poder de abrir livremente seu foro interno à influência do demônio. Uma vez que o demônio tenha entrado na alma pela porta baixa da imaginação sensível, ele só precisará se tornar sedutor e obter a entrada do foro interno para manter uma conversa íntima com a alma.

O resultado do combate individual dependerá, portanto, da vontade livre da alma. Pois o foro interno não é radicalmente impenetrável. Ele está sob a dependência da vontade. Ele permanece uma fortaleza na medida em que a vontade mantém a porta fechada. A alma pode renunciar à desconfiança, ceder à sedução e se abrir à conversa demoníaca.

Mas então a malícia, que entrou na alma pela exaltação das imagens sensíveis, vai invadir a zona racional e dar origem, no homem sem vontade, à malícia do espírito. Essa é a malícia favorita dos intelectuais. O catecismo do Concílio de Trento (Ed. Itinéraires, p. 548) chama a atenção para essa malícia do espírito. Ele diz que compreende as paixões que "pertencem à parte superior da alma. Elas são tanto mais perigosas e mais criminosas quanto a razão e o espírito estão acima da natureza e dos sentidos."

Essa malícia do espírito é muito difundida nas sociedades de pensamento e nas confrarias iniciáticas, onde é considerada, não como uma malícia, mas como uma virtude.

Entregue às suas próprias forças humanas, a alma é capaz de resistir ao ataque dos demônios? Os padres do Concílio de Trento não pensam assim:

"Quem ousará, depois disso, se crer em segurança com suas próprias forças?".

Por isso, Deus concede uma ajuda exterior:

"Temos, para nos ajudar, um Sumo Sacerdote que pode compadecer-se das nossas fraquezas, tendo ele mesmo sido tentado e provado em todas as coisas" (Hebreus IV, 15).

São Paulo aqui ecoa o antigo ensinamento dos salmos:

"...Quem é um rochedo, senão o nosso Deus? ...Quem me faz manter-me firme nas minhas alturas; quem prepara minhas mãos para o combate e meus braços para o arco de bronze" (Salmo XVII, 32-35).

Também é conhecida a célebre frase de São Paulo:

"Nenhuma tentação vos sobreveio, exceto a humana; e Deus, que é fiel, não permitirá que sejais tentados além das vossas forças; mas, com a tentação, proverá também uma saída feliz, dando-vos o poder de suportá-la" (I Coríntios X, 13).

Esse poder de resistir nos é enviado do Céu por Jesus Cristo.

Os combates singulares são necessários porque uma prova é necessária neste mundo, que é essencialmente provisório e probatório.

"Aquele que luta na arena só será coroado depois de ter combatido legitimamente" (II Timóteo II, 5).

"Bem-aventurado o homem que suporta a tentação, porque, depois de ser aprovado, receberá a coroa da vida que Deus prometeu aos que o amam" (Tiago I, 12).

Os combates singulares têm um grande peso na evolução do mundo. É dos seus sucessos ou fracassos que dependem os direitos do demônio para infestar também as instituições temporais e espirituais. Sem essas vitórias individuais, ele não poderia um dia fincar a bandeira do Anticristo na sociedade humana. Não nos surpreendamos de sofrer individualmente com a invasão coletiva de Satanás, pois somos em parte responsáveis por isso. Todos punidos porque todos culpados.

XV. A POSTERIDADE DA SERPENTE

Dirigindo-se para a serpente, após o episódio da tentação, Deus lhe disse:

"Eu porei inimizades entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência dela" (Gênesis III, 15).

O que devemos entender por esse termo um tanto misterioso de "descendência"? O texto da Vulgata usa a palavra "semen", literalmente "semente", que é comumente traduzida por "descendência" ou "prole". Portanto, há duas descendências: a da mulher e a da serpente.

Segundo a opinião tradicional, a descendência da mulher designa Nosso Senhor Jesus Cristo. De fato, a identificação de Nosso Senhor com a "Descendência da mulher" se justifica de duas maneiras. Em primeiro lugar, porque a mulher por excelência é Maria, cuja descendência é precisamente o objeto da inimizade da serpente. E, em segundo lugar, porque a descendência por excelência de Eva é N.S.J.C, de quem ela é a ancestral e que é, quanto a Ele, seu mais ilustre e perfeito descendente.

Mas quem é, então, a descendência da serpente? A serpente não tem descendência humana. Portanto, só pode tratar-se de uma filiação espiritual. A personagem que será mais conforme a essa filiação espiritual da serpente será o Anticristo.

Antes que o Anticristo venha, a filiação espiritual da serpente será transmitida de geração em geração. É justamente isso que Nosso Senhor afirma quando diz aos seus contraditores:

"O Pai de vocês é o Diabo, e vocês querem cumprir os desejos do seu pai" (João VIII, 44).

Não poderia ser mais claro: os contraditores de Jesus pertencem à "descendência do serpente".

Cristo e o Anticristo são, portanto, as duas "descendências" mencionadas em Gênesis. Apenas eles são também o tipo de duas descendências entendidas desta vez coletivamente. Eles são os modelos de duas "linhagens", ou seja, de dois "corpos místicos".

O corpo místico de Cristo pode ser considerado como a "descendência da mulher". De fato, foi a nova Eva que o gerou, como é dito em vários lugares e em particular neste curioso versículo:

"Numquid Sion : Homo et homo natus est in ea, et ipse fundavit eam Aitissimus" (Ps LXXXVI, 5 Vulg.).

"Mas de Sião se dirá: 'Um Homem e um homem nasceram nela, pois é o Altíssimo quem a fundou'."

A cidadela de Sião é uma imagem da Virgem. Os dois homens que ela gerou são, um Cristo e o outro seu Corpo Místico — Homo et homo.

"Adão chamou sua mulher de Eva, pois ela foi a mãe de todos os viventes" (Gênesis 3:20).

A descendência de Eva está assim dividida inteiramente em dois corpos místicos, o de Cristo e o do Anticristo. Eva é a ancestral tanto de um como do outro.

Entre essas duas descendências, entre essas duas sementes, deve existir inimizade até a extinção de um dos antagonistas, ou seja, até o fim dos tempos, quando o Anticristo será derrotado pelo esplendor do Advento majestoso de Jesus Cristo. Foi Deus quem estabeleceu essas inimizades: "Porei inimizades" (Gênesis 3:15). Portanto, existe uma rivalidade fundamental entre o Homem-Deus e o Grande Dragão. Essa rivalidade já motivou a expulsão de Lúcifer do Céu. Agora ela continua na terra.

Assim que a serpente obteve sua primeira vitória terrena, Deus anunciou que suscitaria contra ela um "germe" misterioso que acabaria triunfando sobre ela. Um descendente distante da mulher que a serpente havia enganado esmagaria sua cabeça: "Ele te ferirá a cabeça" (Gênesis 3:15). Este texto crucial, embora breve, é chamado de protoevangelho porque anuncia a vinda daquele que deve destruir a obra da serpente. Esta profecia alimentou a meditação dos Grandes Patriarcas que viveram sob a Lei Natural e foi transmitida até o tempo de Abraão. Foi então que Deus especificou a Abraão que esta profecia se cumpriria em sua própria descendência.

Duas religiões, surgidas desse antagonismo, vão se originar entre os filhos de Adão: a religião de Abel e a religião de Caim. Elas diferem pelos ritos de suas oferendas, que são os sintomas de dois espíritos diferentes.

O rito de Abel, inspirado pela ideia da universalidade da lei do sacrifício, ainda é reivindicado pela Igreja Católica como sendo o rito primordial da Verdadeira Religião. Esta reivindicação é particularmente clara no cânon da Missa Romana, na oração Supra quae propitio que o celebrante recita após a consagração. Esta oração marca a conexão da Santa Missa com o sacrifício de Abel e com a Tradição primordial.

Como se sabe, o rito de Caim não foi aceito por Deus. Caim, o filho mais velho de Adão, foi o primeiro representante da "descendência espiritual" da serpente: "Caim era do maligno" (I João III, 11). Seu rito de oferta contém em si todas as religiões falsas, porque, embora possa mostrar algum zelo por Deus, "esse zelo não é conforme o conhecimento" (Romanos X, 2).

Este mesmo demônio, cuja descendência espiritual já proliferava nos tempos de nossos primeiros pais, ainda estava ativo muitos milênios depois, na época de Nosso Senhor:

"O pai de vocês é o diabo, e vocês querem realizar os desejos de seu pai" (João 8:44).

É evidente que esta mesma serpente ainda trabalha entre nós hoje recrutando seu corpo místico, que só estará completo na morte do Anticristo.

Essa doutrina das duas descendências, que é um dos elementos mais antigos da Revelação divina, é especialmente importante de conhecer hoje. Pois os adversários da Igreja fazem muito barulho em torno da famosa tese da Unidade Transcendente das religiões. Esta tese, também muito antiga, é uma concepção da mente. É uma invenção de tipo gnóstica. Não corresponde à realidade. Está em contradição com a Tradição apostólica e com os textos mais antigos da Revelação divina.

Na realidade, desde o início da humanidade, existe uma dualidade fundamental das religiões. A história dos homens na terra é a história da formação lenta de dois corpos místicos, dos quais, após a ressurreição da carne, um será o dos cordeiros e o outro o dos bodes.

"Quando o Filho do Homem vier em Sua glória, e todos os anjos com Ele, então Se assentará no trono da Sua glória; e todas as nações serão reunidas diante d'Ele, e Ele separará uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos bodes" (Mateus XXV, 31-32).

Agora devemos responder a uma objeção. Nós demos à "descendência da serpente" o nome genérico de "corpo místico do Anticristo". Certamente, este nome não é comum. Mas também não é inadequado nem blasfemo.

Chamar isso de corpo não implica necessariamente que o corpo assim designado seja perfeito em suas proporções e aparência. Um corpo pode ser disforme, como é especificamente o caso da Besta do Apocalipse com suas sete cabeças e dez chifres; por mais monstruoso que seja, ainda assim é um corpo, então por que negar-lhe esse nome.

Quanto ao qualificativo "místico", ele significa oculto: pode ser aplicado aos adeptos e aos precursores do Anticristo, cujo conjunto permanece invisível até que seja reunido para o Julgamento. A palavra "místico" não está reservada apenas às coisas de Deus, uma vez que falamos de mística verdadeira e falsa.

Em resumo, a expressão "corpo místico do Anticristo", embora pouco utilizada, não é inadequada nem blasfematória. É evidente que o corpo místico de Cristo resplandece de perfeição, enquanto o do Anticristo é horrendo, é uma horda e um monstro, mas ainda assim é um corpo. A Escritura usa o mesmo termo "Semen" (Semente) para designar duas descendências antagônicas, uma boa e outra má.

XVI. HOMICIDA E MENTIROSO

A Escritura Sagrada nos faz ainda uma revelação muito importante sobre a personalidade do demônio:

"Ele foi homicida desde o princípio e não se firmou na verdade, porque não há verdade nele. Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira" (João VIII, 44).

Assim, o homem terá que lutar contra um espírito que se apresentará alternadamente como homicida e como mentiroso. E ele adotará esse duplo comportamento não apenas em relação a cada indivíduo em particular, mas também em relação à sociedade humana como um todo, ao longo de sua história. Vamos examinar sucessivamente as ações do demônio como homicida e depois como mentiroso.

Para realmente agir como homicida, o demônio está sujeito a duas condições: primeiro, ele precisa da permissão de Deus; segundo, ele precisa da cooperação mais ou menos explícita do homem que ele escolheu como alvo. Pois Satanás é como um cão mantido na coleira; é Deus quem segura a coleira e regula seu comprimento; quanto ao homem, ele pode permanecer afastado ou, ao contrário, se aproximar do cão e ser mordido.

No parágrafo XIV, resumimos as modalidades da ação homicida do demônio sobre as almas individuais. Mas o adversário do gênero humano também opera sua obra de morte sobre a alma das nações, ao insuflar seus erros no espírito de seus governantes e conselheiros; pois a alma de uma nação é seu governo. O que ele faz para isso? Ele os leva à falsa contemplação; ele obscurece, em sua inteligência, a lembrança da Revelação verdadeira; ele lhes sugere uma teosofia da qual ele mesmo é o deus. Assim, ele leva as nações, por meio de seus governantes, a se degradarem, a se dilacerarem e a se perderem.

