CAPÍTULO VI - O MITO DO ANDRÓGINO OU O DEMÔNIO SUBSTITUÍDO PELO CRISTO
- 1 - Da cruz ao vórtice esférico universal
- 2 - Uma forma humana no Meio Invariável
- 3 - O Banquete Platônico
- 4 - O Discurso de Aristófanes
- 5 - A Bola Andrógina
- 7 - A Bissecção
- 8 - As Metades Atraentes
- 9 - O Delírio Sagrado
- 10 - As Síziges Gnósticas
- 11 - Adam-Kadmon
1 - Da cruz ao vórtice esférico universal
Continuamos nossa análise do livro de R. Guénon, «O Simbolismo da Cruz». Onde estávamos? Observamos as mutações que o autor impôs à cruz cristã. Essas mutações lhe permitiram, como vimos, subordinar o significado sobrenatural da cruz a um outro significado que ele declarou mais elevado e ao qual deu o nome de simbolismo metafísico. A cruz redentora tornou-se, assim, para ele, o caso particular de um emblema metafísico considerado mais essencial.
Vimos também que, para obter esse resultado, Guénon começou por adicionar à cruz histórica de Nosso Senhor um terceiro braço que a torna inapta para receber um crucificado e que a transforma em um sistema de coordenadas retangulares em três dimensões. A esse sistema ele dá o nome de cruz absoluta.
Depois, ele procedeu a uma segunda transformação. Ele aumentou o número de raios até o infinito, submergindo assim a cruz inicial em sua própria multiplicação. Finalmente, ele colocou, ao redor desse feixe de raios, uma esfera envolvente. A essa associação da cruz e da esfera, ele dá agora o nome de Vórtice Esférico Universal, que simboliza a existência total.
Mas o vórtice não é uma figura fixa e estável. É um símbolo pulsante, animado por uma ondulação permanente sob o efeito das vibrações do centro. A esfera do vórtice é formada pela propagação, sobre os inúmeros raios, das ondas cuja origem é o centro. Apesar de suas vibrações, no entanto, o centro é chamado, como nas religiões do Extremo Oriente, o Meio Invariável.
Mas então, quem colocaremos no centro do vórtice? Pois é necessário haver uma forma humana ali. O Cristo, antigo ocupante da Cruz, deixou um lugar vazio que permanece impregnado de uma nostalgia incontestável. A esse Cristo que foi destituído, é preciso substituir por uma figura mais geral. Será o Homem Universal, porque, nos garantem, ele é encontrado em todas as religiões. E ele será andrógino para ser mais "total".
Eis então o andrógino destronando o Cristo no centro simbólico do mundo e instalando-se no vórtice em uma crucificação ideal. Mas Guénon vai expor as condições que o andrógino deverá cumprir para ter uma representatividade absolutamente universal. Seu raciocínio vale a pena ser examinado, pois revela o significado profundo que ele atribui ao andrógino.
2 - Uma forma humana no Meio Invariável
Aqui estão, primeiramente, os termos em que R. Guénon define o homem universal:
"O homem universal, na medida em que é representado pelo conjunto 'Adão-Eva', tem o número de Allah. Esse número, que é 66, é dado pela soma dos valores numéricos das letras que formam os nomes Adam wa Eawa. Segundo o Gênesis hebraico [1], o homem, criado macho e fêmea, ou seja, em um estado andrógino, é 'à imagem de Deus'. O estado andrógino original é o estado humano completo no qual os complementares, em vez de se oporem, se equilibram perfeitamente" (O Simbolismo da Cruz, cap. III).
O homem universal assim definido será simbolicamente colocado no Meio Invariável. É aí, de fato, que o andrógino se coloca logicamente, ou seja, no centro do vórtice esférico universal, que nada mais é do que o antigo centro metamorfoseado da Cruz cristã.
Guénon agora vai elevar suas considerações metafísicas a um novo patamar. Ele vai considerar esse "Meio Invariável" não mais como o centro da humanidade apenas, mas como o centro do universo inteiro, com todos os seres materiais e espirituais que o compõem. Ele constata então que o andrógino, embora represente validamente toda a humanidade por ser bissexuado, não pode representar o universo inteiro.
Para representar adequadamente a totalidade universal, é necessário um símbolo que não seja mais bissexuado, mas completamente assexuado, totalmente neutro. Em toda lógica, seria necessário até mesmo um símbolo absolutamente desprovido de antropomorfismo e geocentrismo. Ouçamos Guénon nos explicar o porquê.
