CAPÍTULO I - A TRADIÇÃO ORIENTAL DE RENÉ GUÉNON
- 1 - Uma Tradição Oriental
- 2 - Uma tradição que também é Escritura
- 3 - Uma tradição metafísica
- 4 - Uma tradição babeliana
- 5 - Uma Tradição "não humana"
- 6 - Uma Tradição Intemporal
- 7 - Uma Tradição Infalível
- 8 - Uma Tradição Esotérica
- 9 - Conclusão da Primeira Parte
1 - Uma Tradição Oriental
É no ensinamento esotérico, ou seja, oculto, das religiões islâmica, taoísta e hinduísta que Guénon encontra os elementos da "Grande Tradição Primordial" que ele deseja propagar no Ocidente.
"No Islã, a tradição apresenta dois aspectos distintos, sendo um religioso, que está diretamente ligado ao conjunto das instituições sociais, enquanto o outro, o puramente oriental, é verdadeiramente METAFÍSICO." (Introdução geral ao estudo das "Doutrinas hindus", 2ª parte, capítulo III.)
Guénon nunca deixa de distinguir, em relação ao Islã, as instituições propriamente religiosas, que têm fontes judaicas, do fundo "tradicional" que não é judaico, mas oriental. É este fundo tradicional que é transmitido pelo sufismo e que forma a parte esotérica do Islã. Esta distinção deve ser mantida em mente. Na China, ele observa:
"... por um lado, uma tradição METAFÍSICA, e por outro, uma tradição social... No entanto, o que é preciso ter cuidado é que a tradição metafísica, conforme é constituída na forma do Taoísmo, é o desenvolvimento dos princípios de uma tradição mais primordial, contida especialmente no Yi-King, e é dessa tradição primordial que surge inteiramente todo o conjunto de instituições sociais que é comumente conhecido como Confucionismo." (Introdução ao estudo das doutrinas hindus, 2ª parte, capítulo III).
Mas a quintessência da tradição primordial, Guénon a encontra no Hinduísmo:
"Na Índia, estamos diante de uma tradição puramente METAFÍSICA em sua essência... o que aparece aqui muito mais claramente do que na tradição islâmica é a total subordinação das diversas ordens particulares em relação à metafísica, ou seja, ao domínio dos princípios universais." (Introdução ao estudo das doutrinas hindus, 2ª parte, capítulo III).
Observemos, por oportuno, o caráter metafísico que encontramos nas três ramificações islâmica, taoísta e hinduísta da tradição, pois precisaremos lembrar disso.
E em quais textos encontramos mais precisamente a tradição metafísica da Índia?
"O nome Veda é aplicado, de forma geral, a todos os escritos fundamentais da tradição hindu: sabe-se, aliás, que esses escritos são distribuídos em quatro coleções que levam os nomes respectivos de 'Rig-Veda', 'Yajur-Veda', 'Sama-Veda' e 'Atharva-Veda'." (Introdução à Doutrina Hindu, 2ª parte, capítulo III).
Guénon limita a esses três componentes - islâmico, taoísta e hinduísta - as fontes da tradição primordial. Ele não menciona a fonte judaica. No entanto, precisamente, os judeus se declaram depositários de uma certa "Tradição Primordial", herança da Revolução Primordial. Se Guénon não menciona essa herança, é porque não a considera como parte da tradição que vigora no Oriente.
Portanto, existem duas tradições supostamente primordiais: a do Oriente e a dos judeo-cristãos. Qual das duas é a mais antiga e autêntica? É a do Oriente, nos diz Guénon:
"A verdadeira situação do Ocidente em relação ao Oriente é, no fundo, apenas a de um ramo destacado do tronco." (Introdução ao Estudo das Doutrinas Hindus, 1ª parte, capítulo 1).
Portanto, para ele, o tronco antigo e autêntico é a tradição oriental; o "ramo destacado" é a tradição judaico-cristã do Ocidente.
Ao longo de toda a sua obra, Guénon fala em nome da "tradição oriental" da qual se considera um intérprete fiel, senão mesmo como o porta-voz autorizado. Ele afirma isso várias vezes, dizendo que os orientalistas que o precederam apresentaram uma tradição oriental vestida à maneira ocidental e muito distorcida, enquanto ele, ao contrário, se esforça para formular a versão autêntica dela.
