CAPÍTULO II - A TRADIÇÃO APOSTÓLICA
No artigo anterior, observamos a incompatibilidade entre a tradição oriental e a Tradição guardada pela Igreja. Ambas têm o mesmo nome, mas não compartilham o mesmo conteúdo.
Agora é necessário discernir entre as duas, identificar qual verdadeiramente contém a Tradição Primordial e qual é apenas um desvio.
- 1 - A verdadeira Tradição transmite a verdadeira Revelação
- 2 - O conteúdo da Tradição Primordial
- 3 - As alterações pré-diluvianas da Tradição
- 4 - O conteúdo da Tradição Noética
- 5 - A Tradição Profana
- 6 - A grande bifurcação
- 7 - A nova estratégia
- 8 - A reconstituição da Tradição Primordial
1 - A verdadeira Tradição transmite a verdadeira Revelação
Toda Revelação divina dá origem à "Escritura" e à "Tradição".
A Escritura é o que o profeta registra por escrito após ter ouvido diretamente de Deus. Ele confia seu escrito à autoridade religiosa da época, seja o Patriarca, o Juiz, o Sumo Sacerdote ou o Pontífice. Esses escritos são cuidadosamente preservados devido à sua origem divina. Eles são amplamente testados (pois discernem os espíritos) e eventualmente codificados, muitas vezes anos após sua criação. Juntos, eles formam as Sagradas Escrituras.
No entanto, o profeta não consegue registrar tudo; ele fala do que viu e ouviu. Seus ouvintes então transmitem oralmente esses preciosos vestígios de Revelação, e depois os escrevem por sua vez. Isso se torna a Tradição. Ela permanece dispersa em uma variedade de documentos, e é necessário discernir o que é revelado do que não é; pois o critério não é a antiguidade, mas a origem divina.
Se uma tradição é profana em sua origem, ou seja, se transmite apenas filosofia, ciência, história ou direito, ela não se torna revelada apenas pelo passar do tempo. O que é profano permanece assim, não importa quão antigo seja, e a Igreja não será sua guardiã.
A Revelação messiânica, trazida pelo próprio Nosso Senhor, deu origem à Escritura (o Novo Testamento) e à Tradição (a Tradição Apostólica).
Da mesma forma, antes disso, a Revelação mosaica (geralmente judaica) também deu origem à Escritura (o Antigo Testamento) e à Tradição (a Kabbalah).
Vamos ainda mais longe. No começo, nossos primeiros pais e os patriarcas que os sucederam receberam a "Revelação Primordial". No entanto, essa não deu origem à Escritura. Ela gerou apenas a "Tradição Primordial" ou "Patriarcal", que permaneceu oral por muitos séculos e nunca foi escrita como tal.
Ocorreu que a Tradição Primordial, que oralmente continha toda a Revelação, foi sujeita a graves alterações. Tradicões profanas, não reveladas, se misturaram a ela e acabaram por invadir, sufocar e apagar qualquer vestígio de verdadeira Tradição, ou seja, da verdadeira Revelação divina. A história da religião na Terra, até Abraão, é simplesmente a história das sucessivas alterações da Tradição Primordial.
2 - O conteúdo da Tradição Primordial
Do ponto de vista geral dos escritores da Igreja, a Revelação feita por Deus a Adão e aos patriarcas que o sucederam continha quatro componentes essenciais: um Deus, uma Lei, um Culto e uma Profecia.
Um Deus - O Deus da Tradição é pessoal, criador e único. Ele é pessoal, permitindo uma relação com Ele; Ele não é uma força cega ou uma entidade abstrata; a religião primitiva não é panteísta. Deus é criador; Ele não tem força independente acima Dele; Ele é soberano mestre de tudo, portanto, criador de tudo. Deus é único; não há outro além Dele; a relação primitiva também não é politeísta.
Uma Lei - É implícita; é a regra de conduta colocada no coração do homem; é a voz da consciência; é a lei natural; portanto, não é revelada positivamente; mas quando Caim a transgride, Deus a lembra explicitamente; ela também é complementada por várias prescrições, como o preceito da procriação.
Um Culto - A lei do sacrifício é universal; consiste em confessar diante de Deus a própria insignificância; este é o fundamento do culto; antes não sangrento, tornou-se sangrento desde a queda, pois foi adicionada a necessidade de expiação; Abel entendeu isso, mas não Caim. O culto de Caim é uma oferta de ação de graças, agora insuficiente; não é aceito por Deus. O sacrifício de Abel é expiatório e, portanto, entra na tradição divina como tendo sido aceito por Deus.