Esta atividade destrutiva de Satanás sobre a mentalidade e as decisões dos governantes não deve fazer esquecer os poderes homicidas que ele e os seus possuem também, embora indiretamente, sobre nosso corpo. Eles têm, de fato, horror do corpo humano, que lhes lembra o do Verbo Encarnado, à imagem do qual ele foi feito e que foi a causa de sua queda. Desde então, eles só pensam em ferir os corpos. No entanto, eles só têm esse poder com a permissão de Deus. É o caso, por exemplo, dessa mulher, "uma filha de Abraão que o demônio tinha curvada há dezoito anos" (Lucas XIII, 16).

Os demônios também podem, embora não tendo nenhum poder direto sobre os corpos, destruí-los indiretamente, de muitas maneiras e, em particular, usando os homens uns contra os outros. O demônio também poderá, sempre com a permissão divina, agir sobre a integridade e a própria vida das nações. De acordo com São Atanásio, é Satanás quem fala pela boca do rei da Assíria quando ele diz:

"Pela força de minhas mãos eu fiz isso, e por minha sabedoria, pois sou inteligente! Eu desloquei as fronteiras dos povos. Eu pilhei seus tesouros e, como um herói, derrubei do trono aqueles que lá estavam sentados. Minha mão agarrou como um ninho a riqueza dos povos. E como se apanha um ovo abandonado, eu apanhei toda a terra..." (Isaías X, 13-14)

Assim, Satanás pode "deslocar as fronteiras das nações". Ora, pode-se deslocar as fronteiras das nações com duas intenções diferentes. As nações fiéis a Deus, Satanás não descansará até tê-las mutilado e fracionado; ele até mesmo poderá fazê-las desaparecer. Quanto às nações que tomaram o seu partido, Satanás as conduzirá à hipertrofia: daí essas nações gigantescas, monstruosas e ameaçadoras que sempre rodearam as fronteiras do povo de Israel e das quais só Deus pode defendê-lo. Assim, ele exerce sua incansável atividade homicida sobre as almas e os corpos dos indivíduos e dos povos.

Ora, enquanto homicidas, os demônios são evidentemente aterrorizantes e horrendos; sob esse aspecto, eles não atrairão o homem, mas, ao contrário, o farão fugir. Deus pode obrigá-los a se mostrarem a nós nesse estado repugnante que é o de sua verdadeira natureza, a fim de nos inspirar um temor salutar.

Portanto, se os demônios nunca tivessem aparecido senão sob essa forma de seres assassinos, eles não teriam feito nenhum adepto e, finalmente, não teriam exercido nenhuma influência no mundo. É por isso que eles se tornam sedutores e se transformam em "anjos de luz". A expressão é de São Paulo:

"...Satanás mesmo se disfarça em anjo de luz" (II Coríntios XI, 14).

O personagem de Labão, o tio de Jacó, é uma das figuras de Satanás disfarçado de anjo de luz. Labão, como se lembra, impôs a Jacó uma longa tirania. Ora, o nome de Labão significa "pintado de branco", significado que sugere perfeitamente a ideia de uma brancura emprestada e superficial.

Como Satanás se apresenta ao homem disfarçado de anjo de luz? Ele se aproxima como um auxiliar atencioso; ele traz promessas; sugere um ideal elevado; ele esclarece os mistérios divinos; ele ajuda a desvendar os segredos da natureza. Mas a ajuda que ele oferece é ilusória; suas promessas são secretamente acompanhadas de condições mortais; o ideal elevado que ele propõe é excessivo e desvia a alma de sua verdadeira vocação; e quando ele pretende esclarecer os mistérios divinos, é para colocar-se no lugar de Deus.

Entende-se a insistência das Escrituras em nos alertar contra esse disfarce.

"Não acreditem em todo espírito, diz São Paulo, e abstenham-se de toda aparência de mal."

O conhecimento dessa capacidade de disfarce do demônio é uma das informações mais importantes e também mais características da demonologia cristã.

XVII. O DISCERNIMENTO DOS ESPÍRITOS

Uma vez que o demônio pode se "pintar de branco" e se passar por um anjo, como vamos distinguir os bons dos maus espíritos, as boas das más influências? Fazer essa distinção é realizar o que se chama o discernimento dos espíritos.

A capacidade de discernimento dos espíritos não é natural para nós. No entanto, o homem pode possuí-la excepcionalmente como um dom da graça. Então, ela constitui o discernimento infuso, que é um carisma. Essa capacidade é comparável, em seu mecanismo, ao instinto dos pássaros migratórios que se orientam sem referências. A alma agraciada com o discernimento infuso pode, na ausência de qualquer sintoma visível, farejar as trevas mesmo quando estão cobertas por um disfarce de luz.

Mas então, qual será o recurso da grande maioria dos homens que não são agraciados com esse carisma? Os Mestres da vida espiritual reuniram o que se chama as "regras do discernimento dos espíritos".

As regras de discernimento dos espíritos foram refinadas desde a época do Antigo Testamento até os nossos dias. Esse refinamento prova que os demônios estão cada vez mais intimamente misturados aos homens, seja pelo aumento do número daqueles que assombram a terra, seja porque eles acentuam sua sutileza e aperfeiçoam sua arte de penetrar em nossos espíritos. O Cardeal Pierre d'Ailly, já no início do século XV, em seu extenso tratado das Falsas Profecias, observava que "o mundo está em declínio, o Anticristo se aproxima e as imaginações doentias, as ilusões perigosas proliferam".

Sob o domínio da Antiga Lei, a regra de discernimento dos espíritos era simples e rústica porque era suficiente: os bons espíritos levam a obedecer a Deus e os maus a desobedecê-lo. E referia-se à regra do Gênesis:

"Porque comeste da árvore da qual Eu te ordenei que não comesses" (Gên. III, 17).

A serpente, espírito maligno, havia instigado a desobediência à Lei. Tal era o critério simples e saudável.

Após a Vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo, os demônios vão aperfeiçoar sua arte; também será necessário aperfeiçoar a análise. São Paulo enumera os diversos elementos do diagnóstico das boas e más influências espirituais. Os maus espíritos utilizam os caminhos da carne:

"Ora, as obras da carne são manifestas: imoralidade, impureza, libertinagem, idolatria, feitiçaria, inimizades, brigas, ciúme, iras, rivalidades, dissensões, facções, invejas, bebedeiras, orgias e coisas semelhantes a estas" (Gál. V, 19-21).

Estas são as obras da carne às quais os demônios se esforçam para empurrar o homem. Eis agora como se reconhecem as influências divinas, que São Paulo também chama de "obras do Espírito":

"Mas o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio... E os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne, com as suas paixões e concupiscências" (Gál. V, 22-24).

Como se vê, São Paulo enuncia regras de discernimento baseadas em critérios morais. São João fornece critérios doutrinais:

"Nisto conhecereis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; e todo espírito que não confessa a Jesus não é de Deus; este é o espírito do anticristo, a respeito do qual tendes ouvido que havia de vir" (I João IV, 2-3).

A partir de então, os dois critérios apostólicos, de São Paulo e de São João, só precisarão ser desenvolvidos pelos mestres da vida espiritual.

Este desenvolvimento começa no período patrístico. Orígenes faz o seguinte raciocínio: Satanás aproveita-se dos primeiros movimentos suscitados em nós por nossa natureza pecaminosa. Ele primeiro deixa esses movimentos operarem em nós e por nós, e assim encontra neles uma desculpa e um direito de nos tentar e nos empurrar mais adiante no caminho que nós mesmos escolhemos; ele encontra ao mesmo tempo um meio de dissimular sua influência; acreditamos assim continuar por nós mesmos o que começamos sozinhos.

Os Padres também constatam os efeitos psicológicos do bom e do mau espírito: o bom espírito gera paz e humildade; o mau espírito gera tristeza, perturbação, indecisão e preguiça.

São Tomás de Aquino trata metodicamente da questão do discernimento dos espíritos. Ele se dedica a distinguir o que, em nossa vida interior, diz respeito à nossa liberdade e o que diz respeito à influência de Satanás, que age principalmente utilizando nossos sentidos e nossa imaginação. Ele também enumera algumas regras para diferenciar os verdadeiros e os falsos profetas. Os verdadeiros, acima de tudo, não se atribuem sua missão; eles a recebem de Deus. Os falsos profetas se atribuem seu próprio mandato, eles têm horror ao santo Nome de Jesus, eles incitam primeiro ao bem e depois rapidamente desviam para o mal.

O autor anônimo de "A Imitação" faz recair o discernimento dos espíritos sobre a distinção entre a natureza e a graça. A natureza busca a si mesma, ela quer perdurar, ela hipertrofia o ego, ela não traz senão consolações exteriores. A graça age para Deus, que é seu fim, ela modifica o ego, ela traz consolações espirituais e interiores. Mas "A Imitação" não esquece o demônio: ele vem conosco com as coisas da natureza, ele as acompanha.

São Inácio de Loyola é um dos últimos a vir como doutor do discernimento. Ele expressou suas regras em seu livro de Exercícios. A grande difusão desses "Exercícios" tornou suas regras clássicas. São Inácio distingue primeiro a "vida purgativa" e a "vida iluminativa". Ele dedica a primeira semana dos exercícios ao estudo da vida purgativa e enumera catorze regras "para discernir os movimentos que os diferentes espíritos excitam na alma, a fim de agradar os bons e repelir os maus". A segunda semana trata da vida iluminativa e é concluída por oito outras regras "para melhor discernir os espíritos".

Qual é essencialmente o critério ignaciano do discernimento dos espíritos? Os maus espíritos produzem na alma estados de desolação: eles criam tristeza, desespero, perda de confiança em Deus; não se deve tomar decisões quando se está nesses períodos de desolação, pois nada de bom se faz sob a influência dos demônios. Ao contrário, os bons espíritos produzem na alma estados de consolação, que incluem alegria espiritual e calma interior, misturados com lágrimas de arrependimento.

No entanto, São Inácio conhece as falsas desolações que não são outras que esses estados de secura tão bem descritos por São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila. Essas "falsas desolações" vêm de Deus para a purificação da alma. Ele também conhece os estados de falsas consolações que vêm do demônio e que consistem em um contentamento consigo mesmo e um sentimento de complacência.

É fácil constatar que as regras ignacianas de discernimento dos espíritos têm principalmente como campo de aplicação o trabalho de introspecção pessoal. Elas são eminentemente subjetivas.

Pode-se aplicá-las quando se trata de discernir de que espírito pertencem obras doutrinais? Podem elas ajudar a reconhecer se tal produção intelectual vem do Céu ou, ao contrário, sai do poço do abismo? Nesse caso, elas são insuficientes, e é apenas a análise objetiva das doutrinas expostas que pode revelar o espírito.

No entanto, pode-se aplicar as regras ignacianas à impressão interior, de ansiedade ou de calma, que as obras de doutrina produzem no espírito dos leitores. Elas servem então para confirmar os resultados da análise objetiva. Mas com a condição de que a experiência seja continuada por um período suficientemente longo, isso para eliminar os fenômenos de euforia passageira. As obras de falsa mística, em particular, podem gerar uma piedade intensa mas efêmera.

XVIII. O MACACO DE DEUS

Observemos agora o demônio em seu comportamento como imitador de Jesus Cristo. O demônio é ciumento de Nosso Salvador, a quem ele reprocha por ter-lhe roubado o primeiro lugar na criação. E, como todos os seres ciumentos, ele não desvia os olhos daquele que é o objeto de sua inveja.

Mas, por outro lado, Satanás não pode inovar, pois Nosso Senhor conserva a iniciativa em tudo. Sua inveja, portanto, fará dele o imitador de Jesus Cristo. Vamos ver em que condições.

O demônio, como vimos, trabalha para edificar na terra seu poder e sua religião. Ele obviamente tem a escolha entre duas táticas.