Jean Réyor, nas "Etudes Traditionnelles" de janeiro-fevereiro de 1955, escreve o seguinte:
"...ele tinha a convicção de que seu conhecimento da doutrina tradicional era extraído de uma fonte mais pura e mais primordial do que aquelas das quais seus antecessores orientalistas tinham bebido".
Consideramos agora R. Guénon como o intérprete rigoroso da tradição oriental, como é amplamente reconhecido.
2 - Uma tradição que também é Escritura
"Digamos desde já que não estamos usando a palavra 'tradição' no sentido restrito em que o pensamento religioso do Ocidente às vezes opõe 'tradição' e 'escritura', entendendo por primeiro desses dois termos, de forma exclusiva, o que foi objeto apenas de transmissão oral. Pelo contrário, para nós, a tradição pode ser escrita tão bem quanto oral; a parte escrita e a parte oral formam dois ramos complementares da mesma tradição e não temos hesitação em falar de ESCRITURAS TRADICIONAIS." (Introdução ao Estudo das Doutrinas hindus, 2ª parte, capítulo III).
A massa documental na qual se expressa a tradição oriental é muito importante, pois inclui, além dos quatro grandes coleções de Veda e seus comentários, os textos do Yi-King para a China e os documentos sufistas para o Islã.
Nessa massa, será feita a distinção entre "Escritura" e "Tradição", como é feito nos arquivos judaico-cristãos? De fato, entre judeus e cristãos, a Escritura Sagrada é a transcrição imediata da Revelação Divina, autenticada como tal pelas autoridades religiosas da época e rigorosamente conservada posteriormente. A Tradição é o que, na Revelação divina, escapou à codificação escrita e foi transmitido primeiro oralmente, e depois por escrito após certo tempo.
No Oriente, tal discriminação não é feita, por muitas razões. Não há, na massa de documentos transmitidos, um núcleo central. Todas as partes têm o mesmo valor e autoridade em relação à inspiração que lhes deu origem.
Que nota, Guénon, intérprete dos orientais, vai atribuir a todo esse conjunto? Ele tinha várias opções. Ele poderia dizer: "Todo esse reservatório documental merece o nome de Escritura". Mas ele também poderia considerar que "todo o conjunto é 'Tradição'". Ele preferiu uma resposta mista, dando a todos esses tratados sem data a nota de "Escrituras Tradicionais".
Por que essa solução? Em primeiro lugar, porque o espírito oriental não é favorável a definições precisas que lhe parecem simplistas e distorcidas. Mas também é provavelmente para aproveitar as vantagens de ambas as denominações. Ele deseja manter a liberdade de interpretação que está associada a toda tradição, ao mesmo tempo em que reivindica a CANONICIDADE reservada à Escritura.
De fato, Guénon principalmente considera a nota tradicional de seus documentos. É a palavra "tradição" que retorna continuamente sob sua pena. No entanto, veremos, quando ele nos falar da "infalibilidade tradicional", que as vantagens de certa canonicidade não lhe são indiferentes.
3 - Uma tradição metafísica
A tradição se apresenta, portanto, em três formas principais: islâmica, taoísta e hinduísta. No entanto, observamos que a componente metafísica é a mesma nas três formas. Em outras palavras, a tradição transmite um único conteúdo conceitual que é de natureza metafísica.
O que se entende por metafísica na terminologia de Guénon? Eis o que ele escreve na Introdução ao Estudo das Doutrinas hindus:
".... na tradição hinduísta, o que aparece muito mais claramente do que na tradição islâmica é a TOTAL SUBORDINAÇÃO das várias ORDENS PARTICULARES em relação à metafísica, ou seja, ao domínio dos PRINCÍPIOS UNIVERSAIS".
Quais são essas "várias ordens particulares"? Descobrimos em outro lugar: são as instituições políticas, a filosofia e a religião.
Portanto, as instituições, a filosofia e a religião estão colocadas em total subordinação em relação à metafísica, ou seja, à tradição, já que observamos que a tradição transmite um conteúdo metafísico universalmente o mesmo. Assim, é na "tradição metafísica" que as instituições, a filosofia e a religião devem buscar sua inspiração, cada uma em sua parte.
Agora, vamos perguntar a Guénon quais são as razões pelas quais a metafísica é capaz de exercer sua hegemonia sobre "as várias ordens particulares".