Uma Profecia - É chamada de "Protoevangelho"; aqui está o texto. Deus fala com a serpente após o episódio da tentação original: "Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência dela; esta te ferirá a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar." (Gênese, III, 15). Hoje, parte dessa profecia se realizou; sabemos que a descendência da mulher é Cristo e deduzimos que a descendência da serpente é o Anticristo. Nos tempos antigos, isso alimentou as meditações dos homens que "andavam com Deus", porque resumia a história do mundo; muitos estudiosos afirmam que esta profecia foi dada por Deus para sustentar a esperança dos primeiros homens, pois formula a esperança da Redenção.
Os "homens justos", como por exemplo Jó, meditaram por longos séculos sobre essas duas descendências, essas inimizades, esse "esmagamento da cabeça, essa mordida no calcanhar". Pode-se dizer que o Protoevangelho é a peça central da Tradição Primordial.
3 - As alterações pré-diluvianas da Tradição
As Escrituras dão, para o período que precedeu o dilúvio, o nome de dez patriarcas: Adão, Sete, Enos (foi durante o patriarcado de Enos que "começou-se a invocar o nome do Senhor", Gênesis, III, 26), Cainã, Maalalel, Jarede, Enoque (que "andou com Deus e não foi mais visto, porque Deus o arrebatou", Gênesis, V, 24), Matusalém, Lameque e Noé.
O Gênesis não diz se todos os dez contribuíram para enriquecer a Tradição Revelada. É certo para três deles: Enos, Enoque e Noé. Mas para os outros, não sabemos nada. Nem mesmo temos certeza de que historicamente, durante o período pré-diluviano, tenha havido apenas dez patriarcas. Pode ter havido outros, que as Escrituras não mencionam, contentando-se em nomear os principais. Os registros profanos da humanidade são silenciosos sobre esse assunto e, portanto, incapazes de nos informar. Assim, somos obrigados a recorrer aos registros religiosos, ou seja, aos textos da Bíblia, que pelo menos tiveram o mérito de nos revelar tudo o que é necessário para a salvação.
Também é certo que a humanidade pré-diluviana atraiu de Deus sérias reprovações. É interessante ver como elas foram formuladas:
"O Senhor viu que a maldade dos homens era grande na terra e que toda a inclinação dos pensamentos do seu coração era sempre somente para o mal" (Gênesis, VI, 5). Um pouco mais adiante: "E a terra estava corrompida diante de Deus e cheia de violência. Deus viu a terra e eis que estava corrompida, pois toda carne tinha corrompido o seu caminho sobre a terra. Então Deus disse a Noé: "O fim de toda carne veio perante mim, pois a terra está cheia de violência por causa deles" (Gênesis, VI, 11-13).
Portanto, uma repreensão geral: "os pensamentos de seus corações estavam sempre inclinados para o mal" e apenas duas especificações: "corrupção e violência". É pouco para descrever o estado da Tradição, mas é suficiente para nos convencer de que não havia mais nem Tradição nem Religião.
Em relação a Noé, pelo contrário, é dito o seguinte:
"Mas Noé achou graça aos olhos do Senhor. Eis a história de Noé. Noé era um homem justo, íntegro entre os homens de seu tempo; Noé andava com Deus" (Gênesis, VI, 8-9).
Aqui também, as Escrituras dizem pouco, mas contêm muito; como de costume. "Noé andava com Deus" significa que ele praticava integralmente a Religião Revelada como a havia recebido. Portanto, é razoável pensar que ele conhecia a Tradição Primordial e suas quatro componentes essenciais: Um Deus, uma Lei, um Culto e uma Profecia. Ele foi o único a tê-la preservado e é essa Tradição que ele transmitirá a seus descendentes após o dilúvio.
4 - O conteúdo da Tradição Noética
Chama-se "Noaico" tudo o que se relaciona a Noé, pois em hebraico Noé é chamado Noach. Portanto, a tradição noaica é a tradição tal como Noé a deixou para seus descendentes após o dilúvio. Qual poderia ser o seu conteúdo?
Primeiramente, ela contém a Tradição Primordial e as quatro componentes que acabamos de mencionar.
Também contém o relato das palavras que Noé ouviu da boca de Deus antes do dilúvio, palavras que revelam o motivo da condenação da humanidade a esse castigo.