"Devemos agora insistir em um ponto que, para nós, é de importância capital: é que a concepção tradicional do ser, tal como a expomos aqui, difere essencialmente de todas as concepções antropomórficas e geocêntricas das quais a mentalidade ocidental se liberta com tanta dificuldade... A metafísica pura não pode, de maneira alguma, admitir o antropomorfismo" (O Simbolismo da Cruz, Cap. XXVI).
Ele frequentemente retorna a essa ideia, que é realmente importante em termos de simbolismo:
"A humanidade, do ponto de vista cósmico, desempenha realmente um papel central em relação ao grau de existência ao qual pertence, mas apenas em relação a esse e, evidentemente, não em relação ao conjunto da Existência universal, na qual esse grau é apenas um entre uma multidão indefinida, sem nada que lhe confira uma situação especial em relação aos outros" (O Simbolismo da Cruz, Cap. XXVIII).
Um símbolo antropomórfico, portanto, não é suficiente, ele pensa, para significar a existência universal em sua totalidade. Nesse ponto do raciocínio, poderíamos esperar ver erigir, como símbolo de totalidade, um ser ou pelo menos uma entidade teórica, que não seria nem antropomórfica, nem geocêntrica e que seria desprovida de qualquer distinção sexual. Ora, os cristãos conhecem precisamente um ser que preenche essas condições e que, portanto, seria notavelmente adequado para preencher esse papel: é Lúcifer.
Não é exatamente esse ser que Guénon vai escolher, ele que é sempre tão lógico na condução de seus raciocínios. Desta vez, ele vai hesitar diante de uma dedução tão extrema e retornará, para desempenhar o papel de símbolo central, a uma entidade antropomórfica, mais especificamente ao andrógino. Ele explica suas razões, mas é surpreendente constatar que elas residem essencialmente em uma conveniência de linguagem.
"Se todo antropomorfismo é nitidamente antimetafísico e deve ser rigorosamente descartado como tal, um certo antropocentrismo pode, por outro lado, ser considerado legítimo" (O Simbolismo da Cruz, cap. XXVIII).
E esse antropocentrismo, acrescenta Guénon, pode ser considerado legítimo porque, na linguagem corrente, a noção de homem é suscetível de "transposições analógicas". Assim, diz ele, é possível distinguir quatro graus muito diferentes: o homem ordinário ou comum, o homem verdadeiro ou perfeito, o homem transcendente que adquiriu a imortalidade virtual e, finalmente, o Homem Universal que adquiriu a imortalidade real por ter se identificado com o arquétipo.
"Não pode haver questão de antropocentrismo senão em um sentido restrito e relativo, mas ainda assim suficiente para justificar a transposição analógica que dá lugar à noção de homem e, portanto, à denominação mesmo de Homem Universal" (O Simbolismo da Cruz, cap. XXVIII).
É, portanto, em virtude de uma transposição analógica que Guénon fará com que uma figura de homem, o andrógino, desempenhe o papel simbólico central, embora esse papel esteja, na metafísica pura, acima da condição humana ordinária e comum. Assim, retornamos ao andrógino, como uma aproximação necessária, para representar, no centro da cruz absoluta que se tornou vórtice esférico, não apenas a humanidade, mas toda a existência universal.
Esse é o Homem Universal, andrógino desencarnado, descrito por R. Guénon. Sua natureza, o cristão compreende bem, é mais angélica do que humana. Seu papel simbólico, no sistema que expomos, situa-se entre o Céu e a Terra, na interseção do plano horizontal da expansão e do eixo vertical da extensão:
"O Céu e a Terra sendo dois princípios complementares, um ativo e o outro passivo, sua união pode ser representada pela figura do andrógino" (O Simbolismo da Cruz, cap. XXVIII).
3 - O Banquete Platônico
Mais de onde vem então esse famoso andrógino para constituir um símbolo tão importante? É evidente que R. Guénon não descobriu por si mesmo nem a noção nem o nome. Encontramos divindades híbridas nas mitologias mais arcaicas. Assim, os antigos gregos conheciam o personagem de Hermaphrodite, filho de Hermes (Mercúrio) e de Afrodite (Vênus); uma ninfa, que se apaixonou por ele sem esperança, implorou aos deuses para que seus dois corpos se tornassem um só ser; e ela foi atendida. Hermaphrodite é, portanto, o ser misto formado pela fusão do filho de Mercúrio e de uma ninfa.