Em primeiro lugar, é porque a metafísica é "o domínio dos PRINCÍPIOS UNIVERSAIS". É evidente que, se considerarmos essa definição como firmemente estabelecida, as várias ordens particulares terão que buscar seus princípios na metafísica, já que não existem princípios em nenhum outro lugar.
A segunda razão que justifica a supremacia da metafísica é seu modo de conhecimento.
A filosofia envolve a razão auxiliada pelos dados sensoriais. Enquanto a metafísica, como definida por Guénon, é PURAMENTE INTELECTUAL. Seu modo de conhecimento não é nem racional, nem sensorial; é uma INTUIÇÃO imediata, que se realiza após um treinamento de ordem CONTEMPLATIVA.
As obras de Guénon são em grande parte dedicadas a descrever essa via contemplativa, que ele também chama de "via metafísica".
A partir do fato de que o conhecimento metafísico é puramente intelectual, intuitivo e contemplativo, Guénon conclui que ele tem um caráter de "absoluta certeza": são suas próprias palavras:
"A metafísica, que tem um caráter de ABSOLUTA CERTEZA, não pode admitir nada hipotético" (Introdução ao Estudo das Doutrinas Hindus, 2ª parte, capítulo VIII).
Assim, tradição e metafísica, no sentido de Guénon, são uma só. Podemos associar as duas palavras e falar indistintamente de tradição metafísica ou de metafísica tradicional.
Compreende-se que tal metafísica, ao mesmo tempo universal e absolutamente certa, constitua a fonte de inspiração comum da qual, no sistema guenoniano, instituições, filosofia e religião vêm buscar.
4 - Uma tradição babeliana
No sistema de Guénon, portanto, a tradição metafísica, por ser puramente intelectual, intuitiva e universal, exerce uma supremacia sobre a filosofia, que se move na zona inferior do racional e do sensorial. Agora vamos ver que ela também exerce uma supremacia análoga sobre a religião.
A supremacia da tradição sobre a religião é justificada, de acordo com Guénon, pela SENTIMENTALIDADE que constitui o fundo mental de toda religião no pleno sentido da palavra, requerendo a união de três elementos: o dogma, a moral e o culto. No entanto, cada um desses três elementos está impregnado de sentimentalidade.
O CULTO religioso é necessariamente de ordem sentimental, pois é devocional por definição. O DOGMA não pode ser puramente intelectual, já que é contaminado pela noção de salvação, na qual a emoção pessoal é o componente principal. Quanto à MORAL, também, uma vez que se trata não apenas de conhecimento puro, mas de comportamento prático no qual o sentimento (por exemplo, o altruísmo) desempenha um papel crucial.
Portanto, os três elementos constitutivos da religião são de ordem sentimental. Ao contrário, a "tradição metafísica", uma vez que não possui dogma, moral ou culto, mas apenas princípios abstratos, permanece puramente intelectual.
E, portanto, ela pode reivindicar, de acordo com este sistema, a hegemonia sobre a religião, assim como sobre a filosofia. O Oriente reconhece, de fato, essa hegemonia da tradição. Claro, lá se observam devoções religiosas, como o Brahmanismo, o Vishnuísmo e o Shivaísmo, mas isso se refere especificamente à devoção e não à religião no sentido judaico-cristão da palavra. É na tradição, e não na devoção de tipo religioso, que, na Índia, as instituições, a filosofia e até mesmo as ciências buscam seus princípios. Pelo menos assim era antigamente.
Depois de separar a religião da tradição e definir sua posição relativa, Guénon fará uma observação histórica que nos permitirá, por sua vez, uma importante dedução. Encontramos, ele observa, apenas uma única família espiritual que reúne os três componentes necessários para constituir uma religião, e esta é a família judaico-cristã, incluindo a parte puramente religiosa do Islã (a infraestrutura esotérica do Islã, que é o sufismo, pertencente à tradição e não à religião propriamente dita).
"Em nenhum outro lugar encontramos as três partes que acabamos de caracterizar (dogma, moral e culto) reunidas." (Introdução ao Estudo das Doutrinas Hindus, 2ª parte, capítulo IV).
Essa observação de Guénon de que a tradição e a religião constituem DUAS DISCIPLINAS ESPIRITUAIS DIFERENTES é extremamente perspicaz. Mas, então, ela nos leva a fazer uma pergunta que Guénon, aliás, não faz, pelo menos abertamente.