A tradição noaica também incluirá o discurso de Deus na saída da Arca, discurso que obviamente pertence à Revelação e contém o que chamamos de "Preceitos Noaicos". Enumeremos os principais:
1 - Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra; 2 - Dou-vos os animais como alimento, assim como vos dei a erva verde; 3 - Quem derramar o sangue do homem, pelo homem seu sangue será derramado, pois Deus fez o homem à Sua imagem. 4 - Estabeleço a minha aliança com os homens e coloco o meu arco na nuvem... 5 - Não haverá mais dilúvio para devastar a terra.
Noé constrói um altar e oferece a Deus um sacrifício sangrento, como Abel havia feito. Ele transmite, portanto, o culto primordial de tipo expiatório.
Todas essas razões permitem afirmar que a Tradição Primordial é lembrada, restaurada e até enriquecida. É essa Tradição enriquecida que deve, segundo o desígnio de Deus, guiar o repovoamento da terra.
Esse é o regime dessa primeira Aliança (aquela que nos é lembrada pelo arco-íris): a vontade de Deus é que a Religião primordial seja a Religião universal.
5 - A Tradição Profana
Somos levados a nos questionar. A Tradição que chegou à humanidade pós-diluviana, ou seja, aquela do período noaico, contém apenas os componentes de natureza religiosa que acabamos de enumerar? Elementos profanos e especialmente cosmológicos não se misturaram a ela?
É provável, embora não tenhamos prova positiva disso. No entanto, como veremos ressurgir tais noções após a dispersão na Torre de Babel, somos obrigados a perguntar de onde elas vêm.
A fonte que imediatamente vem à mente é, evidentemente, a ciência infusa de Adão. Deus concedeu a ele o dom da ciência infusa em seu estado de perfeição primitiva. E é óbvio que Ele o privou disso quando o expulsou do Paraíso Terrestre. No entanto, Adão não esqueceu o que havia aprendido, de modo que pôde transmitir aos seus descendentes muitos conhecimentos que hoje chamaríamos de cosmológicos. Esses conhecimentos primitivos não foram positivamente revelados. Eles também eram de uma ordem inferior aos conhecimentos religiosos derivados da Revelação.
Qual poderia ser o conteúdo dessa tradição profana? Estamos reduzidos a conjecturas, mas podemos pensar que ela transmitia noções como, por exemplo, o simbolismo dos quatro elementos constitutivos da criação material: terra, água, ar e fogo. Ela também transmitia noções de cronologia, ainda hoje chamadas de "tradicional", como a semana de sete dias, os doze signos do Zodíaco que formam o quadro dos doze meses do ano.
Certamente também se misturou aí toda uma sabedoria puramente humana, nascida da experiência e da reflexão, ditados populares, memórias históricas, tudo formulado com mais ou menos lirismo.
Assim, a mesma palavra "Tradição" abrange dois fluxos paralelos ou, melhor dizendo, superpostos.
O fluxo superior é a Tradição Primordial propriamente dita, ou seja, a parte religiosa. Nele encontramos apenas elementos revelados. É a parte espiritual, tratando de um Deus justo e bom, de uma lei difícil de seguir, de um culto difícil de praticar, de uma profecia difícil de entender. É a parte espiritual do fluxo tradicional, mas também aquela que, historicamente, tende mais a se sublimar, a evaporar, a cair em desuso, devido precisamente às suas dificuldades.
O fluxo inferior é a tradição profana. Ela merece esse nome de tradição por seu modo de propagação oral; mas tem um conteúdo completamente diferente. Ela transmite noções mais humanas, menos elevadas, mais práticas. Ela vai ofuscar e apagar a Tradição religiosa e prevalecer sobre ela; a história vai provar isso.
A diferença entre esses dois fluxos tradicionais é resumida por uma fórmula já antiga: a tradição cosmológica ensina como vai o céu, enquanto a Tradição religiosa ensina como se vai ao Céu.
6 - A grande bifurcação
A linha reta dos marcos tradicionais foi abandonada em algum momento da história antiga, por uma multidão imensa, e mais, pela quase totalidade da humanidade. A grande bifurcação ocorreu no momento do episódio da Torre de Babel. Esse episódio, portanto, muito importante, precisa ser examinado com atenção no texto bíblico. A narrativa não é longa, pois contém apenas nove versículos (Gên. XI, 1-9).