René Guénon, que aliás foi seguido por toda a escola esotérica moderna, retomou essa ideia de uma divindade híbrida, mas ele lhe dá uma importância que nunca teve, pois ele faz da androginia uma característica semi-cósmica ao mesmo tempo que meio-divina.
Entendemos por escola esotérica essa família espiritual à qual antes da guerra de 39-45 se dava o nome de "movimento ocultista". O movimento ocultista persistiu e hoje está em plena vigência; a doutrina fundamental permanece a mesma, apenas mudou de apresentação, precisamente sob a influência, em grande parte, de R. Guénon. À epíteto esotérico, também seria necessário adicionar outros, pois essa escola é também hermética, gnóstica, alquímica, ao mesmo tempo que vedantista e sufista, e muitas outras coisas ainda. Mas é difícil dizer tudo de uma vez, e nos pareceu que o nome de escola esotérica era o mais adequado para resumir todos esses caracteres.
Os membros dessa perigosa escola de pensamento consideram o andrógino como uma das noções mais constantes que herdaram da "Tradição Universal" ou, pelo menos, do que eles chamam assim. Pois sabemos que a chamada tradição universal difere claramente, em seu conteúdo e em suas modalidades, da Tradição Apostólica, cuja guardiã e mestra é a Igreja.
Quando desejam fornecer provas da antiguidade e seriedade da tradição andrógina, os esoteristas modernos citam o Banquete de Platão. Sabemos que essa obra ilustre relata os discursos pronunciados pelos convivas de um banquete solene (em grego, symposion, e em latim, convivium) oferecido pelo comediante Agaton a seus amigos, para celebrar com eles a coroa de tragédia que acabara de ser concedida a ele. A obra se chama "O Banquete". Sendo Platão o narrador, fala-se do "Banquete de Platão"; mas também se diz "O Banquete de Agaton", pelo nome do anfitrião, na casa do qual ocorreu a recepção.
Foi decidido que os discursos de todos os convivas, neste "jantar-debate", girariam em torno do tema do amor. Cada um o tratou de acordo com suas inclinações: alguns de forma humorística e fantasiosa, outros de maneira profunda e filosófica. Aristófanes, o autor cômico, que estava presente no banquete, tratou do tema do andrógino. Como veremos, ele não hesitou em desencadear o riso.
4 - O Discurso de Aristófanes
"Sim, é minha intenção", começa Aristófanes, "falar em outro sentido... Minha opinião é, de fato, que os homens não têm absolutamente conhecimento do poder do amor... não há deus que seja mais amigo do homem do que ele... Vou me esforçar, então, para revelar a vocês qual é o seu poder; e, em vocês, os outros, por sua vez, encontrarão quem os instrua."
"Mas o que vocês devem aprender em primeiro lugar é qual é a natureza do homem e quais foram suas provações. Pois, de fato, em tempos antigos, nossa natureza não era idêntica ao que vemos que é agora, mas de outro tipo."
"Saibam, em primeiro lugar, que a humanidade compreendia três gêneros e não dois: macho e fêmea, como agora. Não, havia também um terceiro, que combinava os dois anteriores e cujo nome ainda persiste até hoje, embora a coisa tenha desaparecido. Naquele tempo, o Andrógino era um gênero distinto e que, tanto na forma quanto no nome, combinava os dois anteriores, tanto o macho quanto a fêmea. Hoje em dia, pelo contrário, é apenas um nome carregado de ridicularização".
Aqui é geralmente onde os esoteristas modernos interrompem sua citação do "Banquete de Agaton". Este início de citação é suficiente para mostrar que Platão recolheu a tradição androgínica e a transmitiu fielmente. Eles estão certos em parar por aí em sua citação, pois geralmente são partidários da origem e dos objetivos androgínicos do homem, e se continuassem o discurso de Aristófanes, arruinariam a seriedade da tradição na qual se baseiam.
5 - A Bola Andrógina
"Em segundo lugar," continua Aristófanes (conforme transcrito por Platão), "a forma de cada um desses homens era de uma só peça, com as costas redondas e os flancos esféricos. Eles tinham quatro mãos e pernas em número igual ao das mãos. Em seguida, acima de um pescoço de perfeita redondeza, dois rostos absolutamente idênticos entre si; enquanto a cabeça, adjacente a esses dois rostos opostos um ao outro, era única. Eles tinham quatro ouvidos; suas partes vergonhosas em dobro. Todo o resto, enfim, de acordo com o que isso permite imaginar.