Em que época a família religiosa se separou da família tradicional? Em outras palavras, em que circunstâncias a religião judaico-cristã se separou do tronco tradicional antigo? Não vemos outro episódio histórico possível além da TORRE DE BABEL.
Quando, na segunda parte, estudaremos as dificuldades de transmissão da Revelação primordial, voltaremos nossa atenção para este episódio bíblico, que é de importância capital.
Observamos desde já que, após a confusão das línguas feita por Deus mesmo em Babel, as nações se dispersaram carregando uma tradição muito antiga. E é nessa mesma região que, algumas gerações depois, Deus fez a CHAMADA de ABRAÃO. Ele o retirou dessa antiga tradição para lhe confiar, a ele e a seus descendentes, uma Nova Revelação, e o fez o "Pai dos Crentes", ou seja, o Patriarca da "religião", cuja grande diferença, o próprio Guénon observa corretamente, é o contraste com a tradição metafísica. Portanto, é nessas circunstâncias que ocorreu a separação das duas famílias espirituais.
Naturalmente, não teremos a mesma opinião que Guénon sobre os fatos. Mostraremos, facilmente, aliás, e sem recorrer a subterfúgios, que a religião judaico-cristã constitui, na realidade, o tronco antigo; e é a tradição metafísica que é o ramo separado.
Achamos que, em última análise, e embora Guénon não o escreva explicitamente, a tradição oriental pode ser chamada de TRADIÇÃO BABÉLICA.
5 - Uma Tradição "não humana"
Uma das principais fontes da "Grande Tradição Primordial" de R. Guénon são os tratados védicos, complementados por seus comentários. Guénon nos ensina que esses tratados são veneráveis não apenas por sua antiguidade, mas principalmente pela natureza de sua inspiração.
A palavra "Vêda" é um termo sânscrito que deriva da mesma raiz indo-europeia que o verbo latino Videre = ver. Vêda significa "visão" e também "conhecimento". Isso nos sugere que os tratados védicos formam um vasto conjunto de visões.
"No início, é sempre necessário recorrer a uma INSPIRAÇÃO DIRETA, pois não se trata de uma obra individual; não importa se a tradição foi expressa ou formulada por tal ou tal indivíduo, pois ele não é o autor disso, uma vez que essa tradição é essencialmente SUPRA-INDIVIDUAL. É por isso que a origem do Vêda é chamada apaurushêya, ou seja, NÃO HUMANA" (Introdução ao Estudo das Doutrinas Hindus, 3ª parte, capítulo II).
Neste trecho, Guénon resume muitos capítulos de sua obra. Ele menciona duas noções que são constantes em seu trabalho: uma certa MÉTODO (ou caminho) contemplativa; e o OBJETIVO final ao qual essa contemplação leva. Vamos examinar sucessivamente esse método e esse objetivo, pois foram os das visionários que podem ser considerados os escritores anônimos do Vêda.
O CAMINHO CONTEMPLATIVO preconizado por Guénon constitui uma inspiração "direta" e "supra-individual".
É um caminho DIRETO porque realiza, como já vimos, um conhecimento intuitivo. No vocabulário cristão, poderíamos falar de uma "infusão intelectual", ou seja, um conhecimento adquirido sem a mediação de qualquer percepção sensorial.
É também um caminho SUPRA-INDIVIDUAL porque opera uma transformação da personalidade. O visionário busca a contemplação não fora de si mesmo, mas dentro, ou seja, em seu âmago. Seu trabalho de introspecção consiste em despertar nele o germe que já está lá de forma latente, virtual e inconsciente. Após esse trabalho, o "eu" individual dá lugar ao "si" pessoal. O indivíduo se transforma em pessoa.
Então, o que é esse "si" pessoal ao qual se chega assim? É a participação elementar no PRINCÍPIO UNIVERSAL. É o ponto de contato que cada ser humano possui, sem saber, com o "Princípio Universal". O método contemplativo, que é dito metafísico, tem precisamente o efeito de fazer esse germe florescer. Após essa introspecção, o sujeito, que era simplesmente um indivíduo, tornou-se uma "pessoa" por sua participação consciente no "Princípio Universal" que é de natureza metafísica.