As circunstâncias gerais são expressas de forma lacônica:
"A terra tinha uma única língua e as mesmas palavras. Partindo do Oriente, encontraram uma planície na terra de Sinar e ali se estabeleceram".
Assim, ao chegarem a essa planície, os homens procedem a uma importante inovação técnica. Eles fabricam novos materiais:
"Eles disseram uns aos outros: Vamos, façamos tijolos e cozamos no fogo. E usaram tijolos em vez de pedras e betume em vez de argamassa".
Esses detalhes materiais têm seu interesse, mas vamos deixá-los de lado para chegar ao essencial.
Apenas um versículo é suficiente para o escritor sagrado definir o projeto de construir uma nova cidade, sob um novo status:
"Disseram ainda: Vamos construir uma cidade e uma torre cujo cume alcance o céu; e celebremos nosso nome antes de sermos dispersos por toda a terra".
Este é o famoso grande projeto de Babel. É conciso, mas veremos que é pesado de consequências.
À primeira vista, no entanto, e se nos contentarmos com uma leitura rápida, os homens de Babel não parecem meditar um desígnio criminoso, pelo contrário: eles se proclamam felizes com sua unidade e fazem tudo para preservá-la. O que poderia ser mais louvável?
Mas a concisão bíblica resume um projeto na realidade muito amplo; é um verdadeiro plano de civilização; ele envolve o futuro a longo prazo; é uma grande mudança que está sendo feita.
Vamos encontrar neste plano os elementos constitutivos da Tradição Primordial transmitida por Noé em sua forma noaquita? Se ela foi fielmente perpetuada, é ela que deveria inspirar o projeto. Deveríamos ser capazes de reconhecer não apenas as quatro componentes da Revelação Primitiva, mas também alguns vestígios dos preceitos noaquitas. No entanto, precisamente, não encontramos nem mesmo um traço mínimo deles.
Não se menciona Yahveh, ao qual Noé tinha oferecido um holocausto. No entanto, devemos notar que os homens de Babel estão claramente animados por um zelo religioso inegável, já que desejam que a torre alcance o céu. Porém, eles falam do céu, um termo neutro, e não mais de Yahveh, o Deus pessoal. Poderíamos dizer hoje que são teístas ou panteístas. Além disso, a torre alcança o céu, mas para quem ela é construída? O texto diz: "Faciamus Nobis turrim". Ela é feita para os homens. Isso não é já o que chamamos de antropocentrismo religioso. O que é certo é que Yahveh não é mais mencionado.
A lei natural, inscrita no coração do homem, obviamente não é mencionada no projeto de Babel. Mas isso se compreende, pois ainda é tácita e ainda não foi promulgada artigo por artigo, como será no Sinai.
O culto expiatório está totalmente ausente das preocupações babilônicas. No entanto, fazia parte integrante da Tradição, aquele sacrifício expiatório. Noé o transmitiu, vindo de Abel, na saída da arca, já que ele construiu um altar para seu holocausto. Agora, não se fala mais de um altar, mas de uma torre. Esta torre é uma manifestação de religiosidade, certamente, mas de uma religiosidade na qual Deus não tem mais parte e que segue singularmente o caminho de se tornar "metafísica". Até nos perguntamos se uma torre tão alta não corresponde a uma ideia de desafio e se seu verdadeiro propósito não seria desafiar Deus.
A profecia das duas descendências, chamada de Protévangile, também está ausente. Eles não falam mais em manter uma linha reta apesar das contestações. O que os preocupa é a união. Por quê? Porque uma das duas descendências desapareceu; não conta mais; não há mais luta, mas unidade. A cidade que estão construindo se tornará a capital da humanidade única e indivisível. A "descendência da mulher" está eclipsada.
Em resumo, somos impressionados pelo modernismo das concepções de Babel: religiosidade ecumênica, culto sem altar, cidade humanitária. A Religião revelada desapareceu completamente. Em seu lugar, os homens propõem o que chamaríamos de antropocentrismo: "faciamus nobis civitatem, celebramus nomen nostrum". Façamos uma cidade, celebremos nosso nome.
Assim, a Tradição Primordial é obliterada pela segunda vez. E essa segunda obliteração teria sido tão grave quanto aquela que justificou o dilúvio se Deus não tivesse intervindo para encerrar a experiência de Babel.
"Mas o Senhor desceu para ver a cidade e a torre que os filhos de Adão estavam construindo, e disse: 'Eis que este é um povo único e uma única língua para todos; eles começaram a fazer isso e não abandonarão seu plano até que o tenham realizado" (Gên. XI, 6).