"Quanto à sua marcha, ou era em linha reta, como agora, em uma das duas direções que tinham em mente, ou, quando tinham vontade de correr rapidamente, então se assemelhava a esse tipo de pirueta, onde, por uma revolução das pernas que retorna à posição vertical, fazem a cambalhota. Como, naquela época, tinham oito membros para servir de apoio, ao fazer a cambalhota, avançavam rapidamente."
Em seguida, vem um parágrafo onde se percebe que a origem da noção andrógina não se encontra na filosofia recente, mas sim na antiga mitologia politeísta; uma origem antiga que aparentemente não intimidou muito o espírito satírico de Aristófanes.
7 - A Bissecção
"E por que agora os gêneros eram três e assim constituídos? Porque o gênero masculino era originalmente uma prole do sol; o gênero feminino, da terra; e aquele que participa dos dois, uma prole da lua, já que a lua também participa dos dois outros astros. E se eles eram justamente orbiculares (em forma de onda), tanto em sua estrutura quanto em sua marcha, era por causa de sua semelhança com esses pais.
"Eles eram, consequentemente, seres de uma força e vigor prodigiosos. Seu orgulho era imenso: eles até mesmo se voltaram contra os deuses. A história de Ephiate e Otus contada por Homero, suas tentativas de escalar o céu, trata-se dos homens daquela época: eles queriam, de fato, desafiar os deuses". Aristófanes vai agora nos contar sobre a bissecção, ou seja, a divisão em duas metades, de nossos supostos antepassados andróginos. Zeus, ele nos revela, tomou a palavra e disse:
"Se eu não me engano, conheço um meio para que haja homens e, ao mesmo tempo, que estes ponham fim à sua indisciplina, pois terão sido enfraquecidos. Eu, de fato, vou cortar cada um deles ao meio; e assim, ao mesmo tempo em que serão mais fracos, também nos trarão mais, porque seu número terá aumentado. Assim, eles andarão em linha reta sobre suas pernas. Mas se, no entanto, os virmos persistindo em sua arrogância e não quiserem nos deixar em paz, então eu os cortarei novamente ao meio, de modo que daqui em diante avancem com uma única perna, pulando."
8 - As Metades Atraentes
E eis que Aristófanes decide misturar um pouco de filosofia à sua bufonaria; mas é de tal forma que não se sabe onde começa uma e onde termina a outra.
"Nessas circunstâncias", continua ele, "a divisão havia duplicado o ser natural. Então, cada metade suspirando pela sua outra metade, a alcançava. Agarrando-se um ao outro, entrelaçados, se esforçando para se tornarem um só ser, as metades acabavam caindo ambas de exaustão".
Então Aristófanes começa a dissertar sobre as consequências psicológicas atuais dessa origem comum do homem e da mulher. Ele explica, por essa origem andrógina, não apenas o atrativo recíproco natural deles, mas também as inversões patológicas desse atrativo. Aqui está sua explicação: ele relata que as metades do andrógino, assim amputadas e vagando, às vezes se enganavam de parceiro e acabavam, por acaso, não em uma metade complementar, mas em uma metade idêntica. Mas o atrativo era tão grande que elas se agarravam mesmo assim com a mesma energia. Não surpreenderá ninguém dizer que Aristófanes, bordando nesse tema, obtém efeitos de uma hilaridade enorme.
Pode-se, depois disso, afirmar, como fazem a maioria dos esoteristas contemporâneos, que Platão, que é afinal o verdadeiro redator dos discursos de Aristófanes, concordava com a realidade de nossa ascendência andrógina? Tal dedução é totalmente inverossímil, dada a ironia com que ele usa. É mais lógico pensar que Platão se contentou em relatar uma antiga lenda, mas que, no entanto, não acreditava em sua verdade fundamental; e é por isso que ele acabou ridicularizando-a.
9 - O Delírio Sagrado
O antigo mito certamente existiu como uma lenda transmitida. Os escritores da escola esotérica moderna se empenharam em identificar suas várias manifestações. Nas teogonias da antiguidade pagã, eles as descobrem principalmente em três níveis.
Muitas vezes, observam eles, há uma incontestável androginia dentro da própria divindade criadora, pelo menos nas teogonias que apresentam tal divindade. Nas outras; é o agente demiúrgico que exibe características de bissexualidade.
Esses mesmos traços são ainda mais fáceis de identificar nas divindades secundárias, aquelas comumente chamadas de ídolos. Relatamos o caso mais típico, o do filho de Hermes e Afrodite, que foi associado a uma náiade. Da mesma forma, "o panteão do Egito antigo é rico em divindades ambíguas", escreve Jean Libis em seu livro "O Mito do Andrógino" (Berg-International, Paris, 1980).