Essa é a VIA METAFÍSICA. Ela realiza uma "inspiração direta" porque é intuitiva. Ela também é "supra-individual" porque confere a verdadeira personalidade.
Quanto ao OBJETIVO final ao qual essa via metafísica conduz, é o "Princípio Universal". E é ele, precisamente, que nos é dito ser NÃO HUMANO. Infelizmente, essa designação, totalmente negativa, não revela sua verdadeira identidade. Seria uma força ou um espírito angelical? Seria um contato com a quintessência cósmica? Seria apenas uma revelação do homem para si mesmo, ou uma espécie de auto-revelação?
Não obtemos nenhuma resposta para essas perguntas. Guénon repetirá incansavelmente que a inspiração do Vêda é "não humana". Essa é a expressão consagrada; ele nunca formulará outra; ele não se deixará levar por divulgações intempestivas; ele se imporá essa disciplina de vocabulário com a rigorosidade que apenas um líder de Escola é capaz quando se trata de manter a linha. Portanto, chegaremos ao final dos vinte e quatro trabalhos do mestre sem saber exatamente o que é a origem não humana da tradição oriental. Ele apenas nos convidará, se quisermos saber mais, a seguir nós mesmos o caminho metafísico recebendo a INICIAÇÃO.
Em que a via metafísica difere da via mística seguida no cristianismo? Guénon explica em muitos lugares que não quer usar outras palavras além de "metafísica" para qualificar a via contemplativa oriental. Ele especialmente não quer usar a palavra "mística", pois a mística e o misticismo são noções e fenômenos religiosos, portanto, de uma ordem inferior. Essa precisão de vocabulário merece uma explicação, pois não é apenas convencional e prática, mas diz respeito à natureza das coisas.
Entende-se que Guénon tenha insistido em designar, por duas palavras diferentes, duas coisas tão diferentes de fato quanto a contemplação metafísica dos Orientais e a contemplação mística dos Cristãos, pois nem os objetivos nem os meios são os mesmos.
A contemplação metafísica dos Orientais leva ao "domínio dos princípios universais", passando pela busca ativa e até intensiva de uma semente inconsciente que está enterrada no âmago do ser humano.
A contemplação mística dos Cristãos leva ao Deus Pessoal e Criador, passando pelo vazio e pela passividade amorosa de uma alma que espera tudo de Cima.
Deve-se reconhecer que Guénon, ao distinguir essas duas vias e atribuir a cada uma um termo específico, mostra, mais uma vez, um discernimento incontestável. Ele tocou em uma realidade autêntica.
No entanto, devemos acrescentar do nosso lado que essas duas vias ainda têm pontos em comum. Mais precisamente, elas envolvem mecanismos mentais análogos. A via metafísica é, em última análise, apenas a via mística desviada de seu objetivo. Há, entre essas duas vias, a mesma diferença entre RELIGIOSIDADE NATURAL e a verdadeira religião.
O ser humano é naturalmente construído para a verdadeira religião. A natureza o predispõe à verdadeira religião. A natureza contém todos os mecanismos mentais necessários para receber a Revelação Divina e implementá-la. No entanto, esses mecanismos, providencialmente destinados a receber a Revelação do Alto, podem ser desviados, já que o ser humano possui o livre arbítrio, para as revelações de baixo. Se tivéssemos que dar um nome à via contemplativa oriental, a chamaríamos de via PSEUDO-MÍSTICA, para deixar bem claro que se trata, em suma, de uma imitação.
6 - Uma Tradição Intemporal
Certamente, a altíssima antiguidade dos tratados védicos não é indiferente para R. Guénon. Isso é muito compreensível. Não é sem importância, para uma tradição, produzir textos que estão entre os mais antigos que se pode encontrar. Mas acabamos de ver que essa antiguidade se torna de interesse secundário quando comparada à inspiração não humana dos textos. Essa inspiração os torna documentos que podem ser qualificados como REVELADOS, embora depois se possa perguntar por quem.
Guénon agora vai tirar, dessa origem não humana, um novo corolário. Ele atribui aos textos védicos uma atemporalidade que inicialmente será uma extensão de sua antiguidade, mas que acabará por substituí-la verdadeiramente.