Ele pode edificar os órgãos de seu principado em total independência, criar seus lugares altos, suas dinastias devotas, seus santuários; ele pode estabelecer seus próprios ciclos cronológicos, seus ritos de oferta, seu simbolismo, suas vias meditativas, e isso diante do edifício de Cristo e para desafiá-lo e zombá-lo. É mesmo a tática que melhor convém a um ser tão impregnado de "próprio espírito" e tão ativo.

Infelizmente, os homens possuem uma religiosidade natural e um respeito natural pela autoridade que são feitos para Deus e para seus enviados. Portanto, eles se adaptarão com dificuldade a órgãos independentes construídos em outro modelo, com vistas a outra finalidade, e para o benefício de outro mestre.

Sem abandonar totalmente a tática independente à qual ele certamente gosta de retornar, Satanás, portanto, seguirá uma tática de imitação que lhe facilitará singularmente a tarefa. Ele penetrará, coberto com a pele de um cordeiro, nas instituições feitas para Deus e nas quais ele se fará passar por Deus, graças a esse poder de disfarce que acabamos de examinar.

Em resumo, ele generalizará a estratégia pela qual conseguiu destronar Adão, quando se mostrou na árvore plantada por Deus. Todas as autoridades vêm de Deus. O demônio as usurpará todas sucessivamente. Ele concretizará progressivamente seus direitos virtuais de Príncipe deste Mundo. Ele agirá da mesma forma com a religião primordial revelada por Deus. Ele a fragmentará e penetrará nos pedaços. E quando ele tiver penetrado em todas as autoridades e em todas as instituições divinas, ele dirá: "A casa é minha, é Deus quem deve sair".

A necessidade dessa estratégia parasitária aparece especialmente no campo da religião. Não há dúvida de que Deus estabeleceu a natureza humana com o objetivo de comunicar-lhe a Revelação. Ele coordenou tudo nas faculdades humanas para que, quando a hora chegar, o homem acolha, sem dificuldade, a Religião do Verdadeiro Deus. Dá-se o nome de religiosidade natural a esse conjunto de faculdades nativas. Os teólogos falam, no mesmo sentido, da "virtude natural da religião".

Além disso, Deus estabeleceu o homem em um universo que, também, sugere ao espírito a noção de um Mestre diante do qual é apropriado prostrar-se. Seria muito interessante estudar todas as propensões religiosas da natureza humana. Aqui podemos apenas enumerar algumas delas. Observa-se em toda parte, por exemplo, o sentido da genuflexão ou da inclinação, pelos quais, para honrar alguém grande, o homem se diminui. O gosto pela prosternação já é um simulacro de aniquilamento diante daquele que nos tirou do nada; simulacro de aniquilamento levado ainda mais longe pelo sacrifício de uma vítima: "sacrifício" significa "devoção" no sentido etimológico. Também se nota o atraente pelos lugares altos da natureza, especialmente quando um episódio sagrado já se desenrolou lá. Da mesma forma, o sentido de respeitar os momentos fortes que retornam no ciclo anual. Também se observa a propensão geral à contemplação natural com sua fase preparatória necessária: a mortificação dos sentidos.

Essas inclinações espontâneas da religiosidade natural são feitas para culminar na Verdadeira Religião do Deus que primeiro se faz desejar e que depois se revela.

É nessa religiosidade que o demônio quer penetrar. Mas ela não é feita para ele. Portanto, para se introduzir nela, será necessário que ele se disfarce daquele para quem a religiosidade é feita. Ouçamos Bossuet falar sobre essa substituição:

"O demônio abole o conhecimento de Deus, e por toda a extensão da terra, ele se faz adorar em seu lugar... Ele sempre afetou fazer o que Deus fazia, como um súdito rebelde que afeta a mesma pompa que seu soberano... Ele não teve seus altares e seus templos, seus mistérios e seus sacrifícios, e os ministros de suas impuras cerimônias que ele fez, tanto quanto possível, semelhantes àquelas de Deus, porque ele é ciumento de Deus e quer parecer em tudo seu igual." (Bossuet, Primeiro sermão sobre os demônios).

O paroxismo dessa substituição do dragão por Deus, na religião, é realizado nas circunstâncias que Nosso Senhor deixa prever a seus apóstolos de todos os tempos:

"Mais ainda, a hora vem em que qualquer um que vos matar imaginará render culto a Deus" (João XVI, 2).

As falsas religiões colocam em prática a religiosidade natural comum a todos os homens, de modo que seus adeptos acreditem sinceramente render culto a Deus, que é o centro normal dessa religiosidade. Mas, na realidade, eles são colocados sob a influência espiritual de Lúcifer. É assim que por trás de cada ídolo pagão se esconde um demônio. Quando chega um apóstolo de Nosso Senhor e se aproxima demais, o demônio inspirador sugere matá-lo. E os adeptos o matam, imaginando render culto a Deus.

XIX. OS DEMÔNIOS DO PAGANISMO ANTIGO

Na antiguidade, apenas os judeus praticavam a Religião do Verdadeiro Deus. Todas as outras nações, que a Escritura reúne sob o nome de Gentios, praticavam a religião pagã. O paganismo da gentilidade estava sob a dependência de Satanás.

Antes da vinda de Nosso Senhor à terra, Satanás exercia uma incontestável principado sobre os reinos e sobre a religião. E é com justiça que ele era chamado o Príncipe deste Mundo. São João fala daquele

"que é chamado o diabo e Satanás e que seduziu toda a terra (universum orbem)" (Apoc. XII, 9).

Não é que Deus quisesse positivamente e expressamente esse estado de coisas, mas porque Ele o tolerava, por razões misteriosas que se reúnem sob o nome de "mistério da iniqüidade". Pois há o que Deus quer, e há o que Ele tolera. Como um Deus pode tolerar o que Ele não quer? Isso se deve ao fato de Ele nos deixar nosso livre-arbítrio.

No entanto, o paganismo das nações não era uma religião homogênea. Era feito de correntes e elementos diversos, onde o principado de Satanás não pesava igualmente em todos os lugares. Os textos do Antigo Testamento nos apresentam os ídolos do paganismo, ora como representações das paixões humanas, ora como demônios divinizados.

Os ídolos são demônios divinizados. O texto mais famoso e mais formal é o seguinte:

"Todos os deuses das nações são demônios" (Sl. XCV, 5).

Poderíamos citar muitos outros trechos, talvez não tão lacônicos, mas igualmente formais. Eis alguns deles.

Conhecemos o paganismo principalmente pelas repreensões que Deus dirige ao povo judeu. Ele os repreende justamente por adorarem às vezes os ídolos das nações e dá as razões de suas repreensões:

"Os hebreus se misturaram com as nações e aprenderam suas obras. Eles serviram seus ídolos, que se tornaram uma armadilha para eles. Eles sacrificaram seus filhos e suas filhas a demônios" (Sl. CV, 35-37).

Encontramos no Deuteronômio um trecho no mesmo sentido:

"O povo de Deus abandonou o Deus que o formou e desprezou a rocha de sua salvação. Eles excitaram a inveja de Deus com deuses estrangeiros; eles o irritaram com abominações; eles sacrificaram a demônios que não são Deus, a deuses que eles não conheciam, deuses novos, que vieram recentemente, diante dos quais seus pais não tremiam" (Deut. XXXII, 15-17).

No momento da Vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo, o paganismo permaneceu como havia sido desde os tempos antigos, e São Paulo dá aos ídolos a mesma definição que os livros do Antigo Testamento:

"Eu digo que o que os gentios sacrificam, eles o imolam a demônios e não a Deus. Ora, eu não quero que vocês estejam em comunhão com os demônios. Vocês não podem beber ao mesmo tempo do cálice do Senhor e do cálice dos demônios. Vocês não podem participar da mesa do Senhor e da mesa dos demônios" (I Cor. X, 20-21).

Eis um segundo texto onde o mesmo julgamento é expresso sob outra forma:

"Não vos prendais ao mesmo jugo com os infiéis. Pois qual é a sociedade entre a Justiça e a iniquidade? Ou o que tem em comum a Luz com as trevas? Qual é a concórdia entre Cristo e Belial?... Qual é a relação entre o Templo de Deus e o das ídolos?*" (II Cor. VI, 14-16).

Em seguida, São Atanásio, no século IV, ao celebrar a vitória da Religião de Jesus Cristo, ainda confirma essa assimilação dos ídolos aos demônios:

"Todas as nações abandonam os ídolos e reconhecem o Verdadeiro Deus, Pai de Cristo. Os prestígios dos demônios são destruídos e apenas o Verdadeiro Deus é adorado em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo."

Mas dissemos que a Escritura também define às vezes os ídolos dos gentios como representações das paixões humanas. De fato, o paganismo comportava uma certa construção filosófica porque havia pensadores que queriam coordená-lo. Os gentios instruídos haviam divinizado as poderosas paixões humanas e lhes haviam erguido estátuas. É por isso que o escritor sagrado pode reprovar-lhes o culto à obra de suas mãos. São Paulo, por exemplo, condena àqueles:

"que têm trocado o Deus Verdadeiro pelo engano e que têm adorado a criatura em preferência ao Criador" (Rom. I, 25).

Os profetas, muito antes, falavam da mesma maneira:

"Tu tomaste tuas joias feitas do Meu ouro e da Minha prata que Eu te tinha dado, e fizeste delas imagens de homens (paixões humanas divinizadas)... e puseste diante delas o Meu óleo e o Meu incenso" (Ez. XVI, 17-18).

O óleo e o incenso que Me são destinados, mas que tu desvias em benefício das "imagens de homens".

"A terra deles está cheia de ídolos. Eles se prostram diante da obra de suas mãos, diante do que seus dedos fabricaram" (Is. II, 8).

Agora precisamos notar que entre os "demônios" e as "paixões humanas", não há diferença. Pois as paixões são os demônios interiores do homem. E os demônios, astros errantes, não são outra coisa senão "paixões errantes". Assim, o paganismo realizava essa conivência humano-demoníaca da qual falamos. E resume-se fielmente o paganismo dizendo que ele divinizou os vícios e os adorou.

Dissemos que o paganismo não era homogêneo e que nele encontrávamos diversos correntes onde a influência de Satanás pesava de forma diferente. Deus, de fato, permanece o mestre do paganismo assim como é o mestre de tudo. Satanás é apenas um ministro. E não apenas ele é ministro, mas também é imitador de Deus. Desde então, não nos surpreendemos ao descobrir, no próprio seio do paganismo, ainda que demoníaco, uma preparação evangélica.

O mesmo São Paulo que condena a frequentação dos cultos idólatras, dando como motivo que os sacrifícios lá são oferecidos a demônios, esse mesmo São Paulo é o primeiro a reconhecer a "preparação evangélica" que se operou no seio do paganismo.

Ele sabia reprovar aos gentios o desprezo por Deus:

"...porque, tendo conhecido a Deus, não O glorificaram como Deus, nem Lhe deram graças; antes se perderam em seus vãos raciocínios, e seu coração insensato se encheu de trevas" (Rom. I, 21).

Mas São Paulo também soube, ao chegar a Atenas, compreender o que Deus tinha feito para preparar os gentios a receber a evangelização:

"Paulo, em pé no meio do Areópago, disse: Athenienses, em tudo vejo que sois notavelmente religiosos. Pois, passando e olhando o que é do vosso culto, encontrei até um altar com esta inscrição: Ao deus desconhecido. Aquilo que adorais sem conhecer, é isso que eu vos anuncio" (Atos XVII, 22-23).

Os primeiros bispos evangelizarão os gentios levando em conta essa dupla natureza do paganismo. Entre tantos carismas com que Deus os havia provido, o discernimento dos espíritos foi um dos mais necessários, pois tiveram que desentranhar, na antiga religião pagã, tão enraizada nos gentios, o que devia ser rejeitado como pertencente ao demônio e o que devia ser conservado como anunciando "o deus desconhecido". Deus não permitiu que os demônios pervertessem totalmente a religiosidade natural, nem que abolissem completamente a Tradição Primordial, nem que fizessem esquecer totalmente o anúncio de um Salvador.

XX. GOG E MAGOG

Nós já falamos sobre o "corpo místico do Anticristo". Este corpo místico aparece, no Apocalipse, sob o nome da Besta. Assim como o corpo místico de Cristo é belo e harmonioso, a Besta é horrenda, disforme e complicada.