Assim, Deus prevê que os princípios sobre os quais se baseia o grande plano em execução levarão a consequências detestáveis. Agora que começaram, não vão parar mais.
Então, vamos tentar discernir até onde o plano babilônico teria chegado. Obviamente, teria sido em prol da descendência da serpente que a unanimidade se formou ao pé da torre em construção. A descendência da mulher se escondeu. Portanto, o objetivo inevitável da cidade só poderia ser "o poder da Besta". Um poder sob o qual toda a humanidade teria sido obrigada a viver até o fim dos tempos; ainda estaríamos sob ele.
Aqui está a continuação da deliberação divina, marcada pelo plural:
"Portanto, venham. Descendamos e confundamos aqui mesmo a língua deles, de modo que ninguém entenda a fala do seu próximo. Foi assim que o Senhor os dispersou dali por toda a terra, e eles cessaram de construir a cidade. Por isso foi chamada Babel, porque ali o Senhor confundiu a língua de toda a terra, e dali o Senhor os dispersou por toda a terra" (Gen. XI, 8-9).
O que chama atenção aqui é a vontade claramente expressa, e também pesada, de Deus de impedir a todo custo o empreendimento em curso. É Ele quem confunde deliberadamente as línguas. É Ele quem dispersa deliberadamente as nações. Há uma religião que Deus não quer e uma unidade que Deus não quer.
Também notemos que Deus agiu diretamente, ou seja, milagrosamente, sem recorrer às causas secundárias. De fato, Ele agiu por misericórdia. Como assim? Agora sabemos, pelo Apocalipse, que Deus concederá um poder universal à Besta em virtude de sua vitória sobre os homens pela tentação; esse poder é devido a ela com toda justiça; portanto, Deus, que é justo para com todas as criaturas, lhe concederá. Mas esse poder durará apenas um período muito curto e apenas no fim dos tempos: isso é o que chamamos de tribulações do Anticristo. A intervenção de Deus em Babel foi uma misericórdia, pois poupou à humanidade séculos sob o domínio da Besta.
Agora conhecemos o estado da tradição no momento da dispersão. Toda a sua parte revelada e religiosa desapareceu. Então, de que se compõe o patrimônio comum que as nações vão carregar, cada uma em seu continente? Este patrimônio comum inclui, em primeiro lugar, o antropocentrismo e a religiosidade que acabamos de descrever. Também inclui a tradição profana e cosmológica herdada de tempos imemoriais e que se propagou pelo mesmo caminho tradicional, paralelamente à Tradição Primordial revelada.
Um homem, mais uma vez, fez uma exceção e não sucumbiu à contaminação da ideologia de Babel. Este homem é o patriarca Héber, o ancestral epônimo dos hebreus, um dos antepassados de Abraão. "Epônimo" significa "aquele que coloca seu nome sobre".
Lemos em "Les Patriarches", de Dom de Monléon, na nota do primeiro capítulo, o seguinte: "Se acreditarmos numa tradição que conta com a autoridade de Santo Agostinho (A Cidade de Deus I-XVI-II), de Santo Efrém e de muitos outros, Héber não teria participado da construção da Torre de Babel. Por causa disso, ele e os seus conservaram a língua original da humanidade (que, segundo os antigos, era o hebraico) e mereceram tornar-se o povo escolhido de Deus". Héber desempenhou, na turbulência de Babel, o mesmo papel que Noé desempenhou no dilúvio.
7 - A nova estratégia
Sabe-se que o gênero humano foi colocado sob o regime das "inimizades" em virtude do decreto pronunciado por Deus na saída do paraíso terrestre. Devia, portanto, sempre haver "Abel" e "Caim", vivendo lado a lado, na espera do triunfo da "descendência da mulher" que deveria esmagar "a cabeça da serpente". Tal era o regime. A Religião do Verdadeiro Deus era universal, embora universalmente combatida. Nenhum decreto divino havia ainda estabelecido um "Povo eleito". Esse era o regime da primeira Aliança.
Ora, aqui está agora a segunda vez que a Religião revelada sofre uma degradação completa: a primeira antes do dilúvio, a segunda antes de Babel. Uma palavra de Nosso Senhor torna-se irresistivelmente presente na memória:
«Jerusalém, quantas vezes Eu quis reunir teus filhos como a galinha reúne sua ninhada sob suas asas e tu não quiseste» (Lucas, XIII, 34).