Quanto às lendas sobre a origem da humanidade, muitas vezes revelam a existência de um antepassado fabuloso e híbrido, quando não toda uma raça primitiva que é andrógina, como no caso do mito registrado por Platão no "Banquete".
Pode-se admitir, de fato, que as religiões antigas elaboraram e transmitiram essa ideia de uma androginia primordial, tanto divina quanto humana, mesmo que essa noção não seja tão antiga e universal como afirmam os representantes da escola esotérica. Vamos aceitar isso em princípio, mesmo que possamos discutir depois a sua antiguidade e universalidade, se necessário.
Resta saber qual é a origem dessa noção. Ela claramente se relaciona com a mesma inspiração que todos os outros mitos pagãos. Mas qual é essa inspiração? Por quem, então, todos esses mitos foram inspirados? Essa é uma pergunta que certamente não é nova. A resposta que a Igreja dava antigamente foi obscurecida sob o efeito das objeções da filosofia profana. Nós tratamos esse assunto no capítulo XXIII de nosso "Resumo de Demonologia", intitulado "Os demônios do paganismo antigo". [2]
Qual é então a resposta da Igreja a essa pergunta? As divindades do paganismo são demônios. O paganismo divinizou os vícios e os adorou. Isso é resumido neste versículo dos Salmos: "Todos os deuses das nações são demônios" (Sl, XCV, 5). Por trás das ídolos, através da boca das Pitonisas e das Sibilas, eram demônios que falavam, proferindo o que era necessário para perpetuar o culto. O delírio sagrado dos adivinhos e das adivinhas é apenas uma forma do que agora chamamos, na terminologia cristã, de "falsa mística".
E o que é a falsa mística? É essa mística híbrida que resulta da colaboração entre a inspiração demoníaca e a imaginação humana. Não há dúvida de que a androginia primordial que aparece nos mitos das teogonias e das cosmogonias das nações pagãs tem sua origem na falsa mística, aquela que é, em última análise, dirigida pelos demônios.
Isso é ainda mais plausível porque o andrógino, no qual os dois sexos se neutralizam, já possui, por isso mesmo, uma semelhança inicial com a natureza angélica, que precisamente não é feita para a reprodução, e que é ainda, como sabemos, a dos demônios.
10 - As Síziges Gnósticas
O antigo mito, portanto, foi suficientemente vívido para chegar até nós. E ainda assim, sempre encontrou oposição em seu caminho. Isso prova que não foi unanimemente aceito como se diz. A escola esotérica moderna, tão favorável ao antigo andrógino, não discorda disso. Ela até mesmo o destaca, como é o caso especialmente com Jean Libis, cuja obra citamos. Os três adversários geralmente mencionados são: o legalismo, o judaísmo mosaico e a Igreja Católica.
O legalismo da cidade antiga, na Grécia, como em Roma e em todos os lugares, não tinha piedade das infelizes crianças que nasciam com os dois sexos: elas eram executadas. Essa severidade prova que, aos olhos da consciência cívica, o eventual preconceito religioso que poderia favorecer esses "vestígios ancestrais" não pesava muito. O que se via oficialmente na bissexualidade era principalmente uma deformidade e não um resquício sagrado.
O judaísmo mosaico da Sinagoga sempre foi hostil ao andrógino, tanto em Deus quanto em Adão. E os esoteristas nos dão como razão dessa hostilidade que o judaísmo estava sobrecarregado por uma misoginia, ou se preferir, por uma androcracia, que no fundo era apenas uma desvio e uma anomalia passageira. Quando, após a dispersão do povo judeu, dizem eles, uma maior liberdade de pensamento foi recuperada, o andrógino logo reapareceu nos diversos fluxos da mística judaica.
Por fim, a Igreja sempre se mostrou muito desfavorável à noção andrógina. Os representantes da escola esotérica veem a causa disso na misoginia que ela teria herdado da Sinagoga.
Esses foram os três principais inimigos do andrógino. Esses foram aqueles que o combateram. Portanto, é através das vias esotéricas da Gnose que ele sobreviveu, anteriormente e posteriormente ao estabelecimento da Igreja. A antiga lenda assumirá, nos diversos sistemas gnósticos, novas formas. Não podemos descrevê-las todas e tomaremos apenas um exemplo, o da doutrina de Valentin [3].