A Besta sobrevive aos homens que a constituem na terra e que lhe dão apenas sua contribuição efêmera. Ela está, além disso, crescendo e só alcançará suas dimensões definitivas na vinda do Anticristo, de quem ela é apenas o veículo e o órgão de preparação.

A Besta é constituída por todos os artífices do poder terrestre de Satanás: os reis maus, os falsos profetas e seus seguidores. Ela é o conjunto dos maus príncipes e das falsas religiões, e é por isso que é tão grande e disforme. Uma de suas monstruosidades é ser dupla. Ela se apresenta alternadamente, e até simultaneamente às vezes, sob o aspecto de Gog e sob o de Magog.

A palavra "Gog" tem o sentido de "cobertura". Designa as forças satânicas cobertas, ou seja, dissimuladas, as forças que são difíceis de identificar como malignas. Gog tem, portanto, o sentido de astúcia.

Magog significa "sem cobertura", ou seja, sem dissimulação. Designa as forças abertamente hostis a Deus e ao seu Ungido. Magog, portanto, tem o sentido de violência cínica e explícita.

Sobre o sentido que se pode atribuir a Gog e a Magog, Santo Ambrósio se expressa da seguinte forma:

"Por Gog, que se interpreta como cobertura, são designados aqueles que escondem sua malícia, parecendo justos aos olhos dos homens, enquanto são malignos em seu espírito. Por Magog, que se interpreta como 'saindo do teto', são designados aqueles que, espalhando-se para fora do teto de seu coração em malícias abertas, mostram a todos que são ímpios."

E é exatamente isso que se observa, de fato, na terra. O demônio age sempre alternando ou associando astúcia e violência. Dois capítulos de Ezequiel são inteiramente dedicados a Gog e Magog, os capítulos XXXVIII e XXXIX. Deus fala a Gog e lhe diz:

"Naquele dia, pensamentos se elevarão em teu coração, e tu conceberás um mau desígnio. Dirás: Subirei contra uma terra sem defesas; irei contra esses homens tranquilos que habitam em segurança, que têm moradias sem muralhas, que não têm nem trancas nem portas" (Ezequiel XXXVIII, 10-11).

Tal é a atividade de Gog, oculta e dissimulada, que se apodera sorrateiramente das moradias sem trancas.

Magog é, originalmente, o nome de um dos sete filhos de Jafé. O profeta Ezequiel o emprega em outro sentido. Ele faz de Magog o país que serve de refúgio para Gog e de onde ele parte à frente de seus povos. Em sua marcha conquistadora, Gog, o astuto, toma como ponto de partida Magog, o país da violência. Os capítulos XXXVIII e XXXIX de Ezequiel devem ser lidos atentamente; eles fornecem uma visão profética sobre as grandes guerras mundiais modernas.

A astúcia e a violência também aparecem, mas sob outro nome e sob outra forma, no livro de Jó. Este livro, um dos mais antigos da Sagrada Escritura, descreve duas Bestas: Beemote, a besta violenta que corresponde ao gênio homicida de Satanás, e Leviatã, a besta astuta que corresponde ao seu gênio da mentira.

Beemote habita em terra firme. É um animal enorme que é construído para exercer uma força brutal.

"Vê o Beemote, ele se alimenta de erva, como o boi. Vê, pois, sua força está nos seus lombos, e seu vigor nos músculos de seus flancos. Ele levanta sua cauda como um cedro; os nervos de suas coxas formam um feixe sólido... As montanhas produzem para ele pastagem; ao seu redor brincam todas as feras do campo... Será que alguém pode capturá-lo de frente com redes e perfurar-lhe as narinas?" (Jó 40:15-24).

O escritor sagrado nos faz notar bem a força sobre-humana desta gigantesca besta. Não se trata de vencê-la com meios meramente humanos.

Leviatã é concebido em um modelo totalmente diferente. É um monstro aquático, vive no mar e esconde sua força sob uma sedução resplandecente:

"Poderás pescar o Leviatã com um anzol e prender-lhe a língua com uma corda? Colocarás um junco em suas narinas? Brincarás com ele como com um passarinho? Amarrá-lo-ás para divertir tuas filhas?... Não quero deixar de mencionar a força de seus membros, a harmonia de sua estrutura... Magníficas são as linhas de suas escamas, como selos firmemente ajustados... Seus espirros fazem brilhar a luz, seus olhos são como as pálpebras da alva... Seu coração é duro como a pedra, duro como a mó inferior... Ele faz o abismo ferver como uma panela, transforma o mar em um vaso de perfume. Deixa atrás de si um rastro de luz... Enfrenta tudo que é elevado, é o rei dos mais orgulhosos animais" (Jó 41:1-26).

Leviatã é verdadeiramente a imagem de Satanás disfarçado em anjo de luz: coração duro e arrogante, mas que se envolve de harmonia, aurora e perfume. Esses dois símbolos bíblicos de Beemote e Leviatã não são meras imagens vãs. De fato, ao longo da história, muitos reis maus e "mestres da mentira" se encontraram, que foram, para o povo de Deus, espiritual mas realmente, Beemotes e Leviatãs.

XXI. OS AUXILIARES

Não há dúvida de que o príncipe deste mundo se faz ajudar. Em seu governo, ele se assegurou de auxiliares. Ele os conta entre os demônios e entre os homens.

Vejamos primeiro de que tipo de auxiliares ele pode dispor entre os demônios. Uma página de Santa Francisca Romana vai nos informar sobre certos membros de seu governo e sobre as modalidades do império que ele pode exercer sobre eles. Este trecho é tirado de seu Tratado do Inferno. Esta obra não pertence obviamente nem à Revelação privada nem ao Magistério. No entanto, dado a personalidade de Santa Francisca Romana e seu prestígio na Igreja, deve-se conceder ao que ela escreve uma séria atenção:

"Durante a queda dos anjos maus, um terço permaneceu nos ares, outro terço permaneceu na terra, e o último terço caiu no inferno. Essa diferença provém da diferença da falta cometida".

"Lucifer é o monarca dos infernos, mas um monarca acorrentado e mais infeliz que todos os outros; ele tem sob si três príncipes aos quais todos os espíritos infernais divididos em três corpos estão sujeitos pela vontade de Deus."

"O primeiro desses três príncipes é Asmodeu; ele era um querubim no céu. Ele preside aos pecados desonestos."

"O segundo é Mammon; era um trono. Ele é o demônio do dinheiro.

"O terceiro é Belzebu; ele pertencia ao coro das dominações; agora está estabelecido sobre os crimes que a idolatria gera.

"Esses três chefes, assim como Lúcifer, nunca saem de sua prisão, mas, quando Deus lhes permite, eles enviam à terra legiões de demônios subordinados. Os demônios subordinados do inferno estão classificados no abismo seguindo a ordem hierárquica: querubins, serafins, etc. Encontramos essas mesmas hierarquias entre os demônios que habitam a terra e os ares, mas eles não têm chefe e vivem em uma espécie de igualdade. São eles que fazem mal aos homens e, por esse meio, diminuem sua confiança na Providência, fazendo-os murmurar contra a vontade de Deus."

"Os demônios que vivem na terra se consultam e se ajudam mutuamente para perder as almas. A única maneira de escapar desse complô infernal seria levantar-se prontamente da primeira queda, e é precisamente isso que não se faz. Nada paralisa melhor os esforços dos demônios e lhes causa maior tormento do que pronunciar o santo nome de Jesus. Quando as almas vivem no hábito do pecado mortal, os demônios se instalam em seu coração; mas quando recebem a absolvição, eles se retiram rapidamente e se colocam ao lado delas para tentá-las novamente; porém, seus ataques são menos intensos, e quanto mais se confessam, mais eles perdem suas forças."

Mélanie Calvat, a pastora de La Salette, retomou, muito tempo depois, a ideia desse "Conselho dos Três Ministros" que cercam e assistem Lúcifer; ela traz, portanto, a Santa Francisca Romana uma confirmação mais recente e não negligenciável.

Vamos agora ver quais podem ser, entre os homens, os auxiliares do príncipe deste mundo. É certo que ele se assegurou de inúmeras cumplicidades. Ele teve, na terra, seus filósofos, seus contemplativos, seus poetas, seus fundadores de religiões, suas congregações iniciáticas, suas dinastias de reis devotos a ele. Em suma, ele realizou, no nível coletivo, a mesma simbiose humano-demoníaca que no nível individual. Ele exerceu, sobre a sociedade humana de todos os tempos, uma tentação coletiva à qual ela sucumbiu. Existem inúmeros institutos de malícia que formam uma vasta contra-igreja com dimensões planetárias.

As poderosas imagens do Apocalipse nos revelarão esses auxiliares e nos mostrarão em ação.

A "besta" do Apocalipse simboliza o corpo místico do Anticristo. É o conjunto formado, ao longo dos séculos, pelos adeptos e auxiliares do Príncipe deste mundo, por todos aqueles que o ajudaram a realizar seu poder e a estabelecer sua religião. Esse corpo místico é tão monstruoso quanto a Igreja é harmoniosa. É assim, por exemplo, como acabamos de ver, que a besta é dupla, manifestando dessa forma sua duplicidade, ao mesmo tempo que sua monstruosidade.

Essa duplicidade é um de seus traços mais constantes; ela aparece com clareza particular no Apocalipse. São João vê sucessivamente duas bestas; a primeira vem do mar:

"Então vi subir do mar uma besta que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre os chifres dez diademas, e sobre as cabeças nomes de blasfêmia" (Apocalipse XIII, 1).

A segunda vem da terra:

"Depois vi subir da terra outra besta, que tinha dois chifres como de cordeiro e falava como dragão" (Apocalipse XIII, 11).

A besta, sob qualquer uma de suas formas, é acompanhada por diversos personagens que agem sob sua dependência e exercem poder vindo dela. Aqui estão os principais cúmplices da besta.

Primeiramente, nota-se o falso profeta:

"que, pelos milagres que ele tinha poder para fazer em presença da besta, enganou os habitantes da terra, dizendo-lhes que fizessem uma imagem à besta que recebera a ferida da espada e vivia" (Apocalipse XII, 14).

Pode-se perguntar quem é historicamente esse personagem? Provavelmente, podemos aplicar a regra comum a ele. Sua manifestação principal ocorrerá no advento do Anticristo, que será acompanhado pelo falso profeta para ser aclamado. Mas ele teve prefigurações em eras anteriores. Pois a terra conheceu muitos "falsos profetas". Um dos mais típicos é Maomé. Um dos mais recentes é Karl Marx, que foi precisamente chamado de "profeta dos tempos modernos".

São João também descreve uma auxiliar feminina do Príncipe deste mundo:

"A mulher estava vestida de púrpura e de escarlata, e adornada de ouro, e de pedras preciosas, e de pérolas; tendo na mão um cálice de ouro cheio das abominações e da imundícia da sua prostituição" (Apocalipse XVII, 4).

Esta mulher sentada sobre a besta escarlate é uma das figuras marcantes do Apocalipse. A besta, portanto, sustenta a mulher e lhe serve de trono. É a besta que comunica à mulher seu poder.

O escritor sagrado mesmo esclarece o significado simbólico dessa personificação feminina. O anjo lhe disse:

"Venha, eu lhe mostrarei o julgamento da grande prostituta que está sentada sobre muitas águas, com a qual os reis da terra se prostituíram, e os habitantes da terra se embriagaram com o vinho da sua prostituição" (Apocalipse XVII, 1-2).

Assim, a mulher, que nos foi mostrada pela primeira vez "sentada sobre a besta", agora está "sentada sobre muitas águas". Qual é, então, o significado dessas muitas águas? São João nos revela isso alguns versículos mais adiante:

"As águas que viste, onde se assenta a prostituta, são povos, multidões, nações e línguas..." (Apocalipse XVII:15).

Portanto, é sobre as multidões que a grande prostituta está sentada. É da multidão que ela tira seu poder. Essa mulher representa, portanto, qualquer Estado cuja autoridade vem de baixo. "A Grande Prostituta" é, em suma, o nome que o Apocalipse dá ao poder do "povo soberano".