Vê-se que a mesma censura já havia sido incorrida, em duas ocasiões, pela humanidade inteira, muito tempo antes.
Após a dispersão das nações, vê-se Deus tomar lentamente todas as disposições necessárias para uma nova estratégia. Esta dispersão, de fato, evita a incrustação do mal, mas não restaura a Tradição. Certamente, a descendência da serpente não tem mais uma capital civil e religiosa, uma vez que Babel está deserta, mas ela domina em toda parte de maneira difusa.
É Deus agora quem vai construir sua própria cidadela para ali manter e concentrar sua própria religião. Ela será conservada ali, em uma situação defensiva, até o grande momento da "Vocação dos Gentios", quando ela sairá para conquistar o mundo:
«Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus» (João, IV, 22).
O corolário inevitável da confusão e dispersão babilônica é a vocação de Abraão. Não há mais outro meio, para perpetuar a Verdadeira Religião, do que constituir um povo-cidadela que seja seu guardião. Mas de que esse povo seria o guardião, se não há mais nada a guardar? Ora, a apostasia é geral e irreversível, não há, portanto, mais nada a guardar. É necessário que Deus reconstitua, ao mesmo tempo, a Tradição Primordial; é preciso proceder a uma nova Revelação que será a repetição da primeira, é preciso refazer tudo do nada. Pacientemente, Deus, novamente, revela-se a Abraão, Isaac e Jacó, visando reconstituir a Tradição perdida.
Vimos que, no auge da apostasia babilônica, um homem fez exceção heroicamente: era Héber. Durante o período que se seguiu à vocação de Abraão, e antes de Moisés, encontra-se também uma exceção análoga, é "o santo homem Jó". Ele sabia muitas coisas, por exemplo, esta:
«eu sei que o meu Redentor ("Redemptor" no texto da Vulgata) vive e que aparecerá no último dia sobre a terra...» (Jó, XIX, 25).
Onde Jó foi buscar essa esperança em um Redentor, senão no Protoevangelho que a Tradição Primordial, esquecida por todos, havia lhe transmitido. No entanto, não foi Jó que Deus escolheu para se tornar o ancestral do Povo eleito, porque ele não era judeu. Geralmente se atribui ao livro de Jó uma data anterior à do Gênesis.
8 - A reconstituição da Tradição Primordial
Moíses é encarregado de receber a nova Revelação pela qual Deus reconstitui a Tradição Primordial esquecida. Mas, desta vez, a Revelação é registrada por escrito: é a Escritura Sagrada. Ao mesmo tempo, uma organização sacerdotal é criada, que cuidará, entre outras funções, da conservação literal da Escritura. E as gerações futuras só terão a louvar o rigor com que essa conservação será realizada.
Hoje conhecemos a Tradição Patriarcal, não diretamente e oralmente, mas através da Escritura. Como sabemos o que Deus disse a Adão, depois a Noé? Certamente não é pela Tradição, pois ela foi alterada e até esquecida. É pela Escritura. Aqueles, portanto, que não aderem à Escritura, como é o caso dos hinduístas, conhecem da Tradição apenas o que restou em Babel, ou seja, a parte profana, cosmológica e recente; a parte que não tem valor para a salvação; é por isso que eles ignoram a salvação e a substituem pela libertação.
Moisés conheceu vestígios da Tradição Primordial semelhantes aos que acabamos de descobrir em Jó? É provável. Mas o que é certo, em todo caso, é que Deus, por uma inspiração explícita, preencheu lacunas irreparáveis e reconstituiu arquivos religiosos que a humanidade foi incapaz de transmitir.
Se há no mundo, hoje, uma instituição capaz precisamente de falar da Tradição Primordial e de apresentar seu conteúdo, é a Igreja. Não há outra.
Quando o hinduísmo diz: "A Igreja esqueceu a Tradição; somos nós que a conservamos", está errado. Na realidade, é exatamente o contrário. Todas as religiões pagãs (e não apenas o hinduísmo) abandonaram a linha reta dos marcos tradicionais antes de Abraão e antes da Escritura. Portanto, elas possuem da Tradição apenas a versão babilônica que, justamente, Deus não quis.
A superioridade da tradição pagã (hinduísta ou hermética) sobre a Tradição apostólica é uma afirmação sem fundamento. Mas ela é repetida com tal segurança e por alto-falantes tão poderosos que abafa toda outra palavra e passa comumente por uma verdade evidente.