Com sua aplicação habitual, ele nos faz notar que a tradição metafísica não é apenas antiga, mas intemporal. Ele não diz eterna, porque a eternidade é uma noção religiosa; ele fala de intemporalidade e não de eternidade. Ele não esquece que a metafísica se distingue da religião. Ela é superior a ela. Ela é o vasto quadro abstrato, a vasta envoltura intemporal.
"A questão da data em que as diferentes partes do Vêda foram escritas parece verdadeiramente insolúvel e, aliás, sem importância real". (Introdução ao Estudo das Doutrinas Hindustânicas, 3ª parte, capítulo II)
"É preciso considerar a tradição em sua integralidade e não há necessidade de perguntar o que, dentro dessa tradição, é primitivo ou não, pois trata-se de um conjunto perfeitamente coerente". (ibidem).
E por que o conjunto permanece perfeitamente coerente? É porque a fonte de inspiração é sempre a mesma; é a fonte não humana que, por isso, está absolutamente fora do tempo. Ela é a mesma hoje como era há dois ou três mil anos.
Mas então, será possível declarar "tradicional" dados recentes? Nada impede que isso seja feito, desde que esses novos dados sejam de fonte não humana, assim como já eram os antigos. Se essa condição for cumprida, as contribuições modernas não podem romper a homogeneidade da tradição. Eles se integram a ela sem dificuldades. Compreende-se que uma tradição tão expansível seja declarada intemporal.
"As circunstâncias históricas, assim como outras contingências, não exercem nenhuma influência sobre o cerne da doutrina, que tem um caráter INTEMPORAL, e é evidente que a inspiração de que acabamos de falar pode ocorrer em qualquer época". (Introdução ao Estudo das Doutrinas Hindustânicas, 3ª parte, capítulo II).
7 - Uma Tradição Infalível
Da origem não humana, e portanto intemporal, da tradição oriental, R. Guénon deduz ainda uma nova consequência: sua INFALIBILIDADE. O capítulo XLV do livro "Vislumbres sobre a Iniciação" é intitulado "Da Infalibilidade Tradicional". Aqui estão alguns trechos desse capítulo.
"...devemos ainda considerar outra questão, que é a da infalibilidade doutrinal; podemos fazê-lo colocando-nos no ponto de vista tradicional em geral... O que é propriamente infalível é a doutrina em si mesma e somente ela, e não os indivíduos humanos como tais; e se a doutrina é infalível, é porque ela é a expressão da verdade que, em si mesma, é absolutamente independente dos indivíduos que a recebem e a compreendem".
"A garantia da doutrina reside, em última análise, em seu caráter não humano... A verdade não é feita pelo homem, mas ela se impõe a ele, não, no entanto, de fora, mas na realidade de dentro, porque o homem obviamente só é obrigado a reconhecê-la como verdade se, antes de tudo, a conhecer...".
Ora, ele a "conhece" no sentido técnico da palavra, quando a apreendeu diretamente pelo que é chamado de intuição metafísica. É esse tipo de infusão intelectual do qual falamos e que chamaríamos de pseudo-mística se pudéssemos usar aqui a linguagem cristã.
Portanto, tendo "conhecido" a verdade pelo caminho metafísico, ou seja, tendo-a assimilado diretamente, pode-se testemunhá-la infalivelmente. Guénon esclarece que não é o testemunho que é infalível, mas sim a tradição metafísica em si mesma. O testemunho só será infalível se for rigorosamente fiel.
Essa noção de infalibilidade aplicada assim à tradição oriental inevitavelmente vai chocar os católicos, acostumados a não ver nenhum abutre pairando sobre a infalibilidade do Pontífice Romano. No entanto, Guénon não quer justamente chocar os católicos, pois ele quer recrutá-los. Portanto, ele vai manter o princípio da infalibilidade na ordem da religião em geral, mantendo assim a infalibilidade do Pontífice Romano como um caso particular. Ele até a justifica, ligando-a à legitimidade canônica e à competência doutrinal.
Mas essa infalibilidade ele a limita à ordem religiosa e especifica que de forma alguma pode ser exercida na ordem tradicional. Pois qualquer pontífice religioso (por exemplo, o Papa dos cristãos) não possui, na ordem metafísica, legitimidade canônica nem competência doutrinal. Portanto, que ele não venha contestar, na esfera metafísica, a infalibilidade da tradição, já que lhe é permitido o livre exercício da sua na ordem religiosa.