O profeta de Patmos, como é chamado São João, nos faz descobrir ainda outro auxiliar terrestre do Príncipe deste mundo, que é a Grande Babilônia. Eis como ele se expressa:

"Esta mulher estava vestida de púrpura e de escarlata e adornada com ouro, pedras preciosas e pérolas. Ela segurava na mão uma taça de ouro cheia de abominações e das impurezas da sua prostituição. Na sua testa estava escrito um nome misterioso: Babilônia, a Grande, mãe das prostituições e das abominações da terra" (Apocalipse XVII, 4-5).

E pode-se saber o que há de abominável no reinado dessa mulher sobre a grande cidade de Babilônia? Sabemos especialmente que é um reino confuso e composto, um poder sem homogeneidade. Ali se misturam o mercantilismo e a tirania.

O reinado da besta que é montada pela mulher vestida de púrpura apresenta todos os traços do que chamamos de capitalismo. São João enumera as mercadorias que estão nos navios dos comerciantes da Grande Babilônia:

"carregamentos de ouro e prata... de linho fino, de púrpura, de seda e de escarlate... de toda espécie de madeira de jacarandá, de todo tipo de objetos de marfim, de objetos de madeira muito preciosa, de bronze, de ferro e de mármore... e de canela, de especiarias, de perfume, de mirra, de incenso, de vinho, de azeite, de flor de farinha, de trigo, de bois, de ovelhas, de cavalos, de carros, e de escravos, de corpos humanos" (Apocalypse XVIII, 12-13).

Na Grande Babilônia, compram-se e vendem-se até mesmo "almas de homens".

Aqui está agora a descrição, resumida mas precisa, dos regimes estabelecidos pela "besta da terra":

"Ninguém podia comprar nem vender, sem ter a marca, que é o nome da besta ou o número do seu nome." (Apocalipse XIII, 17).

Não se poderia pensar que estamos diante do futuro socialismo absoluto e universal, onde de fato ninguém poderá subsistir se não possuir os cartões oficiais e se seu número não estiver marcado nos registros da besta?

O regime do dragão também se caracteriza pela proclamação enfática do progresso material como uma conquista definitiva. É isso que declara, por exemplo, o anjo da igreja de Laodicéia, que representa precisamente o período do Anticristo:

"Eu sou rico, conquistei grandes riquezas e de nada tenho falta" (Apocalipse III, 17).

E ele declara isso antes de ouvir de Deus:

"Mas você não sabe que é infeliz, miserável, pobre, cego e nu" (Apocalipse III, 17).

Já enumeramos, como acólitos da besta, o falso profeta, a mulher vestida de púrpura e a Grande Babilônia. Mas a Escritura Sagrada menciona outros. São, por exemplo, "as sete cabeças e os dez chifres". Os chifres são símbolos do poder governamental. São João explica, em termos proféticos, o que podem representar esses dez chifres:

"E os dez chifres que viste são dez reis que ainda não receberam um reino, mas receberão autoridade como reis por uma hora, juntamente com a besta. Estes têm um mesmo propósito e entregam o seu poder e autoridade à besta." (Apocalipse XVII, 12-13).

XXII. OS AVANÇOS E OS RECUOS

Aqui estão, então, os dois corpos místicos em presença: a Igreja e a Besta. Nós examinamos os vários aspectos da besta e o comportamento dos demônios que a compõem ou, melhor dizendo, a estimulam. Agora precisamos observar as fases e a fisionomia do próprio confronto. Após estudar os combatentes, devemos estudar o desenvolvimento da batalha.

Primeiramente, ouçamos o Papa Leão XIII, desde as primeiras palavras da encíclica Humanum Genus, descrever os dois campos inimigos:

"Desde que, pela inveja do Demônio, o gênero humano se separou miseravelmente de Deus, ao qual era devedor do chamado à existência e dos dons sobrenaturais, ele se dividiu em dois campos inimigos, que não cessam de lutar, um pela verdade e pela virtude, o outro por tudo o que é contrário à virtude e à verdade."

Qual é então a situação dos dois chefes? Cristo já apareceu na terra onde criou instituições espirituais. Ele organizou hierarquicamente a milícia de seu corpo místico. No entanto, Ele não está visivelmente na terra. Ele permanece invisível, sentado 'à direita do Pai'.

Quanto ao Anticristo, ele também está invisível por enquanto. Ele só aparecerá no fim dos tempos, por um período muito breve, e será imediatamente derrotado, ele e a besta.

Os dois corpos místicos, devido à situação de seus respectivos chefes, são comparáveis a dois gêmeos, onde um 'se apresenta bem', a cabeça saindo antes do corpo, e o outro 'se apresenta mal', a cabeça saindo por último. Um está vivo, o outro será natimorto. Esta comparação não é desprovida de interesse porque explica a posição relativa dos dois chefes e antecipa o estado dos dois corpos místicos pela eternidade.

Vamos agora examinar os objetivos de guerra dos dois chefes que acabamos de situar em relação às suas tropas. Observemos que, ao descrever um combate, será conveniente para nós recorrer a imagens e termos de ordem militar.

Comecemos pelos objetivos de guerra de Satanás. O que importa acima de tudo para ele é preparar o reinado de seu 'representante', o Anticristo, pois esse reinado será sua manifestação principal; marcará o ápice de seu poder terreno. É por esse sucesso fugaz que ele trabalha, pois, após esse único sucesso, nenhum outro será possível para ele.

Os objetivos de guerra de Nosso Senhor se resumem em uma palavra: Ele deseja reinar. Ele aspira exercer a realeza para a qual foi enviado. Mas Ele deseja reinar tanto na terra quanto no Céu. Se fosse suficiente para Ele reinar apenas na terra, dada a superioridade de Seu poder, Satanás teria sido vencido e expulso há muito tempo. No entanto, como Cristo também deseja reinar no Céu sobre a Igreja triunfante, Ele deve permitir que Seus súditos celestiais completem suas fileiras, passando pelo teste terrestre cada um a seu tempo. Ele se empenha, portanto, em respeitar a lentidão desejada. Ele modera Seus esforços para mantê-los em quase igualdade com os de Seu adversário. Ele porá fim às hostilidades e decidirá obter a vitória definitiva quando o número dos eleitos estiver completo.

Portanto, a batalha entre os dois corpos místicos não será o avanço regular e lento da Igreja. Pelo contrário, apresentará flutuações como se estivesse sujeita

"aos caprichos da guerra".

Cada vitória parcial de Nosso Senhor será seguida por um contra-ataque do demônio, que reunirá suas energias e se vingará. Poderemos observar, para cada um dos dois campos, uma alternância entre derrotas e vitórias, avanços e recuos. E algumas dessas flutuações poderão até ter uma amplitude considerável. Por exemplo, após a edificação da Cristandade na Idade Média, a Igreja, a partir do Renascimento, só experimentou divisões e retrocessos, até a situação atual que constitui, segundo muitos observadores,

"a abominação da desolação no lugar santo, de que falou o profeta Daniel" (Mateus XXIV, 15).

Quando Nosso Senhor tiver edificado um lugar elevado, Satanás não descansará até ter conseguido que este lugar seja ocupado pela besta. Quando Nosso Senhor tiver obtido uma vitória para marcar um ponto alto, Satanás estará à espreita da reaparição deste mesmo ponto alto no ciclo, para retaliar violentamente, como um inimigo invejoso e imitador. No entanto, apesar dessa quase igualdade de forças que resulta em flutuações tão graves, Nosso Senhor mantém no combate duas prerrogativas absolutas. Em primeiro lugar, Ele mantém a iniciativa das operações e, além disso, reserva para Si a vitória final.

É Jesus Cristo quem mantém a iniciativa. É Ele quem semeia o bom grão, e o inimigo só vem depois espalhar o joio (Mateus XIII, 24-25). É Ele também quem realiza primeiro a Sua Vinda à terra, em um momento em que os demônios não o esperam:

"Tu és o Filho de Deus, vindo para nos atormentar antes do tempo" (Mateus VIII, 29).

"Antes do tempo", isto é, antes da data final do Juízo Final. Pode-se dizer, com toda a verdade, que Jesus Cristo, como faz um general sagaz, atacou de surpresa.

Quanto à vitória final, é evidente que ela está assegurada para o Filho do Homem. É reconfortante saboreá-la antecipadamente:

"Pois já está em ação o mistério da iniquidade; somente aquele que até agora o retém, o fará até que seja tirado do meio. E então será revelado o ímpio, a quem o Senhor Jesus destruirá com o sopro de sua boca e exterminará com o esplendor de sua vinda" (II Tessalonicenses II, 7).

Mas esta aparição triunfal do Verbo Encarnado só ocorrerá após a apostasia geral e a vinda do "ímpio", também chamado de "filho da perdição". Enquanto aguardamos os tempos designados, o mistério da iniquidade opera na Igreja, isto é, a lenta maturação deste abscesso formidável. Assim, a vitória efêmera do Anticristo será imediatamente seguida pela vitória definitiva de Cristo.

Até o fim, a batalha entre os dois chefes e seus dois corpos místicos, a Igreja e a Besta, será uma sucessão de derrotas e vitórias, alternadas e opostas.

XXIII. OS PODERES DO ANTICRISTO

As flutuações da batalha apresentam certa periodicidade, pois os ataques se sucedem e se repetem. Porém, essa periodicidade não é regular cronologicamente, porque o tempo divino é espiritual. Ela consiste no fato de que todos os triunfos da Igreja se assemelham ao triunfo final de seu Chefe, do qual são anúncio; eles formam, em suma, uma mesma família. Da mesma forma, todas as "horas sombrias" se assemelham à morte do Homem-Deus na cruz, que é a hora sombria por excelência.

É Nosso Senhor quem deu a definição de todas essas horas sombrias quando definiu a Sua própria. E em que termos Ele a definiu? Àqueles que vieram prendê-Lo no jardim do Getsêmani, Ele declarou:

"Enquanto cada dia Eu estava convosco no templo, não pusestes as mãos sobre Mim. Mas esta é a vossa hora e o poder das trevas" (Lucas XXII, 53).

Durante o período das tribulações finais, sob o reinado do Anticristo, toda a Terra experimentará, por sua vez, "a hora e o poder das trevas".

Mas desde hoje, em nossa época de obscurecimento da Igreja, devido à grande semelhança dessa crise com aquela das tribulações finais, podemos legitimamente pensar que alcançamos uma dessas horas sombrias definidas pelos termos: Hora e poder das trevas.

Agora, precisamos falar sobre a personalidade misteriosa e aterradora do Anticristo.

Não será propriamente uma encarnação do diabo. Ele será apenas um homem possuído, um homem dominado pela máxima possibilidade de possessão. Assim, será apenas uma "imitação" de encarnação.

Antes de aparecer na Terra, ele terá tido prefigurações, ou seja, predecessores que se assemelhavam a ele. Outras figuras semelhantes o terão precedido, animadas pelo mesmo espírito, mas desempenhando papéis historicamente menos importantes.

São João Evangelista amplia ainda mais a qualificação de anticristo. Ele a atribui a todo aquele que não reconhece Jesus como o Cristo:

"Quem é o mentiroso, senão aquele que nega que Jesus é o Cristo? Este é o anticristo, aquele que nega o Pai e o Filho" (I João II, 22).

E também:

"Todo espírito que não confessa Jesus não é de Deus; mas é o espírito do anticristo" (I João IV, 3).

E esse espírito de negação, diz São João, é muito difundido:

"Assim como ouvistes que vem o anticristo, já muitos anticristos têm surgido" (I João II, 18).

Sem dúvida, esse "espírito do anticristo" está amplamente disseminado. Mas não se deve concluir que o nome e a ideia abrangem apenas um fenômeno coletivo. A vinda de um homem possuído, personificando esse espírito em sua essência máxima e merecendo o título, é indubitável. Em um trecho que já conhecemos, São Paulo chama esse personagem de ímpio:

"...então será revelado o ímpio..." (II Tessalonicenses II, 7).