A teologia de Valentim envolve um sistema de oito divindades primordiais, ao qual ele dá o nome de Ogdoade. Mas esta Ogdoade se reduz a apenas quatro divindades, porque elas são associadas em pares. Vamos pedir a São Ireneu, um dos grandes adversários da gnose, que nos descreva esse sistema: "Eis aqui a Ogdoade primordial, raiz e substância de todas as coisas, que os gnósticos chamam por quatro nomes: Abismo, Inteligência, Logos e Homem. Cada um desses princípios, de fato, é de duplo sexo".
Havia apenas quatro nomes para oito divindades, porque elas estavam em casais. Estas eram as quatro Sízíges valentinianas. A palavra "sízige" significa "casal". O Abismo formava um par com o Silêncio, a Inteligência com a Verdade, o Logos com a Vida. E o Homem tinha a Igreja como esposa.
Os esoteristas modernos ressuscitaram essas quatro sízíges gnósticas, felizes por encontrar esses quatro andróginos, para fazer a conexão com as elaborações "místicas" da Idade Média.
11 - Adam-Kadmon
Se, sob o império da antiga lei, os Doutores da Sinagoga conseguiram afastar da religião judaica essa noção turva e prejudicial do andrógino, o mesmo não aconteceu, após a ruína de Jerusalém, com os Rabinos que organizaram as novas comunidades. Os mitos pagãos, antes mantidos de maneira mais ou menos precária à margem, tornaram-se, entre os contemplativos da Diáspora, verdadeiros temas de meditações místicas. Dois desses temas são inspirados, de perto e de longe, no antigo Hermafrodita. São eles: Adam-Kadmon e a árvore sefirótica.
Adam-Kadmon é o equivalente judaico do "Homem Universal" do Islã. É considerado o arquétipo da humanidade no pensamento divino; muitas vezes é representado como andrógino ou, melhor dizendo, assexuado. Adam-Kadmon é uma entidade teológica; não deve ser confundido com o Adão terrestre descrito no Gênesis por Moisés. Adam-Kadmon é um homem teórico e arquetípico.
Mas o primeiro homem terrestre, também ele, o Adão do Gênesis, é declarado andrógino nos comentários bastante livres que formam a literatura cabalística. Às vezes, Adão e Eva são representados como formando originalmente um único ser, análogo ao andrógino de Aristófanes; às vezes, é apenas Adão que é homem à direita e mulher à esquerda, antes de ser dividido por Deus em duas metades. Em todos esses comentários androgínicos, o texto hebraico do Gênesis é amplamente transgredido e serve apenas para justificar elucubrações sem regra.
O segundo tema cabalístico no qual o andrógino aparece é a árvore sefirótica. Mais do que uma árvore, é um esquema que reúne as famosas Dez Sefirot. No singular, cada Sephira pode ser definida de duas maneiras. Uma Sephira é um número divino criador: Deus teria feito suas obras ao pronunciar certos números cuja mera evocação possuía um poder criativo. Mas uma Sephira também é um atributo divino, mais ou menos personificado.
O gráfico que reúne as dez sefirot apresenta, grosso modo, a forma de uma árvore; daí o nome "árvore sefirótica". Diz-se que as entidades das quais são compostas podem ser divididas em dois grupos: o grupo masculino à direita e o grupo feminino à esquerda.
Assim, a árvore sefirótica é andrógina, tendo um lado masculino e um lado feminino. Em suma, entre os judeus da Diáspora, encontramos a androginia não apenas no ancestral comum dos homens, mas também em Deus, como vimos nos mitos do paganismo.
Seria isso a conservação de um vestígio da antiguidade gentílica, ou seria uma nova elaboração dos contemplativos da cabala? É essa segunda hipótese que é sugerida no livro de Scholem "Os Grandes Correntes da Mística Judaica".
Veremos, em nossa refutação, que o texto do Gênesis de forma alguma obriga a concluir a androginia de Adão. Pelo contrário. Pois, em um próximo capítulo, após completarmos a linha que conduziu o andrógino até os nossos dias, faremos a crítica deste ponto de vista da ortodoxia cristã e tentaremos determinar de que inspiração esse estranho mito pode ser fruto.
Notas
- Essa alegação de Guénon é uma mentira; na verdade, o Gênesis (I, 27) diz: "macho e fêmea os criou" (Nota do Editor).
- Edição Saint-Rémi.
- Heresiarcas gnóstico do século II d.C.; Nasceu no Egito e ensinou em Roma (Nota do Editor).