Assim, Guénon aplica em relação à Igreja a estratégia que lhe é habitual: "superpor-se sem opor-se". Estratégia que ele expressa nestes termos em seu livro "O Esoterismo de Dante":
"...esotérico não equivale a heresia e uma doutrina reservada a uma elite pode se SUPERPOR ao ensino dispensado a todos os fiéis sem se OPOR".
8 - Uma Tradição Esotérica
Uma última questão se apresenta. A "Grande Tradição Imemorial" tem sido preservada, desde os tempos mais remotos, de uma maneira oculta, ou seja, esotérica? Tem ela sido perpetuada de era em era, enquanto permanece reservada a uma elite?
Como vimos, a tradição apresenta um modo de inspiração e um conteúdo metafísicos. Guénon afirma:
"...em toda doutrina metafísica, há algo que SEMPRE SERÁ ESOTÉRICO, e é a parte do inexprimível que essencialmente toda concepção metafísica comporta" (Introdução ao Estudo das Doutrinas Hindus, 2ª parte, capítulo IX).
Portanto, a tradição terá, por assim dizer tecnicamente, uma parte esotérica. Há mistérios da tradição que permanecerão inacessíveis aos ministros das religiões pelo motivo muito simples de que esses ministros não seguem o caminho metafísico, mas apenas o caminho místico, e, consequentemente, suas fontes de inspiração permanecem secundárias, subordinadas e subsidiárias.
A religião, um fenômeno devocional e sentimental, se dirige ao grande público. Isso é o que Guénon expressa ao dizer que ela é de natureza exotérica. Ela é feita para as necessidades das multidões, entre as quais, nos dizem, ela realiza maravilhas. Mas precisamente as multidões não são capazes de compreender as sutilezas da metafísica, que, portanto, permanece oculta para elas.
No entanto, o sistema de Guénon não pretende privar inteiramente a religião de toda participação na tradição esotérica. Em um regime normal, pelo contrário, ou seja, quando a hierarquia dos valores é respeitada, a religião deve buscar o cerne de seus dogmas e símbolos na tradição metafísica.
Mas historicamente, essa inspiração nem sempre é respeitada, porque a religião quer voar com suas próprias asas e despreza o auxílio, embora tão necessário, da metafísica.
É isso que está acontecendo atualmente com a Religião Católica, que, aparentemente, se alimentava da fonte tradicional no passado, especialmente durante a Idade Média, mas que, infelizmente, desde o período do humanismo, perdeu o contato com a doutrina, a inspiração e as organizações tradicionais.
O Islã, por outro lado, apresenta uma disposição exemplar, na opinião de Guénon: ele mostra ao público uma impressionante fachada puramente religiosa e exotérica, de origem judaica, mas também possui, por trás dessa fachada, as escolas esotéricas do sufismo, onde a tradição oriental é perpetuada.
Se compreendemos bem o raciocínio de Guénon, a família espiritual judaico-cristã, que abandonou a "Grande Tradição Primordial" e se restringiu à religião exotérica, deveria retornar às suas raízes tradicionais e se aproximar do hinduísmo. A Igreja Católica, em particular, deveria possuir, como o Islã, seus círculos esotéricos e tradicionais.
Esta não é uma ideia nova. A maçonaria, há muito tempo, tem considerado um plano semelhante. A diferença é que ela se propõe como uma SUPER-IGREJA esotérica. Guénon mantém o mesmo plano geral, mas designa como ponto de encontro universal, não mais a maçonaria, mas a TRADIÇÃO ORIENTAL.
9 - Conclusão da Primeira Parte
A tradição oriental, da qual R. Guénon deseja se tornar o introdutor no Ocidente, nos é apresentada como uma HIPER-FILOSOFIA puramente intelectual, como uma HIPER-MÍSTICA que leva à certeza absoluta e como uma HIPER-RELIGIÃO universal.
A incompatibilidade desta tradição com a "Tradição Apostólica", da qual a Igreja é guardiã, é absolutamente evidente.
No entanto, não basta apenas constatar essa incompatibilidade; agora é necessário discernir qual das duas tradições é a mais antiga e autêntica; qual das duas transmitiu, ou ao contrário, perdeu, o depósito da Revelação Primordial e das que a seguiram. É a esta série de perguntas que gostaríamos de responder em uma próxima segunda parte.