Em outro trecho, ele o designa como Filho da perdição:

"*Ninguém, de maneira alguma, vos engane; porque não será assim sem que venha primeiro a apostasia, e se manifeste o homem do pecado, o filho da perdição, o adversário que se levanta contra tudo o que se chama Deus, ou é objeto de adoração, de modo que se assentará no santuário de Deus, apresentando-se como Deus" (II Tessalonicenses II, 3-4).

A ideia de um personagem que consolidará em suas mãos o poder combinado do homem e do demônio é frequentemente encontrada nos profetas do Antigo Testamento.

Em um trecho que já citamos por outras razões, Isaías revela o domínio universal que o anticristo conseguirá reunir sob seu controle:

"Eu segurei o universo como se fosse um ninho na minha mão, e como se recolhe ovos abandonados, eu recolhi toda a terra" (Isaías 10, 14).

O ensinamento das Escrituras sobre o Anticristo é claro: o personagem principal virá por último, mas antes disso terá muitas prefigurações. Esta é a doutrina da personalidade do Anticristo. Ela é segura e pode ser aceita sem medo. Ela se opõe à doutrina menos sólida e cada vez mais abandonada que faz do Anticristo um ser coletivo, baseando-se apenas nestas poucas palavras de São João:

"Já muitos anticristos têm surgido" (I João II, 18).

Será impossível lutar apenas com armas humanas contra o Anticristo e todos os seus auxiliares. Somente o poder de Cristo aparecendo em pessoa será capaz de triunfar sobre ele. São João enumera, resumindo, os poderes que lhe serão concedidos por um tempo:

"A besta que vi era semelhante a um leopardo... O dragão deu-lhe o seu poder, o seu trono e grande autoridade... e toda a terra se maravilhou após a besta, dizendo: 'Quem é semelhante à besta e quem pode pelejar contra ela?' E foi-lhe dada uma boca que proferia grandes blasfêmias, e foi-lhe dado poder para agir durante quarenta e dois meses... E foi-lhe permitido fazer guerra aos santos e vencê-los; e foi-lhe dada autoridade sobre toda tribo, povo, língua e nação. E todos os habitantes da terra o adorarão..." (Apocalipse XIII, 2-8).

Conhece-se as circunstâncias da morte do Anticristo? São Paulo descreve sucintamente quando, falando dos últimos tempos, diz o seguinte:

"E então será revelado o ímpio, a quem o Senhor Jesus matará com o sopro da sua boca e destruirá com o esplendor da sua vinda" (II Tessalonicenses II, 8).

As profecias da revelação privada são ricas em detalhes sobre este golpe fulminante que livrará a humanidade do demônio aparecendo no máximo de seu poder. Citemos uma dessas informações mais antigas:

"Quando o filho da perdição tiver cumprido todos os seus desígnios, ele reunirá seus seguidores e lhes dirá que quer subir ao céu. No momento dessa ascensão, um raio o atingirá e o fará morrer" (Santa Hildegarda).

Nossa Senhora de La Salette se expressa de maneira semelhante:

"Eis o tempo; o abismo se abre; eis o rei dos reis das trevas. Eis a besta com seus seguidores, dizendo-se o salvador do mundo. Ele se elevará orgulhosamente no ar para subir até o céu; será sufocado pelo sopro de São Miguel Arcanjo. Ele cairá, e a terra, que durante três dias estará em contínuas convulsões, abrirá o seu seio cheio de fogo; ele será afundado para sempre com todos os seus nos abismos eternos do inferno."

E quanto aos auxiliares do Anticristo sobre os quais falamos? Alguns terão desaparecido antes dele, e eles também terão tido um fim repentino e total. Não se cansa de reler o grandioso quadro que São João traça da Queda da Grande Babilônia:

"Ela caiu, caiu, Babilônia, a Grande! Ela se tornou morada de demônios, abrigo de todo espírito impuro, refúgio de todo pássaro impuro e odiável... Mantendo-se à distância por medo dos tormentos, eles dirão: Ai, ai! Ó grande cidade, Babilônia, ó poderosa cidade, em uma hora veio o teu julgamento?" (Apocalipse XVIII, 2-10).

XXIV. O GEENA DE FOGO

Agora nos restam alguns pontos de demonologia a serem esclarecidos. Quando desceu aos infernos, Nosso Senhor libertou os justos da Antiga Lei que estavam retidos no Sheol, aguardando a abertura do Céu. Tendo o Céu sido aberto para os justos por Jesus Cristo, Ele finalmente os introduziu lá.

No entanto, o Sheol não foi suprimido. Nós o chamamos de limbo. E ele ainda abriga, sob este novo nome, as almas dos inocentes que morreram sem o batismo.

O regime do inferno também não foi modificado. Ele permanece o lugar onde os demônios "são retidos aguardando o julgamento". Mas eles podem sair, com a permissão divina, para vir tentar os homens na terra, sem, no entanto, serem libertados de "suas correntes eternas".

É o juízo final, após a Ressurreição da carne, que estabelecerá o regime definitivo dos infernos. Jesus então lhes dá o nome de Geena:

"Serpentes, raça de víboras, como escapareis da condenação da Geena?" (Mateus XXIII, 33).

Ou ainda:

"Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma; temei antes aquele que pode perder a alma e o corpo na Geena" (Mateus X, 28).

De onde vem essa palavra Geena, praticamente desconhecida no Antigo Testamento? O dicionário dá a seguinte definição:

"Era originalmente o nome de um gracioso vale a sudeste de Jerusalém, chamado Ge-Hinom. No entanto, a partir do tempo de Salomão, os israelitas sacrificaram crianças a Moloque. E foi precisamente no vale de Ge-Hinom que eles praticaram esses sacrifícios. Em seguida, veio a deportação para a Babilônia. Após o retorno do cativeiro, eles tiveram tanta aversão ao local que havia sido palco desse culto bárbaro e ímpio que o transformaram em um depósito de lixo público onde foram jogados os cadáveres de animais e imundícies. Como era necessário, para consumir tudo isso, manter um fogo perpétuo, o local se tornou um "vale ardente" ou Geena de fogo. E a palavra passou para a linguagem corrente para designar o inferno".

Os homens condenados entrarão na Geena com seus corpos ressuscitados. A entrada na Geena constitui para os condenados, assim como para os demônios, a segunda morte, definida por São João como "o lago ardente de fogo e enxofre" (Apocalipse XXI, 8).

Quem julgará o Universo? É o Pai ou é o Filho? É o Filho, pois o Universo é o Reino que Lhe foi dado pelo Pai. É a Sua herança, o Evangelho de São João ensina expressamente o julgamento do Universo pelo Filho:

"Além disso, o Pai não julga ninguém, mas entregou ao Filho todo o julgamento" (João V, 22).

XXV. O NÚMERO DA BESTA

Ainda nos resta perguntar a nós mesmos uma última questão. "O número da besta", declara São João na Apocalipse, é 666. Por que esse número e qual é sua significância? Aqui está o texto básico:

"É aqui a sabedoria. Que aquele que tem inteligência conte o número da besta; pois é um número de homem e esse número é seiscentos e sessenta e seis" (Apoc. XIII, 18).

Qual é o problema? O Escritor sagrado enuncia o número da besta e nos convida a interpretá-lo. É isso que tentaremos fazer, deixando-nos guiar por tudo o que já foi escrito sobre esse assunto.

A ideia que imediatamente vem à mente é procurar a interpretação do número da besta utilizando os valores numéricos das letras do alfabeto hebraico. Para isso, é necessário reunir os mots cujo valor numérico das letras chega a um total de 666. Então, resta apenas escolher, entre os mots hebraicos assim reunidos, aqueles cujo significado pode mais razoavelmente se relacionar à Besta como ela é descrita na Apocalipse. Portanto, estamos reduzidos a um problema de cálculo quase mecânico. Essa metodologia é a correta? Não parece ser, pois o texto de São João nos aconselha a fazer prova de sabedoria e inteligência.

É aqui a sabedoria, dizem-nos: para entender o significado do número da besta, primeiro é preciso ter sabedoria. O que é a sabedoria? É o gosto pelos princípios. Portanto, nesta matéria, deve-se evitar as complicações da ciência profana e manter-se aos grandes princípios da sabedoria divina, tanto quanto os conhecemos.

São João também nos pede para fazer prova de inteligência. E a característica da inteligência, no sentido religioso desse termo, é a de distinguir. E a distinção fundamental é a do bem e do mal. Precisamente, vamos ver que aqui teremos que conviver com a fronteira entre o bem e o mal. É por isso que precisaremos de inteligência.

O Escritor sagrado nos coloca na senda certa ao dizer que 666 é "um número de homem". De fato, poderíamos esperar que a besta fosse mais adequada com "um número de anjo", já que o demônio é um espírito. Portanto, estamos sendo avisados de que não é o caso. É nos números que concernem ao homem que devemos procurar.

São Bento o Venerável e Santo Alberto Magno acreditavam que esse "número de homem" se referia ao sexto dia da Criação, no qual Adão foi formado da areia da terra. Vamos tentar entender o mecanismo dessa significância. Após a formação do homem, Deus declara que tudo o que Ele fez é bom:

"E Deus viu tudo o que Ele havia feito, e eis, isso era muito bom" (Gênesis I, 31).

Estamos na extremidade do sexto dia. Fazemos uma primeira observação: o número seis não designa, portanto, originariamente uma coisa má, pelo contrário, pois Adão, constituído mestre da terra, é a mais bela obra do Criador. Concorda-se até em pensar que o número seis simboliza a perfeição das coisas terrestres. Ele constitui "a marca" de Adão, pois é o número de sua origem. O homem é fundamentalmente "a criatura do sexto dia".

O número seis contém uma perfeição natural, mas ainda lhe falta a santificação que o número sete traz imediatamente após. É o sétimo dia que é santificado:

"E Deus abençoou o sétimo dia e Ele o santificou" (Gênesis II, 3).

O número sete é o da natureza santificada. É o número do Sábado e, portanto, não se adequava para designar o demônio, que havia precisamente recusado a santificação.

No sétimo dia, o homem já possui uma religião, enquanto o sexto dia era o da Criação sem sábado, sem religião, privado de santificação, reduzido às forças e aos ritmos da natureza sozinha. É portanto bem "o seis" que está mais em harmonia com o naturalismo dos anjos caídos, que só acreditam em suas próprias forças, como já observamos acima.

Agora compreendemos por que é o número seis que está na base do "número de homem" escolhido para marcar a besta. Mas o que não compreendemos é que esse número, bom na origem, agora designa uma besta má. Portanto, houve, a um certo momento, um inversão de significado do seis.

Este inversão foi operado pela revolta de Lúcifer. É precisamente essa revolta que transformou em mau o que era bom e que colocou acima o que deveria ter permanecido abaixo. Esta inversão da ordem primitiva sofreu a maldição divina. Deus amaldiçoou o que Ele acabara de abençoar. E a maldição de Deus contra Satanás foi reiterada três vezes: daí o número de três dígitos que simboliza essa maldição, 666.

A primeira maldição é aquela que expulsou Lúcifer do Céu por não ter querido se inclinar diante do Homem-Deus. Ela corresponde ao número seis ocupando o lugar das unidades.

A segunda maldição é aquela que Deus pronunciou contra a serpente:

"Porque tu fizeste isso, és amaldiçoado entre todas as bestas dos campos" (Gênesis III, 14).

O adversário quis envolver o homem na sua guerra. A segunda maldição corresponde ao número seis ocupando o lugar das dezenas, pois há uma agravamento da maldade, e portanto do castigo.

A terceira maldição é aquela que Deus pronunciará no momento da morte do Anticristo para puni-lo por se ter equiparado ao Filho do Homem. Ela corresponde ao lugar das centenas, pois há um novo agravamento na audácia.

Seiscentos e sessenta e seis resume a tripla maldição que é o justo salário da revolta de Lúcifer contra o Verbo Encarnado, princípio e fim da criação. Não é um "número de anjo"; é um "número de homem" (numerus hominis). Ele reitera três vezes o número de Adão, que é a obra do sexto dia. Aquela que fez Adão cair é punido sob o número de Adão.

Se nos restringirmos à letra do texto apocalíptico, o número 666 é propriamente o da besta. Mas é costume considerar esse número também pertencente ao Anticristo, pois esse personagem recapitulativo sintetiza a besta de qual ele é a cabeça.

XXVI. OS SINTOMAS DA INFLUÊNCIA LUCIFÉRICA

Os demônios obviamente comunicam seus comportamentos mentais a todos os seres humanos que inspiram. Esses comportamentos, que acabamos de examinar ao longo deste "Resumo", os veremos reaparecer no mecanismo das "instituições de malícia" que formam, na terra, o corpo monstruoso da besta. Agora vamos listar as inclinações mentais mais importantes assim comunicadas pelos demônios a certas instituições humanas, como por exemplo as redes iniciáticas, os partidos revolucionários e as falsas religiões. As pessoas que não são versadas nessas questões realmente precisam conhecer os principais sintomas pelos quais se reconhece a influência demoníaca nas várias instâncias do mundo moderno.

Quando falamos da influência demoníaca que prevalece nas irmandades iniciáticas e nas sociedades de pensamento, não pretendemos que os demônios se manifestem positivamente e venham explicitamente ditar suas instruções. Estamos apenas dizendo que, sob o efeito da mística iniciática, é criada uma cooperação entre o homem e os demônios. A conivência do homem é sempre necessária para que a influência demoníaca se exteriorize. A influência infernal se mistura ao pensamento humano, onde aparece como um dos dois elementos constitutivos de uma verdadeira sinergia humano-diabólica. Era muito importante esclarecer este ponto antes dos desenvolvimentos que se seguirão.

1. UMA AÇÃO PLURIMILENAR

Observemos primeiro que a ação dos demônios se exerce sobre a terra desde as origens, ou seja, há vários milênios. São os mesmos espíritos caídos que rondaram as Sibilas, as Pítias, os falsos místicos do paganismo, depois os hereges do cristianismo, depois os grandes doutrinadores da maçonaria e da revolução. Esses maus espíritos operam com grande continuidade. Eles adquiriram uma experiência prodigiosa e implementam uma estratégia de muito longo prazo, preparando seus golpes vários séculos adiante. Entende-se então, por exemplo, que os mesmos erros religiosos reaparecem periodicamente, pois têm os mesmos inspiradores em todas as épocas. Entende-se o renascimento atual do gnosticismo.

Em seu livro, A Nova Assembleia dos Filósofos Químicos, Claude d'Ygé, ele próprio favorável ao espírito alquímico, expressa-se assim:

"É o mesmo demônio que inspirou os Alquimistas do passado e que continua a inspirar os de agora" (p. 35).

2. O GÊNIO DA GUERRA 

O comportamento do demônio e, portanto, também dos organismos que estão sob sua dependência, não é ditado por uma doutrina homogênea, porque a homogeneidade da doutrina é a consequência de sua verdade. Ora, "não há verdade nele". Portanto, ele não é embaraçado pelo que os cristãos chamam de "analogia da fé". Ele muda de rumo sem dificuldade. Ele opera até mesmo, na maioria das vezes, em várias direções diferentes, e ao mesmo tempo.

O demônio é motivado por um pensamento de ordem estratégica e não doutrinal. Nele, a coesão existe apenas na guerra que ele trava contra o Verbo Encarnado. Ele possui certamente uma lógica incontestável, mas é uma lógica belicosa, que não teme contradições e reviravoltas. A espinha dorsal do pensamento demoníaco é a guerra contra Jesus Cristo e Sua realeza universal.

Da mesma forma, em última análise, a coesão dos membros da besta é assegurada, não por uma única e mesma doutrina, mas pela existência de um inimigo comum a todos os membros. E esse inimigo comum é Nosso Senhor Jesus Cristo.

3. O NATURALISMO DOS DEMÔNIOS

Os demônios querem ignorar a graça e pretendem alcançar a participação na vida divina apenas com as forças de sua natureza angelical.

Deste naturalismo demoníaco decorre, por exemplo, as doutrinas da gnose moderna em relação à transfiguração do mundo. Pois muitos neo-gnósticos aceitam a ideia cristã da glorificação final do universo. É até essa transfiguração que forma a essência da Alquimia. Mas eles veem essa mutação como sendo um florescimento natural do universo.

A doutrina cristã, por outro lado, ensina que, para passar do estado de natureza para o estado de glória, duas operações são necessárias: primeiro a Redenção que exigiu o sangue de um Deus e depois a intervenção soberana do Criador que modifica o universo por um decreto anunciado nos últimos versos do Novo Testamento:

"E aquele que estava sentado no trono disse: Eis que faço novas todas as coisas" (Apocalipse XXI, 5).

São duas operações que são totalmente impossíveis apenas com forças naturais.

4. O TEÍSMO DOS DEMÔNIOS 

"Tu acreditas, diz São Tiago, que há um Deus, fazes bem; os demônios também acreditam..." (São Tiago II, 19).

O demônio tem mantido audiência com Deus sob certas condições; este é um privilégio que ele manteve em virtude de sua natureza angelical. Ele ainda pode se aproximar do trono de Deus para reivindicar o exercício dos direitos que adquire sobre os homens todas as vezes que os faz sucumbir. É assim que ele "reivindicou" os apóstolos para peneirar como o trigo. Ao se aproximar de Deus desta maneira, ele manifesta sua crença em Deus, ou seja, um certo teísmo.

Da mesma forma, entre os homens, muitos grandes inimigos da fé são teístas e pretendem se aproximar de Deus. O tipo perfeito desses inimigos da fé é Voltaire. Este teísmo, do qual tantas religiões se contentam, não vem de Deus, mas do diabo. São Paulo já reprovava seus contemporâneos por isso quando dizia deles:

"Dou-lhes a justiça de que têm zelo por Deus, mas não é segundo o conhecimento."

Não basta reconhecer a existência de um Deus, é preciso também professar que só se pode alcançá-lo através da mediação de Nosso Senhor:

"Ninguém vai ao Pai senão por Mim."

5. O GOVERNO PELA RIVALIDADE DOS MEMBROS

O demônio só sabe semear a discórdia e é pela discórdia que ele reina. Se o vemos unificar, é porque ele quer levar à luta. E ele age assim tanto nas pequenas quanto nas grandes coisas.

É assim que ele pretende chegar ao reino universal jogando uns contra os outros os grandes impérios que, no entanto, todos dependem dele. Ele lançou a suástica, que é um de seus emblemas, contra a estrela vermelha, que também lhe pertence. Ele ainda prepara o confronto da estrela vermelha contra as estrelas yankees, que são as de Mammon, seu ministro. O campeão desses formidáveis testes "eliminatórios" exercerá a hegemonia mundial sob a direção do Anticristo. Ele terá realizado seu império governando pela rivalidade dos membros.

6. A DEMONOLOGIA DO DEMÔNIO 

Houve, como vimos, anjos dos nove coros que prevaricaram. De modo que os demônios são muito desiguais em inteligência e malícia. Seu chefe usa essas desigualdades não apenas para reinar no inferno, mas também para exercer sua principado sobre a terra.

Os demônios inferiores são grosseiros e só sabem se mostrar aos homens sob formas repulsivas. Os demônios dos coros superiores, mais sutis e psicólogos, são hábeis em se disfarçar de anjos de luz.

Assim, Satanás pode assustar os homens fazendo intervenções de demônios hediondos e aterrorizantes. E depois os tranquiliza e atrai enviando-lhes grandes querubins caídos que sabem se revestir de charme.

Na maioria das congregações iniciáticas, sob a inspiração suave de Satanás, incentiva-se a desconfiar dos demônios inferiores. Apresenta-se uma verdadeira demonologia.

Uma demonologia enganosa à qual se deve ter muito cuidado para não se deixar enganar. Não há seita, por mais luciferiana que seja, que não professe o medo dos demônios.

Este fenômeno é extremamente importante e generalizado. Explica que religiões inteiras, embora inspiradas por Lúcifer, possuem todo um arsenal de exorcismo. O observador superficial pode fazer essa reflexão: "Essas religiões não podem depender do diabo, pois exorcizam os demônios". Deve-se saber que se pode pertencer inconscientemente ao diabo enquanto se teme os demônios.

Os escribas do tempo de Jesus sabiam que se pode expulsar demônios por Belzebu.

A demonologia de Lúcifer e seus seguidores é muito pouco conhecida. E, no entanto, é fácil medir o quanto ela pode induzir ao erro.

7. A IMITAÇÃO DE CRISTO 

O demônio não tira os olhos Daquele que é objeto de seu ciúme: o Verbo Encarnado. Subjugado por Ele, o demônio o imita, mas o deforma. Por isso, ele é comumente referido como

"o macaco de Deus".

E vemos avançar, lentamente e com cautela, para o altar da grande catedral cristã, um falso Cristo, ora filósofo, ora revolucionário, ora iniciado, ora avatar, ora demiurgo. Até que um dia ele se vira para ser adorado como o grande mediador entre Deus e os homens ou mesmo simplesmente como Deus.

Esta amarga nostalgia de Cristo, Lúcifer a comunica aos órgãos terrestres que ele controla. Encontramo-la, por exemplo, na maçonaria, que gosta de adornar seus templos com emblemas que foram emprestados do cristianismo, mas que foram desviados de seus significados.

8. A REABILITAÇÃO DE LÚCIFER 

O príncipe das legiões infernais tende invencivelmente a se reabilitar. Ele gostaria de recuperar o estado em que se encontrava antes de ser expulso do paraíso celestial.

Ou ele reclama que foi injustamente reprimido por um Deus despótico.

Ou ele reivindica o benefício da Misericórdia Divina à qual sua natureza angelical não lhe dá direito.

O espírito de reabilitação de Lúcifer é muito difundido nas seitas iniciáticas. É uma das provas mais certas da docilidade às influências luciferianas.

9. A SUPOSTA NECESSIDADE DO MAL 

Muitos neo-gnósticos ensinam a necessidade do mal e, portanto, de Satanás.

Certamente, nos concedem, o poder diabólico é aquele que resiste a Deus. Mas essa resistência é necessária, acrescentam. É necessária ao próprio Deus, pois é graças a ela que Deus pode Se manifestar. É preciso uma força antagonista para que o eco da Palavra nasça. É preciso uma oposição que dê a Deus a réplica. De modo que o poder diabólico se torna, em colaboração com Deus, cocriador do Universo.

Segundo os neo-gnósticos, o arquétipo do diabo se encontra no pensamento divino. De modo que o mal está localizado no próprio Deus. Observado de uma altura suficiente, nos dizem, o bem e o mal se equilibram, se neutralizam e se confundem.

Tais raciocínios obviamente não se acomodam à lógica tradicional. Eles são baseados em uma lógica que admite a coincidência dos contrários, a famosa coincidentia oppositorum. Esta lógica, que obviamente saiu do poço do abismo, é atualmente ensinada, como indispensável ao avanço das ciências, em muitas sociedades de pensamento e é defendida por ardentes e imperiosos doutrinadores.

10. A ILUSÃO CÓSMICA

O demônio, como vimos, odeia o corpo humano que ele não cessa de mutilar. Mas ele também odeia, por extensão, a matéria, com a qual ele não tem nada em comum. Assim, ele vai sugerir, aos contemplativos e filósofos que o escutam, que o universo material é uma ilusão. Ele é "a Maya", ou seja, uma simples "aparência" já que não há realidade além do absoluto. Daí surgem todas essas doutrinas orientais de aniquilação do cosmos e, por extensão, da humanidade terrestre. O homem deve aspirar a retornar ao absoluto para sair deste mundo da ilusão.

O que tudo isso significa nas concepções cristãs? Certamente, o universo material, na forma que o conhecemos, é efêmero. Ele é transitório e não foi feito para durar. Ele está destinado a ser transformado quando Deus pronunciar o decreto profetizado no Apocalipse:

"Eis que faço novas todas as coisas" (Apoc. XXI, 5).

Mas, por ser transitório, o universo físico não é menos real. Ele foi criado do nada, ex nihilo, e, portanto, distingue-se do nada por sua própria natureza.

A aniquilação universal dos contemplativos orientais é o reflexo, no pensamento humano, do ódio de Satanás pela matéria. Sob o pretexto de ir ao fundo das coisas, ela não é mais que uma elaboração da falsa mística, ou seja, em última análise, do pensamento de Lúcifer.

11. AS PEDRAS DE REUTILIZAÇÃO 

O príncipe deste mundo constrói seu templo universal com pedras que provêm da demolição da catedral cristã. São pedras reutilizadas. Os observadores superficiais se surpreendem ao ver tantos símbolos cristãos nesse templo e concluem que, no fundo, o templo gnóstico do Anticristo também é cristão, assim como as pedras que o constituem.

E os prosélitos que querem fazer os cristãos entrarem no templo da religião universal não deixam de lhes mostrar que ele é construído com pedras cristãs, mas dispostas de maneira mais inteligente, segundo eles, menos ao acaso, mais sublimadas do que estavam na velha construção. É de se desejar que os cristãos não se deixem seduzir por essa semelhança. Pois, se o templo gnóstico lembra materialmente o Cristo, o espírito que ali se abriga é o do Anticristo.

12. EXOTERISMO E ESOTERISMO

É com razão que os demônios são chamados de "as potências ocultas". Em suas evoluções na sociedade humana, são obrigados a se esconder porque nossa natureza manifesta uma apreensão instintiva da morte, da qual os demônios são os provedores, e, mesmo decaída, ela conserva o medo das trevas. Eles são, portanto, forçados a dissimular sua presença e suas atividades. Nas associações e confrarias que inspiram, praticam um misticismo de grande habilidade e nunca expõem abertamente seu objetivo de guerra. Eles os disfarçam de maneira diferente, dependendo dos graus da iniciação. A verdadeira natureza luciferiana da iniciação é cuidadosamente ocultada dos adeptos dos graus inferiores.

Essas doutrinas, tranquilizadoras na maneira como são apresentadas, mas luciferianas nas consequências que acarretam, são veiculadas nas congregações iniciáticas onde recebem o nome de doutrinas esotéricas, palavra que evoca a ideia de um uso interno.

Claro, sua essência luciferiana quase nunca é percebida como tal, mesmo pelos iniciados, a maioria dos quais é movida pela ideologia ou pela ambição, mas que não suportaria a ideia de estar subordinada ao demônio; de fato estão, mas não têm uma consciência clara disso. As sociedades iniciáticas e suas doutrinas são comparáveis a um grande micélio invisível, ou pouco visível, de onde emergem, de tempos em tempos, os grandes cogumelos das religiões ditas exotéricas, isto é, "de manifestação exterior", destinadas ao grande público. Os iniciados consideram que o exoterismo das religiões oficiais é uma versão vulgarizada, simplificada, transitória, do esoterismo iniciático, que é considerado muito mais profundo, mais essencial, mais verdadeiro e mais próximo das realidades espirituais.

Segundo os iniciados, a Religião Católica não é exceção a essa regra. Ela também é uma religião exotérica e, portanto, supõe uma infraestrutura esotérica da qual é apenas uma emanação. No entanto, a Religião Católica se emancipou dessa antiga infraestrutura esotérica e tomou sua independência (em uma época, aliás, controversa). De modo que hoje desconhece e negligencia seu próprio esoterismo, o que lhe é extremamente prejudicial, acrescentam com comiseração. O trabalho das sociedades iniciáticas contemporâneas, portanto, consiste em devolver à Religião Católica a consciência e o conhecimento desse esoterismo original que ela perdeu. Essa é a missão (?) que as atuais redes do esoterismo cristão se atribuíram.

É bem evidente que os católicos fiéis não raciocinam assim de forma alguma. Pois, se a Religião de Nosso Senhor se deixar contaminar por essa concepção de um esoterismo subjacente, ela vai simplesmente se enxertar no esoterismo mundial, que está precisamente em processo de unificação e que vimos que, fundamentalmente, não é outra coisa senão a rede das "potências ocultas", ou seja, dos demônios.

O par "exoterismo-esoterismo" tem origens maçônicas muito antigas e constitui, em particular, um dos elementos essenciais da doutrina guénoniana. É uma noção que é mortal para a conservação dos dogmas e dos sacramentos católicos e que, evidentemente, também surge do poço do abismo.

13. PLURALISMO E SINCRETISMO 

Vimos que o demônio é um espírito belicoso que se dedica à guerra contra o Verbo Encarnado. Ele naturalmente comunica essa belicosidade aos órgãos terrestres onde sua influência se faz sentir.

Ora, aquele que faz a guerra propõe-se um objetivo final precedido por objetivos secundários e intermediários, pois nunca se pode alcançar o objetivo final já no primeiro ataque. Só se consegue isso por etapas. Essa é uma lei da guerra.

O objetivo final de Satanás é duplo, como vimos. Primeiramente, é a realização do império do mundo sob o cetro do Anticristo. E também é o estabelecimento da religião universal que terá Lúcifer, pelo menos, como "mediador" e, provavelmente, como deus.

O objetivo secundário e intermediário é a instalação transitória do pluralismo das religiões. É a fase preparatória. É necessário primeiro reunir os pontífices das religiões exotéricas em uma mesa redonda, em plena igualdade. O pontífice romano não escapa a essa necessidade. Ele é convidado a se sentar com seus confrades das outras religiões. E é até ele, como um cooperador dócil das diretrizes iniciáticas, que convocou a primeira reunião pluralista já vista nesta terra, a famosa reunião de Assis.

Esse mesmo pontífice romano não se contenta em praticar o pluralismo externo em relação aos seus confrades de outras religiões, ele também implementa o pluralismo interno na própria Igreja Católica: o progressismo, o carismatismo... até mesmo o tradicionalismo são tolerados e simultaneamente incentivados dentro do mesmo redil romano. Há sempre um único pastor na Igreja, mas vê-se ali pastarem vários rebanhos. É o regime do pluralismo, como na maçonaria e em sua imitação.

A fase pluralista não deve ser nem ignorada nem mal executada. Os grandes estrategistas do ecumenismo insistem na necessidade da prática exotérica. Não há progresso no caminho esotérico se não se pratica primeiro, o mais seriamente possível, uma das "vias exotéricas". Você é cristão? Pratique primeiro com zelo sua religião cristã, se quiser progredir depois no caminho iniciático. Essa é, em particular, a teoria de R. Guénon e de seus adeptos modernos. Daí o zelo exemplar dos neo-gnósticos dentro do tradicionalismo católico.

Enquanto as religiões exotéricas se acostumam a viver sob o regime pluralista, tanto externamente quanto internamente, as redes iniciáticas preparam a fase final, que é o sincretismo. Todos os elementos da religião única e universal estão reunidos. Múltiplas publicações dão uma primeira visão disso, até mesmo com uma extraordinária volubilidade. De modo que o pluralismo se torna uma etapa cada vez mais superada e o sincretismo é cada vez mais real. Esse sincretismo, semi-oculto e semi-público, conseguirá se desocultar totalmente?

Para que isso ocorra totalmente, seria necessário que Lúcifer pudesse se desocultar completamente e despir-se de suas vestes de falso Cristo para aparecer em sua qualidade de anjo revoltado contra Deus. Ele conseguirá fazer isso algum dia? É possível. Mas ainda estamos muito longe desse momento para que possamos ter uma ideia do que acontecerá então.

Por enquanto, ainda estamos na fase do pluralismo das religiões. No entanto, vemos surgir, nos documentos, aliás, abundantes, provenientes das redes iniciáticas, a fase sincrética, ou seja, a da gnose universal, que nada mais é do que a "teologia" da religião luciferiana.

14. SEPARAR, UNIR

O demônio, que não tem nenhuma ortodoxia no pensamento, pois nele não há verdade, mas que possui o gênio da guerra, se empenha, de era em era, em separar o que Deus une e unir o que Deus separa, a fim de contrariar e frustrar, a cada momento, a realização dos planos de Deus. Esse é um dos traços pelos quais se reconhece sua ação sobre seus adeptos humanos. Poderíamos citar numerosos exemplos desse comportamento. Vamos nos contentar com apenas um, que consideramos típico, ao término deste estudo que se quer sucinto. Deus une os esposos; o demônio não descansa até que os separe pelo divórcio. Deus separa os sexos com vistas à procriação; o demônio pretende uni-los nesse ser mítico do Andrógino, tão caro aos nossos esoteristas cristãos.

15. FORÇAS PRESENTES

Finalmente, a expulsão dos demônios que infestam a sociedade está além das forças humanas. Lidamos com seres espirituais que são mais poderosos do que nós na ordem da natureza. Ao permitir que os espíritos revoltados e banidos do céu contaminassem a terra, Deus colocou os homens em uma situação da qual só podem se libertar com a ajuda do Verbo Encarnado.

Essa relação relativa entre demônios e homens se reflete até nos detalhes das lutas religiosas e políticas. Aqueles que, por exemplo, atacassem a maçonaria (que é um dos institutos mais típicos de malícia de que falamos) apenas com meios humanos estariam condenados à derrota antecipada; seriam eles os que seriam extirpados. Não se pode resistir às forças demoníacas da terra sem contar com a ajuda de Deus. No entanto, essa condição geralmente não é preenchida, por diversas razões. Isso explica os fracassos de que nossa História nos oferece tantos exemplos.

O comportamento habitual dos demônios em relação aos homens ainda apresenta dois problemas importantes que precisariam ser estudados:

Mas esses dois capítulos exigiriam desenvolvimentos incompatíveis com as dimensões necessariamente limitadas deste resumo. São dois temas que precisam ser tratados separadamente e em sua própria extensão.

CONCLUSÃO

Neste resumo, reunimos as noções de demonologia que podem contribuir para a compreensão do mundo moderno e da profunda patologia que o permeia. Agora sabemos que as forças organizadas pelos demônios na humanidade estão no auge de seu poder. A malícia deste século é positivamente irreversível. Lúcifer tem trabalhado nisso por milênios em todos os continentes. Atrasado por um tempo pela contraofensiva vitoriosa da Igreja, ele se reergueu e agora reconstruiu forças de simbiose humano-demoníacas mais poderosas do que eram na antiguidade pagã. E o segundo estado do mundo tornou-se pior do que o primeiro.

A manifestação do Anticristo não está distante.

No entanto, antes que esse "filho da perdição" se manifeste na terra, um tempo de repouso, um interlúdio reconfortante que já recebeu o nome de "REINO DO SAGRADO CORAÇÃO", foi profetizado há muito tempo.

Este é o tempo durante o qual a Igreja recuperará suas forças para suportar as tribulações finais que acompanharão o reinado do Anticristo.

Mas os cristãos, se estivessem reduzidos apenas às forças humanas, seriam completamente impotentes para promover esse tempo de restauração. Eles não têm o poder de superar redes luciferianas de tal poder e ubiquidade. Costumamos repetir entre nós mesmos: "Humanamente, tudo está perdido".

Portanto, somos obrigados a nos voltar para o céu, onde reside nosso último recurso. No entanto, precisamente, a ajuda do céu nos foi prometida. Todas as revelações, tanto privadas quanto públicas, nos asseguram isso. Mas é necessário, para obter esse socorro, que o solicitemos com insistência suficiente. Sabemos que Deus está disposto a nos socorrer através de uma manifestação milagrosa de Sua onipotência em favor da Igreja, que é Sua obra na terra, e da França, que é a filha mais velha da Igreja e Seu braço secular. Mas também sabemos que Deus coloca uma condição para Sua intervenção. Essa condição é que a soma de nossos desejos alcance a medida plena.

Resta-nos agora decidir Deus e arrancar-Lhe o milagre que Ele está disposto a nos conceder.

Pois nosso Deus, que pode desdobrar forças incommensuráveis, é ao mesmo tempo um Deus que se deixa persuadir e que nos deu armas contra Ele: a oração e a penitência, que dá asas à oração.

No céu, do qual estamos separados apenas por uma nuvem, existem dois tronos. O mais elevado é o do Verbo encarnado, Rei do universo, para quem tudo foi feito. O outro trono pertence à Rainha sua mãe. Prostremo-nos diante desses príncipes cheios de majestade, mas também de magnanimidade. Mostremos perseverança, pois o mal é tão profundo.

Seremos consolados além de nossas esperanças, pois as generosidades de um Rei tão grande serão reais.